sexta-feira, 10 de março de 2023

Memórias em torno do Palácio Feu Guião

 


Já sofreu o desastre de 1755, já foi residência nobre, já funcionou como escola (onde Maria Barroso Soares foi aluna) e como centro de dia, já esteve abandonado e em ruínas e, segundo a tradição (não documentada), até terá albergado S. Francisco Xavier aquando da sua vinda a Portugal (1539-1540) para corresponder ao projecto de missionação que D. João III quis incentivar. Hoje, é um condomínio residencial, de reconstrução recente, na zona setubalense da Fonte Nova, e tornou-se assunto de uma monografia que puxa para título a metáfora do ressurgimento, Palácio Feu Guião - A fénix renascida, obra assinada por Rui Canas Gaspar (n. 1948), autor ligado à história local sadina.

O livro, fora do circuito comercial, patrocinado por Constantino Modesto e pela empresa que modernizou o imóvel (SKEP), começa por um relance sobre a história de Setúbal, em jeito de contextualização, recuando até às mais antigas referências ao território, evocando momentos como a chegada de estrangeiros e o seu papel nas trocas comerciais (cerâmica e sal), a construção da muralha, a construção do caminho de ferro e a implantação da indústria conserveira, entre outros, importantes para a história da cidade.

O rápido passeio guiado à biografia setubalense pára no Bairro de Tróino, sítio do Palácio Feu Guião (nome advindo da família dos proprietários que o mantiveram até finais de Oitocentos), para dar conta da antiguidade da zona e relatar a intervenção arqueológica feita antes da reconstrução, acentuando a preocupação pedagógica, uma vez que o património arqueológico é considerado um contributo identitário para ser passado às gerações vindouras. Este capítulo, que se afigura como o início do renascer da fénix, noticia as descobertas feitas pela equipa de arqueólogos - pedaços de cerâmica de diferentes épocas, algumas moedas, estruturas de construções anteriores ao terramoto de 1755.

As memórias da vida do bairro a partir de meados do século passado são trazidas para este livro pelos testemunhos de António Cunha Bento (nascido no Palácio), com infância e juventude passadas na zona de Tróino, lembrando o comércio, os pregões, os passatempos, as pessoas... e também pelos relatos da investigação e da memória do autor (igualmente criado no espaço da Fonte Nova), por onde passam as relações de vizinhança e de proximidade e figuras que alimentaram o pequeno comércio e as relações sociais (o latoeiro Celestino, o alfaiate Raul, a “boleira” Laura, o merceeiro Pedro dos Santos, entre várias outras), num reviver intenso. Assim, a narrativa faz-se de recordações e de vivências, por este livro passando ainda a história do que esteve para ser o Convento da Santíssima Trindade (obra que começou, mas que foi interrompida pelo terramoto setecentista), as marcas da ligação das pessoas à Fonte Nova e a descaracterização da mesma na década de 1980, as histórias e as lutas das mulheres conserveiras (centradas na estátua a Mariana Torres), a origem da quantidade de restaurantes de peixe (cujos antepassados foram as tabernas onde se reuniam pescadores à volta do vinho vindo de Palmela e do peixe trazido pelos descarregadores), a referência aos nomes que marcam a toponímia do bairro.

O final do livro apresenta a “nova vida para a velha casa”, imagens da reconstrução do que foi palácio, assim como pequena biografia do bejense Constantino Modesto (n. 1956), agente da iniciativa desta remodelação, também conhecido por ser o promotor da árvore de Natal em Setúbal em anos recentes.

Este trabalho de Rui Canas Gaspar aproveita bem o pretexto da reconstrução de um imóvel para nos falar com simplicidade da humanização dos espaços e da história que as comunidades vão fazendo no quotidiano.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1028, 2023-03-08, p. 9.


quinta-feira, 2 de março de 2023

Ucrânia: "Sangra, meu coração"

 

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Em 1668, o padre António Vieira definiu-a: “É a Guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a Guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as Vilas, os Castelos, as Cidades. (...) É a Guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades.”

Como não recorrer a Vieira no momento em que passa um ano sobre a mais recente guerra em território europeu, justamente aquele em que se pensou que, após as duas guerras mundiais, havia que acabar com este belicismo? O termo do conflito não tem calendário, mas espera-se que outra fase virá - assim o desejam os dez poetas ucranianos reunidos na antologia Quando a primavera chegar - 10 poemas de guerra, editado pela Casa Fernando Pessoa, disponível em formato digital em acesso gratuito.

Os dez poemas (de Borys Khersonsky, Halyna Kruk, Kateryna Kalytko, Kateryna Mikalitsyna, Oleg Kadanov, Oleksandr Irvanets, Olga Bragina, Pavlo Korobchuk, Svitlana Povalyaeva e Vasyl Makhno, nascidos entre 1950 e 1984), traduzidos por outros tantos poetas portugueses (João Luís Barreto Guimarães, Jorge Sousa Braga, Matilde Campilho, Miguel Martins, Raquel Nobre Guerra, Regina Guimarães, Ricardo Marques, Rosalina Marshall, Tatiana Faia e Vasco Gato), foram escritos nos primeiros tempos desta guerra sobre a Ucrânia e têm sido divulgados pela National Translation Month (ligada à tradução literária) e pelo projecto Chytomo (ligado à cultura e à edição).

Por estes textos passa o tom irónico (“E então irrompeste sem aviso prévio, / trouxeste à tua amante um bouquet / de tanques, helicópteros, mísseis de cruzeiro em vez de flores, / disseste-lhe: a culpa é tua, aqui está uma bomba, uma granada, / Cabra, como te atreves a magoar o teu irmão mais velho?”, de Khersonsky), o lamento (“Na discoteca mais próxima as crianças / estão a dormir, / estão a chorar, / e estão a nascer / para o mundo em que agora é impróprio para viver.”, de Kruk), a denúncia (“Quem haveria de saber? Toda a gente sabia. / A iminência assemelha-se a uma poeira radioactiva, / desfazendo os vínculos entre palavras / e transformando o que se disse / num tumor sanguíneo.”, de Kalytko), a demanda da coragem (“é tempo de ler / o manual da reincarnação: / em caso de emergência / 1.a) partir o vidro da calma / 2.b) apagar a camada protectora do medo”, de Kadanov), o assumir do perigo (“Daqui não há como sair porque é demasiado curta a distância a um tiro depois da paz”, de Bragina).

Mas por estes poemas passam também versos de revolta (“Iremos sobreviver a isto, iremos resistir, / sob céus de paz limparemos a nossa terra / dos corpos que o maldito vampiro careca / com olhos de leitão enviou para aqui.”, de Irvanets) e de esperança, como sugere Korobchuk, num texto que defende o adiamento do amor e contém o verso responsável pelo título da antologia: “quando a primavera chegar e o inverno abrandar / quero oferecer-te flores / mas primeiro deixa que a nossa defesa anti-aérea / derrube os mísseis inimigos.”

A dificuldade do tempo passado sob a guerra leva Povalyaeva a hesitar, porque “não se pode confiar na esperança e também não se pode confiar no medo”, verso vindo de quem perdeu o filho, activista ucraniano, na frente de batalha em Junho de 2022. A dor acaba por pintar a tela gigante do que vai produzindo esta guerra (por certo, não diferente das outras), bem expresso no último verso do poema de Makhno: “Sangra - meu coração - sangra.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1023, 2023-03-01, pg. 10.


terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Nos 100 anos de Joana Luísa da Gama

 


Há 100 anos, o mês de Fevereiro terminou numa quarta-feira. Nesse dia 28, em Azeitão, o casal José Rodrigues Júnior e Maria da Conceição Oliveira Rodrigues via nascer a filha que recebeu o nome Joana Luísa, por certo um momento de promessas e de risos ao futuro.

A referência que ela viria a ser, só a vida a diria. E, de facto, no trajecto longo dos 91 anos de Joana Luísa, a marca foi a da fidelidade, uma enorme fidelidade, ao seu grande amor, à poesia e aos valores que a formaram. Não fora ela e, hoje, pouco saberíamos e pouco conheceríamos sobre Sebastião da Gama, o poeta eternamente jovem que faleceu aos 27 anos. Não fora ela e a história deste amor e admiração acabaria nesse momento...

Terá sido por 1944 que Joana Luísa e Sebastião da Gama encetaram o namoro, algo que já era adivinhado vir a acontecer, tão assíduo era o convívio e tão antiga a relação de vizinhança. Isso contava Joana a uma amiga, Gabriela de Jesus da Silva, em carta de 18 de Julho desse ano (inserta no livro Estala de saudade o coração, que reúne memórias de Joana Luísa da Gama, publicado em 2013): “Eu, a Luísa, e ele, o Sebastião, chegámos enfim a um acordo. Eu deixei de fingir que não gostava dele e ele viu, enfim, que não me dará o desgosto que temia. (...) Para mim, é apenas aquele que eu sempre esperei para companheiro da minha vida, é aquele que eu amo, nada mais, não lhe ponham defeitos, porque cruzarei os braços ante os obstáculos e vencerei, se Deus quiser.”

Este compromisso confessado a Gabriela, levou-o Joana até ao fim. A partir desse 1944, ainda em tempo de guerra mundial, o namoro foi-se construindo e o casamento aconteceu em 4 de Maio de 1951, no Convento da Arrábida (terá sido o primeiro casamento que ali se celebrou), no aconchego da Serra que Sebastião cantou e conheceu como ninguém. No mesmo local decorreu a lua de mel do casal, tempo que também foi de poesia.

Contudo, o tempo de casamento seria curto - nove meses quase exactos (metade deles passados em Estremoz, onde Sebastião fora colocado como professor), pois, em 7 de Fevereiro do ano seguinte, acontecia o falecimento de Sebastião da Gama. Com facilidade se imagina a dor que assaltou Joana Luísa, a mulher que reunia uma série longa de predicados, que fora também referência e inspiração para o jovem poeta, que trocou com ele afectos feitos de poesia e de dedicação e que... teve tão curto calendário para partilhar a construção dessa vida comum!...

Na tentativa de encontrar soluções para a sua vida (que passaram por uma entrada na vida religiosa por curto período de quase três anos, pelo estudo na área da Didáctica Pré-Primária, pelo acompanhamento de crianças como educadora, pelo exercício do voluntariado, pela ligação à paróquia azeitonense), Joana Luísa assumiu a continuidade da divulgação da obra de Sebastião da Gama, gesto inigualável de altruísmo e de consciência cultural, apesar de alguma contestação da parte do pai, como confessou em entrevista publicada na revista “Tabu” (saída com o jornal Sol em 3 de Fevereiro de 2012): “Voltei com todo o material que veio de Estremoz. Trouxe tudo quanto eram papéis do Sebastião e comecei a pô-los em ordem. O meu pai resmungava: ‘Deixa esses papéis’. Eu nem sabia como é que vivia...” Foi da junção e ordenação desses “papéis” e de outros que foi obtendo, recolhidos entre os amigos de Sebastião, que se foi compondo a obra do poeta azeitonense que hoje conhecemos, publicada postumamente. Não fora este trabalho dedicado e só conheceríamos os três títulos que Sebastião deu à estampa - Serra-Mãe (de 1945), Cabo da Boa Esperança (de 1947) e Campo Aberto (de 1951). Graças a Joana Luísa, à relação que ela conseguiu manter com o grupo de amigos do casal (entre os quais constavam David Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Maria de Lurdes Belchior, Luís Amaro, António Manuel Couto Viana e Luís Filipe Lindley Cintra) e ao seu entendimento e proximidade com Sérgio Gama (irmão de Sebastião) e sua esposa Aurora, a divulgação da obra do poeta que amou a Arrábida tanto como amou Joana Luísa prosseguiu com a publicação de Pelo sonho é que vamos (1953), Diário (1958), Itinerário paralelo (1967), O segredo é amar (1969), Cartas (1994), Não morri porque cantei (2003), Estevas (2004) e A minha arca de Noé (2006). Não fora a persistência e o amor de Joana Luísa e estas obras póstumas nunca chegariam ao nosso conhecimento ou viriam em termos deficitários... E mais: a quantidade de testemunhos que deu em favor da memória do seu marido, a questão que fez em estar presente em todas as acções que dissessem respeito à obra do poeta, as portas que abriu a investigadores e autores que quiseram conhecer como se fez o poeta Sebastião da Gama, a opção de pôr esta divulgação como projecto de vida e como dever. Impressionante, verdadeiramente impressionante!

As vidas dos dois cruzaram-se, mesmo no calendário - ele nasceu em Abril e faleceu em Fevereiro; ela nasceu em Fevereiro e faleceu em Abril. As vidas dos dois fizeram uma história de amor e de poesia. É por isso que não será excessivo dizer que a obra de Sebastião acaba por ser obra dos dois, embora em responsabilidades diferentes, mas que se completam. É por isso que a celebração do centenário de ambos vai decorrer em conjunto, entre 28 de Fevereiro de 2023 (nos 100 anos de Joana) e 10 de Abril de 2024 (nos 100 anos de Sebastião), um caminho de evocação, de aprofundamento de pluralidades de leituras e de contributo para a memória.

* João Reis Ribeiro. O Setubalense: nº 1022, 2023-02-28, pg. 5


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Joaquim Gouveia entre o sentir e a cidade



“Quem quer os meus poemas? / Quem quer as minhas palavras, / as minhas angústias os meus dilemas, / as minhas emoções as minhas fantasias / os meus cantos tão cheios e vagos / os meus desgostos as minhas alegrias” - é assim que começa um poema que tem o título do primeiro verso, a quarta entrada que surge na obra Toda a poesia é uma canção, do setubalense Joaquim Gouveia (n. 1961), conjunto de cerca de quarenta poemas (The Book Hut Editores, 2022).

O texto estende-se por quatro estrofes, sempre numa atitude interrogativa, extensões da pergunta inicial que se reproduz anaforicamente no início de cada estrofe e ocupa solitariamente a última, assim acabando por apresentar uma variedade grande de possibilidades que outra coisa não é senão a tentativa de o poeta apresentar ou justificar o que escreve. Este livro surge, então, como um baú que alberga as ansiedades, as emoções, as fantasias, os desgostos, os prazeres, os momentos de liberdade, os devaneios, os segredos, os amores, os sítios, as palavras que fazem a vida.

O conjunto organiza-se em quatro partes, a primeira sem título, as restantes a pretenderem circunstanciar as temáticas ou os momentos vividos através da poesia - “A cidade de toda a gente”, “Poemas no facebook” e “Viajante”. Pela primeira parte, passam poemas em que prevalece o “eu”, o tom lírico, os sentimentos, os instantes (olhar o mar, um café, uma viagem de eléctrico, a entrada numa livraria) e a presença do outro, ainda que não tendo voz, mas sendo o destinatário de parte dos poemas e aparecendo, por vezes, aliado numa forma de primeira pessoa do plural, como sucede em “Nos campos onde moro”, concluindo-se o poema com um convite: “E se um dia me fores visitar / leva contigo a tua alma / porque nos campos onde moro / a vida é cântico de amor, poesia em flor / numa tarde tão nossa, / tão calma.”

O grupo “Poemas no facebook” é dominado por textos em que prevalecem leituras sobre o amor, frequentemente dirigidos a uma segunda pessoa, um “tu” que se revela e, por vezes, está ausente, dando azo a que o poeta caminhe no sentido da demanda - “Voltei então só para te amar / como que afagando a solidão, / juntos partimos neste mar / repetindo a mesma canção.” A procura ou o reconhecimento são tónicas também presentes nos textos que compõem a quarta parte, consequências de calcorrear estradas pelo país, quase em viagem permanente, em que a paisagem se revela em momentos de felicidade e de interiorização - “Se ficares parto na descoberta / percorro o mapa deste país / e sigo estrada fora, porta aberta / de teus lábios que sempre quis.”

O segundo grupo, deliberadamente trazido para o final, é um conjunto de olhares sobre a cidade, em que os espaços e as memórias se aliam - Setúbal aparece como figura principal, nas suas ruas, símbolos e vivências. Por aqui, na “cidade mais linda que eu via”, se poetiza em torno de pescadores e varinas, da serra e da vista para o mar, do Sado e dos bairros, do Senhor do Bonfim e de Nossa Senhora do Cais, do vinho e da labuta, das figuras típicas e dos receios pelos perigos das tempestades, num misturar de sentimentos que conduzem ao engrandecimento da cidade e do que a faz. E o desvendar do segredo vai-se construindo: “Eu sei de uma cidade / onde o dia acaba na serra / onde a palavra saudade / se esvai por entre os sulcos da terra.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1018, 2023-02-22, p. 10.


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Rosa Ramalho: a imaginação e as mãos



“Deus Nosso Senhor fez o homem de figurado. Para melhor se ver e melhor entender. Não sêmos de forma, nem de sobras e afagados. Sêmos o Seu santíssimo figurado. Assim temos veneta e feitio. E temos ignorância. E havemos temor e destemor. E vergonha e desvergonha e sem vergonha.” Esta tentativa de definir o ser humano nas suas grandezas e nas suas limitações deve-se a Rosa Barbosa Lopes (1888-1977), minhota de Galegos de São Martinho (Barcelos), mais conhecida por Rosa Ramalho, que entrou na história da arte popular portuguesa pelas figuras em barro que imaginou e construiu.

Apesar da simplicidade da construção frásica, com marcas de oralidade locais, a riqueza dos conceitos presentes leva o leitor à reflexão. Foi assim que se sentiram os alunos da Faculdade de Belas-Artes do Porto, no final da década de 1950, quando António Quadros levou Rosa Ramalho a uma aula de Cerâmica para falar sobre a sua arte - não restou registo sonoro, mas houve estudantes que transcreveram algumas frases da barrista-bonequeira pela simplicidade e poesia que carregavam. A história vem contada no livro Rosa Ramalho - Fui eu, quem é que havia de ser?, de Rita Canas Mendes, com ilustrações de Sebastião Peixoto (Pato Lógico / Imprensa Nacional, 2022).

O percurso biográfico de Rosa Ramalho surge apoiado na riqueza humana da personagem, contextualizando as formas de viver e as épocas e valorizando a capacidade imaginativa e a tenacidade da artista, que não se deixava vencer pelas margens de risco da sua arte - material sensível e frágil, a peça de barro nem sempre sai incólume da cozedura, como aconteceu certa vez com Rosa Ramalho, que, “ao retirar do forno um soldado com espingarda, viu que este tinha o braço partido”. Como foi resolvida a situação? “Em vez de o deitar fora, pintou de vermelho a área partida e declarou: ‘Passa a ser um mutilado de guerra.’”

Esta capacidade de surpreender que assentava em Rosa Ramalho (que não sabia ler nem escrever, mas que aprendera a usar a marca “RR” nas suas peças para as autenticar) transmite-se à própria narrativa que ocupa este livro - começando por interrogar sobre os bonecos fantasiados da bonequeira, capta de imediato a atenção ao lançar o desafio que tudo pode permitir em termos de imaginação: “A vida e a obra de Rosa Ramalho estão envoltas em mistério logo desde o início.” Está preso o leitor, que se vai armar de perscrutador desse “mistério”. E, no final, parece que tudo surge desvendado, ainda que com o seu ingrediente de poesia - “O que houve de tão extraordinário em Rosa Ramalho foi ela ter sido sempre ela própria. Rosa foi Rosa. Quem mais havia de ser, afinal?”

O sentido poético advindo das figuras que criou - animais incomuns, cenas do trabalho rural, figuras excêntricas, formas humanas, representações de Cristo e figuras de santos, vivências locais, em peças inicialmente a cores e, depois, usando o vidrado cor de mel - é indissociável de uma visão prática e do sentido de autoria e de criadora: quando, em Julho de 1956, estava numa feira próxima do Porto a vender as suas peças, um jovem (que depois veio a saber-se ser António Quadros) pôs-se a admirar o produto e, “olhando para um lagarto, apontou para o dito e perguntou: ‘Quem fez esta peça?’ ao que Rosa respondeu prontamente: ‘Fui eu, quem é que havia de ser?’ A isto seguiu-se nova pergunta: ‘E como é que o fez?’ vindo logo a resposta: ‘Com as mãos, como é que havia de ser?’”

Um texto que se lê com agrado, intensamente ilustrado, que mantém a elevação da personagem e o seu ar de mistério até ao final, pessoa de afecto à sua criação - “afeiçoei-me aos meus bonecos como aos meus netos. Por isso é que os continuo a fazer...” ou “os bonecos que mais gosto? Olhe, gosto mais de todos que são meus...” foram frases que os estudantes do Porto ouviram de Rosa Ramalho e que, na sua vida, terão sido a caução da continuidade, já que a neta Júlia e o bisneto António seguiram o caminho por ela iniciado.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1014, 2023-02-15, p. 5.


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Livros amordaçados (2)


Poemas de Egito Gonçalves, in A Viagem com o teu Rosto - proibido em 1959

Em 1970, no sexto volume de Páginas, Ruben A. (1920-1975) confessava: “O que sinto mais terrível de tudo é o eu próprio fazer a primeira censura, quando escrevo já estou a fazer-me censuras, a ver se passa, equilibrar a prosa, falar nas entrelinhas, mentir. Esta censura mental, esta rede que coloco no pensamento é que é o verdadeiro drama.” Um quarto de século antes, ao Diário de Lisboa (17 de Novembro de 1945), Ferreira de Castro (1898-1974) dava longa entrevista sobre o tema da censura, puxada para a primeira página sob o título “O momento político: ‘O mal não está apenas no que a Censura proíbe mas também no receio do que ela pode proibir’ - diz-nos o escritor Ferreira de Castro”.

Ambos os escritores estavam a referir-se à mesma coisa - a auto-censura e o papel que os serviços de censura desempenhavam na criação artística. E Ferreira de Castro ia mais longe, ao afirmar: “O que se tem estado a fazer em Portugal é desfalcar o futuro do legado espiritual que lhe podíamos deixar. (...) Os livros nacionais publicados na última década estão, geralmente, deformados pelos seu próprios autores, receosos da censura.”

Ao percorrermos as justificações para interdição ou recomendações de alteração reproduzidas em Obras proibidas e censuradas no Estado Novo, não restam dúvidas sobre a forma como esta influência se exercia. Joaquim Lagoeiro (1918-2011) viu a decisão final para o romance Os Fraldas, em despacho de Junho de 1950 - “autorizado com cortes”, baseado no parecer que argumentava ser o livro “profundamente mau”, questionando se o autor “poderá refundir o livro, de modo a fazer desaparecer a feição comunista que actualmente apresenta” e admitindo: “atendendo  às condições presentes, julgo que será de autorizar com os cortes que fiz a azul.” De igual modo, a obra Romances do mar, de Bernardo Santareno (1920-1980), impressa em 1955, repositório de “versos maus, doentios, irreligiosos, associais e imorais, numa palavra, deseducativos”, levou o director a despachar: “Poderá ser publicado, desde que seja suprimida a poesia ‘Romance do Pescador Velho’”.

Não havendo dúvidas sobre o papel que a  censura queria exercer sobre a consciência dos escritores, também perpassa, em situações variadas, uma sensação de hipocrisia por parte dos decisores, sobretudo relacionada com as inconveniências que pudessem resultar das interdições, como foi o caso da obra Bichos, de Miguel Torga (1907-1995), que, em 1951, teve o seguinte despacho: “Este livro (...), embora inconveniente, não foi autorizado nem proibido, por razões óbvias”, pois o autor é “escritor de forte poder de aceitação por leitores de deficientes recursos espirituais”, que “procura motivos sugestivos, em prol da descrença, da aversão ao dirigente ou ao afortunado, fomentando o desrespeito social.”

Caricata, pelos motivos invocados, se torna a razão da proposta de proibição da  Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica, organizada em 1966 por Natália Correia (1923-1993): “não é possível admitir que seja viável a circulação deste livro em Portugal, dado o seu carácter pornográfico.  (...) Fica-nos a impressão de que esta obra pretende ser a contribuição comunista para as comemorações bocageanas que estão em realização.”

É evidente que a prática da censura durante o Estado Novo quis construir normas para controlar mentalidades. Mas as consequências foram brutais - como Álvaro Seiça recorda, elas foram “físicas, materiais e psicológicas”, com escritores exilados e violentados, numa prática que permitiu mesmo que alguns fossem publicados “para não levantar ‘publicidade’ inoportuna após vários anos de circulação, sendo negadas recensões ou citações nominais em jornais”. Em suma: uma morte que pretendeu ir muito além daquilo que seria o acto de escrever, visando a limitação na criatividade, na opinião e na denúncia. No fundo, o amordaçar do livro e do pensamento, prática que este catálogo Obras proibidas e censuradas no Estado Novo pretende não se repita!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1009, 2023-02-08, pg. 10.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Livros amordaçados (1)



Em 26 de Abril de 1974, o edifício-sede dos Serviços de Censura, na Rua da Misericórdia, em Lisboa, foi invadido e parte significativa dos haveres em arquivo foi atirada pelas janelas ou furtada. Salvaram-se, no entanto, cerca de mil e duzentos títulos, graças ao pedido que A. H. Oliveira Marques (1933-2007) fez  a um seu colaborador no sentido de ser feita a recuperação dos livros que ainda estariam naquele serviço, acervo que passou a integrar a Biblioteca Nacional.

A coincidir com a publicação da colecção “Biblioteca da Censura” (que o jornal Público tem vindo a distribuir nos dias 25, num projecto que irá até Abril de 2024), a Biblioteca Nacional de Portugal acaba de publicar o seu catálogo Obras proibidas e censuradas no Estado Novo, com estudos introdutórios de Álvaro Seiça e de José Pedro Castanheira, compreendendo a descrição dos títulos da Biblioteca dos Serviços de Censura e a lista das obras proibidas que existiam na Biblioteca Nacional e não podiam vir a público, além de excertos de relatórios dos leitores que serviam para fundamentar a autorização ou a proibição das obras.

Sobre as origens dos títulos proibidos pouco se sabe - oriundos de bibliotecas particulares ou de associações recreativas, de livrarias, de editoras, por certo, mas sem haver indicação precisa desse ponto de recolha. Livros em português ou noutras línguas, provenientes de diversos países, muitos deles proibidos, outros autorizados apenas em língua estrangeira ou porque a proibição poderia dar nas vistas - enfim, um  mundo de decisões onde parece campear a arbitrariedade ou o gosto discutível. Proibidos eram temas como a Rússia ou URSS (chegando-se ao ponto de proibir títulos como uma Histoire de la Littérature Russe, de Hofmann, ou guias linguísticos como Le Russe: Manuel de langue russe pour les français, de Potapova, ou Elementary Russian Conversation, de Kany e Kaun), a China, a sexualidade, o retrato de questões sociais delicadas, o pensamento contra a religião. Fosse como fosse, está o leitor perante aquilo que Maria Inês Cordeiro, na apresentação desta obra, escreveu: “a memória de uma biblioteca  para não ser lida, um testemunho do que é contrário à própria ideia de Biblioteca.”

As justificações para as propostas de interdição assentam sempre em argumentos que pretendem ser moralizadores - por exemplo quem leu um título como Harmonia e  desarmonia conjugais, de A. César Anjo (colecção “Saber”, 1950), opinou: “Trata-se de uma porcaria desmoralizadora e desmoralizante, encapada no disfarce dum pseudo cientismo técnico que só pode enganar primários ou muito incautos. Julgo de proibir rigorosa e urgentissimamente, por se estar a vender na Feira do Livro com toda a força, numa sementeira maléfica de  todas as horas.”

O almadense Romeu Correia (1917-1996) viu o seu livro Sábado sem sol proibido em 1947, decisão assim justificada pelo censor: “Este livro de contos é, de um modo geral bastante mau, porque aproveita a mais pequena oportunidade para focar a questão social. (...) São contos sem moral, sempre a puxar para a questão social e, portanto, não sei a quem possa interessar semelhante livro.”

A hesitação da censura quanto à proibição ou não de um livro surge a propósito de um título como La peau, de Curzio Malaparte (1898-1957), proibido em 1960 com o seguinte argumento: “um livro (...) que apesar de bem escrito, o é por um comunista”. Uma década depois, outro relatório dizia para o mesmo título: “Autorizado o original e qualquer versão em língua estrangeira, mas vedada a autorização para qualquer tradução para língua portuguesa, seja qual for a sua origem.” Assim, a leitura era permitida ao grupo restrito dos que soubessem falar outra língua...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1004, 2023-02-01, pg. 9.


sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Sebastião Fortuna, o idealista coerente

 

“O nosso amigo Sebastião partiu”, disse-me ao telefone, com voz hesitante e pesarosa, a amiga que me deu a notícia na tarde de 14 de Janeiro. E logo um turbilhão de imagens me passou, remexendo a já memória do Sebastião Fortuna (1936-2023).

De imediato me lembrei de uma folha manuscrita que ele me tinha oferecido, texto provavelmente lido ou pensado para alguma intervenção pública quando tinha 76 anos (de 2012, portanto), em que se definia: “Penso que sou uma pessoa como qualquer outra, com defeitos e qualidades, com qualidades e defeitos. Mas aceito que sou um idealista! Tenho consciência disso. Mas procuro ser um idealista coerente, pois tenho a consciência de que o ideal nunca se atinge, porque o ideal é um desejo, uma meta a atingir, que tem como finalidade o que consideramos a perfeição e o ser humano nunca será perfeito.”

A ideia que passou para os amigos e para os conhecidos sobre o Sebastião Fortuna foi a do “sonhador”, epíteto a fazer algum jus às palavras com que ele se apresentara. E vale a pena ler o capítulo da narrativa da vida do Sebastião Fortuna há pouco tempo publicado por Cecília Matos no segundo volume da obra E assim se fez esta terra... - Os Frescata, os Fortuna, as Cabanas e outras histórias (ed. Autor, 2022), relato de uma dezena de páginas, muitas vezes na primeira pessoa, recheado da inconstância, da luta, dos sonhos, da persistência, da vida que povoou este homem, que contou saberes para muitas profissões, que peregrinou à frente dos seus sonhos, que valorizou a circunstância de ser e de viver em detrimento de todos os riscos que correu.

Conheci Sebastião Fortuna quando vim para Setúbal, numa visita que fiz ao seu empreendimento “Fortuna - Arte e Artesanato”, ali na entrada de Quinta do Anjo. De tal maneira me fascinou o fluxo das ideias que lhe passavam que não pude deixar de testemunhar no jornal O Distrito de Setúbal (na edição de 29 de Novembro de 1988) a impressão recebida. Conversador (muitas vezes mais em monólogo, com vontade de ser ouvido), fazedor de coisas (em barro, em tela, em madeira, em pedra), defensor do património e do saber, as intenções de Sebastião Fortuna eram fortes, mas assentes apenas nessa vontade de construir e de enfrentar a vida - tudo podia acontecer naquele espaço, era preciso lutar contra a extinção de artes e de ofícios locais, pensava na construção de um museu do trabalho onde se pudesse ver e fazer... e as palavras acompanhavam o movimento das mãos, porque as ideias já circulavam pelas nervuras do corpo.

Retomo o manuscrito de 2012: “Porque sou um idealista e procuro ser coerente, empenho-me no meu ideal, porque é nele que encontro a minha razão de Vida, que é colaborar para a construção de um Mundo Melhor. Mas sei que, para colaborar na construção de um Mundo Melhor, não preciso de fazer nada de extraordinário, não preciso de dar lições a ninguém, basta-me lutar todos os dias com os meus defeitos e esforçar-me, empenhar-me em cultivar os dons, os talentos que Deus me deu e pô-los ao serviço do bem Comum e já tenho muito em que me ocupar, já tenho muita sarna para me coçar.”

Sebastião Fortuna viveu na convicção e afirmação destes princípios, a que associava a sua crença no sonho, como referiu no livro em que alguns dos seus quadros vivem acompanhados pelos poemas de Alexandrina Pereira, publicado no ano passado: “É acreditando no nosso sonho e lutando pela sua realização que as coisas acontecem.” Dizer isto quando o peso de 86 anos acompanha o autor é levar um manifesto até ao fim, é assumir um caminho na sua totalidade.

O sonho, companheiro inseparável de Sebastião Fortuna ao longo das quase nove décadas que viveu, casou sempre bem com o lirismo das suas telas, dominadas por espaços de isolamento, por uma emotividade espelhada em cenários de infinito conducentes a certa dose de introspecção. Olhando os catálogos das exposições que envolveram os seus quadros, vemos que as telas sempre se cruzaram com a poesia através de títulos que podiam ser um verso, uma pista ou um poema, numa aproximação repleta de simplicidade - Sebastião Fortuna tinha o condão de dizer grandes verdades construídas com a simplicidade absoluta, aliás.

Retomo o que escrevi sobre a sua forma de estar para texto introdutório de um catálogo de 2015: “Um percurso cheio de positivas aventuras e de nem sempre calculados riscos, claro. Um trajecto único, pessoal, de um timoneiro que conduz a nau dos sonhos até quem o queira ouvir, seguir ou acreditar. Um itinerário cheio de luz, em que nada parece vacilar, salvo a rude dureza da circunstância terrena...” É que não foi fácil ser Sebastião Fortuna, sobretudo porque a vida e o sonho nem sempre se compatibilizam, mesmo que as cores do sonho escorram sobre a tela da vida.

Pelo retrato que, no livro de Cecília Matos, com a ajuda do protagonista, fica traçado, percebe-se que a navegabilidade da vida, mesmo se orientada pelo sonho, nem sempre é regular e, em nome da coerência que o sonhador quer ter, os momentos de quebra são muitos e os de procura outros tantos. Na verdade, Sebastião Fortuna conhecia-se muito bem: ao definir-se como “idealista coerente”, defendia-se das inseguranças e das barreiras do quotidiano. Se olharmos para os títulos das exposições dos seus quadros de 2008, 2010 e 2015, temos a prova da sua coerência e os pilares do seu percurso: “Sonhar é preciso”, “A felicidade é essencial” e “A vida é feita de sonhos”. Um quase manifesto! Uma quase justificação para a vida!

* J.R.R. "500 (e mais) palavras". O Setubalense: nº 1000, 2023-01-26, pg. 19.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

António dos Santos, tipógrafo para sempre (2)


 

A partir da abertura que lhe foi dada pelo prefeito, o percurso do tipógrafo António dos Santos começa a edificar-se, sempre na permuta com os outros rapazes, na aprendizagem com os mestres, querendo assumir mais responsabilidades técnicas, dominado pela curiosidade e pelo sentimento de fazer melhor o seu trabalho, num trajecto determinado por um sentido de vocação, eivado de reconhecimento às pessoas que tiveram influência na sua formação.

Pelas páginas de O Tipógrafo passam os trabalhos de António dos Santos no jornal O Setubalense, na partilha de conhecimentos, na preocupação de saber mais, na construção da gráfica Corlito, com lições sobre a arte da impressão, sobre os meandros da linotipia e do offset, quase podendo o leitor entender este livro como um manual técnico contado na primeira pessoa, desvendando os segredos das máquinas com que trabalhou e revelando os caminhos para a produção de um melhor trabalho. O afecto à profissão, à arte e aos equipamentos que lhe permitiram ser tipógrafo surge humanizado em vários passos, como naquele em que se pode assistir à personificação sentida das máquinas, quando se refere o menor esforço na actualização do equipamento, exigindo-se às antigas máquinas as mudanças trazidas pelas novidades - “Tornava-se por vezes assustador visitar tipografias que existiam espalhadas por este país fora e ouvir aquele barulho característico das impressoras pedaleiras, máquinas que gemiam de dor, quase suplicando que lhes dessem um pouco de descanso, tentando com isso abafar o barulho infernal, numa cadência sempre igual, sempre de dor.”

Uma outra faceta que passa por este livro é a do contributo para a história local sadina, aspecto que pode ser visto de dois ângulos: o primeiro, quanto ao esforço de formação profissional que uma instituição como o Orfanato Municipal de Setúbal praticou localmente, depositando nas mãos dos jovens que acolheu os utensílios necessários para o desempenho de uma profissão, aspecto que, de resto, António dos Santos já sobejamente relatou em obras anteriormente publicadas; o segundo, relacionado com a história das artes gráficas em Setúbal, inventariando as tipografias e alguns mestres da arte locais, ligando os momentos de expansão ou de retracção desta actividade com a vida de Setúbal.

A história que António dos Santos nos conta é também uma forma de reconhecimento - ao longo da narrativa, há sempre a preocupação do papel que os outros desempenharam, da construção em equipa - os colegas da arte (muitos deles formados na mesma escola), os seus aprendizes ou aqueles que estiveram sob a sua orientação, os mestres que conheceu e com quem aprendeu, as figuras com quem se cruzou e que confiaram no seu trabalho, os clientes para quem trabalhou (destacando neles o apoio para o crescimento da tipografia e a exigência que punham nos trabalhos encomendados), os parceiros da arte (como designers, fotógrafos, autores, etc.) e, por fim, a parte da família que o auxiliou, os sogros, que apresenta como “a família que nunca tive desde a minha nascença, gente da Murtosa, simples e afável a quem estou grato pela extraordinária ajuda que me deram para levar por diante um sonho de progredir e chegar mais além nas artes gráficas”.

O Tipógrafo, que António dos Santos nos oferece, ainda que carecendo de uma revisão linguística adequada, é um belo documento humano e profissional, muito assente no testemunho pessoal, apoiado, muitas vezes, em bibliografia sobre o tema, pois, como revela na última página, houve a preocupação de “chegar ao leitor, descrevendo com autenticidade tudo o que ao ofício de tipógrafo diz respeito.” Torna-se interessante, depois deste percurso, voltar ao início do livro, ao passo em que, na segunda página, o autor confessa o fascínio sentido desde criança pela tipografia: “O tempo ajudou-me a perceber a grande mudança que na minha vida se instalou, dando comigo em dias intermináveis colado aos vidros da porta da oficina de tipografia, imaginando-me um simples monge dos que há séculos habitaram este espaço de clausura, capaz de ali permanecer para sempre.” Missão cumprida, pois!

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 994, 2023-01-18, p. 8


quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

António dos Santos, tipógrafo para sempre (1)


 

“Dediquei-me a esta máquina com muito entusiasmo, conseguindo, com o correr do tempo, dela tirar os melhores resultados de impressão. Era como cruzar uma estrada cheia de obstáculos que nunca esperei percorrer, perguntando-me como consegui sobreviver do abandono a que fui jogado e parecer, afinal, igual a tantos homens que na vida tiveram feliz nascimento. Tudo isto regenerou em mim vontades de chegar longe na arte que escolhi, o ser impressor tipográfico, vendo-me como mais um sobrevivente que ao Orfanato chegou como indigente.”

Este parágrafo surge quase a meio do livro O Tipógrafo, de António dos Santos (Centro de Convívio dos Ex-Alunos do Orfanato, 2022), motivado pela grande inovação que constituiu a aquisição de uma máquina cilíndrica em segunda mão para trabalhos de grande formato, que equipou a oficina do Orfanato Municipal de Setúbal em meados da década de 1950. Mas o propósito deste parágrafo vai além dessa notícia - ele revela também um acto de fidelidade de António dos Santos relativamente à profissão que escolheu, um compromisso com a arte tipográfica, que lhe apareceu como bóia de salvação no seu percurso de criança abandonada pelos pais, mas depois acarinhada pelas instituições sociais, como foram o Asilo das Crianças Desvalidas (até aos sete anos) e o Orfanato Municipal de Setúbal (até aos 18 anos).

Talvez este parágrafo seja a justificação para o título desta obra - na verdade, a linha de leitura dominante neste livro é o percurso de tipógrafo de António dos Santos, desde essa altura até ao encerramento da empresa Corlito (Centro Técnico de Artes Gráficas), ocorrido em 2010, marca que criou e geriu com três outros sócios (Agostinho Ferreira, Alfredo Lopes e Henrique Rocha, este último também formado nas oficinas do Orfanato) ao longo de quase quatro décadas.

Ao escolher um título como este, O Tipógrafo, para contar a sua vida profissional, António dos Santos assume o seu ofício como algo de essencial, como motivação primeira, cruzando a vida com a técnica, com a produção, com o seu papel social de cidadão.

Lemos esta narrativa e assistimos à permanente sobreposição dos dois planos que a conformam - o da biografia do autor e o da história da arte tipográfica -, dando-se a primazia ao plano da profissão: de facto, o princípio da história, à semelhança de todas as biografias que seguem a ordem cronológica, aponta para a infância, mas, neste caso, a infância que é valorizada não é a do narrador António dos Santos, mas a da arte tipográfica - em duas páginas, o narrador apresenta-se para justificar a sua entrada no Orfanato e revelar a curiosidade em torno do que poderiam significar aquele cheiro da tinta e o barulho das máquinas que se ouvia. Depois, em dezena e meia de páginas, o leitor passeia pelos meandros de uma história da “tipografia através dos tempos”, recuando-se até aos anos de 800 no Japão, com entrada na história da arte tipográfica em Portugal, concluindo com referências à reedição, em 1962, da obra Manual do Tipógrafo, de Libânio da Silva (inicialmente publicada em 1908), título “indispensável para os rapazes que se inspiravam nas artes gráficas, procurando na arte de imprimir um futuro seguro”.

Só depois deste passeio pela história da tipografia é que o percurso pessoal do narrador é retomado - “Os 12 anos de idade chegaram. Era ali, naquele espaço do convento com artes de magia, que colocava no papel as palavras através dos caracteres na hora do confronto com a platina da máquina de impressão... que queria estar.” 

Tão firme decisão (ou paixão) obrigaria o jovem a uma conversa com o prefeito, momento de receio quanto à reacção que pudesse surgir como resposta, a carecer de toda a auto-confiança que o rapaz a sair da infância, ainda sem o exame da 4ª classe feito, pudesse arrecadar. O diálogo foi tão marcante que António dos Santos o relembra quase como se tivesse sido registado no momento em que aconteceu, vindo do perfeito a resposta desejada - “Impressionas-me... Está bem, vai lá falar com o Sr. Sequeira e diz-lhe que tens a minha autorização.”

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 989, 2023-01-11, p. 5.