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quarta-feira, 14 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (3)

 


Um dos textos intensos, em termos de percurso histórico-cultural e de defesa dos poetas, presente em Viva la Poesia!, do Papa Francisco, é a carta apostólica de Março de 2021, surgida a propósito do sétimo centenário da morte de Dante Alighieri, exercício que passa pelas leituras pontifícias que o poeta italiano possibilitou no século XX (através de Bento XV, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI) e pela adesão de Francisco ao autor de Divina Comédia, obra que se afirma como “um grande itinerário, assim como uma verdadeira peregrinação, seja pessoal e interior, seja comunitária, eclesial, social e histórica”. Entendendo Dante como “paradigma da condição humana”, Francisco atribui-lhe a missão de ser “poeta da esperança” pelo caminho que fez entre uma visão do inferno, “a condição humana mais degradante”, e a visão de Deus, como possibilidade de “uma nova humanidade que aspira à paz e à felicidade”, irmanando-o com Francisco de Assis.

A construção deste caminho, com invocações históricas, recheado de símbolos e de imagens intensas, apresenta Dante como referência de um tema que é caro a Francisco: “paladino da dignidade de todo o ser humano e da liberdade como condição fundamental tanto das opções de vida como da própria fé”. Quase no final do texto, Francisco considera que, em Dante, “podemos quase vislumbrar um precursor da nossa cultura multimedia, na qual palavras e imagens, símbolos e sons, poesia e dança se fundem numa única mensagem”, razão adicional para que a obra do poeta florentino seja apresentada aos jovens como mensagem forte e importante.

Esta preocupação de apresentar a literatura, particularmente a poesia, como determinante para a formação dos agentes pastorais constitui tema da carta em que Francisco abordou esse papel, datada de Julho de 2024, logo de início defendendo “o valor da leitura de romances e de poesia no caminho do crescimento pessoal”. Seguindo uma perspectiva didáctica da leitura, porque “uma obra literária é um texto vivo e sempre fecundo”, Francisco elogia a capacidade criativa que a leitura traz, em vantagem sobre outros meios — “Diferentemente dos meios audiovisuais, onde o produto é mais completo e a margem e o tempo para enriquecer uma narrativa ou interpretá-la costumam ser menores, na leitura de um livro o leitor é muito mais ativo. De alguma forma, ele reescreve a obra, amplifica-a com sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de drama e simbolismo.” Para reforçar a importância da literatura na formação, Francisco valoriza a forma como o quotidiano a influencia e recorre ao jesuíta Karl Rahner (1904-1984) quando disse que ela parte dos “acontecimentos reais como a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as coisas pobres que preenchem a vida.” E conclui o Papa: “O olhar da literatura treina o leitor na descentralização, no sentido dos limites, na renúncia ao domínio cognitivo e crítico sobre a experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de riqueza extraordinária. Ao reconhecer a inutilidade e talvez até a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinómica de verdadeiro/falso ou certo/errado, o leitor acolhe o dever de julgamento não como instrumento de dominação, mas como impulso à escuta incessante.”

O elogio (e desafio) aos poetas consta numa carta que lhes é dirigida, publicada em 2024, numa antologia de poesia religiosa. Apresentando-os como aqueles que são “olhos que olham, mas também sonham”, elege-os como excelentes mensageiros, pois “o artista é o homem que vê mais profundamente, profetiza, anuncia uma maneira diferente de ver e de compreender as coisas que estão diante dos nossos olhos”, apresentando “tanto as belas quanto as trágicas realidades da vida”. Chamando-os à sua função para a Humanidade, Francisco enaltece o trabalho dos poetas — “dar vida, dar corpo, dar palavras a tudo o que o ser humano vive, sente, sonha, sofre, criando harmonia e beleza” —, ao mesmo tempo que lhes atribui a responsabilidade de poderem “ajudar a entender melhor Deus como o grande ‘poeta’ da humanidade.” Em jeito de exortação, este texto conclui com o incentivo aos poetas: “Segui em frente, sem cansar, com criatividade e coragem!”

Este texto acaba por justificar todas as mensagens sobre poesia que Francisco nos lega neste Viva la Poesia!, dirigindo-se aos leitores, aos formadores, aos que escrevem, aos responsáveis pelo mundo, assumindo a poesia como uma manifestação de aprendizagem do humano, absolutamente necessária, porque “uma pessoa que perdeu a capacidade de sonhar não tem poesia, e a vida sem poesia não funciona.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1524, 2025-05-14, pg. 14.


quinta-feira, 8 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (2)

 


A apresentação pública de Viva la Poesia!, reunindo uma dúzia de textos do Papa Francisco (entre encíclicas, prefácios e entrevistas) sobre a necessidade dessa arte que a poesia é, ocorreu no mês de Março, quando ele estava internado no hospital Gemmeli, em Roma. Ao longo das várias intervenções recolhidas, o leitor fica perante formulações que valem um programa pedagógico de âmbito universal.

No primeiro texto papal, entrevista dada a Antonio Spadaro (o responsável por esta obra) publicada em 2013, Francisco recorda um episódio do seu tempo de professor, quando tinha de leccionar El Cid aos seus alunos — perante o descontentamento dos jovens quanto à matéria, desafiou-os a lerem a obra em casa para, nas aulas, serem tratados autores como García Lorca ou outros, contemporâneos, mais estimulantes. “Para mim, foi uma grande experiência”, admite Francisco, pois “concluí o programa, mas de forma não estruturada, organizado não conforme o que era esperado, mas sim segundo uma ordem que surgiu naturalmente na leitura dos autores.” E pergunta Spadaro: “Então, Santo Padre, para a vida de uma pessoa, é importante a criatividade?” A resposta, embrulhada em riso: “Para um jesuíta é extremamente importante! Um jesuíta deve ser criativo!” Uma criatividade que levou o então professor Jorge Bergoglio a apresentar contos escritos pelos seus alunos a Jorge Luis Borges, que prefaciou uma recolha dessas narrativas...

Este texto poder-se-á ligar ao último, que reproduz uma entrevista de Spadaro a Jorge Milia, aluno de Bergoglio em Santa Fé, na escola jesuíta da Imaculada Conceição, no início da década de 1960, e autor de um dos contos incluídos na referida antologia, lembrando as aulas do professor e o contributo legado para o conhecimento da literatura, para a escrita criativa e para a divulgação do teatro entre os alunos — “Com Bergoglio, o teatro levou os alunos a considerarem as obras como um trabalho de equipa e a aprenderem a descobrir a verdadeira mensagem dos autores.”

A atenção à leitura da poesia é a preocupação que ressalta neste livro, associada à forma de estar no mundo e de agir humanamente. Quando Luca Milanese (n. 1992) publicou em 2020 o livro Rime a sorpresa, o prefaciador foi Francisco, numa tarefa que lhe agradou (como revela nesse texto) e que acabou por ser um pequeno manifesto em favor do acto poético: “Não haveria poesia se não houvesse alguém disposto a ouvi-la. Se o nosso tempo é pobre em poesia, não é porque não exista a beleza, mas porque temos dificuldade em ouvir”, pois “a poesia é um exercício livre de escuta, um caminho com duas direções: para quem a escreve e para quem a ouve.”

Desse mesmo ano é a carta papal Querida Amazónia, obra em que as referências a poetas avultam, como são os casos da equatoriana Yana Lucila Lema, do colombiano Juan Carlos Galeano, do peruano Javier Yglesias, do chileno Pablo Neruda, do boliviano Jorge Vega Márquez ou dos brasileiros Vinícius de Moraes e Pedro Casaldáliga. As preocupações com o mundo, expõe-nas Francisco com um permanente recurso à poesia, como também ficou evidente na mensagem para o IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares (em Outubro de 2021), designando-os como “samaritanos colectivos” e desafiando os interlocutores a serem “poetas sociais”, uma vez que têm “a capacidade e a coragem de criar esperança onde só há desperdício e exclusão”, por isso se lhes aplicando a designação — é que “poesia é criatividade, e vós criais esperança.”

A preocupação com a Inteligência Artificial e com uma educação marcada pela humanidade encontram também eco em Francisco e na sua defesa dos sentimentos e da poesia da vida, como o deixou patente no discurso à academia da Universidade Pontifícia Gregoriana, em Novembro de 2024: “Nenhum algoritmo pode substituir a poesia, a ironia e o amor, e os alunos precisam de descobrir o poder da imaginação, ver a inspiração germinar, entrar em contacto com suas emoções e ser capazes de expressar seus sentimentos.” A propósito da expressão das emoções e da ironia, valerá a pena lembrar que, meses antes, em Junho, ocorreu o encontro de Francisco com uma centena de humoristas de todo o mundo (em que estiveram os portugueses Ricardo Araújo Pereira, Joana Marques e Maria Rueff), tendo valorizado esta arte de uma forma surpreendente, quase descobrindo a poesia do riso: “quando vocês fazem alguém sorrir, Deus também sorri.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1524, 2025-05-07, pg. 10.

 

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (1)

 


“Caro irmão, viva a poesia! Fico feliz que tenha reunido os textos que escrevi ao longo dos anos sobre a importância da poesia. Gostaria que a poesia ocupasse um papel importante nas nossas universidades! Precisamos de recuperar o gosto pela literatura nas nossas vidas, mas também na nossa educação, caso contrário seremos como um fruto seco. A poesia ajuda-nos a sermos humanos, e hoje precisamos muito dela.” A mensagem, datada da Casa de Santa Marta em 20 de Janeiro de 2025, tem a assinatura do Papa Francisco (Jorge Mario Begoglio, 1936-2025) e é dirigida ao jesuíta Antonio Spadaro (n. 1966), que a reproduziu na abertura do livro Viva la Poesia! (Milano: Edizioni Ares), recolha de textos do Papa argentino produzidos entre Agosto de 2013 e Novembro de 2024.

No capítulo introdutório, assinado pelo organizador da antologia, a atenção do leitor vai sendo encaminhada para algumas das traves-mestras que suportam o pensamento de Francisco, texto significativamente intitulado “A vida sem poesia não funciona”.

Spadaro apresenta-nos o percurso de leitor e de pensador do Papa a partir de um princípio que estabelece ligação com a poesia — “Bergoglio sabe que a falta de imaginação é um sério problema para a fé.” Esta afirmação surge como eco de uma quase confissão deixada pelo Papa num discurso para a revista La Civiltà Cattolica, em Fevereiro de 2017, quando afirmou que continuava a ler poesia sempre que lhe era possível, pois “a poesia é cheia de metáforas” e compreendê-las “torna o pensamento ágil, intuitivo, flexível e preciso”, ideia que completava com uma chave que alimentou muitas das suas intervenções e que marcou muitos dos que o admiram: “Quem tem imaginação não se torna rígido, tem sentido de humor, goza sempre da doçura da misericórdia e da liberdade interior.”

Fica patente o papel atribuído à manifestação artística, aqui representado pela poesia: o de ser indispensável para a peregrinação humana que decorre numa vida, aspecto demasiado importante, porquanto, diz Spadaro, “a leitura de romances e de poesia não é um simples passatempo, mas um meio para explorar as profundezas da alma humana e para cada um se compreender melhor a si próprio e aos outros”.

A fechar esta apresentação, o organizador refere uma constante nas intervenções de Francisco — “larga referência à poesia e à literatura nos seus discursos e nos documentos que legou, ora citando um verso, ora um autor ou o título de uma obra”. Para o confirmar, todos nos lembramos dos seus discursos na Jornada Mundial da Juventude de 2023, como no de 2 de Agosto, no encontro no Centro Cultural de Belém, perante o corpo diplomático, em que citou Camões, Sophia de Mello Breyner, Fernando Pessoa e José Saramago, ou, ainda no mesmo dia, no encontro com o clero e agentes da pastoral, nos Jerónimos, invocando o padre António Vieira e Fernando Pessoa, ou, no dia seguinte, quando se encontrou com jovens universitários e convocou para a sua mensagem os nomes de Pessoa, Sophia e Almada Negreiros...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1520, 2025-04-30, pg. 20.

 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Aristides de Sousa Mendes biografado por Cláudia Ninhos


 

“Era realmente meu objectivo salvar toda aquela gente, cuja aflição era indescritível: uns tinham perdido os seus cônjuges, outros não tinham notícias dos filhos extraviados, alguns tinham visto sucumbir pessoas queridas sob os bombardeamentos alemães que todos os dias se renovavam e não poupavam os fugitivos apavorados. (...) Muitos deles eram judeus, que, já perseguidos antes, procuravam angustiosamente escapar ao horror de novas perseguições, por fim um sem-número de mulheres de todos os países invadidos que procuravam evitar ficar à mercê da brutal sensualidade teutónica.”

Assim respondeu Aristides de Sousa Mendes (1885-1954) à nota de culpa resultante do processo disciplinar instaurado em 1940, por ter assinado vistos para cidadãos em fuga da perseguição nazi nos consulados de Bordéus e de Bayona. Mais adiante, afirmava ter-se inspirado “única e exclusivamente nos sentimentos de altruísmo e de generosidade de que os portugueses souberam tantas vezes dar provas eloquentes”. Depois, assumindo ter ultrapassado as ordens recebidas: “Posso ter errado, mas, se errei não o fiz com intenção, tendo procedido sempre segundo os ditames da minha consciência, que nunca deixou de me guiar no cumprimento dos meus deveres.”

A história do cônsul português que Salazar, na decisão sobre este processo disciplinar, empurrou para “a pena de um ano de inactividade, com direito a metade do vencimento da categoria, devendo de seguida ser aposentado”, vem sumariamente contada na obra O essencial sobre Aristides de Sousa Mendes (Imprensa Nacional, 2021, que a disponibiliza gratuitamente na sua página), de Cláudia Ninhos (n. 1985).

O foco deste livro está sobre a carreira diplomática do biografado, percurso relatado a partir das fontes primárias existentes nos arquivos (correspondências e os próprios processos disciplinares em que Sousa Mendes esteve envolvido), seguindo o leitor um trajecto pelos tempos de estudo em Coimbra, ingresso no Ministério dos Negócios Estrangeiros, exercício de funções na Guiana Britânica (1910), na Galiza (1911 e 1927), em Zanzibar (1911), em Curitiba (1918), em Berlim (1921), em São Francisco (1921), em Maranhão e Porto Alegre (1924), em Antuérpia (1929), em Bordéus (1938), detendo-se a biografia no último processo disciplinar que lhe foi instaurado e na vida de sofrimento e tentativa de regeneração do cônsul.

O que fica da história é a luta entre a política cega, a consciência e a ética, com a burocracia das circulares a interferir num processo a que não são alheias a polícia política e muita hipocrisia. Aristides de Sousa Mendes sempre invocou razões humanitárias para a sua decisão na assinatura dos vistos de Bordéus, aspecto nunca considerado. Contudo, Salazar, logo que finda a guerra, dizia, na Assembleia Nacional: “Quaisquer outros na nossa situação acolheriam refugiados, salvariam e agasalhariam náufragos, ajudariam a suavizar a sorte dos prisioneiros, por dever de solidariedade humana e para manter (...) a justiça e a paz. Pena foi não termos podido fazer mais.”

A lenta reabilitação de Sousa Mendes cabe também nesta história, pois apenas em 1988 a Assembleia da República decidiu em conformidade. Ainda hoje, diz Cláudia Ninhos, a memória surge dividida entre “o herói que se transformou em figura de culto e o cônsul que desobedeceu e cujo papel no salvamento de refugiados é objecto de branqueamento por alguns autores, curiosamente, diplomatas como ele.”

Lembrando a data em que, em Bordéus, Sousa Mendes decidiu assinar, em nome da sua formação, vistos para todos os refugiados (resumindo o livro a história de uma família, a do polaco Stefan Rozenfeld, a título de exemplo), o Papa Francisco instituiu, em 2020, o 17 de Junho como o “Dia da Consciência”, assim lembrando uma figura inspiradora em prol da dignidade humana.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 873, 2022-06-22, p. 10


sábado, 28 de novembro de 2020

Papa Francisco: da pandemia para o futuro

 


Ao retomar as audiências gerais, em 2 de Setembro, falando sobre os efeitos e as mudanças provocadas pela pandemia, o Papa Francisco dizia: “Hoje a solidariedade é o caminho a percorrer rumo a um mundo pós-pandemia, para a cura das nossas doenças interpessoais e sociais. Não há outro. Ou seguimos o caminho da solidariedade ou a situação vai piorar. Quero repetir: não se sai de uma crise da mesma forma que antes. A pandemia é uma crise. De uma crise só se sai melhores ou piores. Temos que escolher.” Já passavam cinco meses desde que, naquele final de 27 de Março, o mundo assistiu a um Papa sozinho na Praça de S. Pedro, numa mensagem “urbi et orbi”, em jeito de oração pela Humanidade, que assim começava: “Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem.”

O forte peso metafórico da comunicação papal de Março serviu para mostrar a vulnerabilidade que dominava o mundo, num ritmo desajustado, ganhando terreno algumas verdades fundamentais: “ninguém se salva sozinho”, “não somos auto-suficientes” ou as necessárias “novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade”, três convicções expressas nessa comunicação.

Esta comunicação, bem como outras sete intervenções do Bispo de Roma produzidas até 22 de Abril, integram o livro Vida após a pandemia (Paulinas Editora), prefaciado pelo cardeal checo-canadiano Michael Czerny, que considera conterem estes textos “directrizes para a reconstrução de um mundo melhor”, numa perspectiva de reflexão sobre desafios para novas práticas nas áreas das actividades económicas, do trabalho, da assistência de saúde, uma vez que “a nossa vida, após a pandemia, não pode ser uma réplica do que se passou antes”.

Nas várias intervenções de Francisco aqui coligidas, é insistente o princípio da “preparação para o depois”, seguindo um caminho de onde não podem estar ausentes a vivência da solidariedade (“este não é tempo para a indiferença”) e a fraternidade (“este não é tempo para egoísmos”). Na homilia pascal, de 12 de Abril, o Pontífice punha a tónica nos decisores, lembrando-lhes que “este não é tempo para continuar a fabricar e a comercializar armas”, insistindo nas várias crises humanitárias que corriam em paralelo com a pandemia, aí incluindo já a vivida na região moçambicana de Cabo Delgado. No mesmo dia, em “Carta aos Movimentos Populares”, Francisco continuava directo: “Espero que este momento de perigo nos tire do piloto automático, sacuda as nossas consciências adormecidas e permita uma conversão humanística e ecológica que termine com a idolatria do dinheiro e coloque a dignidade e a vida no centro.”

Cinco dias depois, na revista espanhola Vida Nueva, o Papa enunciava dois princípios da “nova imaginação do possível” - o primeiro, “se agirmos como um só povo, até diante das outras pandemias que nos ameaçam, poderemos ter um impacto real”; o segundo, “a globalização da indiferença continuará a ameaçar e a tentar o nosso caminho”. Em 22 Abril, Dia Mundial da Terra, retomava o princípio já habitual neste Papa - “amar e apreciar o magnífico dom da Terra, nossa casa comum, e cuidar de todos os membros da família humana.”

Os discursos de Francisco em Vida após a pandemia acentuam a responsabilidade colectiva e são directos, entendíveis para todos, numa linha de insistência, com pistas para a reflexão e acção que se impõem a cada um.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 515, 2020-11-25, pg. 9.


domingo, 18 de outubro de 2020

Papa Francisco: a vida como “arte do encontro”

 

 

“Entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno, contam-se uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes.” A citação provém de documento assinado em Abu Dhabi em 4 de Fevereiro de 2019 pelo Papa Francisco e pelo Imã Ahmad Al-Tayyeb, e surge incluída quase no final da nova encíclica, Fratelli Tutti (Paulinas Editora, 2020), subscrita pelo Papa Francisco em Assis, junto do túmulo do fundador dos Franciscanos, em 3 de Outubro.

O subtítulo, “Sobre a fraternidade e a amizade social”, esclarece o conteúdo e o espírito da frase franciscana que titula a comunicação, “Todos irmãos”, e o facto de, nos oito capítulos que a compõem, várias serem as referências ao encontro de Abu Dhabi bem prova o desafio dessa “amizade social” indispensável para a aproximação das culturas e das religiões, em favor de uma humanidade outra. Este discurso refere numerosos documentos já divulgados por este e anteriores papados, forma de chamar a atenção para a pertinência que a questão assume cada vez mais e de lembrar que os princípios aqui defendidos já têm sido comunicados ao mundo.

Se dúvidas houvesse sobre a relevância desta mensagem, bastaria pensarmos no que a nível mundial se tem passado quanto à pandemia, aspecto acentuado logo no início: “Quando estava a redigir esta carta, irrompeu de forma inesperada a pandemia da Covid-19, que deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto.” Ora, esta dispersão num assunto de saúde pública a nível universal deveria constituir uma lição para todos e espoletar “um anseio mundial de fraternidade”.

Usando a primeira pessoa do singular, o Papa torna-se mais próximo de cada um dos leitores, desafiando-o a pensar com ele e a sentir a co-responsabilização na mudança, porque todos temos vindo a ser co-responsáveis no acontecido: a globalização que nos torna mais sozinhos, o mercado que nos domina, a perda do sentido de vizinhança, a colonização cultural, a política dependente do “marketing”, o racismo (um “vírus”) assumido ou dissimulado, os direitos humanos muito pouco universais, a desigualdade de direitos entre homens e mulheres, a cedência ao poder das tecnologias, o fascínio do virtual, a guerra que “deixa o mundo pior do que o encontrou”... num “mundo que corre sem um rumo comum”, desencontrando-se da realidade, não assumindo as migrações, destruindo a auto-estima, aniquilando a esperança.

A parábola do “bom samaritano” do evangelho de Lucas é mote, desafiando para um olhar sobre a realidade, incentivando a que não se passe ao lado, se preste atenção ao próximo, se olhe para o sofrimento, a que sejamos agentes da dignidade. O desafio provoca o nosso estatuto - “dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância.”

Citando Vinicius de Moraes, o Papa defende a vida como “arte do encontro”, obrigando-nos a pensar, a sermos criteriosos nas escolhas que fazemos e nos governantes que elegemos, a tornarmo-nos agentes do bem. Esta missiva não é só para uma facção, é ecuménica, é para todos (governantes e “media” incluídos), serve para todas as confissões. A questão é querer-se que o mundo seja outra coisa, um espaço onde mais sintamos a humanidade que temos de ajudar a construir.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 485, 2020-10-14, pg. 10.


quarta-feira, 27 de maio de 2020

E, de repente... pensar o futuro



E, de repente... ela abateu-se sobre nós. Num tempo em que todos acreditávamos que estaríamos defendidos de pestes, eis que, vinda do lado nascente, sem se anunciar, paulatinamente, ela surgiu, a pandemia, criando desequilíbrios, morte, apreensão, mudanças. Arrastados, transformámos o nosso estar, o nosso olhar, o nosso sentir, a nossa linguagem. E agarrámo-nos ao sonho de que “tudo vai ficar bem”. Mas, no fundo, o medo acompanha-nos. Isso, o medo. É novidade para nós mas não para a Humanidade, que já conhece narrações como a de Boccaccio (em Florença) ou a de Camus (em Oran)...
Há uns anos, noutra crise, essa de cariz económico, Rui Zink escreveu um texto notável sobre o nosso sentir, A instalação do medo (Teodolito, 2012), referindo: “A ‘crise’ é sempre ‘económica’. As ‘reformas’ são sempre ‘estruturais’. O ‘futuro’ é sempre ‘melhor’. Ou ‘para os nossos filhos’. As ‘medidas’ são sempre ‘necessárias’. Se não fossem necessárias não seriam medidas. Não há alternativa. (…) Os outros fazem política. Nós não fazemos política. A nossa política é a virtude. A nossa política é o trabalho. A nossa política é o medo.” É este medo que nos leva a idealizar que, no futuro, “tudo vai ficar bem”. Assim como quem diz que, por agora, não sabemos o que pode acontecer. Assim como quem diz que esse sonho aniquila o presente sofrido, angustiado. Assim como também escreveu Afonso Cruz nesse romance curioso intitulado Jesus Cristo bebia cerveja (2012): “Conhecer o futuro dá cabo do presente.” Contudo, conseguimos equilibrar a dose de angústia e de curiosidade, de realização e de idealização, neste oscilar entre tempos, através de algumas saídas que preenchem o nosso quotidiano, pois, “embora nos pese toda a indefinição ou os maus prognósticos, conservamos em relação ao futuro uma expectativa que nunca é completamente fechada. Quem sabe? – insistimos nós.” Quem isto escreveu foi José Tolentino Mendonça numa crónica depois reunida no livro Que coisa são as nuvens (Expresso, 2015). O “quem sabe?” é a frincha por onde almejamos que o futuro seja a realidade que agora imaginamos, pelo menos um esgar dessa imaginação...
Daí que, verdade lapaliciana, vale a pena acreditar no futuro. Sobretudo porque sabemos que este presente a que nos habituámos e que temos continuamente feito tem tido muito do que o futuro vai ter e tem tido falta de coisas que o futuro vai trazer. As primeiríssimas questões estarão relacionadas com um diferente olhar sobre nós e sobre o outro e sobre a maneira como nos integramos no mundo e o transformamos. E estas serão questões de vida, que permitirão transformar o conflito em coisas positivas. Como pôs Baptista-Bastos, em As bicicletas em Setembro (2007), “todos os dias constituem o abismo quotidiano do futuro.”
O presente, que todos estamos a entender como um tempo de aprendizagem e desafio nunca experimentado (porque nunca passámos por isto, apesar de os nossos antepassados já o terem sofrido), tem de nos dar pistas para o que há a vir. Somos importantes, muito importantes, num espaço partilhado que nos permite sentir, respirar, trabalhar, viver... a nossa “casa comum”, como tão bem o definiu o Papa Francisco. Se há lição para o futuro é a deste questionar que nos temos de fazer quanto ao nosso contributo para o destino desta “casa” que é o espaço da Humanidade, mesmo que isso tenha de passar por uma outra visão do que seja o nosso “bem-estar”, absolutamente necessário, mas diferente, outro. Um futuro consentâneo connosco. E seja-me permitido usar o humor de António Manuel Ribeiro, o músico que, em Todas as faces de um rosto (2002), escreveu, a propósito das intenções para o devir e por causa de uma situação totalmente diversa: “Meu Deus, porque me hão de perguntar, no fim de cada entrevista, quais os meus planos para o futuro? Haverá, porventura, planos para o passado? E se o novo disco saiu agora que me interessa planear já outro futuro? Que cartilha é esta onde todos foram beber a arte de entrevistar? Planos para o futuro? Olhe, continuar a respirar, mudar as cordas da guitarra e brincar com o meu cão. Chega?”
Simples? Não, complexo. Mas o desafio passa por esta selecção sobre o que é essencial para que o humano o seja.
* Magazine Synapsis: nº 14, Primavera.2020, pp. 30-31.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Papa Francisco e o significado do presépio



No primeiro dia de Dezembro de 2019, o Papa Francisco datava, em Greccio, a sua carta apostólica O Sinal Admirável (Lisboa: Paulinas, 2019), um texto “sobre o significado e o valor do presépio”. Poucos dias antes, Francisco tinha anunciado a deslocação: “Irei a Greccio para rezar no lugar do primeiro presépio que fez São Francisco de Assis e enviar a todo o povo fiel uma carta para entender o significado do presépio". E foi ali, na região em que, em 1223, Francisco de Assis fez a primeira reconstrução do nascimento de Cristo, a cerca de uma centena de quilómetros de Roma, no santuário franciscano, que Francisco revelou ao mundo a sua leitura sobre o presépio.
A comunicação é de uma simplicidade impressionante, oscilando entre a memória e a pedagogia, mostrando o presépio como desafio para a sociedade de hoje. Num cenário envolvido pelo silêncio, o presépio é apresentado como “um apelo para seguirmos pelo caminho da humildade, da pobreza, do despojamento” e cada um dos sinais presentes no quadro merece a interpretação papal, quase num efeito de “zoom” que se vai dirigindo do mais geral para o mais particular: o céu estrelado e o silêncio para a procura de respostas “às questões decisivas sobre o sentido da nossa existência”; o contraste das representações de casas ou palácios em ruínas, marcas de decadência, com a “novidade” da mensagem natalícia da reconstrução do mundo e da vida; “as montanhas, os riachos, as ovelhas e os pastores”, representações de uma criação participante; todas as outras figuras simbólicas que cada um carrega para o “seu” presépio, demonstrando um caminho de simplicidade, de mistério e dando a entender que, “neste mundo novo inaugurado por Jesus, há espaço para tudo o que é humano e para toda a criatura”; finalmente, as imagens da gruta - Maria contemplativa e apelativa, José guardião, o Menino sorridente e de mãos estendidas para ser recebido - e as dos magos, vindos de longe na sua “sede de infinito” para representarem a alegoria das ofertas, que simbolizam a realeza, a divindade e a humanidade de Jesus.
O retrato apresentado cruza-se com as fases da vida de cada um e com o entusiasmo da infância em torno do presépio ou com o gesto de, continuamente, se armar esse mesmo presépio. E é já próximo do fim que Francisco afirma: “Não é importante a forma como se arma o Presépio; pode ser sempre igual ou modificá-lo cada ano. O que conta é que fale à nossa vida.” Ligando esta força à manifestação da fé, o Papa deixa aqui o desafio mais interessante que nos é feito por esta recriação que não abandonamos e que, iniciada por Francisco de Assis, traz um pouco dos livros sagrados para o ambiente que fazemos e construímos em cada dia.
Esta ideia do silêncio e da reconstrução a partir das imagens que fazem o presépio encontramo-la também no texto de José Tolentino Mendonça “O burro do presépio e todos os outros”, publicado recentemente na revista do semanário Expresso (nº 2454, 9.Novembro.2019). Depois de lembrar vários episódios sobre a importância do burro na história humana, o cronista chega às 163 vezes que o burro é mencionado na Bíblia (das 3594 referências a animais que ela contém) para chamar a atenção para o seu papel no quadro representativo do Natal: “O burro do presépio sempre me comoveu. (...) O mais natural é que se tratasse de um dos asnos anónimos do acampamento dos pastores e que escutou, ao mesmo tempo que eles, o pregão feito pelos anjos (...). Provavelmente, começou apenas por acompanhar a excitação dos pastores (...). Mas, depois, ele próprio se apercebeu de que no chão, diante das suas patas, surgia o rasto luminoso de uma estrela que o chamava. (...) Quando os pastores chegaram à visão do recém-nascido, ele já lá estava, como uma figura do presépio, (...) deitado por terra, protegendo com o calor do próprio pêlo a jovem parturiente e aquele filho. Os seus olhos grandes não se afastavam do pequenino, nem um segundo. E extasiados assistiam ao recomeçar do mundo.”
É neste final de contemplação e de fascínio perante o recomeço que o texto de Tolentino Mendonça vai ao encontro da carta do Papa Francisco, quando nos convida à reconstrução sobre a simplicidade. Uma e outra leitura constituem dois bons momentos de reflexão sobre o sentido do presépio, o tal “sinal admirável” que nos é oferecido para que a vida seja sempre um espaço e um tempo de encontro.

domingo, 23 de dezembro de 2018

D. Manuel Martins: “Nascemos Livres”, uma mensagem com Direitos Humanos



São cinquenta as crónicas que se albergam sob o título Nascemos Livres (Porto: Fundação SPES, 2018), livro póstumo do primeiro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins (1927-2017), inicialmente publicadas no Jornal de Matosinhos, entre Setembro de 2016 e Setembro de 2017, com abertura de José Ferreira Gomes (presidente da Fundação SPES) e prefácio de Eugénio da Fonseca (professor setubalense, presidente da Caritas e uma das pessoas que mais dialogou com D. Manuel Martins).
O título do livro não é inócuo: num tempo como o nosso, em que à liberdade são impostas muitas fronteiras que pouco têm a ver com a justiça, em que se assinalam os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem (assinada em 10 de Dezembro de 1948), em que continuamente ouvimos falar sobre limitações sociais, a voz de D. Manuel Martins encontra registo neste título, que era uma das suas frases de catequização e de intervenção.
As crónicas são curtas e também neste aspecto jogam a sua eficácia porque os textos vão ao encontro do essencial, partindo de situações concretas e sem rodeios. Logo na primeira intervenção, “Cidadãos abaixo do nível da pobreza”, o dedo é apontado aos responsáveis da “causa primeira desta lamentável situação” que “é a Filosofia Económica que guia o mundo”. A intervenção vai mais longe quando comenta, dando conta do ridículo de situações a que todos assistimos: “Quantas vezes apetece perguntar: mas, afinal, o que é isso de cidadania, de democracia, de direitos humanos? Aqueles (não todos, felizmente) que no-lo propõem ensinar-nos nem imaginam o espectáculo que oferecem a quem o ouve.” E a questão dos direitos humanos vai saltitando, espreitando-nos em quase todas as crónicas, às vezes explicitamente, às vezes implicitamente, suportada em frases tão límpidas quanto estas: “Ser feliz é o mesmo que ter acesso a todos os Direitos Humanos”; “é urgente levar os nossos cidadãos a conhecerem e a apaixonarem-se pela Declaração Universal dos Direitos Humanos”; “é no mundo que a Igreja se move e vive para cantar, promover e defender a dignidade do Homem, os Direitos Humanos são a sua profissão”; “a Declaração consta de trinta artigos e ficamos com a impressão de que são o Evangelho traduzido em linguagem do nosso tempo”.
A confessada adesão ao espírito do Papa Francisco (a quem chama “o Papa com o relógio acertado” ou o “Papa Profeta”) leva-o aos desafios que se põem à nossa relação com a Natureza ou com o dinheiro ou à mudança necessária dentro da própria Igreja - “Queremos padres no mundo, que se enterrem no mundo, para aí iluminarem e ajudarem a descobrir e a testemunhar os verdadeiros valores.”
Assunto das suas crónicas vão sendo os acontecimentos, o real com que as pessoas se confrontaram durante aquele tempo dos textos-encontro publicados ao ritmo semanal: as eleições em Portugal, em França ou nos Estados Unidos; as controvérsias em torno da Caixa Geral de Depósitos; a colocação de professores; as ameaças à paz; as dificuldades do cidadão comum; os falecimentos de Mário Soares e de Daniel Serrão; os exemplos de Abel Varzim, de Sebastião Soares de Resende e de António Ferreira Gomes; a celebração dos dias (do Doente, dos Namorados, do Natal, da Páscoa, do Carnaval, do Trabalhador, da Mulher, do 25 de Abril, da Mãe); a solidariedade como prática do quotidiano; o centenário das Aparições em Fátima ou a Semana das Vocações; os incêndios. A interpretação que D. Manuel Martins apresenta da vida tem, numa das mãos, os factos e na outra, a palavra bíblica, seja por referência directa ao livro sagrado, seja através de testemunhos relacionados com o mesmo livro.
Mesmo para os seus leitores matosinhenses, o primeiro bispo sadino não esqueceu nestas crónicas a referência à sua “querida diocese de Setúbal”, ao contar, com data de 26 de Setembro de 2016, um caso de “testemunho coerente e corajoso da nossa fé”, assente na Doutrina Social da Igreja - a criação do restaurante social e do consultório dentário social levada a cabo na paróquia de Nossa Senhora da Conceição pelo padre Constantino Alves, um gesto que dá alento ao slogan “todo o homem tem direito a sorrir” e que D. Manuel assim comenta, enaltecendo esta iniciativa da paróquia: “Eu vejo neste slogan o melhor compêndio do respeito pelos Direitos Humanos.”
Uma outra referência à margem do Sado surge pela poesia de Sebastião da Gama, quando, ao evocar as palavras do Papa na recepção que fez aos sem-abrigo, aconselhando-os a nunca deixarem de sonhar, D. Manuel Martins remata: “Pelo sonho é que vamos! Apetece acrescentar.”
A última crónica, “O nosso querido Bispo”, surge datada de 16 de Setembro de 2017, a evocar o prelado portuense D. António Francisco dos Santos (1948-2017), que falecera cinco dias antes. Logo no parágrafo inicial, é dito que este bispo conquistou o Porto em três anos, “em pouco tempo tornou-se alma do Porto”. Depois, são lembrados outros importantes prelados da diocese - D. António Augusto Castro Meireles (1885-1942), D. António Ferreira Gomes (1906-1989), D. Júlio Tavares Rebimbas (1922-2010) e D. Armindo Lopes Coelho (1931-2010) -, todos por razões diversas, mas com uma marca forte no cronista. A concluir, o texto questiona: “D. António Francisco como nos marcará, como marcará o Porto?” E a resposta fecha o artigo: “Para mim, como o nosso querido Bispo.”Não podemos ler esta última crónica sem pensar que, por vezes, a vida nos surpreende. Com efeito, D. Manuel testemunhava sobre prelados que conheceu, tendo como pretexto a morte repentina do “seu” bispo.
Uns dias depois de ter produzido esta crónica - oito, em 24 desse Setembro -, D. Manuel Martins partia também. A forma como fechou a sua derradeira crónica bem podia aplicar-se ao final que poderíamos escolher para um testemunho sobre D. Manuel Martins! Nascemos Livres, este livro, bem pode integrar um testamento espiritual legado pelo “nosso” primeiro bispo!

domingo, 14 de maio de 2017

Sobre a vinda do Papa Francisco a Portugal



O Papa Francisco esteve cá igual a si próprio. Como peregrino, como chefe de uma Igreja com crises e que ele quer tornar mais afirmativa e mais autêntica, como inspirador de um optimismo que todos podemos construir, como desafio para a fé e para o papel de cada um como cidadão, como cristão e como católico.
Tenho uma enorme e profunda admiração pelo Papa Francisco por muitas razões. Por ser diferente, por ser autêntico, por ser um desafio contínuo, por nos levar a pensar com uma linguagem que nos é próxima, pelo seu passado, por ser jesuíta e pelo nome que adoptou - poderia ser o de Francisco Xavier, patrono da Companhia de Jesus (ordem religiosa de que é proveniente), mas foi o de Francisco de Assis, patrono dos Franciscanos e exemplo maior da ecologia humana.
Nesta vinda do Papa Francisco a Portugal, senti a tristeza por muitos amigos meus das redes sociais o tratarem como trataram. Lamento que a tolerância seja apenas um verbo de encher para quando estão de acordo connosco. O respeito pela fé e pelas crenças do outro deveria ser uma máxima, uma orientação de vida. E não é. Vi cenas caricatas e pungentes, recortes de um humor “baixo” e perguntas de jornalistas absolutamente ridículas, como se estivessem a transmitir a reportagem de um qualquer circo, como se a vida fosse ela mesma um espectáculo. Tudo isto nos deve ficar na fronteira do “para lá”, se é que queremos dar testemunho, se é que acreditamos que a fé nos marca e define, se é que queremos que a coerência seja a nossa marca. Mesmo porque o que se pôde ver foi a vivência da fé.
Quando, na sexta-feira, vi a primeira página do jornal “O Setubalense” com a imagem do Papa, logo pensei que os jornalistas teriam aproveitado um acontecimento nacional para o interpretar ao nível regional e local. Não; a questão era a da tolerância dada pelo Governo e não era a simbologia, a crença, a fé, a opinião e o desafio sentido por setubalenses com a vinda do Papa ao nosso país. Uma questão absolutamente lateral, ainda que podendo ser discutida. Uma oportunidade de reflexão e de testemunho (de que bem precisa a nossa sociedade) desperdiçada!
Ainda hoje li no “Público” o depoimento de um autor insuspeito - José Pacheco Pereira. E vale a pena seguirmos as suas palavras: “O Papa fez bem o seu papel de ‘bom Pastor’. Apelou aos cristãos para não deixarem sozinhos os deserdados da história, os que vivem na periferia do mundo, os pobres, os deficientes, os presos, os perseguidos. Isto é uma das coisas que este Papa faz melhor porque é genuíno nesse apelo e coloca a Igreja no lugar certodo seu papel no mundo. Ele não acha, como alguns dos seus fiéis, que a pobreza seja um ‘efeito colateral’, justificado por um hipotético e salvífico modelode desenvolvimento, que ele, certamente, entende ser cruel. Na mesma altura em que ele estavaa falar em Fátima, um Presidente americano, discursando num colégio evangélico, apelouaos jovens recém-formadospara lutarem pelo sucessoe perguntou-lhes quantos quereriam ser Presidentes como ele, para levantarem a mão. Nãoé ocasional, são de facto dois mundos e entre ambos eu prefiro o do Papa Francisco.”
E, já agora, para que dúvidas não existam, leia-se a intervenção que Francisco fez em Fátima ontem, disponível aqui. O desafio é tão forte que, no regresso a Itália, em conversa com os jornalistas difundida pela imprensa, disse apelar aos sacerdotes “para não serem clericais”, pois essa atitude “é uma peste na Igreja”. Incomparavelmente mais corajoso do que aqueles que, a pretexto de não serem crentes, o ridicularizaram!
Mantenho a forma como comecei: o Papa Francisco esteve cá igual a si próprio. Com a honra da sua palavra, da sua convicção, mostrando que a fé é também o que o move. Obrigado, Papa Francisco!