quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O Camões que Isabel Rio Novo nos revela (3)

 


Momento importante, para quem foi um estudioso e conhecedor da cultura clássica e da cultura portuguesa como Camões, foi a publicação da sua obra magna, o poema épico com que quis celebrar Portugal e que não teve, logo no início, os mecenas que pareciam inequívocos, a começar pela rejeição de apoio por parte do neto de Vasco da Gama. No entanto, se esta porta se fechou, outra se abriu, pela mão de D. Manuel de Portugal, que ajudou a resolver o problema económico da impressão e auxiliou na obtenção das autorizações necessárias para a publicação — o momento da narração é interessante porque, neste Fortuna, Caso, Tempo e Sorte, que biografa Camões, Isabel Rio Novo leva o leitor a acompanhar a primeira leitura da obra por este mecenas, em manuscrito, apresentando um resumo do que se relata n’ Os Lusíadas e os pontos que poderiam ser mais discutíveis para a aprovação da mesma, assim chamando também a atenção para o tom crítico que Camões não desprezou na sua obra.

Fica o leitor com a sensação da epopeia que foi publicar este poema, história que tem de passar pela recusa da imagem romântica que se construiu de Camões a ler o poema perante o rei D. Sebastião, apesar de parecer não haver dúvidas de que o rei conheceria o conteúdo da obra...

Publicar este escrito era objectivo persistente do seu autor desde os tempos da Índia (o retrato de Camões na prisão de Goa mostra-o a redigir o canto X da epopeia) e mais insistentemente desde que, por 1570, regressara a Lisboa. O final do percurso de dificuldades pinta-o Isabel Rio Novo com as cores do entusiasmo, mais uma vez recorrendo à conivência do leitor e à imaginação (e vale a pena registar esse parágrafo capital): “É bastante plausível que a data da publicação corresponda ao dia a partir do qual a tença começou a ser paga: 12 de março de 1572. Nessa manhã que, por pura imaginação, pinto como uma daquelas manhãs de primavera lisboetas, luminosas e ensolaradas, começava a escrever-se uma história que extravasa o âmbito da vida do seu criador e cujas peripécias só parcialmente cabem nesta biografia. A emoção de um autor ao segurar nas mãos o primeiro exemplar do seu primeiro livro há de ter sido a mesma há cinco séculos. Em 1572, Camões tinha 47 ou 48 anos. Não era um velho, apesar de a idade ter outro peso naqueles tempos. Mas era um homem envelhecido, doente, amargurado, a quem o futuro já fugia. No entanto, nessa manhã de março (cheia de sol, claro que sim) talvez tenha encarado a vida que lhe restava com algum otimismo.”

A biografia com que Isabel Rio Novo brinda este quinto centenário do nascimento de Camões torna-se uma obra de leitura cativante, num relato onde nem falta o porquê da escolha da capa, primeiro passo para a identificação do protagonista — dominada pelo retrato que do poeta fez Fernão Gomes, tal como pelo outro que retratou o poeta na prisão (“os dois únicos retratos feitos em vida do Poeta”), a autora descreve a personagem nos seus traços físicos quase a fechar a obra e valoriza o contributo trazido por esta representação iconográfica, que, maltratada pelo tempo, está rasgada e tem as duas partes coladas por tiras de papel: “Incapaz de fixar Luís de Camões num retrato, muito menos de propor um ao leitor, à medida que escrevi este livro, fui sempre regressando à sanguínea de Fernão Gomes e à lembrança daquelas três tiras de papel, quase sempre apagadas nas imagens que o reproduzem. Algumas vezes tive a sensação de que as segurava com os próprios dedos. Camões teve um rosto. Aquele que está reproduzido na capa deste livro não andará longe do que foi o seu.”

Um retrato humano de Camões emerge desta biografia (concluída com cerca de 1400 notas e quase 40 páginas de referências bibliográficas, que permitem ao leitor fazer um pouco do caminho da investigação e da discussão sobre as pistas que cada biógrafo seguiu). Nela se segue um percurso em que a dificuldade é uma constante — resultante da pouca informação comprovada sobre o poeta, mas, sobretudo, consequência do que foi a própria vida da personagem. Mas não é apenas isso: fica-nos também a glória de um Camões que lutou por uma obra que conseguiu impor-se e que, indiscutivelmente, se tornou numa das referências da nossa identidade.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1368, 2024-09-11, pg. 9.


sexta-feira, 6 de setembro de 2024

O Camões que Isabel Rio Novo nos revela (2)



A estratégia seguida por Isabel Rio Novo ao longo das cerca de 600 páginas de Fortuna, Caso, Tempo e Sorte - Biografia de Luís Vaz de Camões mistura o que é possível obter dos poucos documentos que existem sobre a pessoa do biografado, as opiniões que têm sido emitidas pelos variados biógrafos que tomaram o poeta como estudo (concordando com uns, discordando de outros, seguindo alguns), a obra literária conhecida no que possa ter de confessional ou de autobiográfico (não sem que haja a recusa, várias vezes referida, de seguir uma interpretação literal de tais textos) e a técnica literária da construção de romance (que a autora domina), destinando-se esta a preencher os espaços e os tempos de que não há informação precisa na vida de Camões, fundamentada em elementos de estudos sobre a época que garantem a sustentação das hipóteses interpretativas — é assim que se valoriza o efeito sugestivo trazido por termos como “imaginemos” (proposta ao leitor em diversas ocasiões), por formulações de convite a uma descoberta comum ao leitor e a quem narra (“Sigamos Camões até junto da Ribeira de Goa”, para, depois, nos ser apresentado aquele espaço nos domínios da arquitectura, da estrutura social, do quotidiano) ou, já na fase em que se prepara a publicação de Os Lusíadas, a apresentação de uma possibilidade, a propósito do encontro entre o autor e o inquisidor, quando “o mais plausível é mesmo pedir ao leitor que imagine Camões, que vivia na encosta de Santana, a apoiar-se nas muletas, a propender para a Baixa e a dirigir-se lentamente ao convento dos dominicanos, a ordem a que geralmente pertenciam os inquisidores.”

Com estes pedidos de colaboração, está-se a envolver o leitor na construção da trama, sobretudo naqueles segmentos que não estão absolutamente documentados, mas que são indispensáveis para que a vida tenha acontecido. Aliás, Isabel Rio Novo dá conta, em várias ocasiões, da dificuldade de reconstituição, como acontece no início do capítulo que aborda a vida do biografado na Índia — “O ano de 1555 é aquele a partir do qual a cronologia de acontecimentos na vida de Luís de Camões impõe mais desafios a um biógrafo.” E, uns parágrafos adiante: “formar e juntar as peças que permitem reconstituir o itinerário do serviço militar, das viagens e das etapas de Camões no Oriente ao longo deste e dos próximos capítulos foi um verdadeiro desafio.”

Uma das formas interessantes como Isabel Rio Novo se embrenha neste “desafio” é, por exemplo, o momento em que tem de relatar a vida de Camões na prisão em Goa (onde foi parar por decisão do governador Francisco Barreto, na sequência de uns textos satíricos), recorrendo à iluminura que representa o poeta na prisão goesa, descoberta em 1972 — o leitor percorre duas páginas e meia de descrição da iluminura, processo que serve para que a sua personagem central, Camões, nos seja apresentada em pleno labor de Os Lusíadas. O desenho não é reproduzido nas páginas do livro, mas é amplamente dissecado naquilo que pode ser a informação útil para se imaginar a forma como o poeta viveu este tempo de enclausuramento e a maneira como construiu o seu mundo entre as quatro paredes da cela... Por outro lado, este desenho é valorizado como documento autêntico, muito provavelmente pintado por amigo que tenha sido visita assídua daquele espaço — uma obra que teve também as suas mutilações, pois, na legenda gravada no verso, consta a informação “Luís de Camões preso, e tendo a seus pés quem quis perdê-lo na Índia”; ora, “na zona inferior do retrato, sob os pés do preso, a olho nu apenas se vê uma mancha de tinta negra, aparentemente aplicada para ocultar a identidade de quem lá estivesse representado”, possibilidade que ganha crédito se pensarmos que está provado ter essa camada de tinta sido aplicada num tempo posterior à elaboração do quadro...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1363, 2024-09-04, p. 9.


quarta-feira, 28 de agosto de 2024

O Camões que Isabel Rio Novo nos revela (1)

 


Em Junho de 1552, Camões envolveu-se num litígio com o estribeiro Gonçalo Borges, na zona lisboeta do Rossio, ferindo-o “junto do cabelo do toutiço”. Dois meses depois, o poeta estava na cadeia, no Tronco. Por Fevereiro de 1553, o ofendido perdoou a agressão por não ter ficado com maleita decorrente do acto, tendo chegado a acordo com Camões, devendo este suportar as despesas judiciais. Para que esta acção tivesse valor, o processo de perdão tinha de ser submetido a dois juízes — um deles foi o setubalense D. Gonçalo Pinheiro (1499-1567), na altura bispo de Viseu —, que deram parecer favorável.

Como teria sido a vida do mais conhecido poeta português nessa prisão designada como “Tronco”? Do que ali passou não ficou registo pormenorizado, mas há um soneto em que a mágoa camoniana do que ali sofreu pode transparecer — “Em prisões baixas fui um tempo atado, / Vergonhoso castigo de meus erros; / Inda agora arrojando levo os ferros, / Que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.” Na verdade, o soneto poderá referir-se a prisões outras de que a vida se encarregou, mas não deixa de poder estar ligado, pela ideia de sofrimento, ao tempo passado no “Tronco”...

Este apontamento serve para se chegar ao relato que compõe a obra Fortuna, Caso, Tempo e Sorte - Biografia de Luís Vaz de Camões, de Isabel Rio Novo (Contraponto, 2024), digna homenagem ao autor de Os Lusíadas. Neste momento da vida do poeta, o leitor consegue perceber a amargura e a dor vividas na cela pelo recurso que a autora faz a testemunhos da época, num tom em que se é quase convidado a participar numa visita ao castigado — “Imaginemos, pois, Camões numa cela do Tronco, os pés agrilhoados, no meio da escuridão mal dissipada pela luz tremeluzente da candeia espetada numa junta da parede. (...) A cadeia era penosa para o corpo, mas ainda mais violenta para o espírito. (...) Quando as visitas saíam e, com elas, saíam os raios de alegria ou distração, ficavam só as trevas, as paredes húmidas da cela, as noites que nunca mais acabavam, os dias arrastados e sempre iguais.”

As dificuldades em torno do percurso de vida de Camões iniciam-se com o seu nascimento, nas dúvidas quanto a data e local, ainda que, no século XVII, Faria e Sousa, seu biógrafo e comentador, tenha registado a descoberta de um assento de viagem para a Índia datado de 1550, em que consta, como possível passageiro, “Luís de Camões, filho de Simão Vaz e de Ana de Sá, moradores em Lisboa, na Mouraria, escudeiro, de vinte e cinco anos, barbirruivo”. Camões terá, pois, nascido em 1524 ou em 1525, datas nem sempre aceites, pois os documentos originais desapareceram.

Isabel Rio Novo segue esta hipótese quanto ao ano de nascimento, ainda que desvalorizando uma opção forçada por um ano ou por outro. Quanto ao local de nascimento, a biógrafa passa pelas várias possibilidades que a história tem encontrado em função dos gostos dos estudiosos, chegando a concordar com Aquilino Ribeiro, quando disse: “Basta saber-se que nasceu em Portugal, o mais é competição de campanário.” Perante as incertezas, regista o nascimento, no tom de reconstituição que logo prende a atenção do leitor: “No Porto, perto do Porto, ou quando muito em Coimbra, mas muito dificilmente em Lisboa, num qualquer dia do ano de 1524 ou 1525, Ana de Sá e Macedo deu à luz um menino, sendo assistida por outras mulheres experientes, parentes ou vizinhas. Certamente que o parto ocorreu em casa de familiares. Na época, só uma mulher solteira, sem família ou desprovida de quaisquer recursos teria o filho no hospital.” Assim vinha ao mundo, pelo lado paterno, o trineto de Vasco Pires de Camões (galego, de Camos) e de Maria Tenreiro (portuguesa), bisneto de João Vaz de Camões e de Inês Gomes da Silva, neto de Antão Vaz e de Guiomar da Gama e filho da já referida Ana de Sá e de Simão Vaz de Camões.

Até ao final, o livro vai fazer justiça ao título escolhido, retirado da primeira quadra de um soneto — “Verdade, Amor, Razão, Merecimento / Qualquer alma farão segura e forte, / Porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte / Têm do confuso mundo o regimento.” E é quase no final do derradeiro capítulo que a autora justifica a escolha: as quatro forças escolhidas, em nada dependentes da vontade humana, regiam o “confuso mundo” e a vida. E o curso dos dias de Camões — pelos valores, pelas ocasiões, pelas brigas, pelo saber, pela instabilidade, pelos devaneios, pelos (des)amores, pela memória, pelos contextos, pelos exílios, pela dor, pelo dever consagrado à pena e à espada — fez parte desse horizonte, em tudo contrário à segurança anunciada pelo primeiro verso...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1358, 2024-08-28, pg. 9.


terça-feira, 30 de julho de 2024

Palavra de escritor nas entrevistas de Luís Souta

 


Uma dezena e meia de escritores surgem reunidos, trazidos pela persistência e curiosidade de Luís Souta, na obra Vozes da Escrita - 15 Entrevistas a Escritores Portugueses (Edições Ex-Libris, 2024), sob o pretexto inicial de descoberta do “olhar que emergia do campo literário sobre o processo educativo”.

As entrevistas, maioritariamente realizadas entre 2001 e 2002 (distância que leva a que já só cinco dos entrevistados estejam entre nós), trazem-nos nomes bem conhecidos como: Matilde Rosa Araújo e Natália Nunes (nascidas em 1921), Fernando Miguel Bernardes (n. 1929), Maria Rosa Colaço (n. 1935), Júlio Conrado e Mário Ventura (n. 1936), Altino do Tojal (n. 1939), Cristóvão de Aguiar (n. 1940), António Damião (que usou o pseudónimo de Henrique Nicolau para as obras policiais, n. 1941), Fernando Venâncio e Mário de Carvalho (n. 1944), Fernando Dacosta (n. 1945) e Alice Vieira, Eduarda Dionísio e Ricardo França Jardim (n. 1946).

A anteceder as entrevistas, Luís Souta explica os critérios de escolha, de que se destacam: as referências mais ou menos autobiográficas nos retratos e episódios que as respectivas obras mostram sobre a escola; a perspectiva da vida escolar a partir dos pontos de vista do aluno ou do professor (uma vez que vários dos entrevistados tiveram o ensino como profissão e muitos dos relatos literários assentam no olhar e nas marcas que ficaram do tempo de alunos) e do romancista ou do pedagogo; a acção dialogante entre os escritores e a escola.

No entanto, não são apenas essas as pistas deixadas nas conversas — os escritores acabaram também por falar do mundo que tem entrado nas suas obras e das próprias condições de edição e do universo da leitura, em segmentos tão diversos como a crítica literária, os movimentos culturais e artísticos, o papel do professor, o valor da memória para a criação escrita, entre outros, chegando, muitas vezes, a conversa a revelar aspectos menos conhecidos do viver de cada um, fornecendo apontamentos de enriquecimento das respectivas biografias.

Pelo caminho, ficam-nos retratos de muita humanidade, coloridos com a experiência da vida e com o gosto de (re)construir ambientes e personagens. É assim que nos tocam observações sobre o que é ser professor, como a de Cristóvão de Aguiar (que também foi professor), ao dizer: “Não acredito que um professor, para ser bom, tenha de estudar muita pedagogia. Ela ajuda quem já possui vocação. Ser professor é uma arte, como a de actor. Não se aprende, nasce connosco, pode apenas aperfeiçoar-se. A pedagogia não constrói um professor. Aperfeiçoa-lhe o talento.” Ou ainda a de Maria Rosa Colaço (a escritora alcacerense, autora desse ainda hoje inovador livro que foi A Criança e a Vida): “Cabe ao professor (...) a semente destes valores essenciais à Paz, à Fraternidade, ao Entendimento dos Povos que devia ser preocupação primordial de todos os agentes de ensino.” É assim que nos entusiasmam reflexões tão pertinentes quanto as de Eduarda Dionísio (professora e filha de professores) sobre a distância que vai entre a certeza e a dúvida: “O meu itinerário foi sempre o da dúvida, ao contrário da geração do meu pai que precisava de certezas e por isso era um grande drama quando a certeza desaparecia... (...) O drama vem quando deixa de haver um número significativo de pessoas (...) que não acha que a dúvida faz avançar o mundo.” É assim que também a postura cívica do leitor fica preparada para falhas da sociedade, como no momento em que Júlio Conrado (que enaltece o papel exercido na sua formação por professores como Virgílio Couto e Xavier Roberto, mestres que também o foram de Sebastião da Gama e de Matilde Rosa Araújo), falando de um dos seus romances, revela: “A corrupção é um fenómeno permanente na vida das sociedades que não é propriedade exclusiva deste ou daquele grupo social. A arte de furtar é de sempre e as suas denúncia e crítica também.” É assim que uma verdade essencial sobre a função da literatura nos impressiona, trazida pela voz de Mário Ventura (escritor que viveu em Setúbal e que, na conversa, relembra também a origem do Festival de Cinema de Tróia por si proposto): “Sem uma literatura não há um povo culto. (...) Hoje em dia, é a literatura, e não só a portuguesa, que discute o Mundo, que o analisa e teoriza sobre ele. Os políticos são incompetentes, impróprios para consumo intelectual. Os filósofos também não são de consumo fácil. Por isso, penso que a literatura é o melhor (senão o único) veículo para compreender o Mundo.” É assim que nos deixamos enternecer por uma entrevistada como Matilde Rosa Araújo, que faz das suas respostas um prolongamento dos seus poemas e das suas histórias.

Luís Souta soube ser a possibilidade equilibrada de fazer chegar estas vozes, sem condicionamentos, sem imposição do seu intuito, mostrando que a vida não prescinde do pensamento e que há verdades que passam além do tempo em que são proferidas. Só assim se compreende como entrevistas com mais de vinte anos mantêm a sua pertinência na actualidade...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1352, 2024-07-30, pg. 10.

 

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Círculo Cultural de Setúbal e José Afonso contados por Albérico Costa (2)



A segunda parte da obra O Círculo Cultural de Setúbal - De Ninho Oposicionista a Quartel-General da Revolução - Um Redondo Vocábulo pela Mão de José Afonso incide sobre a ligação do poeta, cantor, professor e pensador José Afonso ao movimento cultural setubalense, sobretudo através da acção desenvolvida no Círculo Cultural, associação de que ele também foi co-fundador.

As ligações entre Setúbal e José Afonso não constituem absoluta novidade na bibliografia de Albérico Costa, porquanto existe desde 2019 a sua obra Lugares de José Afonso na Geografia de Setúbal (ed. Associação José Afonso), em que, entre os 42 sítios recenseados, surge a referência ao Círculo Cultural de Setúbal, espaço que o cantor, em entrevista, definira como possibilidade que, “antes e logo a seguir ao 25 de Abril, preencheu bem essa lacuna, de juntar toda a malta para fazer coisas”.

No capítulo que agora lhe dedica, Albérico Costa esclarece pretender analisar “a dimensão da interação entre a cidade de Setúbal e o cidadão José Afonso”, percurso lembrado desde 1967, ano em que foi colocado no então Liceu Nacional de Setúbal como professor de História, mas que teve também a incumbência de leccionar a disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação, decisão que sua mulher, Zélia Afonso, assim explica, em entrevista ao autor: “Nada disso foi por acaso. Era tudo para o tramar.” Intencional ou não, o certo é que, em Dezembro desse ano, um despacho ministerial comunicava a expulsão de José Afonso do ensino...

É no contexto de participação e de intervenção local que o poeta será co-fundador do Círculo Cultural, onde agirá leccionando nos cursos nocturnos e participando nas sessões culturais, embora sob o olhar atento da polícia política, que, após as eleições de 1969 (em cujo processo José Afonso participou), o identifica como tendo tido “um papel preponderante” em “jornadas e sessões culturais, onde, através da balada e da poesia, se procura incutir no espírito das populações, especialmente na camada jovem, a rejeição pela obra do Governo e pela luta que nos é imposta no Ultramar”. O tal olhar atento da polícia esmerou-se nas práticas de perseguição, tendo mesmo levado a que tenha sido preso várias vezes.

A coerência de pensamento de José Afonso é visível no que deixou exarado no interrogatório na prisão de Caxias em Outubro de 1971 (“nunca desenvolveu quaisquer actividades contra a segurança do Estado”, mas é “adverso das instituições vigentes e colaborou na distribuição de votos ao domicílio a favor da Comissão Democrática Eleitoral do Distrito de Setúbal”) e nas tomadas de posição conhecidas no período pós-25 de Abril, lembrando Albérico Costa a participação intensa do cantor na militância política local: no célebre comício do Naval do primeiro 1.º de Maio — onde, pedagogicamente, disse: “É fundamental que nos voltemos a reunir para tratarmos de problemas. A partir de hoje, é necessário que se repitam estas reuniões. O perigo do fascismo ainda não acabou e temos como exemplo o Chile. (...) Temos de passar da fase do coração para a fase da cabeça e da acção.” —, em numerosas “lutas laborais, espectáculos de solidariedade, novos movimentos que então surgiam no calor da revolução em marcha”, acção de que não esteve afastada também a temática ecológica — será, por coincidência, numa realização promovida pelo Projecto Setúbal Verde, em 30 de Maio de 1982, que José Afonso terá o seu derradeiro concerto em Setúbal, acompanhado por Janita Salomé, Júlio Pereira e Sérgio Mestre.

Interessante é a recuperação que Albérico Costa faz da relação do cantor com a Arrábida, fosse por motivos de tomada de posição no desrespeito que havia pela Serra, por razões de saúde ou de recolhimento. Em capítulo sobre “o misticismo de José Afonso”, a Arrábida surge como espaço místico, tal como foi território de liberdade onde houve a possibilidade de “melhor ouvir as emissões do Rádio Portugal Livre e da Rádio Voz da Liberdade”. Por ali passam também os poemas de Frei Agostinho da Cruz, de Sebastião da Gama e de Bocage no que têm a ver com a espiritualidade e com a urgência de contemplar a Natureza, atitude que surpreende e que levou o próprio José Afonso a confessar ao seu amigo Francisco Fanhais, conforme lembra Albérico Costa: “Se os meus amigos marxistas soubessem que ando a ler o Frei Agostinho da Cruz...”

Nesta abordagem, repara o leitor que a intervenção política marcou toda a vida de José Afonso, particularmente em Setúbal (1967-1987), originando que mesmo o seu velório, ocorrido na Escola Secundária S. Julião (actual Escola Secundária Sebastião da Gama), ficasse rodeado de jogos políticos, tendo chegado a haver a proibição pelo Governo Civil de que essa última despedida se realizasse na escola...

O tratamento que Albérico Costa faz da ligação de José Afonso a Setúbal não está isento de um dever de memória: “Esta cidade deve-lhe a presença infinitamente solidária e amiga. E ele, o autor único, o músico superlativo, o cantor inigualável, deve à cidade duas décadas de permanente contrato de vida plena.” Um trabalho em prol da memória que o autor muito bem fez, associando o historial do que foi o Círculo Cultural de Setúbal...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1348, 2024-07-24, pg. 5.

 

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Círculo Cultural de Setúbal e José Afonso contados por Albérico Costa (1)



O livro pode dividir-se em duas partes: a primeira, levantando a história de uma instituição como foi o Círculo Cultural de Setúbal (que durou entre Maio de 1969 — é do dia 28 desse mês a escritura pública que o forma — e o último dia de 1998); a segunda, relembrando a ligação de José Afonso à cidade de Setúbal e o contributo militante que este lhe deu, particularmente na sua acção no Círculo Cultural. Fala-se de uma obra indispensável para o entendimento do que foi a intervenção cultural em prol da liberdade e da promoção e formação individual de muitos setubalenses, escrita por Albérico Afonso Costa, O Círculo Cultural de Setúbal - De Ninho Oposicionista a Quartel-General da Revolução - Um Redondo Vocábulo pela Mão de José Afonso, de edição recente (Câmara Municipal de Setúbal, 2024).

Os quase trinta anos da história do Círculo Cultural de Setúbal são relatados a partir de investigação nos arquivos da Associação José Afonso e da Torre do Tombo, da imprensa local e de entrevistas a 33 participantes na história da associação, fontes que permitem ao leitor sentir também o ambiente vivido em torno deste projecto, frequentemente pintado pela memória da intensidade da experiência levada a cabo por muitos intervenientes.

Desde a sua primeira iniciativa — uma visita de estudo à Estação Romana de Tróia, em 27 de Junho de 1969 —, o Círculo interveio na cultura setubalense a partir de múltiplas entradas: artes plásticas, cinema, teatro, fotografia, poesia, conferências, edição e uma secção escolar (que se revelou fundamental para a formação de muitos jovens e adultos interessados no seu enriquecimento académico, feito fora dos horários de trabalho). A explicação para a intensidade e importância da acção desenvolvida aparece relacionada com o contexto de vazio sentido, “de desvalorização de tudo o que pudesse ter um aroma mínimo de pensamento crítico, essa dimensão tão temida e odiada pelo regime”, o que permitirá “que o Círculo se vá configurar como um oásis naquele deserto cultural em que se vivia.”

Na origem desta instituição estiveram jovens ligados ao Centro de Estudos Humanísticos, criado no Clube de Campismo de Setúbal no início de 1967, bem como o grupo dinamizador da página cultural “Dom Quixote” (publicada n’ O Setubalense), objectivo que reuniu os nomes de Carlos Tavares da Silva, António Manuel Fráguas, António Quaresma Rosa, Tito Lívio Aguiar, António Júlio Garcia, Maria Antonieta Garcia, Alberto Almeida Garcia e Fernando Cardoso, nomes a que vieram juntar-se vários mais como “fundadores” (Maria Adelaide Rosado Pinto, Idalino Cabecinha, João Moniz Borba, José Afonso, Clementina Pereira, entre outros).

Desde que as actividades foram iniciadas, o Círculo esteve sempre sob observação da polícia política, que o classificará como “alfobre de oposicionistas ao regime vigente” e chegará a manter um “infiltrado” nas sessões para ir dando conta do acontecido. O que terá salvado a manutenção do Círculo foi o facto de, nos seus órgãos sociais, também constarem nomes considerados insuspeitos e pertencentes à elite local (Adelaide Rosado Pinto, Moniz Borba, Idalino Cabecinha, por exemplo) ou o próprio Secretário do Governo Civil (Fernando Cardoso); por outro lado, instituições como a Câmara Municipal de Setúbal e o Governo Civil apoiaram diversas iniciativas levadas a cabo pela instituição, o que dificultava excessos que a polícia política pudesse pretender... Não obstante isso, alguns dirigentes do Círculo conheceram a prisão, sob a alegação de “ligações orgânicas ao PCP ou a outras organizações clandestinas”.

Se, com o 25 de Abril, o Círculo funcionou, como refere Albérico Costa, como “o Quartel-General da Revolução”, pelo protagonismo que tiveram vários dos seus elementos na organização dos democratas, também se torna notório para o autor que um período de algumas divergências e tensões, o assumir de novas responsabilidades políticas por parte de alguns dos seus dirigentes, a multiplicidade de iniciativas culturais que muitas entidades passaram a promover e o facto de passar a existir ensino nocturno levarão a uma “progressiva perda de centralidade do CCS no espaço cultural e político da cidade”, que terá o seu termo na entrega das instalações da sede ao proprietário, depois de um tempo de dificuldade económica.

A investigação presente nesta obra faz justiça ao papel da instituição Círculo Cultural de Setúbal e a muitas das figuras que foram centrais na sua acção, num discurso que dá voz aos protagonistas e aos documentos que subsistem, contributo enriquecedor para a história da cultura em Setúbal.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1343, 2024-07-17, pg. 10.


Contar o Centenário do Palmelense FC por fotos



“Aos oito dias do mês de Abril do ano de mil novecentos e vinte e quatro, reuniu-se na Farmácia Matos, na vila de Palmela, um grupo de amigos do Sport a fim de levar a efeito a organização d’um club de Foot-ball. Sendo nomeado para dirigir os trabalhos da organização d’este club o Sr. José Trajano Godinho de Matos, Higino Caetano, António Diniz Cardoso, como Presidente, secretário e tesoureiro. Sendo aprovado por unanimidade que este club ficasse com o nome de Palmelense Foot-Ball Club.” Este é o início da primeira acta das assembleias do clube palmelense, texto em que segue a lista das 82 pessoas que se inscreveram como sócios fundadores.

O documento cujo início se transcreve abre o livro Centenário Palmelense FC - Uma Vila, um Castelo, o Nosso Clube, coordenado por Ângela Camolas e Luís Pedro Mares, obra recente, que utiliza a fotografia (cerca de 220 imagens) como meio para testemunhar alguns momentos da história do grupo desportivo. Reproduzido é também o segundo documento fundador do clube — a autorização de funcionamento, dada pelo Governo Civil de Lisboa em 21 de Novembro de 1925 (na altura, Palmela pertencia ao distrito de Lisboa, pois não tinha ainda sido criado o de Setúbal).

O que sobressai das reproduções apresentadas (datadas do período entre 1931 e 2024) é a valorização das equipas desportivas, sejam elas do futebol, do ciclismo, do judo, do basquetebol ou do atletismo, nos diversos escalões, havendo algumas que mostram momentos importantes para a história e investimentos no clube — sorteio para a aquisição do prédio da sede (1932), construção e inauguração das bancadas (1963), compra do mini-autocarro (1982), participações na Festa das Vindimas, obras para a colocação do novo sintético (2015), inauguração do Centro Médico (2021) — e outras que dão conta de algumas das melhores classificações obtidas — equipa de juniores campeã da II Divisão da AFS (1973) e da I Divisão Distrital da AFS (1991), equipa de séniores campeã da I Divisão Distrital da AFS (1987 e 1992) e campeã distrital da II Divisão da AFS (2011) e os palmarés conquistados pelos iniciados, benjamins e juvenis (2023).

O livro vive também de alguns testemunhos registados, elucidativos do apego ao clube e do significado de ser seu membro, como são os casos de Aurita Ferreira (que chega a afirmar ser seu sonho “morrer a ver o Palmelense”), João Camolas (satisfeito por a vida o ter deixado viver o centenário do clube), Nicolau da Claudina (a relembrar episódios da compra do mini-autocarro), António José dos Santos (para quem o clube “é a mística de uma terra”), Hélder Paizinho (que manifesta a sua gratidão ao clube), António Júlio Caleira (com os seus mais de 500 jogos feitos), Luís Crispim (com dificuldade em descrever o que sentiu aquando da subida à 3.ª Divisão Nacional), Manuel Simões Baptista (que, aos 71 anos, no grupo de veteranos, garante defender a sua cor “com a mesma garra” de quando começou) e Armando Silva (sensibilizado pela atribuição do seu nome ao balneário da equipa principal).

Por estas páginas corre vida e entusiasmo de todos aqueles que, ao longo de um século, têm dado o melhor da sua emoção e esforço ao clube. Pena é, no entanto, que por estas páginas não passem duas listagens que cremos serem igualmente importantes para o que tem sido a afirmação do Palmelense FC: a das equipas dirigentes desde o seu início (pelo menos com as composições possíveis) e a dos palmarés conquistados.

A fechar esta quase fotobiografia sobre o centenário do Palmelense FC, surge a perspectiva do futuro, que parece estar garantida pela importância dada à formação infantil e juvenil. Foi o escritor Ruben A. (1920-1975) que deixou registado algures que a “bola é pássaro sem asas, aparece e desaparece”, frase obviamente poética que diz muito sobre a energia transmitida pelo jogo e sobre a sua importância para a vida. E, se dúvidas houvesse, as afirmações que encerram o livro são devidas a três jovens que explicam, em enunciados simples mas cheios de expressividade, a razão por que se ligam ao clube: “No Palmelense jogo à bola faço amigos sou feliz” (Vasco Barrocas), “Treinar e jogar com os amigos” (Diogo Charrão) e “Palmelense é vida” (Vicente Mares).

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1338, 2024-07-10, pg. 9.


quinta-feira, 4 de julho de 2024

Visitar Setúbal pela fotografia de Antero Frederico de Seabra (3)

 


Chegados próximo da capela do Carmo, temos Antero Frederico de Seabra a captar para o seu Álbum Fotográfico um olhar desde a ponte do Carmo sobre o ribeiro do Livramento, sítio de onde são vistas mais três pontes, formas de acesso à zona de Troino e Convento de Jesus, monumento que é também objecto de uma fotografia, apresentando o cruzeiro em sítio diferente do actual, um terreiro arborizado e cruzes dos Passos no exterior do Convento. Ali bem perto, outro registo faculta-nos o panorama que, desde o Largo das Almas, vai até à igreja de Nossa Senhora da Saúde, fotografia que evidencia a vivência agrícola nos terrenos do actual Montalvão, num cenário rural que se manifesta também pelo carro de bois nas proximidades da fonte de S. Caetano. Um pouco mais adiante, Brancanes surge em duas reproduções: uma, a partir do cruzeiro de Brancanes (que já não existe), destaca a Quinta dos Bonecos e o ambiente agrícola em torno; noutra, o convento de Brancanes apresenta a sua magnificência, sendo ainda possível ver aquela que era a fonte de S. João Baptista.

Se, a partir da Praça de Bocage, nos dirigirmos para S. Sebastião, a lente de Antero de Seabra faz-nos parar várias vezes. A primeira, na contemplação da fachada da igreja de Santa Maria, mostrando-nos o revestimento azulejar na base do edifício e as duas cordas sineiras, uma para o toque das cerimónias religiosas, outra para o anúncio de qualquer catástrofe. Segue-se o convento e igreja dos Grilos, com o amplo adro de Palhais na sua frente, espaço hoje dividido entre Palhais e Quebedo, numa delimitação que a via férrea consagrou. Nas traseiras do templo, temos o Cemitério de Setúbal, numa fotografia que revela a escassez de arte tumular e a predominância de campas rasas. Subindo ao designado Largo das Areias, em zona descampada (que equivalerá hoje ao espaço entre a designada Escola das Areias e a avenida Jaime Cortesão), a fotografia apresenta uma visão de Setúbal, apanhando em primeiro lugar os cemitérios da Piedade e dos Ingleses e a muralha, estendendo-se a vista até ao alto onde se situa a fortaleza de S. Filipe, paisagem em que se destacam as torres das várias igrejas da cidade, a baía e a praia e grande quantidade de moinhos que povoam a crista da serra. Do lado nascente, na margem do Sado, há ainda uma reprodução que mostra o movimento portuário, o quartel, as docas, numa vista que nos leva até à fortaleza e aos inúmeros moinhos já referidos.

Na direcção da serra, pode o olhar contemplar ainda uma fotografia do gasómetro, a central que fornecia a luz aos candeeiros da cidade (visíveis em muitas fotografias), localizado junto da praia e do rio, onde se misturam barcos de pequeno e de grande calibre. A partir da praia de Troino, há um registo que nos leva até à fortaleza de S. Filipe, numa paisagem sem arvoredo, mostrando, junto ao rio, o estaleiro e numerosas embarcações com origem na região de Ovar, as “meias-luas”, cujas proa e popa se levantam numa curva muito delineada em crescente. Uma chegada ao convento de S. Francisco permite-nos ver, numa das fotografias, o estado de ruína a que o mesmo chegou, com uma cidade que se divisa ao longe, enquanto noutra, a última do Álbum, uma panorâmica de Setúbal apresenta a cidade ainda quase dentro de muralhas, entre o início do que viria a ser a avenida de S. Francisco Xavier e um espaço repleto de moinhos em território hoje densamente povoado, na freguesia de S. Sebastião, fotografia que mais documenta a ligação da cidade ao rio e também a imagem que parece englobar tudo quanto foi mostrado antes, em ampla visão.

A morfologia e a vida de Setúbal no tempo entre 1866 e 1867 facilmente chegam ao leitor curioso de hoje, que pode associar o relato da visita que a esta cidade fez Hans Christian Andersen em 1866 e as fotografias que, no ano seguinte, Antero de Frederico de Seabra registou na designação conhecida como Álbum Fotográfico (que, agora, a LASA publicou). A impressão vinda da conjunção das duas leituras será, de certeza, mais intensa e diversa do que a fornecida pela quantidade das “kodaks” disparadas pelos japoneses que António Ferro presenciou na travessia do Grande Lago Salgado mais de meio século depois...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1333, 2024-07-03, pg. 10


quinta-feira, 27 de junho de 2024

Visitar Setúbal pela fotografia de Antero Frederico de Seabra (2)

 


Do destino e paradeiro das fotografias feitas por Antero Frederico de Seabra em Setúbal pouco se sabia: conhecia-se uma colecção de 12 fotografias encontrada no sótão de uma residência em Lisboa quando se procedia a obras, série que tem a particularidade de ter pertencido a outro militar que prestou serviço em Setúbal, Henrique das Neves (1841-1915), o homem que catapultou o nome do poeta popular setubalense António Maria Eusébio, o “Calafate”, para vasta divulgação, publicando-o e chamando a atenção de figuras eminentes para a sua obra, colecção que, em 2015, foi considerada “bem de interesse nacional” e “tesouro nacional” pelo Decreto 2/2015, de 14 de Janeiro, da Presidência do Conselho de Ministros; sabia-se existir, no acervo do Museu de Setúbal, um conjunto de 10 destas fotografias, sendo que uma delas (a que mostra o Convento de Brancanes) surge repetida.

A obra Álbum Fotográfico, agora publicada pela LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão), revela-nos mais duas existências: um lote de oito fotografias pertencente a um particular setubalense e a série de 17 fotografias que integram o “Álbum”, peça existente nos fundos da Biblioteca Pública Municipal de Setúbal, que, em 2020, caiu sob o olhar atento do investigador local Diogo Ferreira, dando origem a esta edição.

O livro, primorosa edição fac-similada do acervo constituído pelas 17 vistas da cidade e dos monumentos de Setúbal, contém ainda a colaboração de três autores conhecidos pela sua ligação à história e à cultura local — Francisco Borba, que destaca a técnica usada por Antero Frederico de Seabra, valoriza o contributo da fotografia para a história do mundo e justifica a iniciativa da LASA; Diogo Ferreira, o “descobridor” desta memorável colecção fotográfica, que discorre sobre o contexto vivido em Setúbal na segunda metade do século XIX nos planos político, económico, social e cultural, assim enquadrando o ambiente em que as fotografias foram conseguidas; e António Cunha Bento, que biografa o fotógrafo temporariamente residente em Setúbal, resultado de aturada busca nos arquivos, relata a génese desta colecção e dá conta das existências conhecidas das fotografias de Antero de Seabra sobre Setúbal.

Se é desconhecida a história do trajecto deste “Álbum” até à sua entrada nos fundos da Biblioteca Pública Municipal, há, porém, a certeza da data em que o bibliotecário Arronches Junqueiro o registou, pois deixou exarada na última folha a seguinte menção: “Contém este Álbum 17 (dezassete) fotografias de Setúbal e arredores. — Setúbal, Biblioteca Municipal, em 4 de Outubro de 1930.”

Olhar estas fotografias implica demorar a vista, a tentar descobrir o que se mantém de toda aquela fisionomia da cidade e a construir as pontes necessárias para espaços que, hoje, apresentam outras configurações. Olhar estas fotografias constitui um desafio para a descoberta de pormenores, tão nítidos nos aparecem os espaços mostrados, absolutamente a descoberto, sem obstáculos à atenção do detalhe, quadros quase integralmente limpos do que possa afectar a nossa absorção do mundo fotografado. Olhar estas fotografias é também ver que a preocupação foi mostrar o património monumental e paisagístico da cidade, não insistindo sobre as figuras humanas, que aparecem em restrita quantidade - ainda assim, sempre há lugar para os aguadeiros e para figuras ligadas à pesca e à agricultura, ao mesmo tempo que diversos espaços são povoados por pessoas que parecem posar, em quantidade diminuta, sejam elas burgueses de cartola, agentes de polícia ou curiosos contemplativos do quase de certeza impressionante equipamento do fotógrafo...

Nesta imersão num passado que já tem quase 160 anos, descobrimos a Praça de Bocage em três fotografias, uma insistindo sobre o edifício dos Paços do Concelho, outra sobre a Igreja de S. Julião e a última sobre um grande espaço da praça — aqui, olhamos aguadeiros a encher as barricas na fonte do Sapal, enquanto os burros aguardam a carga ali mesmo ao lado; vemos o edifício camarário com linhas semelhantes às actuais, mas com menos arcos e menos janelas e uma escada lateral que conduz a um primeiro piso de janelas gradeadas onde funcionava a prisão; contemplamos a decoração manuelina da entrada principal da igreja (hoje, difícil de ver ao longe) e verificamos que a Praça de Bocage mantém a sua configuração, ainda que com a substituição de alguns edifícios entretanto ocorrida.

João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1328, 2024-06-26, pg. 15.


quarta-feira, 19 de junho de 2024

Visitar Setúbal pela fotografia de Antero Frederico de Seabra (1)

 


Em 1927, António Ferro visitou os Estados Unidos e, três anos depois, deixou relato da viagem num livro cujo título — Novo Mundo Mundo Novo (Portugal-Brasil Sociedade Editora, 1930) — era um deslumbrado olhar sobre essa ideia de novidade avassaladora que parecia definir a construção do futuro a partir da América. No momento em que relembra a visita ao Grande Lago Salgado, no estado do Utah, regista: “O ‘Overland Limited’ vai passar o Great Salt Lake. É uma linha férrea construída milagrosamente, sobre um lago imenso, um lago que sonha com o mar. Uma travessia de mais de duas horas. O ‘Observation Car’ tem uma enchente. Todos os passageiros querem ver o espectáculo único. Os japoneses, na plataforma da carruagem, apontam ‘kodaks’, como pistolas, para todos os lados.” A marca Kodak tinha cerca de 40 anos (fora fundada em 1888) e, por ter criado modelos de máquina fotográfica facilmente transportáveis, rapidamente o nome da marca se generalizou como designação do aparelho fotográfico.

Não foi desse tempo Antero Frederico de Seabra (1821-1883), que faleceu cinco anos antes do nascimento da Kodak. Na sua época, fazer fotografias não era tão acessível nem tão fácil como viria a ser naquela em que António Ferro circulou na América e se deixou impressionar pelos japoneses que apontavam “kodaks” para tudo quanto parecesse memorável. Arte entusiasmante por poder fixar o momento, documentando-o sem rugas para a posteridade, e por poder divulgar pelo mundo o objecto e o tempo olhados pelo artista, a fotografia carecia de equipamento complexo e volumoso e de um processo nada simples de fixação da imagem no papel.

Pela segunda metade do século XIX, a técnica usada para impressão fotográfica era a da albumina, que criava uma película impeditiva da absorção do nitrato de prata pelo papel, conservando a imagem mais contrastante e com relativo nível de brilho. Foi este o método seguido por Antero Frederico de Seabra, o que permitiu que as fotografias que fez na década de 1860 tivessem chegado até hoje com um considerável nível de conservação e de legibilidade.

A paixão deste pombalense pela fotografia começou cedo, tendo frequentado as aulas de Filosofia Química na Universidade de Coimbra em 1845/46, que lhe proporcionaram desenvolver a técnica e a prática fotográfica, granjeadoras da participação em exposições e de algumas distinções. Monumentos e paisagens constituíram os motivos essenciais que impressionaram a sua lente, tendo mesmo obtido licença régia para proceder a um levantamento fotográfico nacional, conforme se pode ver nos registos arquivados no Centro Português de Fotografia, que nos mostram aspectos vários de localidades como Arcos de Valdevez, Barcelos, Braga, Coimbra, Guimarães, Leça do Balio, Lisboa, Lousã, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Porto, Viana do Castelo, Vila do Conde e Vila Nova de Gaia.

Entre 1864 e 1867, Antero Frederico de Seabra esteve em Setúbal em funções militares, aproveitando a oportunidade para fotografar a cidade e arredores. O objectivo não era apenas o do registo para sua recordação; passava também pela construção de um Álbum Fotográfico de Setúbal, com a previsão inicial de ser constituído por três séries de dez quadros cada, visando o propósito de ser vendido a assinantes. O trabalho não se terá completado, sendo conhecidas apenas 17 reproduções, iniciadas em 1867, interrupção que se terá devido à transferência do militar-fotógrafo para Elvas e a motivos de saúde.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1323, 2024-06-19, pg. 9.