quinta-feira, 8 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (2)

 


A apresentação pública de Viva la Poesia!, reunindo uma dúzia de textos do Papa Francisco (entre encíclicas, prefácios e entrevistas) sobre a necessidade dessa arte que a poesia é, ocorreu no mês de Março, quando ele estava internado no hospital Gemmeli, em Roma. Ao longo das várias intervenções recolhidas, o leitor fica perante formulações que valem um programa pedagógico de âmbito universal.

No primeiro texto papal, entrevista dada a Antonio Spadaro (o responsável por esta obra) publicada em 2013, Francisco recorda um episódio do seu tempo de professor, quando tinha de leccionar El Cid aos seus alunos — perante o descontentamento dos jovens quanto à matéria, desafiou-os a lerem a obra em casa para, nas aulas, serem tratados autores como García Lorca ou outros, contemporâneos, mais estimulantes. “Para mim, foi uma grande experiência”, admite Francisco, pois “concluí o programa, mas de forma não estruturada, organizado não conforme o que era esperado, mas sim segundo uma ordem que surgiu naturalmente na leitura dos autores.” E pergunta Spadaro: “Então, Santo Padre, para a vida de uma pessoa, é importante a criatividade?” A resposta, embrulhada em riso: “Para um jesuíta é extremamente importante! Um jesuíta deve ser criativo!” Uma criatividade que levou o então professor Jorge Bergoglio a apresentar contos escritos pelos seus alunos a Jorge Luis Borges, que prefaciou uma recolha dessas narrativas...

Este texto poder-se-á ligar ao último, que reproduz uma entrevista de Spadaro a Jorge Milia, aluno de Bergoglio em Santa Fé, na escola jesuíta da Imaculada Conceição, no início da década de 1960, e autor de um dos contos incluídos na referida antologia, lembrando as aulas do professor e o contributo legado para o conhecimento da literatura, para a escrita criativa e para a divulgação do teatro entre os alunos — “Com Bergoglio, o teatro levou os alunos a considerarem as obras como um trabalho de equipa e a aprenderem a descobrir a verdadeira mensagem dos autores.”

A atenção à leitura da poesia é a preocupação que ressalta neste livro, associada à forma de estar no mundo e de agir humanamente. Quando Luca Milanese (n. 1992) publicou em 2020 o livro Rime a sorpresa, o prefaciador foi Francisco, numa tarefa que lhe agradou (como revela nesse texto) e que acabou por ser um pequeno manifesto em favor do acto poético: “Não haveria poesia se não houvesse alguém disposto a ouvi-la. Se o nosso tempo é pobre em poesia, não é porque não exista a beleza, mas porque temos dificuldade em ouvir”, pois “a poesia é um exercício livre de escuta, um caminho com duas direções: para quem a escreve e para quem a ouve.”

Desse mesmo ano é a carta papal Querida Amazónia, obra em que as referências a poetas avultam, como são os casos da equatoriana Yana Lucila Lema, do colombiano Juan Carlos Galeano, do peruano Javier Yglesias, do chileno Pablo Neruda, do boliviano Jorge Vega Márquez ou dos brasileiros Vinícius de Moraes e Pedro Casaldáliga. As preocupações com o mundo, expõe-nas Francisco com um permanente recurso à poesia, como também ficou evidente na mensagem para o IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares (em Outubro de 2021), designando-os como “samaritanos colectivos” e desafiando os interlocutores a serem “poetas sociais”, uma vez que têm “a capacidade e a coragem de criar esperança onde só há desperdício e exclusão”, por isso se lhes aplicando a designação — é que “poesia é criatividade, e vós criais esperança.”

A preocupação com a Inteligência Artificial e com uma educação marcada pela humanidade encontram também eco em Francisco e na sua defesa dos sentimentos e da poesia da vida, como o deixou patente no discurso à academia da Universidade Pontifícia Gregoriana, em Novembro de 2024: “Nenhum algoritmo pode substituir a poesia, a ironia e o amor, e os alunos precisam de descobrir o poder da imaginação, ver a inspiração germinar, entrar em contacto com suas emoções e ser capazes de expressar seus sentimentos.” A propósito da expressão das emoções e da ironia, valerá a pena lembrar que, meses antes, em Junho, ocorreu o encontro de Francisco com uma centena de humoristas de todo o mundo (em que estiveram os portugueses Ricardo Araújo Pereira, Joana Marques e Maria Rueff), tendo valorizado esta arte de uma forma surpreendente, quase descobrindo a poesia do riso: “quando vocês fazem alguém sorrir, Deus também sorri.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1524, 2025-05-07, pg. 10.

 

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (1)

 


“Caro irmão, viva a poesia! Fico feliz que tenha reunido os textos que escrevi ao longo dos anos sobre a importância da poesia. Gostaria que a poesia ocupasse um papel importante nas nossas universidades! Precisamos de recuperar o gosto pela literatura nas nossas vidas, mas também na nossa educação, caso contrário seremos como um fruto seco. A poesia ajuda-nos a sermos humanos, e hoje precisamos muito dela.” A mensagem, datada da Casa de Santa Marta em 20 de Janeiro de 2025, tem a assinatura do Papa Francisco (Jorge Mario Begoglio, 1936-2025) e é dirigida ao jesuíta Antonio Spadaro (n. 1966), que a reproduziu na abertura do livro Viva la Poesia! (Milano: Edizioni Ares), recolha de textos do Papa argentino produzidos entre Agosto de 2013 e Novembro de 2024.

No capítulo introdutório, assinado pelo organizador da antologia, a atenção do leitor vai sendo encaminhada para algumas das traves-mestras que suportam o pensamento de Francisco, texto significativamente intitulado “A vida sem poesia não funciona”.

Spadaro apresenta-nos o percurso de leitor e de pensador do Papa a partir de um princípio que estabelece ligação com a poesia — “Bergoglio sabe que a falta de imaginação é um sério problema para a fé.” Esta afirmação surge como eco de uma quase confissão deixada pelo Papa num discurso para a revista La Civiltà Cattolica, em Fevereiro de 2017, quando afirmou que continuava a ler poesia sempre que lhe era possível, pois “a poesia é cheia de metáforas” e compreendê-las “torna o pensamento ágil, intuitivo, flexível e preciso”, ideia que completava com uma chave que alimentou muitas das suas intervenções e que marcou muitos dos que o admiram: “Quem tem imaginação não se torna rígido, tem sentido de humor, goza sempre da doçura da misericórdia e da liberdade interior.”

Fica patente o papel atribuído à manifestação artística, aqui representado pela poesia: o de ser indispensável para a peregrinação humana que decorre numa vida, aspecto demasiado importante, porquanto, diz Spadaro, “a leitura de romances e de poesia não é um simples passatempo, mas um meio para explorar as profundezas da alma humana e para cada um se compreender melhor a si próprio e aos outros”.

A fechar esta apresentação, o organizador refere uma constante nas intervenções de Francisco — “larga referência à poesia e à literatura nos seus discursos e nos documentos que legou, ora citando um verso, ora um autor ou o título de uma obra”. Para o confirmar, todos nos lembramos dos seus discursos na Jornada Mundial da Juventude de 2023, como no de 2 de Agosto, no encontro no Centro Cultural de Belém, perante o corpo diplomático, em que citou Camões, Sophia de Mello Breyner, Fernando Pessoa e José Saramago, ou, ainda no mesmo dia, no encontro com o clero e agentes da pastoral, nos Jerónimos, invocando o padre António Vieira e Fernando Pessoa, ou, no dia seguinte, quando se encontrou com jovens universitários e convocou para a sua mensagem os nomes de Pessoa, Sophia e Almada Negreiros...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1520, 2025-04-30, pg. 20.

 

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Cores e Palavras de Abril desde Grândola



O título da colectânea, publicada em 2024, advém de um poema de Sophia de Mello Breyner motivado pelo 25 de Abril, publicado na sua obra O Nome das Coisas (1977): “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”. Intitula-se O Dia Inicial (numa caixa dominada por fundo verde e letras vermelhas, com os nomes dos autores em prateado) e é uma colecção de 25 postais sobre o cinquentenário do 25 de Abril, cada um deles tendo, numa face, uma ilustração e, na outra, um texto, reunião de meia centena de autores (tantos os escritores quantos os artistas do desenho), num trabalho produzido pela Câmara Municipal de Grândola.

Se a imagem do cravo surge em 21 das ilustrações, já a força da cor vermelha perpassa por todas elas, ora mais viva, ora menos acentuada. Algumas das propostas artísticas misturam o desenho com o “slogan” (exemplo da ilustração de Joana Mosi, cruzada com excerto de canção de Sérgio Godinho), outras reforçam a urgência de assinalar a data (em várias, aparece o slogan imperativo “25 de Abril Sempre”, como são as ilustrações de Bernardo P. Carvalho, Tamara Alves, Nuno Saraiva e Mafalda Milhões), outras ainda dão azo a uma valorização de alguns momentos do 25 de Abril (como é o caso de João Vaz de Carvalho, que nos deixa ver uma multidão de cravos a ser emitida a partir de uma telefonia, ou o de Bernardo P. Carvalho, cuja mistura de rostos, de profissões, de gestos e de olhares sugere a união em torno da data e da sua simbologia), havendo ainda espaço para o humor (como na proposta apresentada por Nuno Saraiva, que parodia “slogans” em reconstruções como “A terra a quem a compra!” ou “Viva a reforma agro-turística!”, levando o mesmo tom parodístico para o desenho, substituindo a foice pelo símbolo da moeda euro) ou para a sugestão de narrativas relacionadas com o 25 de Abril (como se nota na figura salazarenta que foge de um alvejamento de cravos, concebida por Cristina Sampaio).

Relativamente aos textos, a maioria dos autores optou pela prosa, tendo o poema sido a modalidade preferida por Almeida Faria, José Agostinho Baptista, Helga Moreira, Yvette K. Centeno e Hélia Correia. Seguindo o índice, é Afonso Cruz quem abre a escrita, com uma mensagem que joga com algumas frases de “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, assumindo um cunho pedagógico sobre o sentimento da democracia e sobre a necessidade de pensar. Reflexão sobre a maneira como foi vivida esta data há 50 anos é feita por Onésimo Teotónio Almeida, que junta a memória e as imagens guardadas — “O 25 de Abril foi a festa onírica do grafito que captou o espírito dominante no tempo: ‘Queremos tudo!’, enlevados nos mais doces e utópicos sonhos de um homem e de um mundo novos.”

Histórias imaginadas ou reconstruídas povoam alguns dos textos (Dulce Maria Cardoso ou Ana Margarida Carvalho), havendo lugar também para o humor (Cláudia Andrade redige uma carta, em que não falta o final “a bem da Nação!”, dirigida ao director da polícia política a informar sobre “actividades indizíveis” acontecidas no quintal), para as memórias do tempo anterior ao 25 de Abril (Maria do Rosário Pedreira, Anabela Mota Ribeiro ou Ana Bárbara Pedrosa) ou para a memória da data ocorrida em tempo de juventude (Possidónio Cachapa ou Julieta Monginho), assim como para a lembrança do que foi viver essa data (Germano Almeida). Não faltam também os textos que problematizam a concretização das esperanças que vieram com esse Abril (Joel Neto ou Richard Zimler)

Feliz é o tom de José Luís Peixoto (nascido em 1974, já depois de Abril). Só tendo conhecido o país em regime de liberdade, confessa ter demorado “a entender a importância do 25 de Abril”. Mas a alegria de não ter conhecido o tempo anterior cola-se-lhe à escrita, num reforço do que é viver: “O passado era o peso de tanta injustiça, sofrimento, medo. (...) Fico feliz que essa sombra não me tenha tocado a pele. E todos os dias, em todos os momentos, agora mesmo, encho o peito de ar, sinto o gosto fresco do oxigénio. Estou vivo, estamos vivos, sou livre, somos livres.” Um excelente convite para concluir estas leituras a favor de Abril surge de um nome, também nascido em 1974, depois de Abril, Jacinto Lucas Pires, que relembra a intensidade da canção de José Afonso, avivando, numa interpretação pessoal, o significado de “Grândola, Vila Morena”: “Voltei hoje a ouvir esta canção que marca a nossa vida. Um detalhe pouco referido é o que se pode escutar antes da voz: o som dos pés na terra. O som da terra, o som de gente sobre a terra, a caminhar. Sempre que me lembro de ‘Grândola, Vila Morena’, vejo a imagem límpida de uma utopia, uma ‘terra de fraternidade’, um lugar ideal que nos serve de bandeira e inspiração - mas a canção que sonha um mundo novo começa com os pés na terra. É bom lembrar isso. Ter sempre presente que uma revolução que não caminha, morre. E que esta canção — como o próprio 25 de Abril — pede gestos concretos e a nossa melhor participação.”

João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1516, 2025-04-23, pg. 8.


terça-feira, 22 de abril de 2025

O que o ChatGPT disse sobre as obras de Sebastião da Gama

  

10 de Abril, 101 anos depois de Sebastião da Gama nascer. Uma pergunta simples ao ChatGPT: “Obras de Sebastião da Gama?” E veio a resposta: “Principais obras de Sebastião da Gama: Serra-Mãe (1945), sua estreia literária, uma homenagem à Serra da Arrábida, que ele tanto amava; Loas a Nossa Senhora da Arrábida (1946), continuação da exaltação da natureza e da espiritualidade; Cabo da Boa Esperança (1947), poesia intimista e de esperança, marcada por sentimentos humanos profundos; Campo Aberto (1951), reafirmação do seu amor pela natureza, com uma linguagem simples, mas muito lírica; Diário (publicado postumamente em 1958), diário do seu tempo de professor em Setúbal, revela o seu pensamento pedagógico e sensibilidade humana, muito estudado em contextos educativos; Itinerário Paralelo (1958, póstumo), outro livro de poesia que aprofunda temas como a fé, a natureza e o amor.” E acrescentava: “Se quiser, posso te mostrar trechos ou fazer um resumo de algum desses livros. Quer?”

Os conteúdos indicados para cada uma das obras não saem de um fio em que tudo parece igual ou, pelo menos, alojado dentro de uma série de ‘continuados’, abordagem que está longe de corresponder à realidade; há dois erros absolutos — o dizer que o Diário respeita ao “seu tempo de professor em Setúbal”, o que não é verdade (tem referências ao tempo de Setúbal, mas relata a experiência de estágio em Lisboa), e a data de publicação de Itinerário Paralelo, que, sendo edição póstuma, ocorreu em 1967.

Não pedi pormenores sobre os livros. Limitei-me a curtíssima pergunta: “Mais obras?” Resposta: “Claro! Além das obras mais conhecidas que mencionei, Sebastião da Gama tem outras publicações, incluindo edições póstumas e compilações organizadas por estudiosos e admiradores da sua obra.” Fica a ideia de grande fartura de trabalhos e a curiosidade por esse levantamento. E a nova listagem foi: “Outras obras de Sebastião da Gama: Cartas I (1987), reunião de cartas trocadas com amigos e colegas, revelando seu lado mais pessoal, íntimo e humano; Cartas II (1994), continuação da colecção de correspondência, que mostra seu pensamento poético e filosófico; Pelo Sonho é que Vamos (1999), antologia poética com selecção de textos marcantes, inclui o célebre poema com o mesmo nome, frequentemente citado no meio educativo; Diário II - Setúbal e o Ensino (1999), continuação do Diário, focando mais profundamente na sua actuação como professor e na educação; Textos Dispersos e Inéditos (2004), organização de textos que ficaram fora das publicações originais, incluindo prosa, poesia e anotações pessoais; Obra Poética Completa (várias edições), compilações que reúnem todos os seus livros de poesia, muitas vezes acompanhados de prefácios e estudos críticos; A Poesia Vai à Escola, edição voltada para contextos escolares, que selecciona poemas de Sebastião da Gama com propostas de leitura e interpretação; A Serra da Arrábida e o Homem, texto de tom ensaístico, voltado para a protecção da natureza, mostrando seu pioneirismo ecológico.” Fiquei perplexo: a única verdade nesta informação são os títulos Pelo Sonho é que Vamos e Cartas I, embora apareçam com datas erradas, pois são de 1953 e de 1994, respectivamente. E disse mais: “Quer que eu te recomende por onde começar, dependendo do que você curte?” Nova perplexidade. Limitei-me a dizer: “Há aqui muitos títulos inventados e que não existem...”

Triplamente perplexo com a resposta: “Ah, finalmente! Uma alma atenta. Sinto muito por ter contribuído para a já sobrecarregada pilha de desinformação cultural. Você está certo. Vamos limpar essa bagunça e separar o que realmente faz parte da obra de Sebastião da Gama, sem esse festival de títulos fantasmas que surgiram como cogumelos mal catalogados.” Apre!!!

E lá veio mais uma lista de “obras autênticas”, quase totalmente certa, e uma outra de “compilações e edições póstumas relevantes”, em que é dito sobre as Cartas: “Existe, sim, publicação de parte da correspondência dele, mas não em volumes organizados como Cartas I ou ‘Cartas II’. Isso fui eu, inventando colecções como quem faz playlists de poeta.” O Chat GPT confessa-se e arrepende-se? E, provavelmente para fazer as pazes comigo, uma promessa: “Se quiser, posso te mostrar o poema Pelo Sonho é que Vamos, sim, o verdadeiro, não a versão remix que minha mente neural elaborou. Quer que eu repare meu erro com um pouco de beleza real?”

Desisti. Fechei a aplicação. “Beleza real”? Tive receio de que me surgisse um qualquer boneco desses que agora proliferam nos murais facebookianos. Desliguei-me do monitor e fui pegar num livro do Poeta. Lamento, ChatGPT, não vou alimentar a sua “mente neural”...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1512, 2025-04-16, pg. 10.


sexta-feira, 11 de abril de 2025

Abril, cravos e poesia (2)

 


A permanência dos sonhos que Abril trouxe, como alimento da liberdade e do futuro, ressalta em várias mensagens presentes neste São Cravos, como no poema de Analita Santos, que, no terceto final, deixa o desafio: “Hoje, a cada dia, há um abril a reiterar. / Há outros cadeados e passos a percorrer, / para que o grito de abril continue a renascer.” Incisivo no dever de proteger os cravos de Abril é Artur Ferreira Coimbra, que, na “Carta de um avô aos netos sobre os dias de Abril”, lembra o antes e o depois e exorta os descendentes: “Meus netos: regai em cada hora os cravos da liberdade, para que não / Mirre o vermelho da esperança no coração dos dias que vão nascendo.”

O poema assinado por Maria Manuela Mendes Ribeiro, formado por seis quadras, tem a particularidade de fazer perguntas, usando anaforicamente a expressão “quem sabe hoje em dia” para enaltecer quem fez despertar a luta por um Abril promissor e apresentar um quadro da tristeza do passado (marcado pela perseguição, pelo sofrimento, pela tortura da prisão, pela ousadia da luta de uns tantos), levando o leitor a pensar na responsabilidade de sentir que o “Abril cantado” é muito mais forte do que a alegria resultante de um feriado... É Maria Quintans quem lembra a intensidade da data cinquentenária: “abril será sempre a / varanda aberta / onde nos sentamos a / admirar o sobrenome / da vida.” A mesma emoção de Abril é trazida por Rita Taborda Duarte, num jogo em que não faltam palavras recriadas e cuja última estrofe, pela força da repetição, pretende afirmar o essencial da liberdade: “Dar uma no cravo / outra no cravo / outra cravo / outra no cravo”.

No conjunto dos poetas antologiados, vários nomes estão ligados à região de Setúbal, como Alexandrina Pereira (que poetiza Abril, lembrando que: “Um grito surgiu da alma de um povo. / Ergueu-se um país que nasceu de novo.”), Álvaro Giesta (com um poema de louvor aos que fizeram e sonharam o anúncio de Abril), António Manuel Ribeiro (que traça um retrato do que “era um país em forma de aldeia” até ao momento em que “veio da noite o piparote” que “dobrou o regime por dentro”), Dina Barco (cujo texto nomeia Abril em todos os seus versos, enaltecendo as bandeiras do sonhado e desejado), José-António Chocolate (que põe a expressividade lírica em favor da data: “Era abril e outro mês não podia / ser mais forte, de esplendor e beleza, / ter luz clara e anunciar novo dia.”) e Sara Loureiro (apregoando, num poema que vive do sensorial, que “a liberdade foi um grito não murmúrio” com gosto “a plasma a vida a sonho transparente”). Três outros poetas participantes, como António Canteiro, Luís Aguiar e Xavier Zarco, foram vencedores de prémios literários ligados a Setúbal, designadamente os que têm como patronos os poetas Bocage e Sebastião da Gama.

A participação poética do coordenador desta obra, Luís Aguiar, cifra-se num texto feito de memórias e de aprendizagens, dedicado ao pai, “militar de Abril de 1974”. O seu final é, talvez, a melhor justificação para a existência de um livro como este, associando o conhecidíssimo cartaz concebido por Sérgio Guimarães, a memória e a necessidade da escrita: “Recordo-me do cartaz com um menino de cravo na mão / a silenciar uma G3 - ímpeto de um pássaro livre -, / já que a liberdade a todos pertence, e se alastra, certamente, / às amargas recordações, mas que são imunes ao olvido, / visto que o peso da memória também pode, um dia, habitar um livro.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1507, 2025-04-09, pg. 10.


quinta-feira, 3 de abril de 2025

Abril, cravos e poesia (1)



São cem poemas (tantos assinados por homens como por mulheres) que celebram o cinquentenário do 25 de Abril. São cem vozes que cantam as marcas de um mês que ficou como o “lugar onde a imaginação se fez maior que o medo”, como o definiu Conceição Brandão. São Cravos, diz o título desta antologia, coordenada por um também poeta, Luís Aguiar (editora Labirinto, 2024), que apenas apresenta poesia, sem introduções ou apresentações, porque cada poema justifica o ideário (ou o imaginário) de um Abril que se deseja sempre novo, apesar de cinquentenário.

Muitos são os versos que falam do cravo e da sua magia, assim conferindo poder ao título do livro, um quase vaso de poemas, metáfora apoiada nos dizeres de Alberto Pereira, o autor que abre a antologia, quando afirma que, naquele dia, se “transformaram espingardas em vasos”, imagem intensa porque “nunca se esquecem armas que declamam pétalas”.

Abril surge, assim, como o canto da esperança e da força da poesia, arte que permite o dizer mais intenso e absoluto, fortalecendo a palavra, dando asas à liberdade, uma certeza que Ana Maria Puga assinalou ao dizer que aquela manhã “logo fez cantar ruas e casas” e que o soneto de Maria Teresa Dias Furtado enalteceu como momento de suma importância histórica ao estabelecer: “A terra abriu-se de repente / Separou o passado do presente”.

Inevitavelmente, um símbolo de Abril como Salgueiro Maia não podia estar ausente deste universo, pelo carisma que alcançou e pelo que a memória dele fez — Isabel Cristina Mateus salvaguarda a imagem do capitão como “memória de Abril”; José Viale Moutinho constrói-lhe um busto de palavras ao defini-lo como “um capitão de bravura, que cultivava cravos vermelhos e sonhos, apeou os sacerdotes do medo e da maldade”; Nuno Sousa celebra-o como detentor de “genuinidade humilde de herói sem lugar / de deus sem altar”; Paula Banazol de Carvalho faz do poema um agradecimento à figura que trouxe “a liberdade em poemas de futuro”.

As palavras de esperança realçam também, por vezes, a soturnidade do passado, lembrando ora a guerra (António Salvado, num poema de 1974, ou Letícia da Mota), ora a prisão interiormente rejeitada pela crença num futuro melhor (Eugénia Soares Lopes) ou o medo militarizado e policiado (Miguel Marques), ora o esforço de anteriores gerações para que o futuro acontecesse (Daniel Gonçalves conclui o seu poema com o reconhecimento: “Mas se te mereço, Abril, / Por pouco que seja / É porque o meu pai / por ti lutou”), ora a força trazida pelos baladeiros e pelos poetas “que do mundo ergueram Verbo e voz clara e justa” (Marília Miranda Lopes).

Contudo, por alguns textos perpassa também uma certa reserva quanto ao cumprimento da esperança que Abril fez despontar — Carlos Nuno Granja denuncia com dose irónica: “Claro que animamos a malta com os foguetes da festa, / enquanto continua por cumprir a revolução, a sua plenitude”; Fernando Cabrita, nos passos de Paul Éluard (que, aliás, também é trazido por Yvette K. Centeno), afirma ser “preciso de novo escrever o teu nome / Liberdade / nas paredes que pensávamos esquecidas”; Isabel Cristina Pires lembra que “o futuro se enroscou”, enquanto “a espiral dos cravos / rodopiou no país, cada vez mais lentamente”; Teresa Tudela, em versos curtos, verbaliza a angústia de um Abril a acontecer: “Abril é já ali / ao virar da esquina / e não é ainda / (...) / Abril foi ontem / era outra coisa / era alegria”. Pela voz de João Pedro Mésseder, no entanto, há o esforço da conciliação, da urgência e do reforço de Abril: “Que em Abril, em todo o Abril / a vida em multidão venha para a rua. / (...) / Mas não me venhas falar de liberdade, / não me venhas falar de paz, democracia / se de justiça social me não falares, / pois sem ela tudo o resto é letra morta.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1502, 2025-04-02, pg. 10.


quinta-feira, 27 de março de 2025

António Marques: pela Liberdade, contra a Guerra

 


A guerra, na sua faceta mais brutal, percorre todas as páginas do livro A Grande Porta de Kiev, conjunto de treze poemas assinados por António Marques (n. 1956), em edição do sesimbrense Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz, textos em que, apesar de uma clara intenção de apregoar a paz, o leitor é posto perante a inevitabilidade: “Desde os tempos sem rasto ou memória / Que dizimamos e aniquilamos civilizações / Não me venham com conversas retóricas e sermões / Desde que me conheço é sempre esta a história / Treinado pelos assírios lutei por gregos e romanos / Sob a cruz templária assaltei e matei em Jerusalém / A coberto de navegações na morte fui sempre mais além / Em guerras santas dei caça a cristãos e muçulmanos / Fiz a guerra dos cinco dos dez dos cinquenta e dos cem anos / cavaleiro armado e sagrado na verdade simples mercenário / Sem piedade ou perdão aos inimigos fui temerário / Com armas primitivas ou modernas nunca temi senhor / Não me tornei assim agressivo e bélico como sou, agora / Cego e sem piedade não é coisa de agora vem de outrora”.

A citação é longa, vem quando o livro já vai a mais de meio, mas revela o desabar de toda a esperança, o gene da revolta contra o estado de coisas das civilizações, na voz de um eu que se assume combatente contrariado pela paz, perdedor, revoltado, num caminho sem sentido, acompanhado pela barbárie, em que “o que vai ficar são destroços e entulhos / Tijolos e pedras manchadas pelo sangue dos heróis / Anónimos reduzidos a pó e ao esquecimento / Entre os aços retorcidos pelo calor da batalha / Semeados pelos gelados campos eslavos”.

A destruição provocada pelo confronto bélico, cujas causas nem sempre são conhecidas, esbarra no sentir primeiro do poeta — “Sou avesso às guerras, justas ou injustas, todas mortais / Aqui, neste lugar, ou em qualquer outro”, ideia complementada mais adiante, ainda no primeiro poema: “Só a paz desejo, é o meu combate, o meu desígnio / A luta pela honra e pela liberdade”.

Todo o livro corre sobre a pele da sobrevivência num mundo em destruição, sempre a aguardar o que pode ser “o derradeiro combate”, numa ansiedade resultante da luta entre a raiva e a angústia, entre a dor e o amor (lembrando mesmo o episódio bíblico da luta fratricida — “Desde os tempos de Abel / Que morremos às mãos de um irmão”), entre o “sacrifício dos ideais”, o infortúnio e a hipocrisia, conflitos denunciados pela palavra poética — “Fornecemos sempre munições, víveres e provisões / Alimentamos o ódio dando expressão à raiva / Promovemos recolhas de bens e dinheiro / Doamos armas de todos os tamanhos feitios e gerações, / Numa hipócrita solidariedade humana”. A revolta é intensa e dela faz o poeta a sua prova — “Escrevo em paredes e nos muros das vilas e das cidades / O desconforto e a revolta // NÃO À GUERRA / Esta e qualquer outra // Não me ouvem? Porra!” 

Atrás do título “A Grande Porta de Kiev”, há um percurso artístico forte, personalizado em várias estéticas e por diversos nomes — se a primeira vez que foi utilizado se deveu ao arquitecto e pintor Viktor Hartmann (1834-1873), autor do desenho de uma porta comemorativa para Kiev com vista a assinalar o atentado falhado contra o czar Alexandre II (em 4 de Abril de 1866), nunca construída, a verdade é que uma exposição da obra de Hartmann em S. Petersburgo, no ano seguinte ao seu falecimento, constituiu o pretexto para o compositor Modest Mussorgski (1839-1881) construir uma peça para piano intitulada “Quadros de uma Exposição” a partir de dez telas, sendo uma, a última, “A Grande Porta de Kiev”. A composição musical ganharia projecção a partir da orquestração feita em 1922 por Maurice Ravel (1875-1937) e o tema voltaria a passar pela pintura através da criação de Wassily Kandinsky (1866-1944), que, em 1930, foi autor da tela com o mesmo título, reprodução que ilustra a capa do livro de António Marques.

A porta de Kiev, “a grande porta de Kiev”, afigura-se como o marco temporal e de esperança “da última e decisiva hora / Onde a verdade e a vida / Prevalecerão sobre / A mentira e a morte”, com uma força simbólica que José Ramos-Horta assinala na introdução ao livro: “para a defesa da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, é necessário manter a grande porta de Kiev aberta ao mundo”. Assim, a poesia edifica o monumento que homenageia os que tombaram e lembra que a vida é possível...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1497, 2025-03-26, pg. 8.


sábado, 22 de março de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (4)

 


A relação entre Joana Luísa e Sebastião da Gama foi construída também sobre as linhas da escrita e da leitura. Na entrevista concedida a Vladimiro Nunes em 2012 (reproduzida, em jeito de posfácio, a fechar o livro Estala de Saudade o Coração), referia a quantidade epistolar entre os dois durante o namoro: “O que nos salvava eram as cartas. Mantínhamos uma correspondência que era uma coisa extraordinária. (...) São mais de 800.” Desse lote, chegou Joana Luísa a publicar um primeiro volume das mensagens que Sebastião da Gama lhe enviou nos anos de 1943 e de 1944 (Cartas - I, de 1994), tendo deixado ainda seleccionadas as cartas que comporiam o segundo volume, datadas de 1945, obra que não chegou a publicar.

Mas as mensagens entre os dois trocavam-se também através dos livros e das leituras que partilhavam. Sendo ambos leitores fervorosos, as prendas que ofereciam um ao outro passavam muito pelos livros, vários deles com dedicatórias expressivas. Do primeiro título de Sebastião da Gama, Serra-Mãe, existem vários exemplares oferecidos a Joana Luísa: num, do dia em que o Poeta foi buscar os primeiros livros à tipografia, uma dedicatória que prova a partilha feita dos poemas, “Para o meu Amor, o livro da nossa Alegria. Sebastião Artur. 2.XII.1945, Lisboa”; noutro, como prenda natalícia, “Para ti, Amor, porque sabes ler os meus versos com uma voz que já se não distingue da minha. Sebastião Artur. Natal 1945”. O opúsculo Loas a Nossa Senhora da Arrábida mereceu também umas palavras para Joana Luísa, numa dedicatória escrita em jeito de quadra: “Isa, diz tu estes versos / que sabes melhor rezar... / pra que a Virgem seja sempre / visita do nosso Lar. Sebastião Artur. Arrábida, 19-VIII-1946” No ano seguinte, era publicado Cabo da Boa Esperança e, numa das páginas iniciais, Sebastião da Gama recebia uma oferta dedicada pela namorada: “Dou-te a minha Alegria que é um Poema teu, e o meu Amor que moldado por ti é também um Cabo da boa Esperança. Joana Luísa. 18-XII-1947”.

Estas declarações de afecto, primeiras memórias que um e outro foram construindo, passaram também por outros títulos que entusiasmaram o casal leitor — num exemplar de Os Lusíadas (edição de 1931): “Lembrança do Natal. Do primeiro Natal. E não é preciso pôr mais nada senão o teu nome, Joana Luísa, e o meu. Nós sabemos sonhar o resto. Sebastião Artur. 1944”; na antologia Poesia de Amor, organizada por José Régio e Alberto de Serpa (1945), no dia de aniversário de Joana Luísa, escrevia Sebastião: “Em 28.2.1945 - Aqui, Amor, só falta um poema: o que não precisamos escrever porque nos basta vivê-lo. E este dia 28 tem de ser feliz, porque o sabe de cor. Sebastião Artur”; na obra Dia Longo, de Ribeiro Couto: “Dedicatória para quê, Amor? Onde se vê o teu nome querido, Sebastião Artur, e o meu, vê-se tanta felicidade. Tua Joana Luísa.”; em A volta do Gato Preto, de Erico Veríssimo: “Este livro é para nós dois abrirmos — e cada um irá pensando mais no outro do que no livro. Sebastião Artur. 1948”; ainda em Música ao Longe, de Erico Veríssimo: “Para o Bastião: que o Menino Jesus ponha no teu sapatinho a companheira que tu mereces. Natal 1949. Joana Luísa”; na obra Palavras e Sangue, de Giovanni Papini: “Não é como nós queremos, Querido; é como Deus quer, faça-se a Sua Vontade. Mas não irás sozinho, está sempre contigo a tua Joana Luísa. 2-Outubro-1950”.

Joana Luísa foi a destinatária de vários poemas de Sebastião da Gama — “À Joana Luísa” (28.Fev.1942), “Caminho” (10.Abr.1944), “Ressurreição” (6.Mai.1944), “Dádiva” (23.Fev.1947) e “Hoje Deus é verdade” (8.Abr.1947) —, constou noutros com o seu nome sob forma anagramática — “A Olisa” (Abr.1941) e “Écloga Tarro” (Fev. e Mar.1942, em que aparece sob o nome de “Sávil”) — e foi a motivação de vários outros, de que se destacam “Madrigal” (7.Out.1946) e “Fé” (8.Dez.1951).

Ao longo dos tempos, Joana Luísa nunca deixou que a memória de Sebastião da Gama se esvaísse — prendas recorrentes suas tinham como objecto livros do Poeta, com dedicatória a propósito, como aconteceu quando, em 1972, ofereceu um exemplar de Pelo Sonho é que Vamos à sobrinha Ana Teresa, chamando a atenção para o poema “A uma rapariga”: “podia ser escrito para ti se o Primo te tivesse conhecido”; noutras circunstâncias, ofertava fotografias, como aconteceu com Acilda Fragoso, que fora aluna de Sebastião em Estremoz, a quem dedicou uma fotografia do professor sorridente: “Como Ele já não pode dizer nada, digo-te eu Acilda: perdeste um grande Amigo e um grande Professor”.

Nesta história que ligou os dois apaixonados, nunca a alegria podia ter faltado. Ou não tivesse ela começado por uma brincadeira com poemas carnavalescos no início da década de 1940: Sebastião da Gama escreveu, em verso, uma carta a uma prima de Joana Luísa, que, aflita por não saber quem era o autor, recorreu a Joana Luísa, que logo descodificou o anonimato e gizou uma resposta também em tom brincalhão. No dia seguinte, apareceu o próprio Sebastião, que, depois de ter sabido quem tinha construído a resposta, lhe disse, como lembrado na entrevista já mencionada: “Eu não sabia que tu fazias versos, que sabias fazê-los tão bem...” A partir dali, começou a troca de poemas entre os dois... e uma cumplicidade que os fez caminhar lado a lado.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1492, 2025.03-19, pg. 10.


quinta-feira, 13 de março de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (3)

 


Se há marca que ficou nesta relação entre Joana Luísa e Sebastião da Gama, essa foi a da dimensão da alegria, um traço fundamental na personalidade do poeta, como Joana Luísa fez sentir numa acção formativa para educadores em 1982, ao dizer que “a sua alegria transbordava”, cunho que ela também alimentava e que se lhes ajustava. Mesmo nos momentos mais dramáticos, marcados pela doença do marido, o papel que Joana desempenhou junto dele foi de lembrança dessa mesma alegria, valendo a pena relembrar a história a propósito do poema “Fé”, datado de finais de 1951, o último poema que ele escreveu: “Estávamos na Arrábida naquele 8 de Dezembro de 1951. O Sebastião tinha andado todo o dia um tanto misterioso: poucas falas, o olhar muito distante. Não se sentia muito bem de saúde mas não aludia ao facto. Depois do jantar, saímos (...) para ouvir o Mar, a Serra, o Vento... (...) Deitámo-nos cedo. (...) Sobre a madrugada, acordei com o soluçar do Sebastião, que me abraçava estremecendo com os fortes soluços que não conseguia conter. (...) Entre soluços e lágrimas, disse-me: ‘Se um de nós agora morrer, aquele que ficar vai sofrer muito, não vai, querida?’ Nunca soube explicar o que senti naquele momento, mas tive a ideia de que foi Nossa Senhora que me ensinou aquele recado tão bonito: ‘Ó filho, somos os dois tão novos! Quem vai pensar na morte com esta idade? Vamos dormir, sim?’ ‘Tens, razão, desculpa...’ Abraçou-me e não chorou mais. Passado pouco tempo, acordou o dia com o Sol brilhando sobre o Mar, lindo, luminoso. E, baixinho, com voz meiga como de costume quando me dizia um poema acabado de nascer, disse-me o poema ‘Fé’.”

Na véspera do Natal de 1955, Matilde Rosa Araújo recebeu carta de Joana Luísa, noticiando o seu regresso a Azeitão e o abandono da congregação religiosa a que se ligara após o falecimento de Sebastião da Gama, comunicação eivada de amor e de poesia: “Voltei, Tilde. (...) Não poderás calcular quanto me custou tomar esta resolução e até onde vai ou irá o sofrimento de sentir, mais que nunca, se é possível, a falta do Bastião, do meu querido Bastião que eu espero encontrar em todos os cantos da casa e nunca encontro.” Era o ponto de partida para uma viagem de absoluta preservação da memória, afinal o itinerário que assumiu.

O livro Estala de Saudade o Coração, de Joana Luísa da Gama, contém ainda mais duas partes: uma, constituída por crónicas versando memórias da infância em Azeitão, por onde passam situações e figuras familiares, pessoas que povoaram a terra com maior ou menor popularidade, eventos habituais no calendário local (a chegada do circo ou as marchas, por exemplo), personalidades e instituições que fizeram a história local (Frei Martinho ou o juiz de fora Machado de Faria, a quinta da Bacalhoa ou a Perpétua Azeitonense), havendo ainda espaço para momentos de reflexão, como o texto em que é valorizado o papel das mães e do esforço que lhes estava atribuído quando ainda não era celebrado o seu “dia”, por todos estes textos perpassando um sentimento de ternura e de afecto às experiências vividas ou testemunhadas.

O último grupo de textos alberga poemas de Joana Luísa da Gama produzidos entre Março de 1942 e Novembro de 1944, neles surgindo a dimensão religiosa, a expressão lírica de um “eu” dominado pela luta interior e por um certo sentimento nostálgico, imagens da infância e a influência da Natureza, em vários passos surgindo evidente alguma abordagem comum a Sebastião da Gama, como no poema “A Serra vestiu-se de noiva”, que é ao mesmo tempo um poema de amor, ou “Ouve, mar, que vens bramindo”, em que o sujeito poético, feminino, desabafa com o mar, perguntando-lhe pelo amado, seguindo a pista das cantigas de amigo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1487, 2025-03-12, pg. 9.

 

quinta-feira, 6 de março de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (2)

 


Em Estala de Saudade o Coração, assiste o leitor ao entusiasmo da jovem Joana Luísa, com 21 anos, a escrever a uma amiga, em Agosto de 1944, dando-lhe conta do início do namoro dos dois — “eu, a Luísa, e ele, o Sebastião, chegámos enfim a um acordo. Eu deixei de fingir que não gostava dele e ele viu enfim que não me dará o desgosto que temia, porque se julga muito barro, muito humano, muito tudo menos o que é. Para mim, é apenas aquele que eu sempre esperei para companheiro da minha vida, é aquele que eu amo, nada mais, não lhe ponham defeitos, porque cruzarei os braços ante os obstáculos e vencerei, se Deus quiser.” 

Se o namoro entre Joana e Sebastião foi o ponto de partida para tão longo percurso, as provas da fidelidade vão surgindo no decorrer das várias intervenções — em 18 de Maio de 1999, ao falar na cerimónia de entrega do Prémio de Poesia Sebastião da Gama, tendo sido pedido a Joana Luísa um discurso de cinco minutos, dirá perante a assistência: “Como posso eu meter o Sebastião em cinco minutos, estando ele presente 24 horas em cada dia dos 365 dias do ano?” A pergunta não seria apenas retórica, mas denotava toda a dedicação que continuava a existir — e quem estava presente ouviu mais uma história protagonizada pelo jovem Sebastião em 1945, quando terminou a Grande Guerra: “ele chegou de Lisboa e ouviam-se em toda a vila os gritos dele, desde que saiu da camioneta de passageiros até à minha porta: ‘Acabou a guerra! Acabou a guerra! Acabou a guerra!’ E foi assim aos gritos que ele manifestou a sua alegria.”

O entusiasmo dos dois aquando da publicação dos livros é também lembrado, seja na publicação do seu primeiro título, Serra-Mãe, no meio de dificuldades económicas e editoriais, das recomendações de amigos quanto à estrutura da obra, das idas sucessivas à tipografia, da revisão de provas, seja na preparação do segundo, Cabo da Boa Esperança, tarefa partilhada por ambos — “O caderno ia engrossando e chegou a altura de fazer a selecção. Bem difícil tarefa! Tinha a preocupação de não engrossar demasiado o livro e, vista agora, à distância, encontro uma ternura enorme recordando a cena dos dois diante do caderno, lendo poemas, trocando uns por outros, tirando mesmo alguns, para que o livro não fosse volumoso nem caro de mais."

Joana Luísa foi testemunha de momentos de poesia vividos com Sebastião da Gama. Se, no tempo que durava a finalização de um poema, ele queria estar sozinho, ela foi também, frequentemente, a primeira ouvinte e a primeira leitora de muita da produção poética, instantes que preservou quase cinematograficamente, como relembrou a propósito da escrita do poema “Nocturno”, de 1946: “Uma noite, o Sebastião saiu para a Serra como sempre. Quando voltou, trouxe um poema; nós estávamos na praia e, a caminho de casa, pela noite, de braço dado, ouvi-o murmurar esse poema. Foi tão linda aquela hora! O mar, o vento, o silêncio da noite e o poema dito por ele. (...) Quando volta assim da Serra, vem tão bonito! Os olhos muito abertos, os lábios vermelhos entreabertos, olha para longe, longe, para aonde não podemos olhar, e diz o poema.”

Joana Luísa acompanhou Sebastião da Gama nos sentimentos, ambos perfilhando a vivência de fortes emoções, muitas vezes surpreendentes.  Caso a que não falta essa intensidade, pela espontaneidade e naturalidade do acontecimento, é o do episódio acontecido no dia do casamento, em 4 de Maio de 1951, relembrado numa entrevista à Antena 1, em 1988: “No dia do nosso casamento, ele foi muito cedo para a Serra, casámos no Convento da Arrábida, e por lá andou. E, como fazia muitas vezes, apanhou um ramo de alecrim. Quando eu cheguei à porta da capela com o meu ramo de rosas, ele veio ter comigo, pediu-me as rosas, que deu a um convidado, e disse-me: ‘Leva antes estas!’ E eu casei-me de ramo de alecrim...”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1482, 2025-03-05, pg. 9.