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quarta-feira, 30 de julho de 2025

Teresa Martins Marques e o romance de Miguéis

 


O assunto é a biografia de José Rodrigues Miguéis (1901-1980), escritor nascido em Lisboa, com passagem por Setúbal em 1925 (onde foi delegado do Procurador da República), que, a partir de 1929, viveu no estrangeiro (em Bruxelas, por quatro anos, e em Nova Iorque, desde 1935 até ao falecimento) e que, em Portugal, teve intensa acção na imprensa (Seara NovaDiário de LisboaDiário PopularO Globo, entre outros). No entanto, é uma biografia com marcas inovadoras e surpreendentes esta, que cruza o biografado com uma sua amiga, a cientista Maria de Sousa (1939-2020), e com a própria autora, várias vezes mencionada no seu estatuto de estudante e de investigadora da obra do escritor. O próprio título da obra chama a atenção do leitor para uma forma de biografar distante do convencional — Nos Passos de José Rodrigues Miguéis - Uma Biografia como um Romance, obra devida a Teresa Martins Marques (Âncora Editora, 2025), cuja primeira obra publicada sobre o mesmo autor data de 1994, O Imaginário de Lisboa na Ficção Narrativa de José Rodrigues Miguéis (Editorial Estampa).

Ler uma vida como se o leitor esteja perante um romance, pois. Miguéis e Maria de Sousa foram amigos e tiveram muitas horas de conversa. Este foi o primeiro pretexto para Teresa Martins Marques fazer destes dois nomes as personagens necessárias para a acção desta obra, num diálogo imaginário, em que ele se conta e ela o ouve e inunda com perguntas e observações. Se a longa entrevista é fruto da imaginação da autora (visando interligar os tempos e as acções, problematizar e informar sobre os contextos, aprofundar o pensamento do biografado, enfatizar o percurso utilizando a narração na primeira pessoa), o seu conteúdo é consequência de aturada leitura e investigação, que passou por: conversas com pessoas que foram próximas de Miguéis (Maria de Sousa e Camila Miguéis, sobretudo) e com estudiosos da sua obra  (David Mourão-Ferreira e Onésimo Teotónio de Almeida, por exemplo); conhecimento exaustivo da obra publicada em livro e em periódicos e de materiais não publicados; leitura intensa de documentação alusiva a Miguéis, particularmente na vertente epistolográfica, em que se destacam destinatários como José Saramago (1922-2010), David Ferreira (1897-1989), Jacinto Baptista (1926-1993) ou Taborda de Vasconcelos (1924-2009), entre outros.

Se a palavra “romance” no subtítulo da obra serve para garantir a fluência narrativa, a verdade é que a sua estrutura, fortemente apoiada no género entrevista, vive de tipologias muito diversas de escrita — do monólogo da personagem, ora em tom diarístico ora em exercício de reflexão e de anotação sobre as histórias que fizeram a sua vida; do ensaio, que surge como leitura feita pelo próprio biografado à medida que os trabalhos sobre a sua obra vão chegando ao seu conhecimento; da epistolografia, que suporta muitas das ideias do correspondente e contextualiza as vivências, permitindo uma proximidade maior ao leitor; do resumo de algumas obras, recurso importante pela dimensão autobiográfica que muitas delas apresentam, contendo mesmo chaves de descodificação dessa marca de vivência pessoal.

Nos Passos de José Rodrigues Miguéis é a biografia necessária para o leitor se aproximar de um autor que, sempre preocupado com o que se passava em Portugal, teve de fazer a sua vida distante do país (numa situação entre a emigração e o exílio), não só em termos geográficos, mas também de mentalidade, pois não teve afinidades com o regime político que “Salatzar” ou “Salaczar” marcou, teve a sua acção controlada pela polícia política, recusou o Prémio Nacional de Novelística (apesar de o dinheiro lhe fazer falta) e afirmava o seu tom contestatário “contra gregos e Caetanos”.

Miguéis, que publicou durante 60 anos (no levantamento da bibliografia activa que Teresa Martins Marques apresenta, o primeiro texto publicado sai em Abril de 1921 no jornal O Sol, de Beja, e o último em Agosto de 1980, no Diário Popular, apesar de não ter sido este o seu derradeiro texto), surge vivo na sua argúcia crítica (sobre os outros e sobre si mesmo, com diálogos construídos sobre citações suas), na sua vida complexa e recheada de muitos dissabores e sofrimentos, na sua qualidade de escritor a ser lido e pensado pelo seu olhar sobre Portugal sem tibiezas. Teresa Martins Marques, cuja obra se estende pelo ensaísmo e pelo romance, conseguiu aliar estas duas tónicas em prol de uma biografia necessária, que passará a ser de consulta indispensável para um mais profícuo entendimento da obra de José Rodrigues Miguéis.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1582, 2025-07-30, pg. 10.


quarta-feira, 9 de julho de 2025

J. Rentes de Carvalho: o protagonista do Monte da Dor



Saiu em 1968 (edição recente na Quetzal) e foi o primeiro romance de José Rentes de Carvalho (n. 1930), indo buscar o título, Montedor, a um lugar da freguesia de Carreço. Da localidade pouco se fala, para lá de algumas curtas indicações como a proximidade com pescadores ou a vista para a Galiza, por exemplo, porque o que interessa é apresentar um retrato de uma personagem num espaço sem perspectivas e onde o horizonte parece apenas o que resulta da geografia.

Naquela década de 1950, o protagonista é um jovem que abandona os estudos, vai cumprir a tropa em Lisboa, regressa à terra, aguenta-se a viver à sombra dos pais, acalenta o sonho de partir e está cada vez mais enredado no círculo da aldeia, da família, das limitações que a organização social lhe vai impondo, quase sentindo sobre ele a maldição que a avó, um dia, lhe prescreveu — “este menino há-de trazer desgraça” —, revelada logo no início da história, e que a mãe manteve, ao dizer-lhe, no final da narrativa: “Às vezes, dá-me pena que sejas meu filho! Hás-de ser infeliz toda a vida!”

A necessidade de sair, de se libertar daquela terra, onde qualquer promessa de futuro dependeria do favor do abade ou de alguém muito bem colocado na vida, aquece a sua coragem, mas é, outras tantas vezes, motivo de desânimo, num regressar ao ponto de partida. Os sonhos (ir para Lisboa, para Paris, para a Austrália — o que lhe motiva uma chamada à polícia —, para a Marinha) ou as tentativas de os concretizar (pedindo dinheiro emprestado, roubando jóias da avó para as vender e obter dinheiro, encarar a tropa como possibilidade de alterar o curso da vida) regressam sempre ao espaço centrado na família e na casa (onde só o seu quarto parece ser refúgio de liberdade), na subserviência aos possíveis favores que alguém importante possa fazer. A dureza da sua luta interior encontra ecos em momentos como aquele em que o serviço militar em Lisboa se aproximava do final (num tempo em que o cumprimento da tropa era encarado como a grande possibilidade para mudar de vida) — “A tropa estava a acabar e, ao contrário dos mais, contava os dias com aflição, porque não me decidia a fugir - para onde? - e voltar a casa era entrar na gaiola donde o acaso me tirara.” —, ou aqueloutro em que, sentindo-se prisioneiro dos seus medos de arriscar, já na terra, desabafa consigo: “A remoer a puta da vida. (...) Por dentro é que sinto uma ânsia, a certeza dum desarranjo, coisas fora do seu lugar. Sem saber onde. Ânsia que se faz forte com marés, mas sempre presente. Um medo, para dizer a verdade.”

Os jornais e revistas de França que uma possível apoiante para novos caminhos lhe oferecia acentuam o desajustamento do jovem à sua situação — “Os comboios não me levam. Estes jornais falam dum mundo que não é fantasia, existe, um mundo de gente que cria, que vive. E eu? Sim, senhor abade. Não, senhor abade. Paizinho. Mãezinha. Não te esqueças da lavadeira, passa no Laurestim, vai ao sapateiro, entrega ao arcipreste. Moço de recados.” Nada do que o rodeia o entusiasma, a não ser as momentâneas paixões, uma das quais o levará a casamento forçado pelo pai da rapariga, solução que o protagonista acata mas não interioriza.

Quando o livro foi publicado, José Saramago apreciou-o nas páginas da Seara Nova (n.º 1472, Maio.1968), enaltecendo a linguagem utilizada, “que decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor”, uma escrita que é parca na descrição e surge à medida dos pensamentos da personagem que se conta. Nessa nota, Saramago refere a persistência do protagonista e o ambiente social em que ele se move: “em tal luta não há nada de heróico, de exaltante. Nenhuns amanhãs cantam ou choram. Cada uma das personagens trata da sua vida ou vai à sua morte.” É assim violento o percurso deste jovem de quem o leitor espera a todo o momento que rompa com o estabelecido e corra pelos seus sonhos — e o sonho passava pela emigração, solução para muitas famílias — quando parece que a única coisa que acontece é a auto-destruição da personagem... No final, nem o nascimento da filha o pacifica e vai até ao rio — “caminho pela borda sem perigo, sem destino. Quando chego ao molhe volto para trás, procuro os cigarros, sento-me na areia. Ao bater na muralha a água faz contracorrente, remoinha, dizem que é bom sítio para apanhar enguias. Não oiço o barulho da estrada.”

Uma lenda sobre Montedor associa o nome a “Monte da Dor”, por, segundo a narração, ali terem perdido a vida dois apaixonados que viviam um amor contrariado (uma história à maneira da de Tristão e Isolda). Ainda que não pelos mesmos motivos, Montedor é a história do “monte da dor” deste protagonista que se conta, em conflito com a sociedade que lhe era imposta, fechada, limitada, subserviente, em busca da sua evasão, retrato forte de uma época em que o horizonte se relacionava com a mudança de vida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1567, 2025-07-09, pg. 8.


segunda-feira, 10 de junho de 2024

“Os Lusíadas”: Que fazer com este livro?

 


Em 1980, José Saramago publicou a peça Que farei com este livro?, obra em dois actos, logo levada à cena nesse mesmo ano na Academia Almadense pela mão de Joaquim Benite. Assinalava-se o quarto centenário da morte de Camões, que podia ser o motivo para homenagear o vate renascentista de uma maneira fácil e apologética, mas Saramago criou uma história mostrando o processo difícil de publicação de algumas obras em consequência de pressões vindas das mais diversas proveniências e pelas mais variadas razões.

Nesta peça, em que entram vinte e cinco personagens (ainda que algumas tenham um papel de importância mínima), sobressaem, além do próprio poeta, as figuras de Damião de Góis e Diogo Couto (amigos do poeta) e Bartolomeu Ferreira (censor de Os Lusíadas), todos representando posições e tensões diversas.

Dois anos, decorridos entre 1570 e 1572, é o tempo da acção, balizada por acontecimentos como a chegada de Camões da Índia e a publicação da sua narrativa épica, Os Lusíadas, intervalo dominado pelo esforço do poeta para que a sua obra seja publicada.

Ao dar nota das pressões exercidas, algumas delas ocultas, no sentido do êxito ou do insucesso da edição, Saramago poderá ter querido ir mais longe (haja em vista que o regime democrático português tinha apenas 6 anos), na denúncia do controlo ideológico feito sobre os artistas, muitas vezes travestido de humilhação. Miguel Real e Filomena Oliveira, em As 7 Vidas de José Saramago (2022), sublinham este aspecto, referindo ser possível ver em Que farei com este livro? o reflexo de situações vividas por Saramago — recusa de publicação da obra por editoras, autor estigmatizado pelo regime vigente, o desprezo das elites.

O facto de a história começar em tempo de peste, quando a corte estava em Almeirim, pode servir como metáfora para uma outra peste duradoura e pressentida, agindo sobre o campo das ideias — paulatinamente, ela vai actuando: numa conversa entre fidalgos, Diogo do Couto questiona “Senhores, quem, de entre vós, fidalgos, religiosos, despachadores, moços de câmara e mais quem esteja, conhece Luís de Camões?” e a resposta é dada pela didascália que indica “silêncio geral”; na corte, quando vê o rei a aproximar-se, Camões dirige-se-lhe dizendo que naquele livro tinha escrito “os feitos dos vossos antepassados e as navegações dos Portugueses, do povo de que sois senhor” e, perante a indiferença da real figura, o secretário ordena-lhe que se afaste, pois está a importunar Sua Alteza; na conversa com o neto de Vasco da Gama, a quem recorreu para pedir auxílio na publicação, a humilhação é evidenciada ao ouvir que “a casa da Vidigueira não precisa de quem lhe cante as glórias, ou pagará a encomenda que fizer para lhas cantarem”; finalmente, a intervenção do censor, que exige alterações aqui e ali, sem as quais não seria dado parecer favorável.

Espaço de liberdade é o encontro de Camões com Damião de Góis (n. 1502), em que também esteve presente Diogo do Couto (n. 1542), momento em que se encontram três gerações, com a necessidade de serem fechadas a janela e a porta do aposento — “porque a este sol de Fevereiro sobeja-lhe em luz o que lhe falta em calor” e “por causa do que a Portugal também sobeja e do que a Portugal falta”, justifica o mais velho, que, depois, explica: “Falta a Portugal espírito livre, sobeja espírito derrubado. Falta a Portugal alegria, sobejam lágrimas. Falta a Portugal tolerância, sobeja prepotência.” Damião de Góis virá a ser um intercessor pela publicação da obra, mas, por outras razões que a época explica, acabará preso em 1571, com a indignação de Camões — que questionou o censor sobre as causas desta prisão pelo Santo Ofício —, percebendo-se que a liberdade era mesmo restrita e condicionada e que a justiça não era óbvia.

O título da obra ganha eco no final da representação, quando o próprio Camões, acabando de receber o primeiro exemplar impresso, se questiona: “Que farei com este livro? (Pausa. Abre o livro, estende ligeiramente os braços, olha em frente.) Que fareis com este livro? (Pausa)”. A mudança de pessoa gramatical, da primeira do singular para a segunda do plural, acaba por desafiar os leitores, os poderes e as gerações seguintes: de que significado se virá a revestir esta obra ou que significados lhe virão a ser atribuídos? Ou, melhor, de que aproveitamentos padecerá esta obra?

Uma questão importante, sem dúvida, para ser pensada (haja em vista as utilizações nem sempre por razões artísticas que da obra e do autor têm sido feitas), sobretudo quando se assinalam, ainda que convencionalmente, os 500 anos sobre o nascimento de Luís Vaz de Camões.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1316, 2024-06-07, pg. 2


quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Pensar o coração para homenagear Saramago



Quando Francisco aparece, após longa ausência, ouve de Clara o desabafo marcado pelo afastamento: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu fizeram-no de carne, e sangra todo o dia.” O excerto é da peça A segunda vida de Francisco de Assis (1987), de José Saramago, e originou o tema da terceira edição do concurso literário que a Câmara Municipal de Palmela organizou - De que é feito o teu coração? -, associando-se ao centenário saramaguiano e publicando a antologia com o mesmo título, reunindo os textos premiados (três de cada escalão).

No primeiro grupo (6 a 11 anos), as três histórias foram assinadas por Mariana Figueira Brinca (1º), Simão Rosa de Almeida (2º) e Matilde Alves (3º). O texto vencedor relata uma história cuja protagonista passa pela experiência do medo da doença e da paz resultante da recuperação, chegando à descoberta de que o amor começa nos mais próximos; em segundo lugar, surge uma história em que o coração dos outros é visto pelas atitudes, numa tentativa de olhar o outro, compreendendo o que o torna único; a terceira premiada faz passar a personagem por um percurso de simplicidade, pedagógico, para perceber algo tão complexo como saber de que são feitos os sentimentos.

No segundo escalão (12 a 17 anos), as assinaturas são de Tânia Parreira, Salomé Cruz e Marina Mendes. A primeira envereda por uma história de um amor que à partida parece impossível, mas que ajuda a mudar o mundo, cultivando ideias como a necessidade de se perceber a Natureza e acreditando na construção da utopia; a necessidade de o ser humano pensar, a importância do outro e a utopia como o mundo que se constrói são tópicos da narrativa do segundo texto, enquanto a descoberta de que não há seres perfeitos e a repugnância pela ambição desmedida são os ingredientes que dominam o terceiro classificado.

O último grupo (maiores de 18 anos) reúne os trabalhos de Carlos Vinhal Silva, José Carlos Almeida Lopes e João Alberto Roque. O narrador do primeiro texto, “Sou feito do que são feitos os livros que escrevi”, percorre os caminhos para apurar o sentido da existência, dando lugar ao sonho e ao desejo, num corajoso itinerário que busca construir o seu próprio coração (“agora sei do que sou feito; sou feito do que construí; agora sei de que é feito o meu coração: o meu coração é feito daquilo que há em mim”); a narrativa “Coração variegado”, que obteve o segundo lugar, leva a personagem a um passeio em que ressalta o papel da Natureza, num peregrinar pelas memórias de uma vida doce, agora sofrendo a ausência (“Não estás, mas sinto-te. Percebo agora a saudade. Ensinaste-me a entender de que é feito o meu coração!”); o terceiro texto tem título homónimo do tema do concurso, exercitando-se o narrador na procura da substância que forma o coração (partindo de expressões como “coração de manteiga”, “coração de ouro”, “coração de ferro” ou “coração de pedra”, variáveis de formas como os outros nos vêem), pretexto para abordar a pluralidade de sentimentos despertados e para reflectir sobre a complexidade de que o “eu” é feito.

A diversidade a propósito da matéria que faz o coração encontra linhas comuns na descoberta do outro, na faceta do sentimento, no caminho de que a vida se faz, no álbum que fica daquilo que as vidas são. Como, em O ano da morte de Ricardo Reis (1984), escreveu Saramago, “muitas vezes começamos por falar de horizonte porque é o mais curto caminho para chegar ao coração.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 923, 2022-09-21, p. 10.


quarta-feira, 8 de junho de 2022

Memórias e aprendizagens de Violante Saramago Matos


 

“Sou filha de gente grande. Entre o orgulho que tenho no que eles foram e o medo de eu falhar, tive de aprender a ser eu, para além de ser filha de gente grande. E sempre gostei, e também precisei, de os ouvir.” Assim conclui Violante Saramago Matos (n. 1947) o seu livro De memórias nos fazemos (Edições Esgotadas, 2022), título que revela o conteúdo - momentos e aprendizagens definidores da identidade -, confessando a influência consentida recebida dos pais, ambos “gente grande” - Ilda Reis (1923-1998), pintora, e José Saramago (1922-2010), escritor.

Em quase meia centena de pequenas crónicas, a autora vai encontrando os fios que a ligam à memória dessas aprendizagens (e incorporações), num processo ajudado pela própria escrita, pois, “é certo que, quando escrevemos, arrumamos ideias, obrigamo-nos a torná-las percetíveis, num esforço para encontrar as palavras certas, as que queremos escrever”, em textos que pretendem também testemunhar - “aqui fica muito do que aprendi com ele, que é alguma coisa do que lhe cheguei a dizer.”

Se a faceta do escritor Saramago perpassa por estas páginas, a verdade é que os registos da filha tentam mostrar o equilíbrio com a figura paterna - “para além do pensador e do escritor, sempre tão justa e condignamente recordado e reconhecido, houve um pai. Com quem vivi os primeiros vinte e três anos de vida. Que me ensinou a ‘ler’ (...). Que me chamou várias vezes para conversas sérias e inesquecíveis. Que me apoiou, quando foi preciso. Que, sem retóricas nem palmadas, me ensinou valores e princípios.” -, aspecto reforçado com a reprodução de três mensagens escritas do pai para a filha no final do volume.

As aprendizagens que ficaram advêm de momentos que marcaram pela simplicidade ou pela situação vivida - a necessidade de se informar para fazer um trabalho estudantil (combatendo os “especialistas de sofá”), o encorajamento para retomar o caminho após um acontecimento grave, os primeiros livros oferecidos pelo pai (de Selma Lagerloff e de Edmundo de Amicis), a descoberta do inconformismo, o afecto pelo tacto ou pela presença, o “olhar para o interior das aparências”, a grandeza das pessoas, a capacidade para resistir (notável é o momento em que, presa em Caxias, em 1973, Violante Matos recusa o pagamento da caução, o que levará o pai a dizer-lhe: “Então, tens que ir buscar forças, nem que seja ao dedo grande do pé!”).

As visitas à Azinhaga e ao rio Almonda, pontos de origem de Saramago, preenchem também o imaginário e a escrita de Violante Matos, seja pela necessidade de uma consciência ecológica, seja pela reminiscência vinda dos tempos da “avó Zefa”, tratamento carinhoso dado a Josefa Caixinha, avó de Saramago, ficando o registo de indignação quanto à reconstrução da casa de origem - “A casa foi fechada. Quem ficou com ela, destruiu-a. (...) Ou quis mostrar que, com o dinheiro que tinha, faria melhor. Não fez! Fez uma jóia de exibicionismo, apenas, e já agora de mau gosto.” Geografia também obrigatória é Lanzarote, ponto de conversas e de revelações, encontro de adultos que mutuamente se admiram.

O livro contém uma segunda parte ligada às memórias das releituras dos livros de Saramago, em mais fundos mergulhos. Nem todos merecem texto autónomo, mas por aqui passam os que mais impressionam a autora, destacando-se A caverna (2000) por uma razão pessoal - “este é um livro em que revejo muito da ligação com o meu pai”. 

Em ano de centenário saramaguiano, estas memórias são um bom contributo para o conhecimento do homem que alimentava o escritor.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 865, 2022-06-08, p. 10.


quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Histórias dos avós na memória



Em 7 de Dezembro de 1998, perante a Academia Sueca, José Saramago iniciava o seu discurso por uma evocação: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos. (...) Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro.”

A intenção de Saramago era falar sobre as personagens da sua ficção, inspiradas em pessoas que conheceu e que trabalhou literariamente. Nessa intervenção, que pode ser lida em Último caderno de Lanzarote (2018), Jerónimo e Josefa são apresentados: “bom carácter”, muito pragmáticos, sábios e... sonhadores - a avó, já viúva, confessou ao neto: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer”; o avô, pressentindo a chegada da morte, “foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.” Pelos tempos, ficou ainda a sabedoria do avô, superior contador de histórias, alimento da imaginação do neto: “Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo.”

Igual fascínio pelos avós traz José Tolentino Mendonça no seu mais recente livro de poesia, Introdução à pintura rupestre (2021), peregrinação à infância por onde passam os avós e uma poderosa lembrança da avó num texto final, retomado de outro publicado em 2014: “A minha avó analfabeta (...) foi o meu bosque, a minha viagem, o meu livro. E também um primordial amor.” Já noutra obra, O que é amar um país - O poder da esperança (2020), o poeta madeirense reconhecia: “Quando tomei posse como arquivista e bibliotecário da Santa Sé, uma das referências que quis evocar foi a da minha avó materna, que era uma mulher analfabeta, mas que foi para mim a primeira biblioteca. Em criança, eu pensava que as histórias que contava, ou as cantilenas com que entretinha os netos, eram coisas de circunstância, inventadas por ela. Depois descobri que faziam parte do romanceiro oral da tradição portuguesa. E que afinal aquela avó analfabeta estava, sem que nós o soubéssemos, e provavelmente sem que ela própria o soubesse, a mediar o nosso primeiro encontro com os tesouros da cultura.”

As imagens que dos avós se conservam são habitualmente felizes e nem sempre fáceis de fazer passar. Rita Ferro sentiu-o quando pensou escrever a biografia do avô, António Ferro, figura pública. Depois de várias tentativas e de confrontos com opiniões sobre o seu avô, decidiu adiar o projecto, como refere no diário Veneza pode esperar (2014): “Penoso, pois, um trabalho sobre o meu avô de uma perspectiva consanguínea, particular e desalinhada. (...) Tenho uma ideia íntima de António Ferro, precisa como um retrato e pessoal como uma moldura. É essa e não outra que um dia gostaria de escrever.”

A imagem dos avós é algo de grandioso, alimentada graças às histórias transmitidas, ao saber, ao carácter e a uma visão positiva da vida.  Daí que a personagem de António Canteiro, no romance Vamos então falar de árvores (2020), diga: “Nós, os netos, somos feitos a partir da massa de tender dos avós, a partir das histórias que nos contam e ficam na memória para sempre.”

* J.R.R. O Setubalense: nº 726, 2021-11-03, p. 9.


segunda-feira, 1 de maio de 2017

Para a agenda: Saramago e literatura ibérica na Casa da Avenida



A Casa da Avenida, em Setúbal, traz fotografia e pintura a partir de amanhã: pelas 19h00, será inaugurada dupla exposição - de fotografia, "Lanzarote, a Janela de Saramago", por João Francisco Vilhena, e de pintura, "Daqui para Ali" (referências a escritores ibéricos), por Graça Pinto Basto.
Para a agenda, ao longo do mês de Maio!

domingo, 10 de maio de 2015

Máximas em mínimas: António José da Silva, o Judeu




Depois de ler António José da Silva (1705-1739), o tal que foi vítima no mesmo auto-de-fé que acabou com a personagem Baltasar Sete-Sóis de Memorial do Convento, de José Saramago, o tal que foi cognominado "Judeu", ficam algumas verdades retidas a partir de Anfitrião, que tem o subtítulo de "Júpiter e Alcmena" (Col. “Clássicos Inquérito”, 14. Lisboa: Editorial Inquérito, s/d):

Amor – “Amor é como a Fénix que, para renascer mais belo, é preciso que, de quando em quando, se abrase nas chamas de um arrufo.”
Ausência – “Não há pior mal que o da ausência, pois ao mesmo tempo que acrescenta a saudade também acrescenta o tempo.”
Casamento – “Marido sem ser amante é o mesmo que corpo sem alma. Que importa que o matrimónio ligue o corpo se o amor não une as almas?”
Desejo – “Sempre a boca fala tarde quando madruga o desejo.”
Impossível – “Os impossíveis só se fizeram para os que verdadeiramente amam.”
Juiz – “Um juiz, para ser bom, há-de ser como um espelho: aço por dentro e cristal por fora. Aço por dentro para resistir aos golpes das paixões humanas e cristal por fora para resplandecer com virtudes.”

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Para a agenda - Teatro "O Bando" com José Saramago, na jangada



Pouco mais de dez dias para ver "O Bando" com Saramago, a bordo da Jangada de pedra. De 30 de Outubro a 10 de Novembro. Para a agenda!

quinta-feira, 25 de abril de 2013

José Saramago: A estátua e a pedra



O discurso de José Saramago continua a surpreender e a apanhar-nos na sua postura crítica e de pensamento, agora com a edição de A estátua e a pedra, em português e em castelhano (Lisboa: Fundação José Saramago, 2013). O texto foi inicialmente oral, proferido em Maio de 1997, na Universidade de Turim, num encontro sobre a cultura portuguesa. À medida que o discurso ia fluindo, um gravador encarregava-se de perpetuar a mensagem, depois passada a escrita, agora dada a ler a mais vasto público (houve uma edição em Itália em 1999). O texto dito em Turim teve entretanto actualização, uma vez que Saramago refere nesta edição obras posteriores à data desse encontro.
O título escolhido por Saramago remete-nos para Vieira e lembra aquela belíssima imagem do canteiro que vai esculpindo a pedra, dando-lhe forma, até a transformar numa imagem que até pode ser de um santo. No entanto, aqui, o que Saramago propõe é o discurso ao contrário, da figura para a matéria-prima, num percurso autorreflexivo, debruçando-se sobre a sua própria obra, o que nos obriga a considerar este um texto importante para a leitura da narrativa saramaguiana.
Romance histórico, o meu?, parece perguntar o autor de Memorial do Convento no início da sua comunicação, adiante recusando o epíteto, uma vez que os romances históricos são “tentativas de reconstituição de uma época e mentalidade determinadas, sem qualquer intromissão do presente (à excepção da linguagem), onde o autor finge ignorar o seu tempo para colocar-se no momento do Passado que pretende reconstituir” e o seu caso se apresenta diverso – “uma ficção sobre um dado tempo do passado, mas visto da perspectiva do momento em que o autor se encontra, e com tudo aquilo que o autor é e tem: a sua formação, a sua interpretação do mundo, o modo como ele entende o processo de transformação das sociedades.”
É neste último aspecto que Saramago insiste ao longo de toda a conferência, procurando comprometer os seus títulos com o seu pensar sobre o homem, sobre o mundo, sobre o outro, sobre o processo histórico, sobre a actualidade. Passo a passo, vai desfiando o rol dos seus títulos desde Manual de pintura e caligrafia (1977), com passagem por Objecto quase (1978), Levantado do chão (1980), Memorial do convento (1982), O ano da morte de Ricardo Reis (1986), A jangada de pedra (1986), História do cerco de Lisboa (1989), O evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a cegueira (1995), Todos os nomes (1997), A caverna (2000) e O homem duplicado (2002).
Ao longo da comunicação, há imagens fortes para lá da força da estátua e da pedra, como a da metáfora da espuma marítima que rebenta sobre a areia, uma imagem que mostra sermos “nós a espuma que é transportada nessa onda”, chegada porque “impelida pelo mar que é o tempo, todo o tempo que ficou atrás, todo o tempo vivido que nos leva e nos empurra”; há as pequenas histórias associadas ao aparecimento dos romances e a afirmação da ausência de heróis nas suas obras, que pretendem “contar a vida das pessoas que não entram na História”; e há a teorização de que o percurso dos seus romances se divide em duas partes – a primeira, até O evangelho segundo Jesus Cristo, associada à figura da “estátua”, que outra coisa não é que a “superfície da pedra”, e a segunda, a partir de Ensaio sobre a cegueira, a da “pedra”, que pretendeu entrar “no mais profundo de nós mesmos”, numa “tentativa de perguntar o quê e quem somos”.
O livro inclui ainda textos de Giancarlo Depretis, académico de Turim, a contextualizar esta comunicação, de Luciana Stegagno Picchio, a evocar esse momento da conversa de Saramago, e de Fernando Gómez Aguilera, a fechar, que aplica a metáfora de Saramago sobre o percurso da sua obra, estendendo a análise até Caim (2009), com visitação ainda às obras Ensaio sobre a lucidez (2004), As intermitências da morte (2006), As pequenas memórias (2006) e A viagem do elefante (2008), concluindo que, para este autor, era “imprescindível uma revolução ética que, reivindicando o valor supremo da bondade, reconhecesse como única prioridade o ser humano”.
A estátua e a pedra torna-se um título indispensável para o leitor de Saramago, uma quase autobiografia do seu percurso no romance, que o conta, o analisa e o reinventa.

Sublinhados
Verdade e História – “A verdade na História não está num lugar acessível, onde se possa chegar com facilidade.”
Gente e História – “Na História, iluminada com documentos e certificada com selos, dificilmente encontraremos a gente comum, a que parece que apenas tem existência para sofrer os avatares que outros decidem.”
Crueldade – “Nenhum animal é cruel, nenhum animal tortura outro animal (…). Torturar e humilhar os seus semelhantes são invenções da razão humana.”
Esquecimento – “Esquecer é a morte definitiva.” 

domingo, 14 de agosto de 2011

Urbano Bettencourt - uma escrita fina...

... de ironia inteligente, com humor quanto baste, divertida, que mexe com o leitor.
Um exemplo?
Este, retirado de Que Paisagem Apagarás? (Ponta Delgada: Publiçor, 2010), que, em boa hora, foi apresentado em Setúbal pelo Manuel Medeiros há uns meses. Ei-lo:

Vida Social
Ele frequentava muito a literatura.
Para falar de gastronomia, citava o lascivo e doce passarinho de Camões. Os transportes marítimos não passavam sem dois ou três versos do poeta Alegre. A ecologia vinha, por norma, acompanhada de uns excertos de Sophia. O boletim meteorológico pendia sempre para umas frases de Nemésio. E até os problemas oftalmológicos desembocavam fatalmente em Saramago.
Era o perfeito socialite da literatura.

domingo, 26 de junho de 2011

"A última entrevista de José Saramago", por José Rodrigues dos Santos

“José Saramago, cidadão do mundo e escritor universal, é nosso; nosso, da lusofonia. A sua casa, a verdadeira identidade que o moldou e fez dele o que ele foi, é, afinal, a língua portuguesa.” É este o parágrafo que remata A Última Entrevista de José Saramago, de José Rodrigues dos Santos (Lisboa: Gradiva / RTP, 2011), agora publicada em edição autónoma, mas que já integrou o livro Conversas de Escritores (Lisboa: Gradiva, 2010) do mesmo autor. O parágrafo vem a propósito da casa Saramago em Lisboa e por causa de um plátano, mas singra por essa afirmação que conjuga identidade e lusofonia…
O pretexto desta edição será o primeiro aniversário da morte de Saramago, momento adequado para que as palavras de Saramago, numa reflexão sobre a sua obra, sejam iluminadas. A entrevista ocorreu oito meses antes da morte do autor de Memorial do Convento na biblioteca do Palácio Galveias, em Lisboa, local escolhido por Saramago, que o próprio justificou: “Foi nesta biblioteca que descobri a literatura. A minha família era muito pobre e não havia livros lá em casa, de maneira que, quando eu tinha os meus dezassete ou dezoito anos, descobri esta biblioteca e vinha para aqui ler sem que ninguém me guiasse na leitura. Descobri a literatura sozinho.”
A entrevista passa pelo conjunto da obra saramaguiana desde Terra do Pecado (de 1947) até Caim (2009), com revelações sobre a importância dos seus títulos, como faz, ao responder à observação de que Memorial do Convento (1982) será a obra do reconhecimento público: “Há um outro livro que, no fundo, é parente directo do Memorial e do Levantado do Chão [1980], mas talvez mais do Memorial, que é a Viagem a Portugal [1981]. Esse livro de viagens, que parece ser só isso, não podia ter sido escrito noutra altura nem ter outros companheiros de viagem que não fossem aqueles.”
Interessante é a resposta de Saramago quando Rodrigues dos Santos lhe fala da actividade de tradutor e das possíveis influências que as obras traduzidas por Saramago (cerca de 60) poderão ter tido na sua obra: “O autor é um tradutor. É alguém que traduz um sistema de sinais: emoções, pensamentos, sonhos, devaneios. Isto é um trabalho de tradução, porque tudo isso constitui uma linguagem que, se não encontrar uma forma comunicável de transmissão, fica cá dentro da cabeça de cada um de nós.” Esta interpretação vai encontrar eco mais adiante, no momento em que Saramago defende o valor da linguagem na construção literária – “Uma história bem construída é indispensável; aquilo tem de estar estruturado, tem de manter-se de pé. Mas eu costumo dizer que, da mesma maneira que o corpo humano tem setenta por cento de água, a literatura é setenta por cento de linguagem.”
Homem de criação e de ideias, Saramago esmera-se na comparação da construção de um romance com o crescimento de uma árvore – um e outra têm um limite que se impõe em certa fase do crescimento. Fiel às convicções, justifica a importância da palavra “não”, pela sua simbologia associada à revolução, ainda que se corra sempre o risco de uma revolução se tornar num novo “statu quo”, “num novo sim”.
A questão da pontuação – uso das vírgulas, transgredindo a norma do registo do discurso directo, ou dos nomes próprios com minúsculas – usada por Saramago nas suas obras tinha de estar presente. E a resposta teria de ser artística: “Há uma razão básica que é uma tentativa, talvez nem sempre lograda, de aproximação do discurso escrito ao discurso oral”, afirmação justificada com o ritmo da linguagem e da vida – “Nós falamos como quem faz música; toda a fala e toda a música se constrói com sons e pausas.”
Merece ainda uma referência a observação de Saramago quanto à oportunidade de, no ensino secundário, ser estudado o Memorial, “que levanta uma infinidade de problemas para os quais os alunos com essa idade não estão nada preparados”. Em alternativa, propõe que seja estudada uma obra como A Escola do Paraíso (1960), de José Rodrigues Miguéis, “onde se fala de coisas mais próximas deles”. O leitor que tenha viajado até ao volume de Correspondência 1959-1971 entre Miguéis e Saramago (organizado por José Albino Pereira e publicado em 2010 – Lisboa: Caminho) poderá ver que a admiração e o reconhecimento de Saramago por Miguéis constituem uma marca genuína.
Este trabalho de José Rodrigues dos Santos é ainda um modelo de construção de entrevista. Nela, o entrevistador vai ao encontro «do» e «com o» entrevistado, sabendo muito sobre ele, conhecendo a sua obra, tentando suscitar explicações, deixando que o entrevistado se manifeste a colaborando numa espécie de leitura da entrevista (ou do entrevistado), tal como acontece no momento em que Saramago explica que, para um romance, tem necessidade de que se lhe apresente uma “ideia provocadora” que reflicta uma preocupação, ainda que, inicialmente, pareça fugir à lógica – nesse momento, intervém Rodrigues dos Santos, observando que, “de um ponto de partida inverosímil, cria uma situação que depois é verosímil nas suas consequências”, exultando Saramago: “Exactamente, exactamente! Você definiu isso muito bem!”

terça-feira, 21 de junho de 2011

Do exame de Língua Portuguesa de 9º ano

No exame de Língua Portuguesa de 9º ano, que ontem aconteceu, Camões e a sua epopeia foram metidos de forma inteligente no enunciado, através de um excerto de José Saramago, de Que Farei com este Livro?.
Houve, no entanto, duas questões que poderiam ter sido mais pensadas, talvez retiradas: uma, que, remetendo para o óbvio, destoa um pouco do nível da prova – a nº 6, da Parte B, do I Grupo: “Relê as linhas 17 a 20. Indica a razão pela qual Luís de Camões dirige ao conde de Vidigueira o pedido de protecção.” Ora, nas linhas 17 a 20, a personagem Camões diz ao Conde: “A carta pedia a vossa protecção para as oitavas que por cópia estão em vossas mãos e para as irmãs delas que em minha casa ficaram. Disse-vos que é uma obra composta sobre os feitos dos portugueses e a navegação para a Índia, em que esteve vosso avô como capitão-mor.” Resposta óbvia, com tão reduzido grau de dificuldade que dá (terá dado) para os alunos desconfiarem… De acordo com o cenário de resposta constante nos critérios de correcção, a solução é: “Indica que Luís de Camões dirige ao conde de Vidigueira o seu pedido, uma vez que há uma relação de parentesco entre o conde e Vasco da Gama, personagem da obra para a qual Camões pede protecção.”
A segunda observação relaciona-se com o último item da pergunta 9 da Parte C do I grupo, em que é solicitado um texto expositivo, que deverá seguir vários pontos, designadamente o de referir uma “semelhança entre [o episódio da partida das naus de Lisboa] e o episódio do Adamastor”. A gente pensa e lá vai encontrando umas aproximações, quais sejam as advindas de algum aventureirismo que se confronta com o desconhecido e com o perigo, por exemplo. Fica a sensação de que só se perceberá o que quer o autor da prova quando os critérios de correcção forem lidos. E eles aí estão: “Refere uma semelhança. Por exemplo: tanto «Despedidas em Belém» como «O Adamastor» são episódios da viagem para a Índia.”
Com tão banal semelhança, que dizer deste tipo de critérios?
Quanto ao resto, uma prova equilibrada, abrangente, valorizando a competência da leitura, mas também a cultura geral, ainda que podendo ter um grau de dificuldade mais considerável!...

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Memória: José Saramago (1922-2010)

Revejo o volume da 1ª edição de Memorial do Convento, adquirido numa livraria de Vila Franca de Xira e ali autografado por Saramago em Março de 1983. Uma capa bem mais bonita do que as capas das edições que se lhe seguiram, mas o mesmo dizer, ao longo das edições sucessivas, e um escrever que se foi reproduzindo numa bibliografia que não parou de crescer. Relembro o prazer que me deu a leitura deste romance, logo devorado nessa altura, um livro cuja história tive pena de acabar de ler, fosse pela densidade de emoções, fosse pelo contacto com uma escrita que corria, vertiginosa, rompendo códigos e hábitos. Achei – acho – que Saramago ficaria na história da literatura portuguesa mesmo que não tivesse prosseguido a sua via de escritor, este romance bastaria para nela deixar o nome.
Duas décadas depois, em 2006, Saramago publicava As pequenas memórias, onde, a propósito da terra que é um dos pontos fortes desse romance, escrevia: “Um dia, (…) fui de excursionista a Mafra. Tinha nascido na Azinhaga, vivia em Lisboa, e agora, quem sabe se po um cúmplice aceno dos fados, uma piscadela de olhos que então ninguém poderia decifrar, levavam-me a conhecer o lugar onde, mais de cinquenta anos depois, se decidiria, de maneira definitiva, o meu futuro como escritor.”
E assim se constrói uma história. E uma obra. De Saramago fica essa obra. Com todas as inovações, com o fulgor da escrita. E com os fundamentalismos que a minam, também. Mas continuarei a apreciar essa recordação do Memorial e a sensação que me deixou enquanto leitor. Poderosa, claro. Não tão forte em obras que se lhe seguiram, mas intensa essa do Memorial. Há obras assim!
[foto: José Saramago, na Feira do Livro, em Lisboa, em Junho de 2008]

sábado, 2 de agosto de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da auto-estima – 83
Escola – O ano lectivo chegou ao fim com a sensação generalizada de que foi mais desgastante do que outros, sobretudo pelo caminhar que o caracterizou, numa discussão com muito pouco sentido que nem ajudou a que as coisas fossem justas. No final, umas sessões de formação apressadas vieram tentar atenuar a pressão da avaliação do desempenho docente, com leituras nunca antes admitidas, dando a entender que se trata de uma invenção e de um sistema que vai ser benéfico, que vai ser construído pelos envolvidos, com insistência em tónicas como a transparência, a clareza e a abertura. Para se chegar aqui, bem poderiam os responsáveis ter pensado na formação em mais oportuno tempo, evitando desgastes e pressões que não facilitaram o ano lectivo e ajudando as escolas a construírem a sua avaliação de forma sensata e cordata! Cá estaremos para ver as voltas que ainda vão acontecer e as justificações com que vão ser fundamentadas.
Saramago – Mesmo próximo do Palácio Nacional da Ajuda, o carteiro acabava o café e dirigia-se ao balcão para pagar o custo do seu intervalo, quando viu prospectos da exposição sobre Saramago que no dito Palácio se mostrava. “Ah, não sabia! Mas sabe se está aberta ao fim-de-semana?” O homem do bar acenou que sim. “Tenho que ir lá ver… Não que seja leitor de José Saramago, mas sempre é um Nobel português e do meu tempo… Tenho que lá ir!” E arrancou, a completar o giro que lhe fora destinado, com a promessa de que ainda visitaria o que de Saramago se exibia. Não sei se o carteiro chegou a ir visitar Saramago ao Palácio. Mas, se não foi, perdeu uma bela oportunidade de se aproximar da formação da escrita, do processo por que se constrói um escritor, num mapa de referências culturais, sociais, históricas, num quotidiano de pesquisa, de labuta, de criação, num caminho em que se cruzam o teatro, a crónica, o jornalismo, o conto, o romance, a epistolografia, a política, a cidadania, a arte, numa saga entre o manuscrito, o dactilografado, o emendado e o produto final que um livro é, numa abertura em que os testemunhos dos leitores entravam também.
Agustina – “Dicionário Imperfeito” é o título do primeiro volume da colecção “opera omnia”, que vai reunir a totalidade da obra de Agustina Bessa-Luís e também o título do seu mais recente livro (Lisboa: Guimarães Editores). Constituído por pensamentos e aforismos retirados de textos não ficcionais de Agustina, este livro, organizado por Manuel Vieira da Cruz e Luís Abel Ferreira, contém essências da trama agustiniana que muito ajudam a compreender as suas personagens e que constituem, além do mais, um bom conjunto de reflexões sobre o homem e o viver do século. Como exemplo, a citação sobre a “pequena sabedoria”: “Eu sabia pouco de tudo. Ainda hoje sei muito pouco de tudo, o que me causa embaraço quando vejo a tremenda bagagem de conhecimentos que têm as pessoas. Se ouvirmos tudo o que se diz nos autocarros, nas praias, nas repartições, ao fim do dia podíamos escrever uma enciclopédia em vinte volumes e até ter êxito com ela. Não há nada de mais aceitável do que a pequena sabedoria, os amores confessáveis e as histórias de doenças.”
Se eu e tu – Os meus alunos fizeram tercetos a propósito de um poema com este título, de João Pedro Mésseder. Agora, em fase de arrumações, tropecei em alguns. Reproduzo três: “Se eu fosse água e tu fosses fogo / abraçava-me a ti / sem nunca te apagar.”; “Se eu fosse sol e tu fosses lua / iluminaria a tua noite / mesmo em dias de tempestade.”; “Se eu fosse folha e tu fosses árvore / amava-te para sempre / até cair aos teus pés.”

terça-feira, 22 de julho de 2008

José Saramago - "A consistência dos sonhos"

O segundo dia de férias deu-me a possibilidade de fazer uma coisa que vinha a ser sucessivamente adiada: visitar a exposição sobre José Saramago, no Palácio Nacional da Ajuda, produzida pela Fundação César Manrique. Assim, numa ida a Lisboa, depois de resolver compromisso já assumido, rumei com o filho para a Ajuda, na mira de uma "Consistência dos Sonhos", que assim se intitula a exposição. Havia também a ajudar o facto de esta mostra estar quase no seu termo, que sucederá em 27 deste mês...
Gostei. Pudemos ver demoradamente, saboreando o tempo e os instantes, degustando a história de um português que se fez escritor e se fez Nobel. Histórias de livros, de relações culturais, de trajectos, de uma vida. História em retrospectiva de uma formação literária e de um homem que, num dia de 1994, escreveu: "O meu compromisso é com o meu tempo". Muitos manuscritos, muitos dactiloscritos, muitos livros, muita documentação do que é tornar-se escritor; obras inéditas, algumas incompletas, entre as crónicas e os poemas, entre as cartas e o teatro, entre o romance e a intervenção, entre os apontamentos e as provas revistas, entre a investigação para a escrita e a tradução.
Indispensável. Pelo menos, indispensável. E, no final, se se quiser trazer para casa um pouco do que foi a sensação experimentada na visita, há possibilidades de compras - de livros, obviamente, mas também de outros registos. Como elemento bibliográfico saramaguiano, é de todo útil o documento resultante desta exposição, redigido por Fernando Gómez Aguilera - José Saramago: A consistência dos sonhos - Cronobiografia (Lisboa: Caminho, 2008). É uma outra maneira de ler Saramago. E de vermos a sua obra.