Sob o título "Vidros Foscos", Daniel Sampaio escreveu hoje a seguinte crónica no Público (revista Pública):
"E-mail" de um professor do Secundário "(...) sou professor de Matemática do Secundário há quase vinte anos e sinto que, cada vez mais, na minha tarefa de ensinar (continuo a chamar-lhe assim) enfrento obstáculos difíceis de transpor. Um desses obstáculos consiste na dificuldade de concentração que muitos alunos revelam durante as aulas (...). Vem isto a propósito de terem sido recentemente colocados vidros foscos nas janelas de algumas salas de aula da minha escola. Eu confesso que me senti horrorizado quando entrei numa dessas salas para dar a primeira aula do dia (um belo dia de sol) e me deparei com uns vidros que me pareciam completamente embaciados. O comentário recorrente dos meus alunos é: "Parece que estamos numa prisão." Procurei saber as razões junto do Conselho Executivo e foi-me dito que isso foi feito em resposta às preocupações apresentadas por alguns meus colegas pelo facto de muitos alunos se distraírem a olhar para o exterior (...) Vidros foscos na sala de aula? Qual será o próximo passo, impedir que as janelas se abram, mesmo nos dias quentes, para manter o efeito vidro fosco? Gostava muito de saber a sua opinião..."
Pois aqui estou a dá-la, caro professor. Começo por dizer que o seu "mail" me fez recuar cerca de 35 anos. Voltei ao Liceu Pedro Nunes e, bem ao longe, ouvi a voz da minha notável professora de Inglês, Maria do Céu Saraiva Jorge, a entrar na sala de aula: "Open all the windows! Put the blinds up! What a beautiful day, today"; ou senti o murmúrio da minha professora de Filosofia, Maria Luísa Guerra, a segredar-nos: "Olhem lá para fora, tentem compreender o mundo, não fiquem agarrados a esse velho compêndio de Filosofia..."
Sei que a escola de hoje é bem diferente. Na altura, éramos uns privilegiados, pois muitos ficavam pela quarta classe. Os que permaneciam não faziam grandes contas à vida, nem pensavam em agredir os professores. Havia indisciplina, claro, mas não existia a intenção de magoar quem nos dava aulas. Os pais e os docentes tinham autoridade, às vezes à custa da força. O professor do Secundário tinha prestígio cultural e era uma figura de referência na comunidade. Hoje é tudo tão diferente que nem se deve comparar: a escola é para todos, as turmas são heterogéneas e podem ter meninos com fome e maus tratos, o professor deixou de ser a única fonte de conhecimento, os pais estão inseguros na sua forma de educar. A indisciplina é tão grande que muitas aulas não são dadas, ou são ministradas a medo, sem cumprir objectivos mínimos. A escola transformou-se, para os professores, numa arena de burocracia sem sentido, onde quase ninguém se sente bem.
O futuro, contudo, nunca poderá estar nos "vidros foscos". Pensar que isolamento do exterior poderá conduzir a melhor concentração é errado. Os alunos sempre terão piores resultados nas disciplinas dos professores de quem não gostam, ou que sentem que não gostam deles. Educar é a pessoa dar-se como modelo, ser educado é a pessoa crescer e evoluir de maneira a constituir-se ela mesma como modelo. Por isso, o aluno cresce emocionalmente se conseguir ver naquele professor alguém que quer imitar, uma pessoa com quem faz sentido ser parecido "quando for grande": quanto mais o jovem for imaturo ou instável, mais crucial será este trabalho de identificação aluno-mestre. Esta relação entre duas pessoas é a base do êxito na sala de aula e pode ser conseguida através da confiança e do respeito mútuo, partindo da diversidade que caracteriza a escola de hoje.
Mais do que "forçar" a atenção dos alunos, impedindo o simples olhar para o pátio da escola por meio de um vidro fosco, a turma tem de ser transformada num grupo de trabalho que coopera, onde os alunos mais "atentos" serão os aliados do professor. Se todos estiverem a trabalhar na sala de aula (leia-se a pesquisar, a resolver questões em conjunto, a tentar compreender o mundo), haverá menos gente a olhar lá para fora, porque a verdadeira vida estará ali à frente.
Em derradeira análise, os vidros foscos são a metáfora do nosso actual sistema de ensino: querem que olhemos só para o que nos mostram de bom, tudo fazem para nos tapar a vista do que continua (tristemente) na mesma.
Acabei de ler o texto de Daniel Sampaio com um misto de riso e de prazer. Por muitas razões, de que destaco uma: os anos andam e a essência da vida - e da educação - continua a mesma. Quem, aliás, foi buscar o passado foi o próprio autor da crónica, ao relembrar-se de atitudes de professores que lhe ensinaram a olhar o mundo a (re)parar no mundo. De imediato, associei esta resposta de Sampaio a um texto do Diário de Sebastião da Gama, datado de 17 de Janeiro de 1949, quando estava em estágio na Escola Veiga Beirão, que relembro:
Verdade seja dita: não tenho muitas queixas a fazer do Destino. E aqui no estágio, além do mais, encontrei uma varanda linda. Linda porque Lisboa é linda e vê-se metade dela da varanda da sala 19. Uma vez subi a um quarto andar onde mora um tipógrafo; ia com ganas de lhe comer os fígados, porque me andava a enganar desde que o livro entrara na oficina. Pois recebeu-me, lá no alto, um sol magnífico a cair sobre Lisboa: isto tudo visto por uma pequena janela. Adeus, fúrias, adeus, palavras como punhais! Basta uma janela para me fazer feliz e foi o que me aconteceu, também, quando cheguei à sala 19. Era o Castelo, era o Tejo, era a cidade de mármore e granito (como dizem) a espreitar para dentro da aula. Vai, que fiz eu? Como queria tomar o pulso aos rapazes em matéria de escrita, propus-lhes aquele tema: 'Da varanda da nosss aula' podia muito bem ser o título da redacção; mas também podia ser outro, à escolha do freguês. O que eles escrevessem servia para eu ver como escreviam, como viam e como imaginavam. À maneira de preparação disse-lhes: 'Suponham que aqui está uma chávena da China. Vocês têm de escrever a partir dela e podem fazê-lo contando que ela tem este ou qauele feitio, esta ou aquela cor, um desenho que representa isto ou aquilo e tem a asa do lado esquerdo. Mas também não dizer a nenhuma destas coisas e imaginar, com os olhos nela, uma coisa passada na China: chinesinhos de rabicho, arroz comido com pauzinhos, sei lá o quê! Ou fantasiar um chá das cinco em que serviu aquela chávena; quem estava nesse chá, o que se disse, o que se passou durante essa hora. Posto o que, vão à janela um bocadinho, olhem, voltem, sentem-se e escrevam o que quiserem, com o título ou subtítulo 'Da varanda da nossa aula'.
Os rapazes, feito o honesto barulho de correrem à varanda, atiraram-se à obra. Eu fui pacatamente olhar Lisboa, porque começo a fazer-lhes sentir que eles não devem copiar.
E se a varanda estivesse envidraçada com vidros foscos?
1 comentário:
Coincidências!
Como o mundo é pequeno e as lembranças de uns se cruzam com as de outros! Só é preciso partilhar!
Recordo as mesmas professoras aqui citadas por Daniel Sampaio e tantos outros daquele Liceu, cuja postura muito nos marcou.
Mas recordo também a maravilhosa Lisboa que, das salas da Veiga Beirão onde realizei o meu estágio,me encantava os dias!
Em nehuma delas nos fecharam as janelas nem da sala nem da esperança na vida! Que fizemos nestes últimos 30 anos? MCT
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