quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (4)

 


Pelos poemas de Sebastião da Gama passa também o reflexo do conhecimento da história literária portuguesa e de muitos dos seus autores, uns invocados, imitados outros — por um lado, na escolha de formas e tipologias, como “vilancete”, “soneto”, “cantar de amor”, “epigrama”, “cantiga de amigo”, “écloga”, “elegia”, “ode”, “madrigal”, “cantilena” ou no recurso a formas populares como a quadra ou no uso de referências advindas da literatura oral, como as lendas; por outro, na menção de referências à lírica trovadoresca e a nomes como Alexandre Herculano, António Botto, António Feijó, António Nobre, Bernardim Ribeiro, Bocage, Camilo, Camões, David Mourão-Ferreira, Diogo Bernardes, Eça, Fernando Pessoa (e nos heterónimos Campos e Caeiro), Guerra Junqueiro, João de Deus, José Duro, José Régio, Júlio Dantas e Nicolau Tolentino. Mas passa também a voz popular, quer por lhe dar lugar de motivo em epígrafe (“Roma”), quer pelo reconhecimento do que deve às origens (“Nasci pra ser ignorante”) ou por ir buscar a imagem do povo e de figuras que constituem a sua paisagem, impregnados do seu saber, para muitos dos seus poemas. Este conjunto possibilita-lhe que na sua obra corram o tom sério e o humor, os temas mais frequentes da literatura (como o amor, a morte, a alegria de viver, a espiritualidade, a contemplação, o espírito do local, o seu tempo, a Grande Guerra — de que foi contemporâneo—, entre outros) e o traçar de um caminho em que o lirismo se impõe, tal como legou registado num dos últimos textos que escreveu, não concluído, que seria para uma futura conferência sobre António Sardinha (incluído em O Segredo É Amar), iniciado em guisa de manifesto: “Cabe aos poetas mostrar a grandeza da Vida” — e, de imediato, lembramos o fulgor dos versos de 1944, vindos em Serra-Mãe: “A cada verso nasço… / É cada verso o meu primeiro grito / à Vida…” Dois parágrafos adiante, na mesma conferência, explica: “A nobreza da Poesia (…) está (…) nisso de se procurar e se encontrar em todos os lugares em que está; nisso de não querer saber da convenção que faz de uns temas poéticos, de outros apoéticos. Que a verdade é que não há temas poéticos e temas que o não são; nem há temas sequer: há sentimentos, há momentos da alma e momentos da paisagem, há acontecimentos, há coisas – e há Poetas em face de tudo isso.”

Esta observação sobre a Poesia e os Poetas (termos que grafava com maiúscula frequentemente) praticou-a Sebastião da Gama, como demonstrou nos versos de “O Poeta” (em Cabo da Boa Esperança): “Tudo ganhou sentido num momento… / (…) / E a poesia das coisas sem Poesia, / que no olhar do Poeta dormitava, / de súbito nas coisas acordava / — tão natural, tão íntima, tão própria, / como se fora delas que nascera…”

Figura importante da geração de 50, Sebastião da Gama foi, como referiu Vasco Graça Moura (em Diário de Notícias, 18.Set.2005), um poeta “muito menos preocupado com a problemática social, tão do gosto dos neo-realistas, do que com a expressão de uma autenticidade pessoal”, reconhecendo-lhe “grande à-vontade nas formas a que recorre”, uma “arte do verso só aparentemente instintiva e espontânea” e uma vivência da poesia “como uma espécie de alimento quotidiano”, caracterizando-se a sua obra “pela subjectividade de um lirismo de intensa e por vezes quase ingénua ternura, de comunhão e partilha sentimental, de grande e romântica generosidade de sentimentos e identificação com a natureza”.

O título escolhido para esta “poesia reunida”, O Inquieto Verbo do Mar, resulta da opção por um verso do poeta e justifica-se por uma simultaneidade de linhas de leitura em Sebastião da Gama — o desassossego do poeta na escuta e na procura, a força da palavra essencial, o mar como um dos signos de eleição e de inspiração —, aqui se encontrando os seus nove títulos de poesia até hoje publicados (entre Serra-Mãe, em 1945, e Lenda de Nossa Senhora da Arrábida, em 2014), um grupo de “Poemas Dispersos”, que integra cerca de 80 poemas escritos entre 1939 e 1950, surgidos dispersamente por variadas edições (publicações periódicas, livros de curso, antologias) e o conjunto de “Poemas Inéditos”, quase 280 textos só agora publicados, datados do período entre 1939 e 1950, maioritariamente provenientes de um caderno a que o poeta deu o título de “Saudosas Recordações” e de um primeiro conjunto de poemas que constituiriam a obra Serra-Mãe, compilação de 1943, que o autor acabaria por substituir por completo.

Se a maior parte destes textos chegou até hoje, sendo possível a sua divulgação, tal é devido ao esforço de Joana Luísa da Gama (1923-2014), que juntou e preservou o que conseguiu para a reconstituição da produção literária e epistolar de Sebastião da Gama, seu marido. O Inquieto Verbo do Mar é também a obra que ela gostaria de ter visto e faz todo o sentido que seja publicado quando se assinalam duas datas “redondas” — os 10 anos sobre o falecimento de Joana Luísa e os 100 anos sobre o nascimento de Sebastião da Gama.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1388, 2024-10-09, pg. 10.

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Na apresentação pública de "O Inquieto Verbo do Mar", de Sebastião da Gama

Foi no final de tarde sexta-feira, 4 de Outubro, que a Associação Cultural Sebastião da Gama, a editora Assírio & Alvim e a Câmara Municipal de Setúbal procederam à apresentação da obra O Inquieto Verbo do Mar, volume de poesia reunida de Sebastião da Gama, que organizei, sessão em que intervieram André Martins (Presidente da Câmara Municipal de Setúbal), Lourenço de Morais (Presidente da Direcção da ACSG), Viriato Soromenho-Marques (que apresentou o livro) e eu próprio, com poemas ditos por Dina Barco e João Completo.
Aqui fica o registo da sessão, devido ao trabalho do amigo Simões Silva, com abraço grato.

domingo, 6 de outubro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (3)

 


A Arrábida tornou-se, desde cedo, o espaço e o motivo poético privilegiado de Sebastião da Gama. Se Serra-Mãe, publicado em 1945, a enaltece no título e num dos mais longos poemas, que tem título homónimo do livro, a verdade é que a serra está presente desde os seus versos mais recuados que se conhecem, assim tomando lugar de primazia nas imagens apresentadas. O poema mais antigo de Sebastião da Gama que existe é uma composição de carácter escolar sobre os reis de Portugal, texto que abre o grupo de “Poemas Inéditos”, reforçado pelo marco que ele constituiu para o percurso de leitor e de escritor em que o poeta de O Inquieto Verbo do Mar se tornou — na entrada de 16 de Março de 1949 no Diário, surge a nota que explica isso mesmo: “O Texas-Jack é dos melhores amigos da minha infância. Aprendi a ler no Texas-Jack; comecei a formar uma biblioteca no Texas-Jack; não comecei a fumar por causa do Texas-Jack. Eu tinha doze, treze anos e era um diabo. (...) Já tinha escrito os primeiros versos — uma História de Portugal — porque isso foi aos dez anos.” A partir desse texto versejado, só se lhe volta a conhecer poemas em 1939, quatro no total, tendo o segundo, o soneto “Conselho”, do mês de Julho, o irmão do poeta como destinatário, fazendo-lhe uma recomendação quanto à paixão por que este passava: “Foge pra serra Arrábida chamada / cuj’ alecrim belo perfume emana / e vive co amor dela e uma cabana.” A serra aparece, assim, como espaço de abrigo, mais do que refúgio, feliz, respirada pelos sentidos, dimensão que podemos ver em muitos poemas vibrantes de uma flora que, exaustivamente, o poeta mostra — entre flores, arbustos, vegetação rasteira e árvores, algumas trazidas para título de poemas, muitas atapetando os versos, a diversidade é grande para que o leitor se deixe enredar. No poema seguinte, de Dezembro desse ano, “Arrábida”, o nome da serra aparece apenas no título, mas o texto desenvolve os atributos que lhe conferem o merecimento dos versos — “um canteir’ abençoado / que pasma toda a gente”; “linda serra” rodeada por um “mar muito calmo / verde, azul e prateado”, que “um salmo / sói cantar, quand’ encrespado”; “vista, / que encanta muit’ e deslumbra” —, concluindo com a superlativização da Arrábida perante uma congénere, glorificando-lhe a Natureza: “do panorama a beleza, / que é mista / — mar e serra — / deixa Sintra na penumbra. / Oh, bendita Natureza!”

A temática arrabidina circula nas veias da poesia de Sebastião da Gama desde cedo, ainda que nem sempre referencie a serra nos versos, indicação muitas vezes substituída por um elemento complementar, não literário, como a indicação do local em que o texto foi escrito. Certamente próxima desta visão está a admiração do poeta por Frei Agostinho da Cruz, o eremita que passou na Arrábida os derradeiros catorze anos da sua vida e que também sobre ela poetou. As referências do poeta do século XX ao seu “irmão” do século XVI surgem evidentes na epígrafe com que abre Serra-Mãe, construída com versos do franciscano — “Oh Serra das Estrelas tão vizinha: / Quem nunca de ti, Serra, se apartara...” Na mesma obra, a imagem do frade passa ainda por “Elegia para a minha campa” e por “Versos para eu dizer de joelhos”. E, nos títulos subsequentes, ele aparece em A Região dos Três Castelos (1949), Campo Aberto (“Palavras a Frei Agostinho”), Itinerário Paralelo (“Confidência”), Estevas (“Romance do Lima”), Diário (em registo de 11 de Outubro de 1949), O Segredo É Amar (“Páginas de Diário” e “Folhas de Jornal”), havendo ainda outros textos que o referem, presentes nos “Poemas Dispersos” (“Frei Agostinho da Cruz”, em dois sonetos) e nos “Poemas Inéditos” (“Carta a alguém”, “Aguarela” e “Saudades”). O ciclo de três séculos que separa a obra dos dois autores, tendo ambos como pano de fundo para a sua poesia a serra da Arrábida, bem comprova a presença da paisagem na tradição literária portuguesa, particularmente deste espaço, acrescendo que, para Sebastião da Gama, a serra foi motivo inspirador, criando, por isso, umas figuras míticas, as “Arrabídeas”, quais ninfas que povoariam os mares arrábidos (presentes nos poemas “Fonte”, de 2 de Dezembro de 1941, e “Luar da Arrábida”, de 23 de Abril de 1942).

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1384, 2024-10-03, pg. 10.

 

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (2)

 


A partir do poema “Nocturno”, podemos descobrir como linhas fortes da poesia de Sebastião da Gama a atenção dada ao mar (calmo ou bravo, rumorejando ou espelhando, no ambiente de paisagem ou de trabalho para os pescadores), aos animais que povoam os espaços frequentados pelo poeta, ao céu (que se manifesta pelas estrelas, pelo luar, pelo sol), ao silêncio (que não significa ausência de ruído em absoluto, mas possibilidade de captação dos sons que constituem a orquestra da Natureza, apresentando-se esta como um Outro com quem o poeta se relaciona). Esta junção do silêncio com os sons da Natureza surge bem conciliada no poema “Tempestade”, datado de 4 de Novembro de 1951 (Sebastião da Gama escreveria apenas mais cinco poemas), inserido em Pelo Sonho É que Vamos: “O Vento enchia o Mundo. Mal deixava / lugar para a tremenda voz das ondas. // Mas era o Mar apenas que se ouvia.”

Campo Aberto foi publicado em meados de Fevereiro de 1951, não tendo incluído o poema “Viesses tu, Poesia...”, composto a 10 desse mês, depois inserido na obra póstuma Pelo Sonho É que Vamos (1953). Neste poema, a poesia é associada a uma fada, dotada de vara mágica, que tem o poder de contribuir para a nomeação e para a (re)descoberta — “Bem sei: antes de ti foi a Mulher, / foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água... / Mas tu é que disseste e os apontaste: / — Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto. / E logo foram graça, aparição, presença, / sinal...”. Força (re)criadora, responsável por conferir naturalidade e beleza ao universo, garantia de equilíbrio, regeneradora, numa relação de proximidade e intimidade com o poeta, num tratamento por “tu”, ela é invocada no seu poder: “Ó Poesia!, viesses / na hora desolada / e regressara tudo / à graça do princípio...”

Ruy Belo foi o primeiro prefaciador de Sebastião da Gama que não o conheceu pessoalmente, tendo mesmo dado nota desse pormenor no texto que escreveu em 1970 para abrir a segunda edição de Pelo Sonho É que Vamos, vinda a público no ano seguinte. Considerando ser este “o seu melhor livro”, depois de um percurso de crescente maturidade, afirma sobre esta obra: “bastam os poemas que temos diante para catalogar Sebastião da Gama como aquilo que fundamentalmente ele foi: um cantor da vida, das coisas belas da vida, dos sentimentos nobres, da pureza.”

Não será difícil ver a proximidade entre “Viesses tu, Poesia...”, a apreciação de Ruy Belo e aquilo que Sebastião da Gama pensava da poesia e da forma de a mostrar aos seus alunos, quando registou no Diário, na entrada de 9 de Março de 1949, a justificação para ter organizado uma Semana da Poesia: “O Poeta beija tudo, graças a Deus... E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade... E diz assim: ‘É preciso saber olhar...’ E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos... E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por detrás... E perde tempo (ganha tempo...) a namorar uma ovelha... E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso... E acha que tudo é importante... E pega no braço dos homens que estavam tristes e vai passear com eles para o jardim... E reparou que os homens estavam tristes... E escreveu uns versos que começam desta maneira ‘O segredo é amar’...” Depois, vem a justificação prática deste desvendar o poder transformador da poesia e a necessidade de o incutir nos jovens alunos: “É preciso, subtilmente, deitar-lhes no sangue este veneno — não tanto para que gostem de versos ou saibam versos de cor, como para que olhem o mundo através da janela da Poesia, para que beijem tudo, graças a Deus, para que saibam olhar, para que reparem nas flores e nas ovelhas. Isto é que se quer que eles façam, sem respeito humano, pela vida fora.”

O poeta faz questão de se manter fiel à sua temática, aos seus motivos inspiradores, ao seu cenário de poesia, num trajecto quase linear de convicção — data de 28 de Dezembro de 1948, um pequeno poema, “Arte poética”, divulgado numa das mais recentes obras póstumas, Estevas (2004), em que advoga o fim do seu estado de poeta se existir o desvio na sua motivação: “Quando em meus versos nada houver que lembre um ninho, / então sim! — chorem a minha morte.” Talvez não tenha havido ninguém a melhor definir os conteúdos da poesia de Sebastião da Gama que não ele próprio — se recuarmos no tempo até 1942 (ano em que tinha 18 anos), o poema “Testamento”, datado de 20 de Janeiro, até agora inédito, pretendia garantir as marcas por que o poeta queria ficar alinhado, sugerindo, em tom algo humorístico, que, após a sua morte, fosse enterrado na Arrábida, rodeado de alecrim e de rosmaninho, com um letreiro feito de conchas contendo os seguintes dizeres: “Aqui dorme seu sono derradeiro // (...) um doido que viveu a versejar / a Arrábida, a Mulher, a Lua, o Mar.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1378, 2024-09-25, pg. 10. 

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Sebastião da Gama acompanhado de Rilke e de Sophia - duas histórias...

 


Esta foto foi tirada no dia 19, data em que O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama, foi posto à venda, no escaparate de uma livraria. O conjunto das obras expostas terá sido por acaso. Mas esse acaso lembrou-me duas histórias de Sebastião da Gama a propósito desta fotografia e de dois autores que figuram ao lado do seu O Inquieto Verbo do Mar.

A primeira tem relação com Rilke. Em 10 de Fevereiro de 1948, Sebastião da Gama escrevia uma carta para David Mourão-Ferreira, onde, a dado momento, dizia: “E por ter lido o Rilke. Pega, David, nas Cartas a Um Poeta. Ele sabe muito bem que sem a solidão nada feito. Olha que a mim até me dá para ser cruel e irreverente. Chego a doer-me a mim próprio. Andava doente, por despaísado, por desintegrado da minha solidão e foi um fim-de-semana de convivência a nu com a Serra que me pôs bom. Estas férias, com o folhado aberto, consolidam a cura.”

A segunda relaciona-se com Sophia de Mello Breyner. Em 1949, no dia em que fazia 25 anos, Sebastião da Gama escrevia uma dedicatória para Sophia num exemplar de Campo Aberto, que dizia: “Para a Sofia, que chegou à Gramática Portuguesa e onde estava ‘feminino: poetisa’ escreveu: ‘feminino: Poeta’. Arrábida 10.4.1949”

Neste expositor, Sebastião da Gama está bem acompanhado, pois.


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (1)

 


Quando, em 1952, saiu o número 4 da revista coimbrã Sísifo, dirigida por Manuel Breda Simões, três textos chamavam a atenção sobre Sebastião da Gama: logo na abertura, uma nota da direcção a dar conta do falecimento do poeta, contando que a notícia da sua morte chegara quando a revista estava «em andamento» e já integrava o poema inédito “Anunciação”, que neste número se publicava (o segundo texto); na página seguinte, sob o título “Uma carta do Poeta”, surgiam as respostas de Sebastião da Gama, redigidas aquando do seu regresso do Marão (onde fora em meados de Setembro de 1951), a um conjunto de quatro questões que uma carta de Breda Simões lhe fizera chegar. As três primeiras perguntas debruçavam-se sobre o percurso biobibliográfico do poeta, mas a quarta recaía unicamente sobre a arte poética: «Que pensa da Poesia em geral e da sua própria Poesia?»

A resposta do autor de Campo Aberto, obra publicada em Fevereiro de 1951, foi telegráfica, sem se desviar do assunto: “Minhas ideias acerca da poesia. Vide: ‘Louvor da Poesia’, in ‘Campo Aberto’. Será tudo? Olhe que a resposta ao n.º 4 não é para posar. É que só nos versos sei o que penso da Poesia.” De forma simples e objectiva, Sebastião da Gama separava o poeta da pessoa que era, assumindo a existência de uma biografia literária, responsável pelo acto e pelo percurso poéticos.

No poema, de três estrofes, datado da Arrábida em 7 de Fevereiro de 1950, o “louvor da poesia” é assim justificado: “Dá-se aos que têm sede, / não exige pureza. (...) // Sabe a terra, a montanhas, / caules tenros, raízes, / e no entanto desce / da floresta dos mitos.” A poesia como dádiva a quem se predispõe a recebê-la e a quem a procura, o trabalho do poeta, afinal, numa atitude de adesão ao seu tempo e ao seu espaço, à vida — poucos dias após ter sido publicado Campo Aberto, Sebastião da Gama escrevia ao seu amigo Luís Amaro, a partir de Estremoz (6 de Março de 1951), a dar-lhe conta da recepção que já tivera ao livro e a responder à apreciação que dele recebera: “o que eu quero sobretudo dizer-te é isto: nunca procurei assunto; nunca fiz exercícios literários. É natural que haja no ‘Campo’ poesias que não são poesia autêntica; mas escrevi-as com tanta unção e tanta sinceridade — juro-te — como escrevi os poemas da Serra-Mãe e os do Cabo.”

A ideia expressa no poema “Louvor da Poesia” surge como a amplificação do eco vindo do dístico que abre Campo Aberto: “Tudo frutificou: o campo estava aberto, / deu conchego e raiz a todas as sementes.” Quando Maria de Lourdes Belchior prefaciou a segunda edição desta obra, em 1960, fê-lo traçando a evolução da obra poética de Sebastião da Gama, referindo: “Neste livro, (...) se houve por um lado uma crescente interiorização, houve, por outro, cada vez mais, uma abertura para as circunstâncias exteriores, para os acontecimentos, dos quais partia, carregando-as de intrínseca beleza poética e de uma valorização simbólica.” E, depois de mencionar alguns poemas: “o pendor descritivo-narrativo do poeta ficou intacto mas não saturou os versos.”

Em 12 de Agosto de 1947, em “Nocturno”, poema incluído em Cabo da Boa Esperança, saído nesse mesmo ano, surgia um retrato do ambiente requerido para o tempo poético: “Era um murmúrio longo de ondas mansas... / Um cochichar de Estrelas curiosas... / Um concerto de grilos tresnoitados... / Mais presente que tudo, aquele enorme / silêncio religioso, imagem pura / dos ouvidos atentos do Poeta...” Os elementos vão-se juntando mansamente, num perscrutar dos sons da Natureza — uns, reais, como o som das ondas ou o estridular dos grilos; outros, sugeridos, como o segredar entre estrelas —, favorecedores do encontro com um “silêncio religioso” ouvido pelo poeta. A audição é, de resto, uma das linhas que percorre a poesia de Sebastião da Gama, captada, preferencialmente, a partir da Natureza, cujos sons se transformam em música — num artigo publicado no Jornal de Letras (n.º 188, 2.Out.1986), David Mourão-Ferreira chamou a atenção para “as mais diversificadas alusões à música e as mais reiteradas sugestões de natureza musical” presentes na poesia de Serra-Mãe (marca que se prolongou nas outras obras), concluindo que “o canto e a música se mostraram invariavelmente em conexão muito íntima com momentos privilegiados quer da sua comunhão com a natureza quer da natureza da sua comunhão com a poesia” — não por acaso, o primeiro poema de Serra-Mãe fala-nos de “melodia” e de “som” e o segundo intitula-se “Harpa”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1373, 2024-09-18, pg. 10.

 

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O Camões que Isabel Rio Novo nos revela (3)

 


Momento importante, para quem foi um estudioso e conhecedor da cultura clássica e da cultura portuguesa como Camões, foi a publicação da sua obra magna, o poema épico com que quis celebrar Portugal e que não teve, logo no início, os mecenas que pareciam inequívocos, a começar pela rejeição de apoio por parte do neto de Vasco da Gama. No entanto, se esta porta se fechou, outra se abriu, pela mão de D. Manuel de Portugal, que ajudou a resolver o problema económico da impressão e auxiliou na obtenção das autorizações necessárias para a publicação — o momento da narração é interessante porque, neste Fortuna, Caso, Tempo e Sorte, que biografa Camões, Isabel Rio Novo leva o leitor a acompanhar a primeira leitura da obra por este mecenas, em manuscrito, apresentando um resumo do que se relata n’ Os Lusíadas e os pontos que poderiam ser mais discutíveis para a aprovação da mesma, assim chamando também a atenção para o tom crítico que Camões não desprezou na sua obra.

Fica o leitor com a sensação da epopeia que foi publicar este poema, história que tem de passar pela recusa da imagem romântica que se construiu de Camões a ler o poema perante o rei D. Sebastião, apesar de parecer não haver dúvidas de que o rei conheceria o conteúdo da obra...

Publicar este escrito era objectivo persistente do seu autor desde os tempos da Índia (o retrato de Camões na prisão de Goa mostra-o a redigir o canto X da epopeia) e mais insistentemente desde que, por 1570, regressara a Lisboa. O final do percurso de dificuldades pinta-o Isabel Rio Novo com as cores do entusiasmo, mais uma vez recorrendo à conivência do leitor e à imaginação (e vale a pena registar esse parágrafo capital): “É bastante plausível que a data da publicação corresponda ao dia a partir do qual a tença começou a ser paga: 12 de março de 1572. Nessa manhã que, por pura imaginação, pinto como uma daquelas manhãs de primavera lisboetas, luminosas e ensolaradas, começava a escrever-se uma história que extravasa o âmbito da vida do seu criador e cujas peripécias só parcialmente cabem nesta biografia. A emoção de um autor ao segurar nas mãos o primeiro exemplar do seu primeiro livro há de ter sido a mesma há cinco séculos. Em 1572, Camões tinha 47 ou 48 anos. Não era um velho, apesar de a idade ter outro peso naqueles tempos. Mas era um homem envelhecido, doente, amargurado, a quem o futuro já fugia. No entanto, nessa manhã de março (cheia de sol, claro que sim) talvez tenha encarado a vida que lhe restava com algum otimismo.”

A biografia com que Isabel Rio Novo brinda este quinto centenário do nascimento de Camões torna-se uma obra de leitura cativante, num relato onde nem falta o porquê da escolha da capa, primeiro passo para a identificação do protagonista — dominada pelo retrato que do poeta fez Fernão Gomes, tal como pelo outro que retratou o poeta na prisão (“os dois únicos retratos feitos em vida do Poeta”), a autora descreve a personagem nos seus traços físicos quase a fechar a obra e valoriza o contributo trazido por esta representação iconográfica, que, maltratada pelo tempo, está rasgada e tem as duas partes coladas por tiras de papel: “Incapaz de fixar Luís de Camões num retrato, muito menos de propor um ao leitor, à medida que escrevi este livro, fui sempre regressando à sanguínea de Fernão Gomes e à lembrança daquelas três tiras de papel, quase sempre apagadas nas imagens que o reproduzem. Algumas vezes tive a sensação de que as segurava com os próprios dedos. Camões teve um rosto. Aquele que está reproduzido na capa deste livro não andará longe do que foi o seu.”

Um retrato humano de Camões emerge desta biografia (concluída com cerca de 1400 notas e quase 40 páginas de referências bibliográficas, que permitem ao leitor fazer um pouco do caminho da investigação e da discussão sobre as pistas que cada biógrafo seguiu). Nela se segue um percurso em que a dificuldade é uma constante — resultante da pouca informação comprovada sobre o poeta, mas, sobretudo, consequência do que foi a própria vida da personagem. Mas não é apenas isso: fica-nos também a glória de um Camões que lutou por uma obra que conseguiu impor-se e que, indiscutivelmente, se tornou numa das referências da nossa identidade.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1368, 2024-09-11, pg. 9.


sexta-feira, 6 de setembro de 2024

O Camões que Isabel Rio Novo nos revela (2)



A estratégia seguida por Isabel Rio Novo ao longo das cerca de 600 páginas de Fortuna, Caso, Tempo e Sorte - Biografia de Luís Vaz de Camões mistura o que é possível obter dos poucos documentos que existem sobre a pessoa do biografado, as opiniões que têm sido emitidas pelos variados biógrafos que tomaram o poeta como estudo (concordando com uns, discordando de outros, seguindo alguns), a obra literária conhecida no que possa ter de confessional ou de autobiográfico (não sem que haja a recusa, várias vezes referida, de seguir uma interpretação literal de tais textos) e a técnica literária da construção de romance (que a autora domina), destinando-se esta a preencher os espaços e os tempos de que não há informação precisa na vida de Camões, fundamentada em elementos de estudos sobre a época que garantem a sustentação das hipóteses interpretativas — é assim que se valoriza o efeito sugestivo trazido por termos como “imaginemos” (proposta ao leitor em diversas ocasiões), por formulações de convite a uma descoberta comum ao leitor e a quem narra (“Sigamos Camões até junto da Ribeira de Goa”, para, depois, nos ser apresentado aquele espaço nos domínios da arquitectura, da estrutura social, do quotidiano) ou, já na fase em que se prepara a publicação de Os Lusíadas, a apresentação de uma possibilidade, a propósito do encontro entre o autor e o inquisidor, quando “o mais plausível é mesmo pedir ao leitor que imagine Camões, que vivia na encosta de Santana, a apoiar-se nas muletas, a propender para a Baixa e a dirigir-se lentamente ao convento dos dominicanos, a ordem a que geralmente pertenciam os inquisidores.”

Com estes pedidos de colaboração, está-se a envolver o leitor na construção da trama, sobretudo naqueles segmentos que não estão absolutamente documentados, mas que são indispensáveis para que a vida tenha acontecido. Aliás, Isabel Rio Novo dá conta, em várias ocasiões, da dificuldade de reconstituição, como acontece no início do capítulo que aborda a vida do biografado na Índia — “O ano de 1555 é aquele a partir do qual a cronologia de acontecimentos na vida de Luís de Camões impõe mais desafios a um biógrafo.” E, uns parágrafos adiante: “formar e juntar as peças que permitem reconstituir o itinerário do serviço militar, das viagens e das etapas de Camões no Oriente ao longo deste e dos próximos capítulos foi um verdadeiro desafio.”

Uma das formas interessantes como Isabel Rio Novo se embrenha neste “desafio” é, por exemplo, o momento em que tem de relatar a vida de Camões na prisão em Goa (onde foi parar por decisão do governador Francisco Barreto, na sequência de uns textos satíricos), recorrendo à iluminura que representa o poeta na prisão goesa, descoberta em 1972 — o leitor percorre duas páginas e meia de descrição da iluminura, processo que serve para que a sua personagem central, Camões, nos seja apresentada em pleno labor de Os Lusíadas. O desenho não é reproduzido nas páginas do livro, mas é amplamente dissecado naquilo que pode ser a informação útil para se imaginar a forma como o poeta viveu este tempo de enclausuramento e a maneira como construiu o seu mundo entre as quatro paredes da cela... Por outro lado, este desenho é valorizado como documento autêntico, muito provavelmente pintado por amigo que tenha sido visita assídua daquele espaço — uma obra que teve também as suas mutilações, pois, na legenda gravada no verso, consta a informação “Luís de Camões preso, e tendo a seus pés quem quis perdê-lo na Índia”; ora, “na zona inferior do retrato, sob os pés do preso, a olho nu apenas se vê uma mancha de tinta negra, aparentemente aplicada para ocultar a identidade de quem lá estivesse representado”, possibilidade que ganha crédito se pensarmos que está provado ter essa camada de tinta sido aplicada num tempo posterior à elaboração do quadro...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1363, 2024-09-04, p. 9.


quarta-feira, 28 de agosto de 2024

O Camões que Isabel Rio Novo nos revela (1)

 


Em Junho de 1552, Camões envolveu-se num litígio com o estribeiro Gonçalo Borges, na zona lisboeta do Rossio, ferindo-o “junto do cabelo do toutiço”. Dois meses depois, o poeta estava na cadeia, no Tronco. Por Fevereiro de 1553, o ofendido perdoou a agressão por não ter ficado com maleita decorrente do acto, tendo chegado a acordo com Camões, devendo este suportar as despesas judiciais. Para que esta acção tivesse valor, o processo de perdão tinha de ser submetido a dois juízes — um deles foi o setubalense D. Gonçalo Pinheiro (1499-1567), na altura bispo de Viseu —, que deram parecer favorável.

Como teria sido a vida do mais conhecido poeta português nessa prisão designada como “Tronco”? Do que ali passou não ficou registo pormenorizado, mas há um soneto em que a mágoa camoniana do que ali sofreu pode transparecer — “Em prisões baixas fui um tempo atado, / Vergonhoso castigo de meus erros; / Inda agora arrojando levo os ferros, / Que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.” Na verdade, o soneto poderá referir-se a prisões outras de que a vida se encarregou, mas não deixa de poder estar ligado, pela ideia de sofrimento, ao tempo passado no “Tronco”...

Este apontamento serve para se chegar ao relato que compõe a obra Fortuna, Caso, Tempo e Sorte - Biografia de Luís Vaz de Camões, de Isabel Rio Novo (Contraponto, 2024), digna homenagem ao autor de Os Lusíadas. Neste momento da vida do poeta, o leitor consegue perceber a amargura e a dor vividas na cela pelo recurso que a autora faz a testemunhos da época, num tom em que se é quase convidado a participar numa visita ao castigado — “Imaginemos, pois, Camões numa cela do Tronco, os pés agrilhoados, no meio da escuridão mal dissipada pela luz tremeluzente da candeia espetada numa junta da parede. (...) A cadeia era penosa para o corpo, mas ainda mais violenta para o espírito. (...) Quando as visitas saíam e, com elas, saíam os raios de alegria ou distração, ficavam só as trevas, as paredes húmidas da cela, as noites que nunca mais acabavam, os dias arrastados e sempre iguais.”

As dificuldades em torno do percurso de vida de Camões iniciam-se com o seu nascimento, nas dúvidas quanto a data e local, ainda que, no século XVII, Faria e Sousa, seu biógrafo e comentador, tenha registado a descoberta de um assento de viagem para a Índia datado de 1550, em que consta, como possível passageiro, “Luís de Camões, filho de Simão Vaz e de Ana de Sá, moradores em Lisboa, na Mouraria, escudeiro, de vinte e cinco anos, barbirruivo”. Camões terá, pois, nascido em 1524 ou em 1525, datas nem sempre aceites, pois os documentos originais desapareceram.

Isabel Rio Novo segue esta hipótese quanto ao ano de nascimento, ainda que desvalorizando uma opção forçada por um ano ou por outro. Quanto ao local de nascimento, a biógrafa passa pelas várias possibilidades que a história tem encontrado em função dos gostos dos estudiosos, chegando a concordar com Aquilino Ribeiro, quando disse: “Basta saber-se que nasceu em Portugal, o mais é competição de campanário.” Perante as incertezas, regista o nascimento, no tom de reconstituição que logo prende a atenção do leitor: “No Porto, perto do Porto, ou quando muito em Coimbra, mas muito dificilmente em Lisboa, num qualquer dia do ano de 1524 ou 1525, Ana de Sá e Macedo deu à luz um menino, sendo assistida por outras mulheres experientes, parentes ou vizinhas. Certamente que o parto ocorreu em casa de familiares. Na época, só uma mulher solteira, sem família ou desprovida de quaisquer recursos teria o filho no hospital.” Assim vinha ao mundo, pelo lado paterno, o trineto de Vasco Pires de Camões (galego, de Camos) e de Maria Tenreiro (portuguesa), bisneto de João Vaz de Camões e de Inês Gomes da Silva, neto de Antão Vaz e de Guiomar da Gama e filho da já referida Ana de Sá e de Simão Vaz de Camões.

Até ao final, o livro vai fazer justiça ao título escolhido, retirado da primeira quadra de um soneto — “Verdade, Amor, Razão, Merecimento / Qualquer alma farão segura e forte, / Porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte / Têm do confuso mundo o regimento.” E é quase no final do derradeiro capítulo que a autora justifica a escolha: as quatro forças escolhidas, em nada dependentes da vontade humana, regiam o “confuso mundo” e a vida. E o curso dos dias de Camões — pelos valores, pelas ocasiões, pelas brigas, pelo saber, pela instabilidade, pelos devaneios, pelos (des)amores, pela memória, pelos contextos, pelos exílios, pela dor, pelo dever consagrado à pena e à espada — fez parte desse horizonte, em tudo contrário à segurança anunciada pelo primeiro verso...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1358, 2024-08-28, pg. 9.


terça-feira, 30 de julho de 2024

Palavra de escritor nas entrevistas de Luís Souta

 


Uma dezena e meia de escritores surgem reunidos, trazidos pela persistência e curiosidade de Luís Souta, na obra Vozes da Escrita - 15 Entrevistas a Escritores Portugueses (Edições Ex-Libris, 2024), sob o pretexto inicial de descoberta do “olhar que emergia do campo literário sobre o processo educativo”.

As entrevistas, maioritariamente realizadas entre 2001 e 2002 (distância que leva a que já só cinco dos entrevistados estejam entre nós), trazem-nos nomes bem conhecidos como: Matilde Rosa Araújo e Natália Nunes (nascidas em 1921), Fernando Miguel Bernardes (n. 1929), Maria Rosa Colaço (n. 1935), Júlio Conrado e Mário Ventura (n. 1936), Altino do Tojal (n. 1939), Cristóvão de Aguiar (n. 1940), António Damião (que usou o pseudónimo de Henrique Nicolau para as obras policiais, n. 1941), Fernando Venâncio e Mário de Carvalho (n. 1944), Fernando Dacosta (n. 1945) e Alice Vieira, Eduarda Dionísio e Ricardo França Jardim (n. 1946).

A anteceder as entrevistas, Luís Souta explica os critérios de escolha, de que se destacam: as referências mais ou menos autobiográficas nos retratos e episódios que as respectivas obras mostram sobre a escola; a perspectiva da vida escolar a partir dos pontos de vista do aluno ou do professor (uma vez que vários dos entrevistados tiveram o ensino como profissão e muitos dos relatos literários assentam no olhar e nas marcas que ficaram do tempo de alunos) e do romancista ou do pedagogo; a acção dialogante entre os escritores e a escola.

No entanto, não são apenas essas as pistas deixadas nas conversas — os escritores acabaram também por falar do mundo que tem entrado nas suas obras e das próprias condições de edição e do universo da leitura, em segmentos tão diversos como a crítica literária, os movimentos culturais e artísticos, o papel do professor, o valor da memória para a criação escrita, entre outros, chegando, muitas vezes, a conversa a revelar aspectos menos conhecidos do viver de cada um, fornecendo apontamentos de enriquecimento das respectivas biografias.

Pelo caminho, ficam-nos retratos de muita humanidade, coloridos com a experiência da vida e com o gosto de (re)construir ambientes e personagens. É assim que nos tocam observações sobre o que é ser professor, como a de Cristóvão de Aguiar (que também foi professor), ao dizer: “Não acredito que um professor, para ser bom, tenha de estudar muita pedagogia. Ela ajuda quem já possui vocação. Ser professor é uma arte, como a de actor. Não se aprende, nasce connosco, pode apenas aperfeiçoar-se. A pedagogia não constrói um professor. Aperfeiçoa-lhe o talento.” Ou ainda a de Maria Rosa Colaço (a escritora alcacerense, autora desse ainda hoje inovador livro que foi A Criança e a Vida): “Cabe ao professor (...) a semente destes valores essenciais à Paz, à Fraternidade, ao Entendimento dos Povos que devia ser preocupação primordial de todos os agentes de ensino.” É assim que nos entusiasmam reflexões tão pertinentes quanto as de Eduarda Dionísio (professora e filha de professores) sobre a distância que vai entre a certeza e a dúvida: “O meu itinerário foi sempre o da dúvida, ao contrário da geração do meu pai que precisava de certezas e por isso era um grande drama quando a certeza desaparecia... (...) O drama vem quando deixa de haver um número significativo de pessoas (...) que não acha que a dúvida faz avançar o mundo.” É assim que também a postura cívica do leitor fica preparada para falhas da sociedade, como no momento em que Júlio Conrado (que enaltece o papel exercido na sua formação por professores como Virgílio Couto e Xavier Roberto, mestres que também o foram de Sebastião da Gama e de Matilde Rosa Araújo), falando de um dos seus romances, revela: “A corrupção é um fenómeno permanente na vida das sociedades que não é propriedade exclusiva deste ou daquele grupo social. A arte de furtar é de sempre e as suas denúncia e crítica também.” É assim que uma verdade essencial sobre a função da literatura nos impressiona, trazida pela voz de Mário Ventura (escritor que viveu em Setúbal e que, na conversa, relembra também a origem do Festival de Cinema de Tróia por si proposto): “Sem uma literatura não há um povo culto. (...) Hoje em dia, é a literatura, e não só a portuguesa, que discute o Mundo, que o analisa e teoriza sobre ele. Os políticos são incompetentes, impróprios para consumo intelectual. Os filósofos também não são de consumo fácil. Por isso, penso que a literatura é o melhor (senão o único) veículo para compreender o Mundo.” É assim que nos deixamos enternecer por uma entrevistada como Matilde Rosa Araújo, que faz das suas respostas um prolongamento dos seus poemas e das suas histórias.

Luís Souta soube ser a possibilidade equilibrada de fazer chegar estas vozes, sem condicionamentos, sem imposição do seu intuito, mostrando que a vida não prescinde do pensamento e que há verdades que passam além do tempo em que são proferidas. Só assim se compreende como entrevistas com mais de vinte anos mantêm a sua pertinência na actualidade...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1352, 2024-07-30, pg. 10.