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segunda-feira, 31 de julho de 2023

A proibição do primeiro livro de Romeu Correia



Sábado sem sol em 1.ª edição (1947), em 2.ª edição (1975); recorte de O Setubalense, de 13.Agosto.1975


No número 51 do jornal Mundo Literário, de 26 de Abril de 1947, o crítico Nataniel Costa (1924-1995) escrevia sobre “um jovem auto-didata cuja experiência da arte de escrever era quase nula e cuja cultura tem sido adquirida, em grande parte, nas bibliotecas populares da sua terra”, que tinha publicado “um volume de contos, sob vários aspectos, digno da maior atenção.” O autor apreciado era Romeu Correia (1917-1996), almadense, que acabara de publicar o seu primeiro livro, Sábado sem sol, constituído por oito contos.

O Mundo Literário, em cuja direcção pontificaram nomes como Jaime Cortesão Casimiro e Adolfo Casais Monteiro, iniciado em Maio de 1946, teria apenas mais dois números na sua vida - um, em Maio de 1947, e outro em Maio de 1948. A publicação acabou devido a pressões várias, a que não foi estranha a influência do poder político. E, coincidência das coincidências, o livro, publicado cerca de dois meses antes desta crítica (em 5 de Fevereiro), seria proibido em 10 de Maio (duas semanas depois do escrito de Nataniel Costa) pela Direcção dos Serviços de Censura.

Na crítica saída neste periódico cultural, eram avançadas algumas linhas que podem ajudar a compreender o destino desta obra, considerada “prova clara de que estamos perante um jovem escritor que soube encontrar na vida do povo os motivos e a razão dos seus contos; que conhece e sente os ambientes que descreve”, sendo perceptível “uma identificação do autor com essas vidas - o sentir seus, também, os dramas e as esperanças dessa gente - o que nos parece constituir uma das mais importantes condições para a realização de uma literatura sincera e humana.” Apesar de indicar algumas fragilidades na construção das narrativas e no “poder artístico”, a avaliação de Nataniel Costa deixou-se cativar por aspectos como a vivacidade e naturalidade dos diálogos, o poder de observação e o conhecimento da realidade, factores que levaram o crítico a concluir que aquelas histórias eram mais “coisa vista do que imaginada”. Obviamente, uma escrita que ia ao encontro da estética neo-realista e que, como tal, mereceria a desconfiança da censura...

 

Os “critérios” do censor

Quando o capitão José da Silva Pais, em 10 de Maio de 1947, se dirigiu ao director da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), rogando-lhe que mandasse “proceder à apreensão do livro intitulado Sábado sem sol da autoria de Romeu Correia”, fê-lo com base no relatório subscrito pelo capitão Borges Ferreira, em que eram apontadas as faltas cometidas pelo autor: “este livro de contos é, de um modo geral, bastante mau, porque aproveita a mais pequena oportunidade para focar a questão social.” O desprezo a que a obra era votada neste relatório não tem qualquer relação com a estética ou com a criação, antes se preocupa com o retrato social traçado, chegando ao ponto de pôr condições para que “talvez o livro possa ser publicado”: a primeira, no sentido de os contos “Chegou o carvoeiro”, “Sempre Menino” e “Novela interrompida” (na sua terceira e quinta partes) serem suprimidos; a segunda, exigindo que fossem eliminadas “várias frases mal sonantes, de uma moral bastante duvidosa”, encontradas em dezena e meia de páginas do livro, devidamente indicadas. Curiosamente, o crítico Nataniel Costa considerara que os contos “Chegou o carvoeiro” e “Novela interrompida” eram experiências que provavam que “o seu autor pode, se souber superar-se por um trabalho sério e constante, vir a escrever obra de valor”...

O espírito de censor de Borges Ferreira permitia-se concluir o relatório de uma maneira que aviltava a obra apreciada: “São contos sem moral, sempre a puxar para a questão social e, portanto, não sei a quem possa interessar semelhante livro.” No entanto, o leitor perceberá o porquê das palavras de Borges Ferreira, se ler os textos punidos, que fizeram com que este título de Romeu Correia entrasse para o rol dos títulos proibidos, tal como consta referido nas obras Livros proibidos no regime fascista (1981) ou em Obras proibidas e censuradas no Estado Novo (2023).

 

Os pruridos do censor

“Chegou o carvoeiro” é o conto que abre a obra, contando o momento da descarga de um cargueiro inglês que transportava carvão, acção passada em Almada, “onde está a Companhia de Pesca”, e deixando perpassar as condições sub-humanas, as dificuldades e a dureza da vida dos descarregadores, pessoas contratadas para aquele serviço, de escassos dias, que levam uma personagem, o Ruivo, a combinar um acidente que o atinge e lhe deixa o pé “em pasta de sangue” para assim obter “sessenta dias de reforma”, enquanto os seus companheiros finalizavam a tarefa e deixavam de ter outra subsistência. A imagem do tratamento dado aos homens ou das condições de vida perpassam por excertos como: “o encarregado percorre com o olhar zeloso os homens perfilados, como marchante a ver bois de carga em feira aberta” ou “a luta do trabalho recomeça, violenta, brusca, raivosa, contra o destino inelutável dos que mourejam” ou ainda “há três dias que dura a descarga - três dias de pesadelo!”

“Sempre menino” relata o encontro de um jovem de 18 anos, Paulo, que vive com uns tios que lhe garantem o quotidiano mais ou menos aburguesado, com a namorada, Lídia, costureira, filha de um casal em que o pai alcoólico exercia a violência doméstica. A barraca em que viviam a mãe de Lídia e os quatro filhos (tinham fugido da casa de família) é pretexto para a descrição das condições de vida - uma cama servia para os cinco e, perante as dificuldades, Paulo levara mesmo um cobertor de sua casa para deixar com a família. Pelo conto perpassam ainda algumas situações de fantasia sexual do rapaz, que, chegado a casa, adormece, sonhando com uma tia, em imagem que sobrepõe com a da irmã da namorada.

“Novela interrompida”, narrativa em vários capítulos, aborda as condições de vida das mulheres no mundo fabril (corticeiras) e a reivindicação que apresentaram para um aumento de salário, situação que originou uma manifestação e o confronto com a força policial. Aspectos fortes são o momento em que um elemento da força de segurança esbofeteia a sua mulher, que era uma das manifestantes, ou o da dactilógrafa que goza com os aumentos que as trabalhadoras da fábrica pretendiam ou as insinuações e ameaças feitas a Valério, o ajudante de guarda-livros, que, por se ter solidarizado com um jovem trabalhador exausto, foi acusado de ser “homem de ideias perigosas”, conspirador e “inimigo da civilização cristã”.

Das dezasseis referências a páginas em que fragmentos do texto deveriam ser alterados, uma dúzia diz respeito ao conto “Mestra”, por aí passando as tensões sociais entre a empregadora dona da casa de costura e as costureiras (“os olhos das operárias cobiçam todo aquele recheio” do mobiliário da casa da Mestra; a desconfiança da mestra, que marcava tudo em casa para impedir a tentação de desvio das coisas pelas empregadas, considerações da ex-operária sobre a “exploração infame” na casa da Mestra, o trabalho em série e sem direitos, o canto das raparigas durante a ausência da mestra - “se somos pela igualdade, / temos direitos iguais” -, as visões sobre a sexualidade - a “sorte” da rapariga com casa posta pelo amante, o consentimento do pai quanto aos devaneios do filho porque este estava “na idade de gozar”, a gravidez clandestina escondida). Referência também importante é a que consta em página do conto “Rumo”, em que o leitor assiste ao cansaço de Ernesto, personagem que se sente explorada “a alombar e a ouvir ralhos” e que, no final do conto, se escapa, deitando-se num canavial de onde vê os operários que vão chegando e ouve os apitos da fábrica e decide que lhe “não hão de comer os ossos”, tendo em mente a fuga para a América...

 

28 anos passados, a 2.ª edição

Só em 1975 surgiu a segunda edição de Sábado sem sol (aumentada com dois contos), altura em que Romeu Correia revelou que a venda dos exemplares da edição inaugural dera um lucro de 3900$00, verba que foi canalizada para “as bibliotecas da Incrível e da Academia Almadense”, conforme era referido na contracapa de 1947. Na introdução feita para a edição de 1975, o autor explicava: “Testemunhar os problemas sociais, os conflitos de classe, os dramas humanos, revelando e condenando o mundo injusto e contraditório que nos rodeia e oprime, é a função primeira do contador de histórias.” E o leitor percebe que as observações feitas por Nataniel Costa em 1947 tinham toda a razão de ser - estas histórias eram mais fiéis ao “ver” do que ao “imaginar”.

Nesse mesmo ano de 1975, na sua edição de 13 de Agosto, o jornal O Setubalense publicava excertos do conto “Chegou o carvoeiro” e, assinado por M. Gonçalves Martins, havia um rápido texto de apresentação sobre o livro: “são pedaços sangrentos arrancados à vida dura dos homens humildes que labutavam duramente na região de Almada.”

A pressão que a censura exerceu sobre a criação literária, como o escritor almadense recordava no Diário do Alentejo, em 20 de janeiro de 1987, levou a que os autores se autocensurassem e não tivessem liberdade criativa: “Aqui há uns anos, estávamos a escrever e às tantas dizíamos: isto não passa na Censura. E eliminávamos grandes passagens do que escrevíamos. Em vez de um livro fazíamos abortos. (...) O pior censor não era o que estava lá fora à nossa espera. O pior censor era o censor que cada escritor tinha dentro de si. Era um acto de coragem escrever um livro.” Quanto à proibição de “Sábado sem sol”, reconhecia não ser “um grande livro”, ao mesmo tempo que explicava: “um livro para ser apreendido pela PIDE não precisava de ser grande coisa, podia não valer nada; a PIDE é que tornou esse livro conhecido.”

Recentemente, o livro teve direito a edição fac-similada sobre a primeira edição, incluído na colecção “Biblioteca da Censura”, forma interessante de trazer este autor para a actualidade depois de anos de esquecimento para lá dos limites do local. Por estes contos perpassam os momentos de fragilidade e exploração, de miséria e exclusão, mas também marcas de ironia e de uma certa atitude de denúncia, aspectos que conferem a esta obra, como Maria Graciete Besse referiu no diário Público (23 de junho de 2023), o estatuto de “interessante documento histórico-social sobre a Outra Banda na primeira metade do séc. XX.”

João Reis Ribeiro. "500 (e mais) palavras". O Setubalense: nº 1127, 2023-07-31, pp. 174-175.


quarta-feira, 7 de julho de 2021

Matilde Rosa Araújo entre a verdade e a redenção (3)



O conto foi a tipologia literária que Matilde Rosa Araújo preferiu para o seu percurso de escritora, marcando todo o seu trajecto literário, opção justificada desde cedo: em 18 de Julho de 1944, Sebastião da Gama era o destinatário de uma carta de Matilde, que incluía alguns poemas anunciados como partes integrantes de um futuro livro, “Mar Alto” (que não viria a ser publicado), em que a preferência pelas histórias era registada - “Creio bem que o Mar Alto há-de ficar sempre numa gaveta à espera de maré. Prefiro publicar novelas que são menos eu. Tenho medo de que digam mal do mar alto porque dizem mal de mim.” E, uns meses depois, em Março de 1945, o poeta da Arrábida recebia nova carta, acompanhada de páginas do diário de Matilde, que proclamava, em 24 desse mês: “Eu vou fazer um conto quando tudo grita poesia. Mas a poesia não conta, fala sem dizer. E o conto conta, diz. (...) Eu tenho que dizer.”
Depois de se ter estreado com A Garrana em 1943, Matilde Rosa Araújo foi publicando contos em revistas diversas. Pela Páscoa de 1947, publicava Estrada sem Nome (Portugália), reunindo vários deles, depois de uma hesitação entre a conhecida editora da capital e a Coimbra Editora. Por todos passam vidas, num desejo grande de as contar, povoadas por crianças muitas vezes, mas sobretudo por personagens femininas - a solidão de uma professora (“Raquel, Raquel, Raquel”), o ciúme a atiçar o contrabandista e a faina dura de uma mulher que trabalhava para alimentar sete filhos de sete pais (“Papoila vermelha”), uma história de amor inventada entre solidão (“Catarina”), a viuvez de uma mulher que vira “barco sem vela” (“O marido que Deus tem”), a angústia perante o silêncio (“Atlântico”), a mistura dos sentidos e dos sentimentos (“Sala de espera”), a consciência do crescimento a partir do olhar sobre o corpo (“A menina das pernas grandes”), a ocupação do tempo e as distâncias sociais (“O aquário”).
A mais extensa narrativa assume o título do livro e surge pela voz de um narrador masculino, Manuel, em catorze partes. História contada em jeito de memórias ou de autobiografia, o relato de Nelo é uma entrada pela sobrevivência e pela descoberta do amor, redigida num momento de doença vivida em seis meses de hospital, forma que a personagem assume para se despedir de histórias do seu passado numa aldeia da zona monçanense e para encetar nova vivência do amor na capital, seduzido pela insistência da enfermeira que lhe vai lendo esses escritos um pouco às escondidas.
As vidas que perpassam por estes contos são marcadas pelo sofrimento e pela tristeza, pela doença e pelas dificuldades da vida, pela desprotecção e pela miséria, pelo trabalho infantil e pela solidão, numa permanente insatisfação medida na distância que vai entre a realidade e o sonho, muitas vezes com refúgio num imaginário salvífico, conjunto favorecedor de retratos de denúncia, intensos na estética neo-realista.
A aceitação do destino é bem descrita por Nelo: “A gente não sabe como as coisas começam, não. Primeiro são as folhas que caíram, a fazer remoinho. Depois sem mais começa o vento que até arranca as árvores. E nós somos o canavial que vai ficando moído sem se quebrar...” Quando Matilde Rosa Araújo dizia, na entrevista ao Século Ilustrado, que a literatura seria “verdade e redenção”, estaria, com certeza, a defender esta personagem, que, para tentar dar a volta ao destino, optou pela escrita para se libertar, para encontrar a redenção...
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 658, 2021-07-07, p. 9.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Alves Redol inicia "Livros Proibidos" no "Público"



Com a edição do Público de hoje começou a ser publicada a colecção “Livros Proibidos”, de autores portugueses, em edições facsimiladas, cada uma delas inserindo o relatório do censor em que a proibição é justificada. Obras com primeira edição surgida entre a década de 1930 e a de 1960, todas demonstram até onde iam os argumentos da censura, que zelava pela manutenção da ordem e dos bons costumes.
A lista compreende treze títulos, com saída a ritmo semanal, e foi iniciada com Gaibéus, de Alves Redol, impresso no final de 1939. Considerado hoje um dos títulos mais importantes do Neo-Realismo, este romance de Redol foi proibido por despacho de 26 de Abril de 1940, dizendo o censor estar-se perante “um autor de forte poder de análise”, com um livro que, “além de juntar a cores fortes um quadro de miséria dolorosa, foca também o aspecto social do drama dos humildes ceifeiros”. Como resultado, não se está perante “um livro revolucionário porque os personagens são humildes mesmo perante a brutalidade dos capatazes”, mas… o último parágrafo do parecer justifica a proibição: é que “há páginas neste livro que chocam pelo realismo, que nalgumas se transforma em pornografia e prejudiam o seu incontestável valor.”
Os outros doze títulos que compõem a série são: Histórias de Amor (1952), de José Cardoso Pires (em 17 de Abril); Fátima: Cartas ao Cardeal Cerejeira (1955), de Tomás da Fonseca (em 24 de Abril); Povo (1947), de Afonso Ribeiro (em 1 de Maio); Quando os Lobos uivam (1958), de Aquilino Ribeiro (em 8 de Maio); O Encoberto (1969), de Natália Correia (em 15 de Maio); Vagão J (1946), de Vergílio Ferreira (em 22 de Maio); Rã no Pântano (1959), de António de Almeida Santos (em 29 de Maio); Minha Cruzada Pró-Portugal: Santa Maria (1961), de Henrique Galvão (em 5 de Junho); Um Auto para Jerusalém (1964), de Mário Cesariny de Vasconcelos (em 12 de Junho); Diário VIII (1959), de Miguel Torga (em 19 de Junho); Refúgio Perdido (1950), de Soeiro Pereira Gomes (em 26 de Junho); Escritos Políticos (1969), de Mário Soares (em 3 de Julho).

sábado, 15 de outubro de 2011

De Manuel da Fonseca e do Neo-Realismo

Manuel da Fonseca faria hoje 100 anos. Ainda neste ano, em 29 de Dezembro, passarão também os 100 anos do nascimento de Alves Redol. E já neste ano, em 7 de Agosto, passaram os 100 anos do nascimento de Políbio Gomes dos Santos. Três nomes ligados ao neo-realismo literário português, três nomes a não serem esquecidos nas escolhas de leituras que se devem fazer.
Uma boa sensibilização para estes nomes e para o que foi a importância do neo-realismo pode partir do dossiê “O neo-realismo ainda conta?” que a revista Os Meus Livros deste mês (nº 103) publicou. Por lá passam abordagens destes três autores; lá se fala da importância de títulos como a colecção “Novo Cancioneiro” ou os periódicos O Diabo, Sol Nascente ou Vértice; ali se evoca ainda Mário Dionísio e Carlos de Oliveira, bem como se podem ver as ligações de Júlio Pomar ou de Manuel Ribeiro de Pavia ao movimento. Por ali vogam as palavras de escritores de hoje como Urbano Tavares Rodrigues (para quem o neo-realismo levou adiante “esse empenho em ser verdadeiro, em mostrar como se é, porque se é”), Paulo Vieira (que rejeita a necessidade de “a literatura doutrinar o leitor”), David Machado (que associa o neo-realismo à datação) ou Valter Hugo Mãe (com as preferências pela poesia de Carlos de Oliveira). Por lá ressaltam também as palavras de David Santos, director do Museu do Neo- Realismo vilafranquense, a requerer estudos críticos e equilibrados sobre a época, bem como as de Maria Alzira Seixo, que, sobre Manuel da Fonseca, diz que “nada [na sua obra] é simplista” e que “cumpre todos os parâmetros de análise literária para ser considerado um autor que não merece não ser lido”.