quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós juntos

 

Esculturas de Camilo Castelo Branco (Francisco Simões, no Porto) e de Eça de Queirós (Teixeira Lopes, em Lisboa)

Os últimos tempos têm andado de feição para Camilo Castelo Branco (1825-1890) e para Eça de Queirós (1845-1900), não fosse o trabalho da memória uma coisa que mexe com os povos e com a cultura...

Camilo veio à liça por causa de uma escultura no Porto, situada no largo que tem o nome de um dos seus mais conhecidos livros - Amor de Perdição. Há pouco mais de uma década, a obra de arte, assinada por Francisco Simões, foi ali colocada, mesmo em frente do edifício onde o escritor esteve preso. Os tempos passaram e um grupo de perto de 40 cidadãos apresentou documento a Rui Moreira, edil do Porto, a pedir a retirada da estátua por razões tão sublimes quanto o “desgosto estético” e a “desaprovação moral”... Pelo meio, discussão para muitos gostos chegando-se ao ponto de ter sido opinado que as duas figuras da escultura - Camilo e uma representação feminina - deveriam estar em jogo de igualdade: ou ambas nuas, ou ambas vestidas. E assim se discutiam os gostos e as ideias e outras coisas quase inomináveis. Rápido a decidir foi o presidente portuense que logo terá mandado recolher a obra de arte para os depósitos camarários. Rápido também foi o aparecimento de uma petição, com milhares de assinaturas, a contestar a decisão. E o presidente deu o dito pelo não dito e retrocedeu porque terá descoberto que, afinal, a estátua estava ali por decisão da Câmara, etc., etc. Mas, mesmo assim, Rui Moreira ainda veio escrever sobre o caso - no Público, de 18 de Setembro, lavrou o seu arrazoado: “Acresce que também eu tenho opinião. E, peço desculpa por o dizer assim, tenho uma legitimidade acrescida, porque presido ao município e tenho nas minhas mãos o pelouro da Cultura. Não sou especialista em estatuária, mas não gosto da estátua. Não por pudor ou moralismo. Felizmente, o nu e o erotismo fazem parte da arte, e estão presentes na cidade. Não considero aquela estátua erótica ou pornográfica. Apenas pornograficamente horrenda.”

É caso para dizer que mais teria valido não dizer nada, pois o emaranhado argumentativo esboroa-se por sua conta - o senhor tem opinião, acha que a sua opinião é agravada por ter a mão na cultura, não é especialista em estatuária, não gosta da estátua, não a considera erótica, mas acha-a “pornograficamente horrenda”. Isto é uma enciclopédia de saber, caramba! Só faltou a Rui Moreira dissertar sobre o conceito do “pornograficamente horrendo”, que deve dar uns bons quilos de prosa!...

Como quando se fala de Camilo também o nome de Eça salta para a ribalta, uns dias depois foi o turbilhão em torno da trasladação (ou não) dos restos mortais do autor de Os Maias para o Panteão Nacional. Eça esteve sepultado em Lisboa e, em 1989, foi trasladado para o concelho de Baião, onde se localiza a Fundação com o seu nome, instalada em lugar que ele tão bem descreveu e para o qual inventou um nome - Tormes.

É verdade que o Panteão honra e destaca. Mas qualquer cemitério é espaço de respeito e de honra - ali estão marcas de pessoas que fizeram vidas. Deverão os restos mortais de alguém andar ao sabor de momentos histórico-políticos? Pelos vistos, sim. O problema é que os contextos histórico-políticos variam e, 90 anos depois de falecer, Eça foi levado para Baião e, agora, passados mais cerca de 30 anos, querem fazê-lo regressar a Lisboa. Lá por Baião, um candidato derrotado a Presidente de Junta tem feito finca-pé quanto a mais esta viagem queirosiana, ajudando a que o caso seja um problema político e não uma questão cultural, alimentando a querela entre descendentes de Eça divididos quanto ao destino dos restos mortais (uns, pró-Panteão; outros, contra), mais discussões parlamentares e decisões judiciais pelo meio...

Eça e Camilo, lá por onde andam, devem rir-se a bandeiras despregadas destas diatribes caseiras que vão acontecendo... e que tão mal dizem da forma como encaramos a memória, que vai sendo algo para jogar quando dá jeito e pouco mais.

Deixe-se a estátua de Camilo onde está e fiquem os restos de Eça onde estão. Afinal, como se pode provar qual a facção que tem mais razão? Será que, nestas coisas da memória, também temos de andar a reboque dos “remakes”, das reconstruções, dos sabores de ocasião? Eça e Camilo estão condenados a andar juntos, por muito que alguns sobrevalorizem um ou outro - e, por estes dias, esse debate tem surgido de novo com adeptos ferrenhos da supremacia artística de um ou de outro. Na verdade, o que importa é que se conheça a obra dos dois e que as suas páginas sejam lidas, pois são bons retratos do que é ser português. Se assim fosse, talvez não tivéssemos de assistir a estes tristes espectáculos cheios de provincianismo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1154, 2023-09-27, p. 10 (acrescentado) 


quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Luís Aguiar: a partilha dos silêncios e o amor


Há uma canção de Bob Dylan, de 1968 (“Open the door, Hommer”), em que o papel das memórias é assim poetizado: “Cuida de todas as tuas recordações / pois não podes revivê-las.” Estes versos do poeta-cantor nobelizado acentuam de forma crua o efeito da lembrança, uma quase-metáfora para tornar presentes coisas acontecidas no passado, momentos distanciados pelo factor tempo e pelo contexto em que os acontecimentos e as recordações ocorrem.

A obra surgida da edição do Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage de 2022 que agora se publica, O sossego do tempo sobre a pele (Setúbal: LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2023), de Luís Aguiar, joga com esse elemento fundamental que é o tempo, fermentador de uma certa quietude e elevador das recordações, num percurso resultante da brutalidade do encontro com a morte, com o silêncio.

Na mais antiga recordação, o poema que inicia o livro, há a vivência de um passado que fazia o tempo, trajecto prolongado que parecia não ser interrompido - “Éramos tão novos, meu amor, / mas o tempo trazia nas veias lume, / romãs e os lugares / que um dia iríamos esquecer”. Contudo, este correr da vida e da paixão surge ameaçado logo no segundo poema, quando a escrita se confronta com a sorte e com a doença - “o destino é um viajante, / assim é a dor que o naufrágio causa / (...) / enquanto a leucemia se estendia / pelo sangue e pela linfa, / como se fosse um vestido preso / no estendal da quinta.”

A memória impele para lugares de revisitação, numa tentativa de construção de momentos de felicidade retomada - “Ontem, estive junto à praia onde namorávamos / sem que a tua mãe o soubesse. / (...) / Em escassos segundos recordei-me do teu sorriso.” Porém, tais instantes podem acentuar a dor, trazida pela ausência - “O mundo não mudou e tu, agora, repousas em parte incerta, / enquanto eu me tento expulsar deste quarto / onde adormeceste ontem, e ontem foi há tanto tempo”.

A continuação do poema constrói-se sobre recordações assentes em objectos (as cartas), em partilhas (uma viagem de comboio para Caminha), em instantes de alegria (o vento na praia, a areia nos pés, os campos verdes), como é conseguida nas imposições do sofrimento (“Doem as perguntas mais planas, / e as histórias que desapareceram no azul desvanecido”) ou na insistência na vã procura do ser amado - “Diz-me, / em que manhã, / ou em que pôr-do-sol, / poderei / procurar o teu cheiro, / ou o teu beijo, / misturado num lívido poema (...)?”

A leitura deste O sossego do tempo sobre a pele é um desafio à sensibilidade do leitor, uma viagem pela dor e pelas cicatrizes trazidas pela vida, num percurso interrompido pela morte, que “chegou na idade em que o cimento / estava fresco, e as searas eram infindas / para os passos que não conseguíamos dar”. O trajecto torna-se difícil para o poeta, que, depois de se ver “órfão” na viagem, sente a falta do abraço do “último momento”, tem de responder às perguntas sobre a morte, peregrina na tentativa de minimizar a ausência.

Na justificação apresentada pelo júri para premiar esta obra, assinada por José-António Chocolate, é referido estar-se “perante uma história de amor e saudade, sendo esta última não o resultado de uma revolta perante as circunstâncias adversas da vida, mas um hino de agradecimento a quem partilhou uma relação intensa e verdadeira”, ao mesmo tempo que se sublinha a riqueza imagética e metafórica conseguida no poema. No fundo, um livro construído sobre o silêncio e a vertigem da dor.

Se, como disse Jaime Salazar Sampaio, “é preciso ter amado a vida para aceitar a morte”, este longo poema de amor é prova desse percurso, via difícil de procura e de encontro, que se conclui com uma declaração que ultrapassa todas as agruras, que vence a dor: “Amo-te, / mesmo que as rosas me rasguem as mãos, / por não suportarem / o peso do teu nome inscrito numa lápide.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1149, 2023-09-20, p. 10


domingo, 10 de setembro de 2023

Pedro Narra desvenda segredos da Comporta



Em quase uma centena de fotografias, Pedro Narra (n. 1974) leva-nos a um encontro com segredos da Comporta, nem sempre visíveis a quem daquele espaço aproveita apenas o mais óbvio, num convite para descobertas pessoais e momentos de contemplação da Natureza que nos cerca.

O desafio passa pelas páginas de Terras da Comporta, álbum recentemente editado pela Vanguard Properties (fora do circuito comercial), título que se conjuga também com a marca dos empreendimentos que esta empresa está a promover na zona da Comporta - “Dunas” e “Torre”.

O livro corre em duas vertentes - por um lado, nessa linha do desvendar, mostrando momentos quase únicos e insistindo na urgência do olhar e do parar; por outro, na pista das memórias do artista, que ali cresceu e se deixa mergulhar nas memórias vividas.

“Revisitação do passado” - é assim que este livro é qualificado por Pedro Narra, para quem a Comporta é “um estado de alma”, conjunto de olhares resultantes do tempo ali passado a “contemplar o mar, as dunas” e a absorver “as fragrâncias que chegavam”. Um livro feito de sentidos, pois, em que se adivinham os cheiros, os ruídos, os gostos, os toques, vindos das brisas, do restolhar, do chilreio, dos sabores, do bate-que-bate das águas enroladas na areia. Um livro feito de olhares oportunos, demorados, contemplativos, perscrutantes, atentos, sub-reptícios.

Estruturado em cinco partes - “terra”, “azul”, “asas”, “areia” e “luz” -, por cada uma delas passa o mais forte de cada título, cobrindo a vida que nos é trazida dos meandros do arrozal, do sapal, das dunas ou do estuário. Encanta-se o leitor-observador com os animais (a gineta, o ouriço-cacheiro, a salamandra, o abelharuco, o chapim, a poupa, o pintassilgo, a garça, o pato-real, o golfinho, a cegonha, a águia-pesqueira, a raposa, entre outros), com as plantas (a alfazema, a camarinha, o pinhal, o feto, a azeda, a planta do arroz, o cravo-das-areias, partes de uma lista maior) ou com os efeitos de luz e cor (conseguidos em espaços como o arrozal próximo da praia da Comporta, as praias da Raposa, do Pinheirinho e do Carvalhal ou nos meandros a que Pedro Narra chamou “vida nas dunas” ou mesmo nas gotas de orvalho que serrilham uma folha).

Há fotografias que nos obrigam a parar, de tal forma a Natureza se nos impõe e se manifesta, como a que inaugura o livro - paisagem verde de arrozal, cruzada por linha vertical cor de terra, espaço de passagem e de divisão de lotes de terreno agrícola, quase mostrando as simetrias ou as geometrias com que a Natureza se nos apresenta muitas vezes - ou como a das camarinhas (nas suas bagas apelativas e tentadoras), a do pinhal na Praia da Comporta (com tufos de plantas que disfarçam a areia, dando ideia de que a protegem), a dos pintassilgos (no esforço de repartir o alimento pelos filhotes, em simultâneo com a avidez de bicos abertos na busca do pedaço que cairá em sorte), a do canal da Comporta (no seu delinear ziguezagueante, composição magistral de desenho livre), a da planta do arroz (na força da sua fragilidade), a dos flamingos em bando (construção de linhas paralelas estilizadas, em espírito de grupo e de orientação), a dos fetos castanhos (trabalho de recorte fino e de ornamentação), a do cravo-das-areias (quase querendo fazer com que o seu odor ou a sua cor corram na brisa) ou a da Praia do Carvalhal (mistura de cores numa paleta que desafia os restos de luz).

É um livro bonito este, que Pedro Narra construiu para que o mundo próximo de nós nos surpreenda e para que o leitor se torne observador do que lhe é contíguo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1139, 2023-09-06, p. 8.


segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Círio de Nossa Senhora da Tróia vivido em livro



“A Festa de Nossa Senhora do Rosário de Tróia tem a duração de três dias (sábado a segunda-feira) e a sua data é marcada nas três primeiras semanas do mês de Agosto, dependendo das marés, de modo a que os barcos de pesca de maior calado possam entrar na Caldeira de Tróia na tarde de sábado e saírem na tarde de segunda-feira para o regresso a Setúbal.” É assim que começa o livro Círio de Nossa Senhora da Tróia (2023), em texto assinado por José António Carvalho, o seu mentor.

São quatro os autores que colaboram nesta obra, cujos textos surgem em português e em inglês: José António Carvalho, Casimiro Henriques, Maria Miguel Cardoso e Inês Vaz Pinto.

O primeiro faz a apresentação da festa, com o seu programa detalhado, e contextualiza-a no âmbito das comunidades piscatórias setubalenses de Fontainhas e de Tróino, nascidas a partir de geografias diferentes (da zona da Murtosa, a primeira, e da região algarvia e de Setúbal, a segunda), cada qual com a sua romaria própria ao longo de muito tempo, separação entretanto esbatida, quer pelas alterações sociais, quer pelas mudanças resultantes do ordenamento - explica José António Carvalho, recorrendo a informação de Maria Miguel Cardoso, que a rivalidade entre os dois bairros “era essencialmente masculina”, uma vez que as mulheres e as crianças “rapidamente se misturavam  nas fábricas de conservas onde as relações sociais estabelecidas primavam pela solidariedade na pobreza”. Por outro lado, o reordenamento da zona ribeirinha setubalense acontecido na década de 1990, ao trazer os barcos de pesca para a Doca dos Pescadores, acabou por ser determinante para a aproximação entre as duas comunidades, de tal forma que, “actualmente, a comissão de festas é constituída por pescadores e descendentes de pescadores varinos, mas no círio fluvial e na festa participam pescadores de todas as comunidades.”

José António Carvalho é ainda responsável por cerca de uma centena de fotografias da festa, organizadas em três momentos (ou “narrativas fotográficas”), captadas nas cerimónias realizadas entre 2010 e 2019, verdadeira reportagem visual da totalidade das festas e do empenho posto pelos participantes, de tal maneira é forte e expressiva a presença humana nos tempos retratados, em que surgem os intantes da preparação, da oração e da alegria da festa.

O padre Casimiro Henriques assina o texto que se debruça sobre a experiência de fé dos romeiros, explicando o convívio entre o dogma e a religiosidade popular. A intensidade desta aproximação é visível no momento da experiência que vivencia a festa - “Para entendermos o sentido profundo dos romeiros e da romaria, é preciso estar lá. Olhar olhos nos olhos encharcados dos que dirigem ‘à santa’ as suas preces. É preciso contemplar as mãos trémulas ao acender as velas. É preciso saborear as palavras simples impregnadas das graças recebidas e agora agradecidas.” Eivado deste sentimento testemunhal, o texto funciona como um convite em que a emoção marca presença.

Maria Miguel Cardoso faz uma abordagem sociológica da festa, destacando o papel assumido pela população na preservação deste evento ligado à freguesia de S. Sebastião (não esquecendo o que foi a “reconquista” da organização da festa em meados da década de 1940, depois de, durante cerca de 15 anos, ter sido organizada por um padre de Melides, que não consentiria na participação dos setubalenses...). Interessante é ainda a leitura apresentada quanto ao sentimento comunitário que a festa tem e quanto ao seu papel na proximidade entre as pessoas e na construção de famílias.

O último texto, assinado por Inês Vaz Pinto, apresenta Tróia como “lugar sagrado”. Recuando às visitações da Ordem de Santiago, verifica-se que, já pelo século XVI, “a ermida não era apenas frequentada pelos habitantes da região, mas sim um lugar de peregrinação para gente vinda de longe”. O texto passa pela primeira referência explícita à festa em 1707 (por Frei Agostinho de Santa Maria), à presença do pregador bem conhecido na região que foi o padre Nabeto ou à retoma da organização da festa pelos pescadores de S. Sebastião em 1945. Para Inês Vaz Pinto, a capela de Nossa Senhora do Rosário da Tróia assenta num espaço que a História tem provado ser tradicionalmente religioso - “não só está muito perto da igreja paleocristã da época romana, como parece ter sido construída sobre um templo romano.”

O círio de Nossa Senhora da Tróia, cuja procissão é em linha directa, atravessando o Sado, da igreja de S. Sebastião para a Caldeira, e com passagem pelo Outão e trajecto costeiro no regresso às Fontainhas, surge bem documentado numa abordagem visual e interdisciplinar nesta obra, que fica como referência para esta manifestação religiosa setubalense, em fotografias que alimentam a memória e em textos de que não está alheia a vivência da festa.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1135, 2023-08-31, p. 10


segunda-feira, 31 de julho de 2023

A proibição do primeiro livro de Romeu Correia



Sábado sem sol em 1.ª edição (1947), em 2.ª edição (1975); recorte de O Setubalense, de 13.Agosto.1975


No número 51 do jornal Mundo Literário, de 26 de Abril de 1947, o crítico Nataniel Costa (1924-1995) escrevia sobre “um jovem auto-didata cuja experiência da arte de escrever era quase nula e cuja cultura tem sido adquirida, em grande parte, nas bibliotecas populares da sua terra”, que tinha publicado “um volume de contos, sob vários aspectos, digno da maior atenção.” O autor apreciado era Romeu Correia (1917-1996), almadense, que acabara de publicar o seu primeiro livro, Sábado sem sol, constituído por oito contos.

O Mundo Literário, em cuja direcção pontificaram nomes como Jaime Cortesão Casimiro e Adolfo Casais Monteiro, iniciado em Maio de 1946, teria apenas mais dois números na sua vida - um, em Maio de 1947, e outro em Maio de 1948. A publicação acabou devido a pressões várias, a que não foi estranha a influência do poder político. E, coincidência das coincidências, o livro, publicado cerca de dois meses antes desta crítica (em 5 de Fevereiro), seria proibido em 10 de Maio (duas semanas depois do escrito de Nataniel Costa) pela Direcção dos Serviços de Censura.

Na crítica saída neste periódico cultural, eram avançadas algumas linhas que podem ajudar a compreender o destino desta obra, considerada “prova clara de que estamos perante um jovem escritor que soube encontrar na vida do povo os motivos e a razão dos seus contos; que conhece e sente os ambientes que descreve”, sendo perceptível “uma identificação do autor com essas vidas - o sentir seus, também, os dramas e as esperanças dessa gente - o que nos parece constituir uma das mais importantes condições para a realização de uma literatura sincera e humana.” Apesar de indicar algumas fragilidades na construção das narrativas e no “poder artístico”, a avaliação de Nataniel Costa deixou-se cativar por aspectos como a vivacidade e naturalidade dos diálogos, o poder de observação e o conhecimento da realidade, factores que levaram o crítico a concluir que aquelas histórias eram mais “coisa vista do que imaginada”. Obviamente, uma escrita que ia ao encontro da estética neo-realista e que, como tal, mereceria a desconfiança da censura...

 

Os “critérios” do censor

Quando o capitão José da Silva Pais, em 10 de Maio de 1947, se dirigiu ao director da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), rogando-lhe que mandasse “proceder à apreensão do livro intitulado Sábado sem sol da autoria de Romeu Correia”, fê-lo com base no relatório subscrito pelo capitão Borges Ferreira, em que eram apontadas as faltas cometidas pelo autor: “este livro de contos é, de um modo geral, bastante mau, porque aproveita a mais pequena oportunidade para focar a questão social.” O desprezo a que a obra era votada neste relatório não tem qualquer relação com a estética ou com a criação, antes se preocupa com o retrato social traçado, chegando ao ponto de pôr condições para que “talvez o livro possa ser publicado”: a primeira, no sentido de os contos “Chegou o carvoeiro”, “Sempre Menino” e “Novela interrompida” (na sua terceira e quinta partes) serem suprimidos; a segunda, exigindo que fossem eliminadas “várias frases mal sonantes, de uma moral bastante duvidosa”, encontradas em dezena e meia de páginas do livro, devidamente indicadas. Curiosamente, o crítico Nataniel Costa considerara que os contos “Chegou o carvoeiro” e “Novela interrompida” eram experiências que provavam que “o seu autor pode, se souber superar-se por um trabalho sério e constante, vir a escrever obra de valor”...

O espírito de censor de Borges Ferreira permitia-se concluir o relatório de uma maneira que aviltava a obra apreciada: “São contos sem moral, sempre a puxar para a questão social e, portanto, não sei a quem possa interessar semelhante livro.” No entanto, o leitor perceberá o porquê das palavras de Borges Ferreira, se ler os textos punidos, que fizeram com que este título de Romeu Correia entrasse para o rol dos títulos proibidos, tal como consta referido nas obras Livros proibidos no regime fascista (1981) ou em Obras proibidas e censuradas no Estado Novo (2023).

 

Os pruridos do censor

“Chegou o carvoeiro” é o conto que abre a obra, contando o momento da descarga de um cargueiro inglês que transportava carvão, acção passada em Almada, “onde está a Companhia de Pesca”, e deixando perpassar as condições sub-humanas, as dificuldades e a dureza da vida dos descarregadores, pessoas contratadas para aquele serviço, de escassos dias, que levam uma personagem, o Ruivo, a combinar um acidente que o atinge e lhe deixa o pé “em pasta de sangue” para assim obter “sessenta dias de reforma”, enquanto os seus companheiros finalizavam a tarefa e deixavam de ter outra subsistência. A imagem do tratamento dado aos homens ou das condições de vida perpassam por excertos como: “o encarregado percorre com o olhar zeloso os homens perfilados, como marchante a ver bois de carga em feira aberta” ou “a luta do trabalho recomeça, violenta, brusca, raivosa, contra o destino inelutável dos que mourejam” ou ainda “há três dias que dura a descarga - três dias de pesadelo!”

“Sempre menino” relata o encontro de um jovem de 18 anos, Paulo, que vive com uns tios que lhe garantem o quotidiano mais ou menos aburguesado, com a namorada, Lídia, costureira, filha de um casal em que o pai alcoólico exercia a violência doméstica. A barraca em que viviam a mãe de Lídia e os quatro filhos (tinham fugido da casa de família) é pretexto para a descrição das condições de vida - uma cama servia para os cinco e, perante as dificuldades, Paulo levara mesmo um cobertor de sua casa para deixar com a família. Pelo conto perpassam ainda algumas situações de fantasia sexual do rapaz, que, chegado a casa, adormece, sonhando com uma tia, em imagem que sobrepõe com a da irmã da namorada.

“Novela interrompida”, narrativa em vários capítulos, aborda as condições de vida das mulheres no mundo fabril (corticeiras) e a reivindicação que apresentaram para um aumento de salário, situação que originou uma manifestação e o confronto com a força policial. Aspectos fortes são o momento em que um elemento da força de segurança esbofeteia a sua mulher, que era uma das manifestantes, ou o da dactilógrafa que goza com os aumentos que as trabalhadoras da fábrica pretendiam ou as insinuações e ameaças feitas a Valério, o ajudante de guarda-livros, que, por se ter solidarizado com um jovem trabalhador exausto, foi acusado de ser “homem de ideias perigosas”, conspirador e “inimigo da civilização cristã”.

Das dezasseis referências a páginas em que fragmentos do texto deveriam ser alterados, uma dúzia diz respeito ao conto “Mestra”, por aí passando as tensões sociais entre a empregadora dona da casa de costura e as costureiras (“os olhos das operárias cobiçam todo aquele recheio” do mobiliário da casa da Mestra; a desconfiança da mestra, que marcava tudo em casa para impedir a tentação de desvio das coisas pelas empregadas, considerações da ex-operária sobre a “exploração infame” na casa da Mestra, o trabalho em série e sem direitos, o canto das raparigas durante a ausência da mestra - “se somos pela igualdade, / temos direitos iguais” -, as visões sobre a sexualidade - a “sorte” da rapariga com casa posta pelo amante, o consentimento do pai quanto aos devaneios do filho porque este estava “na idade de gozar”, a gravidez clandestina escondida). Referência também importante é a que consta em página do conto “Rumo”, em que o leitor assiste ao cansaço de Ernesto, personagem que se sente explorada “a alombar e a ouvir ralhos” e que, no final do conto, se escapa, deitando-se num canavial de onde vê os operários que vão chegando e ouve os apitos da fábrica e decide que lhe “não hão de comer os ossos”, tendo em mente a fuga para a América...

 

28 anos passados, a 2.ª edição

Só em 1975 surgiu a segunda edição de Sábado sem sol (aumentada com dois contos), altura em que Romeu Correia revelou que a venda dos exemplares da edição inaugural dera um lucro de 3900$00, verba que foi canalizada para “as bibliotecas da Incrível e da Academia Almadense”, conforme era referido na contracapa de 1947. Na introdução feita para a edição de 1975, o autor explicava: “Testemunhar os problemas sociais, os conflitos de classe, os dramas humanos, revelando e condenando o mundo injusto e contraditório que nos rodeia e oprime, é a função primeira do contador de histórias.” E o leitor percebe que as observações feitas por Nataniel Costa em 1947 tinham toda a razão de ser - estas histórias eram mais fiéis ao “ver” do que ao “imaginar”.

Nesse mesmo ano de 1975, na sua edição de 13 de Agosto, o jornal O Setubalense publicava excertos do conto “Chegou o carvoeiro” e, assinado por M. Gonçalves Martins, havia um rápido texto de apresentação sobre o livro: “são pedaços sangrentos arrancados à vida dura dos homens humildes que labutavam duramente na região de Almada.”

A pressão que a censura exerceu sobre a criação literária, como o escritor almadense recordava no Diário do Alentejo, em 20 de janeiro de 1987, levou a que os autores se autocensurassem e não tivessem liberdade criativa: “Aqui há uns anos, estávamos a escrever e às tantas dizíamos: isto não passa na Censura. E eliminávamos grandes passagens do que escrevíamos. Em vez de um livro fazíamos abortos. (...) O pior censor não era o que estava lá fora à nossa espera. O pior censor era o censor que cada escritor tinha dentro de si. Era um acto de coragem escrever um livro.” Quanto à proibição de “Sábado sem sol”, reconhecia não ser “um grande livro”, ao mesmo tempo que explicava: “um livro para ser apreendido pela PIDE não precisava de ser grande coisa, podia não valer nada; a PIDE é que tornou esse livro conhecido.”

Recentemente, o livro teve direito a edição fac-similada sobre a primeira edição, incluído na colecção “Biblioteca da Censura”, forma interessante de trazer este autor para a actualidade depois de anos de esquecimento para lá dos limites do local. Por estes contos perpassam os momentos de fragilidade e exploração, de miséria e exclusão, mas também marcas de ironia e de uma certa atitude de denúncia, aspectos que conferem a esta obra, como Maria Graciete Besse referiu no diário Público (23 de junho de 2023), o estatuto de “interessante documento histórico-social sobre a Outra Banda na primeira metade do séc. XX.”

João Reis Ribeiro. "500 (e mais) palavras". O Setubalense: nº 1127, 2023-07-31, pp. 174-175.


quinta-feira, 29 de junho de 2023

Guerras e cidades “amortecedores de bombas”



Em 1960, Fernanda Botelho (1926-2007) considerava no romance A gata e a fábula: “Que sabes tu da guerra além do que dizem os periódicos? Que sabe essa gente? Que sei eu? Todos falam da guerra, de todos os titulares das rédeas, Hitler, Churchill, Montgomery, Rommel... uma série de nomes! Ninguém fala do homem-soldado, esse desgraçado nosso irmão e condenado a matar ou a morrer, como as feras...”

Esta é a sensação que persiste das notícias que correm, muitas vezes eivadas de informação enviesada. Depois, quando confrontados com os relatos dos que sobreviveram, o caso é mais sério, pois estamos perante epopeias individuais de seres que viveram a fragilidade e o medo, o desespero e o trauma.

O que sabemos e vemos, de facto, é aquilo que Stefan Zweig (1881-1942), no seu Jeremias (1917), registou: “A guerra é grande nos livros, mas na realidade ela é aquilo que degola e profana a vida.” E não podemos ler esta curta afirmação sem nos lembrarmos das imagens de destruição sem sentido com que somos confrontados, as ruínas do mundo material, imagens que são de uma ruína maior: a das pessoas.

A guerra que vemos a alastrar no tempo cansa, é verdade. E, com razão, se deseja o seu fim pelo seu sem-sentido, pela disrupção que provoca com o essencial do que é o humano. No entanto, querer esse fim sabe a pouco - José Gardeazabal (n. 1966) deu conta dessa contradição no romance Quarentena - Uma história de amor (2021) ao dizer: “A paz é um eufemismo do fim. Na guerra ansiamos pelo fim, não pela paz.” E bom seria se o fim de uma guerra fosse o fim de todas as guerras. Mas, como a História tem provado, essa é a utopia. Em 1954, cantou Jacques Brel (1929-1978) que “é muito fácil acabada a guerra / andar a gritar que esta foi a derradeira.” E muito mais irónico foi Charles Bukowski (1920-1994) quando se pronunciou sobre o que pode orientar a contestação da guerra, ao registar no diário O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio (1998): “As pessoas que protestam contra a guerra precisam de uma guerra para florescer. Há quem faça boas vidas a protestar contra a guerra. E, quando não há guerra nenhuma, não sabem o que fazer.” Brel e Bukowski demonstravam, cada um à sua maneira, que o fim das guerras não passa, afinal, de uma questão de intervalos... Já Séneca (4, ac-65), no seu diálogo A vida feliz, dirigindo-se ao irmão Gálio, dava uma pista para esta questão dos intervalos - “Nunca um general confia na paz ao ponto de não se preparar para a guerra.”

A verdade que fica de todas as guerras é aquela que Philippe Claudel (n. 1962) pôs em Almas Cinzentas (2003): ela “massacra, mutila, macula, suja, esventra, decepa, esmaga, tritura, mata”. Outra verdade que também vamos interiorizando foi pensada por José Gardeazabal no romance Quarenta e três (2021), numa tela forte: “O sangue cá fora e a porcaria moral lá dentro, eis a descrição sumária de um combate.”

Que possibilidade para o fim de todas as guerras? Gianni Rodari (1920-1980) alvitrou, ainda que numa narrativa mais ou menos infantil, no livro Histórias ao telefone (1960): “O descanhão é o contrário do canhão, serve para desfazer a guerra. (…) Até uma criança consegue manejá-lo. Quando há guerra, tocamos a descorneta, disparamos o descanhão e a guerra desfaz-se imediatamente. Que maravilha, o des-país!”

Enquanto não acontece essa valorização da palavra, sentiremos a amargura que José Craveirinha (1922-2003) tão bem poetizou em Karingana ua Karingana, de 1974: “aos que ficam / resta o recurso / de se vestirem de luto. // Ah, cidades / favos de pedra / macios amortecedores de bombas.” 

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1104, 2023-06-28, pg. 8. 


sexta-feira, 10 de março de 2023

Memórias em torno do Palácio Feu Guião

 


Já sofreu o desastre de 1755, já foi residência nobre, já funcionou como escola (onde Maria Barroso Soares foi aluna) e como centro de dia, já esteve abandonado e em ruínas e, segundo a tradição (não documentada), até terá albergado S. Francisco Xavier aquando da sua vinda a Portugal (1539-1540) para corresponder ao projecto de missionação que D. João III quis incentivar. Hoje, é um condomínio residencial, de reconstrução recente, na zona setubalense da Fonte Nova, e tornou-se assunto de uma monografia que puxa para título a metáfora do ressurgimento, Palácio Feu Guião - A fénix renascida, obra assinada por Rui Canas Gaspar (n. 1948), autor ligado à história local sadina.

O livro, fora do circuito comercial, patrocinado por Constantino Modesto e pela empresa que modernizou o imóvel (SKEP), começa por um relance sobre a história de Setúbal, em jeito de contextualização, recuando até às mais antigas referências ao território, evocando momentos como a chegada de estrangeiros e o seu papel nas trocas comerciais (cerâmica e sal), a construção da muralha, a construção do caminho de ferro e a implantação da indústria conserveira, entre outros, importantes para a história da cidade.

O rápido passeio guiado à biografia setubalense pára no Bairro de Tróino, sítio do Palácio Feu Guião (nome advindo da família dos proprietários que o mantiveram até finais de Oitocentos), para dar conta da antiguidade da zona e relatar a intervenção arqueológica feita antes da reconstrução, acentuando a preocupação pedagógica, uma vez que o património arqueológico é considerado um contributo identitário para ser passado às gerações vindouras. Este capítulo, que se afigura como o início do renascer da fénix, noticia as descobertas feitas pela equipa de arqueólogos - pedaços de cerâmica de diferentes épocas, algumas moedas, estruturas de construções anteriores ao terramoto de 1755.

As memórias da vida do bairro a partir de meados do século passado são trazidas para este livro pelos testemunhos de António Cunha Bento (nascido no Palácio), com infância e juventude passadas na zona de Tróino, lembrando o comércio, os pregões, os passatempos, as pessoas... e também pelos relatos da investigação e da memória do autor (igualmente criado no espaço da Fonte Nova), por onde passam as relações de vizinhança e de proximidade e figuras que alimentaram o pequeno comércio e as relações sociais (o latoeiro Celestino, o alfaiate Raul, a “boleira” Laura, o merceeiro Pedro dos Santos, entre várias outras), num reviver intenso. Assim, a narrativa faz-se de recordações e de vivências, por este livro passando ainda a história do que esteve para ser o Convento da Santíssima Trindade (obra que começou, mas que foi interrompida pelo terramoto setecentista), as marcas da ligação das pessoas à Fonte Nova e a descaracterização da mesma na década de 1980, as histórias e as lutas das mulheres conserveiras (centradas na estátua a Mariana Torres), a origem da quantidade de restaurantes de peixe (cujos antepassados foram as tabernas onde se reuniam pescadores à volta do vinho vindo de Palmela e do peixe trazido pelos descarregadores), a referência aos nomes que marcam a toponímia do bairro.

O final do livro apresenta a “nova vida para a velha casa”, imagens da reconstrução do que foi palácio, assim como pequena biografia do bejense Constantino Modesto (n. 1956), agente da iniciativa desta remodelação, também conhecido por ser o promotor da árvore de Natal em Setúbal em anos recentes.

Este trabalho de Rui Canas Gaspar aproveita bem o pretexto da reconstrução de um imóvel para nos falar com simplicidade da humanização dos espaços e da história que as comunidades vão fazendo no quotidiano.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1028, 2023-03-08, p. 9.


quinta-feira, 2 de março de 2023

Ucrânia: "Sangra, meu coração"

 

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Em 1668, o padre António Vieira definiu-a: “É a Guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a Guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as Vilas, os Castelos, as Cidades. (...) É a Guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades.”

Como não recorrer a Vieira no momento em que passa um ano sobre a mais recente guerra em território europeu, justamente aquele em que se pensou que, após as duas guerras mundiais, havia que acabar com este belicismo? O termo do conflito não tem calendário, mas espera-se que outra fase virá - assim o desejam os dez poetas ucranianos reunidos na antologia Quando a primavera chegar - 10 poemas de guerra, editado pela Casa Fernando Pessoa, disponível em formato digital em acesso gratuito.

Os dez poemas (de Borys Khersonsky, Halyna Kruk, Kateryna Kalytko, Kateryna Mikalitsyna, Oleg Kadanov, Oleksandr Irvanets, Olga Bragina, Pavlo Korobchuk, Svitlana Povalyaeva e Vasyl Makhno, nascidos entre 1950 e 1984), traduzidos por outros tantos poetas portugueses (João Luís Barreto Guimarães, Jorge Sousa Braga, Matilde Campilho, Miguel Martins, Raquel Nobre Guerra, Regina Guimarães, Ricardo Marques, Rosalina Marshall, Tatiana Faia e Vasco Gato), foram escritos nos primeiros tempos desta guerra sobre a Ucrânia e têm sido divulgados pela National Translation Month (ligada à tradução literária) e pelo projecto Chytomo (ligado à cultura e à edição).

Por estes textos passa o tom irónico (“E então irrompeste sem aviso prévio, / trouxeste à tua amante um bouquet / de tanques, helicópteros, mísseis de cruzeiro em vez de flores, / disseste-lhe: a culpa é tua, aqui está uma bomba, uma granada, / Cabra, como te atreves a magoar o teu irmão mais velho?”, de Khersonsky), o lamento (“Na discoteca mais próxima as crianças / estão a dormir, / estão a chorar, / e estão a nascer / para o mundo em que agora é impróprio para viver.”, de Kruk), a denúncia (“Quem haveria de saber? Toda a gente sabia. / A iminência assemelha-se a uma poeira radioactiva, / desfazendo os vínculos entre palavras / e transformando o que se disse / num tumor sanguíneo.”, de Kalytko), a demanda da coragem (“é tempo de ler / o manual da reincarnação: / em caso de emergência / 1.a) partir o vidro da calma / 2.b) apagar a camada protectora do medo”, de Kadanov), o assumir do perigo (“Daqui não há como sair porque é demasiado curta a distância a um tiro depois da paz”, de Bragina).

Mas por estes poemas passam também versos de revolta (“Iremos sobreviver a isto, iremos resistir, / sob céus de paz limparemos a nossa terra / dos corpos que o maldito vampiro careca / com olhos de leitão enviou para aqui.”, de Irvanets) e de esperança, como sugere Korobchuk, num texto que defende o adiamento do amor e contém o verso responsável pelo título da antologia: “quando a primavera chegar e o inverno abrandar / quero oferecer-te flores / mas primeiro deixa que a nossa defesa anti-aérea / derrube os mísseis inimigos.”

A dificuldade do tempo passado sob a guerra leva Povalyaeva a hesitar, porque “não se pode confiar na esperança e também não se pode confiar no medo”, verso vindo de quem perdeu o filho, activista ucraniano, na frente de batalha em Junho de 2022. A dor acaba por pintar a tela gigante do que vai produzindo esta guerra (por certo, não diferente das outras), bem expresso no último verso do poema de Makhno: “Sangra - meu coração - sangra.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1023, 2023-03-01, pg. 10.


terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Nos 100 anos de Joana Luísa da Gama

 


Há 100 anos, o mês de Fevereiro terminou numa quarta-feira. Nesse dia 28, em Azeitão, o casal José Rodrigues Júnior e Maria da Conceição Oliveira Rodrigues via nascer a filha que recebeu o nome Joana Luísa, por certo um momento de promessas e de risos ao futuro.

A referência que ela viria a ser, só a vida a diria. E, de facto, no trajecto longo dos 91 anos de Joana Luísa, a marca foi a da fidelidade, uma enorme fidelidade, ao seu grande amor, à poesia e aos valores que a formaram. Não fora ela e, hoje, pouco saberíamos e pouco conheceríamos sobre Sebastião da Gama, o poeta eternamente jovem que faleceu aos 27 anos. Não fora ela e a história deste amor e admiração acabaria nesse momento...

Terá sido por 1944 que Joana Luísa e Sebastião da Gama encetaram o namoro, algo que já era adivinhado vir a acontecer, tão assíduo era o convívio e tão antiga a relação de vizinhança. Isso contava Joana a uma amiga, Gabriela de Jesus da Silva, em carta de 18 de Julho desse ano (inserta no livro Estala de saudade o coração, que reúne memórias de Joana Luísa da Gama, publicado em 2013): “Eu, a Luísa, e ele, o Sebastião, chegámos enfim a um acordo. Eu deixei de fingir que não gostava dele e ele viu, enfim, que não me dará o desgosto que temia. (...) Para mim, é apenas aquele que eu sempre esperei para companheiro da minha vida, é aquele que eu amo, nada mais, não lhe ponham defeitos, porque cruzarei os braços ante os obstáculos e vencerei, se Deus quiser.”

Este compromisso confessado a Gabriela, levou-o Joana até ao fim. A partir desse 1944, ainda em tempo de guerra mundial, o namoro foi-se construindo e o casamento aconteceu em 4 de Maio de 1951, no Convento da Arrábida (terá sido o primeiro casamento que ali se celebrou), no aconchego da Serra que Sebastião cantou e conheceu como ninguém. No mesmo local decorreu a lua de mel do casal, tempo que também foi de poesia.

Contudo, o tempo de casamento seria curto - nove meses quase exactos (metade deles passados em Estremoz, onde Sebastião fora colocado como professor), pois, em 7 de Fevereiro do ano seguinte, acontecia o falecimento de Sebastião da Gama. Com facilidade se imagina a dor que assaltou Joana Luísa, a mulher que reunia uma série longa de predicados, que fora também referência e inspiração para o jovem poeta, que trocou com ele afectos feitos de poesia e de dedicação e que... teve tão curto calendário para partilhar a construção dessa vida comum!...

Na tentativa de encontrar soluções para a sua vida (que passaram por uma entrada na vida religiosa por curto período de quase três anos, pelo estudo na área da Didáctica Pré-Primária, pelo acompanhamento de crianças como educadora, pelo exercício do voluntariado, pela ligação à paróquia azeitonense), Joana Luísa assumiu a continuidade da divulgação da obra de Sebastião da Gama, gesto inigualável de altruísmo e de consciência cultural, apesar de alguma contestação da parte do pai, como confessou em entrevista publicada na revista “Tabu” (saída com o jornal Sol em 3 de Fevereiro de 2012): “Voltei com todo o material que veio de Estremoz. Trouxe tudo quanto eram papéis do Sebastião e comecei a pô-los em ordem. O meu pai resmungava: ‘Deixa esses papéis’. Eu nem sabia como é que vivia...” Foi da junção e ordenação desses “papéis” e de outros que foi obtendo, recolhidos entre os amigos de Sebastião, que se foi compondo a obra do poeta azeitonense que hoje conhecemos, publicada postumamente. Não fora este trabalho dedicado e só conheceríamos os três títulos que Sebastião deu à estampa - Serra-Mãe (de 1945), Cabo da Boa Esperança (de 1947) e Campo Aberto (de 1951). Graças a Joana Luísa, à relação que ela conseguiu manter com o grupo de amigos do casal (entre os quais constavam David Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Maria de Lurdes Belchior, Luís Amaro, António Manuel Couto Viana e Luís Filipe Lindley Cintra) e ao seu entendimento e proximidade com Sérgio Gama (irmão de Sebastião) e sua esposa Aurora, a divulgação da obra do poeta que amou a Arrábida tanto como amou Joana Luísa prosseguiu com a publicação de Pelo sonho é que vamos (1953), Diário (1958), Itinerário paralelo (1967), O segredo é amar (1969), Cartas (1994), Não morri porque cantei (2003), Estevas (2004) e A minha arca de Noé (2006). Não fora a persistência e o amor de Joana Luísa e estas obras póstumas nunca chegariam ao nosso conhecimento ou viriam em termos deficitários... E mais: a quantidade de testemunhos que deu em favor da memória do seu marido, a questão que fez em estar presente em todas as acções que dissessem respeito à obra do poeta, as portas que abriu a investigadores e autores que quiseram conhecer como se fez o poeta Sebastião da Gama, a opção de pôr esta divulgação como projecto de vida e como dever. Impressionante, verdadeiramente impressionante!

As vidas dos dois cruzaram-se, mesmo no calendário - ele nasceu em Abril e faleceu em Fevereiro; ela nasceu em Fevereiro e faleceu em Abril. As vidas dos dois fizeram uma história de amor e de poesia. É por isso que não será excessivo dizer que a obra de Sebastião acaba por ser obra dos dois, embora em responsabilidades diferentes, mas que se completam. É por isso que a celebração do centenário de ambos vai decorrer em conjunto, entre 28 de Fevereiro de 2023 (nos 100 anos de Joana) e 10 de Abril de 2024 (nos 100 anos de Sebastião), um caminho de evocação, de aprofundamento de pluralidades de leituras e de contributo para a memória.

* João Reis Ribeiro. O Setubalense: nº 1022, 2023-02-28, pg. 5