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quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (1)

 


Quando, em 1952, saiu o número 4 da revista coimbrã Sísifo, dirigida por Manuel Breda Simões, três textos chamavam a atenção sobre Sebastião da Gama: logo na abertura, uma nota da direcção a dar conta do falecimento do poeta, contando que a notícia da sua morte chegara quando a revista estava «em andamento» e já integrava o poema inédito “Anunciação”, que neste número se publicava (o segundo texto); na página seguinte, sob o título “Uma carta do Poeta”, surgiam as respostas de Sebastião da Gama, redigidas aquando do seu regresso do Marão (onde fora em meados de Setembro de 1951), a um conjunto de quatro questões que uma carta de Breda Simões lhe fizera chegar. As três primeiras perguntas debruçavam-se sobre o percurso biobibliográfico do poeta, mas a quarta recaía unicamente sobre a arte poética: «Que pensa da Poesia em geral e da sua própria Poesia?»

A resposta do autor de Campo Aberto, obra publicada em Fevereiro de 1951, foi telegráfica, sem se desviar do assunto: “Minhas ideias acerca da poesia. Vide: ‘Louvor da Poesia’, in ‘Campo Aberto’. Será tudo? Olhe que a resposta ao n.º 4 não é para posar. É que só nos versos sei o que penso da Poesia.” De forma simples e objectiva, Sebastião da Gama separava o poeta da pessoa que era, assumindo a existência de uma biografia literária, responsável pelo acto e pelo percurso poéticos.

No poema, de três estrofes, datado da Arrábida em 7 de Fevereiro de 1950, o “louvor da poesia” é assim justificado: “Dá-se aos que têm sede, / não exige pureza. (...) // Sabe a terra, a montanhas, / caules tenros, raízes, / e no entanto desce / da floresta dos mitos.” A poesia como dádiva a quem se predispõe a recebê-la e a quem a procura, o trabalho do poeta, afinal, numa atitude de adesão ao seu tempo e ao seu espaço, à vida — poucos dias após ter sido publicado Campo Aberto, Sebastião da Gama escrevia ao seu amigo Luís Amaro, a partir de Estremoz (6 de Março de 1951), a dar-lhe conta da recepção que já tivera ao livro e a responder à apreciação que dele recebera: “o que eu quero sobretudo dizer-te é isto: nunca procurei assunto; nunca fiz exercícios literários. É natural que haja no ‘Campo’ poesias que não são poesia autêntica; mas escrevi-as com tanta unção e tanta sinceridade — juro-te — como escrevi os poemas da Serra-Mãe e os do Cabo.”

A ideia expressa no poema “Louvor da Poesia” surge como a amplificação do eco vindo do dístico que abre Campo Aberto: “Tudo frutificou: o campo estava aberto, / deu conchego e raiz a todas as sementes.” Quando Maria de Lourdes Belchior prefaciou a segunda edição desta obra, em 1960, fê-lo traçando a evolução da obra poética de Sebastião da Gama, referindo: “Neste livro, (...) se houve por um lado uma crescente interiorização, houve, por outro, cada vez mais, uma abertura para as circunstâncias exteriores, para os acontecimentos, dos quais partia, carregando-as de intrínseca beleza poética e de uma valorização simbólica.” E, depois de mencionar alguns poemas: “o pendor descritivo-narrativo do poeta ficou intacto mas não saturou os versos.”

Em 12 de Agosto de 1947, em “Nocturno”, poema incluído em Cabo da Boa Esperança, saído nesse mesmo ano, surgia um retrato do ambiente requerido para o tempo poético: “Era um murmúrio longo de ondas mansas... / Um cochichar de Estrelas curiosas... / Um concerto de grilos tresnoitados... / Mais presente que tudo, aquele enorme / silêncio religioso, imagem pura / dos ouvidos atentos do Poeta...” Os elementos vão-se juntando mansamente, num perscrutar dos sons da Natureza — uns, reais, como o som das ondas ou o estridular dos grilos; outros, sugeridos, como o segredar entre estrelas —, favorecedores do encontro com um “silêncio religioso” ouvido pelo poeta. A audição é, de resto, uma das linhas que percorre a poesia de Sebastião da Gama, captada, preferencialmente, a partir da Natureza, cujos sons se transformam em música — num artigo publicado no Jornal de Letras (n.º 188, 2.Out.1986), David Mourão-Ferreira chamou a atenção para “as mais diversificadas alusões à música e as mais reiteradas sugestões de natureza musical” presentes na poesia de Serra-Mãe (marca que se prolongou nas outras obras), concluindo que “o canto e a música se mostraram invariavelmente em conexão muito íntima com momentos privilegiados quer da sua comunhão com a natureza quer da natureza da sua comunhão com a poesia” — não por acaso, o primeiro poema de Serra-Mãe fala-nos de “melodia” e de “som” e o segundo intitula-se “Harpa”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1373, 2024-09-18, pg. 10.

 

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Sebastião da Gama e o diário de um professor feliz



Em 11 de Janeiro de 1949, na Escola Veiga Beirão, o metodólogo Virgílio Couto (1901-1972) reuniu com os seus professores estagiários durante uma hora, passando-lhes algumas das suas convicções e princípios profissionais, verdadeiros alicerces da pedagogia e da educação: as aulas deviam ser “um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente”; a partir dessa convivência, “como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando”; finalmente, “aceitar os rapazes como rapazes” e “deixá-los ser”, porque “até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé”. A concluir, uma intenção quanto aos alunos: “o que eu quero principalmente é que vivam felizes.”

Um dos presentes na reunião foi Sebastião da Gama (1924-1952), que decidiu registar estes princípios no início do seu diário, nesse mesmo dia, comentando: “vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam”. Estava assim delineado um programa pedagógico bem simples, mas fundamental, que logo conquistou o jovem professor.

Ao longo de cerca de um ano, Sebastião da Gama lidou com os seus 30 alunos, nascidos entre 1933 e 1935, construindo o diário (ideia do metodólogo) como espaço e tempo de reflexão sobre a prática pedagógica, não escamoteando confidências que bem configurariam um quase diário íntimo. Por ali passam princípios que se mantêm válidos e pertinentes nos domínios da pedagogia, da didáctica da literatura, da formação de leitores, da inclusão, da formação cívica, num testemunho “em que se regista o que está bem que se faça e o que está bem que se não torne a fazer”.

Em 28 de Janeiro de 1950, relatava o último dia de aulas com a turma e, ao olhar para o percurso feito, lamentava ter “de deixar os moços” - “os rapazes trabalham, interessam-se, disciplinaram-se, e isto foi-se gradualmente acentuando até chegar hoje a um ponto de afinação que era o grande começo que eu ansiava.” A comoção dominou os alunos e o professor, disso dando conta o diarista.

Em 1958, este documento seria publicado sob o título de Diário (Ática), preparado por Hernâni Cidade, que fora professor de Sebastião da Gama. Contudo, a edição completa e anotada desta obra só surgiu em 2011, através da Editorial Presença (como declaração de interesses, registo que preparei esta edição). Entre 1958 e 2011, o livro teve mais doze edições - pela Ática, até à 11ª, em 1999; pelas Edições Arrábida, em 2003 e 2005. Creio ter sido Maria de Lourdes Belchior quem disse que, se esta obra tivesse a assinatura de um autor do mundo anglófono, seria de leitura quase obrigatória em todo o mundo. Contudo, a única tradução da obra que existe é de alguns excertos, em italiano - Frammenti di 'Diário' - Sebastião da Gama e la lingua portoghese, devida a Maria Antonietta Rossi (Viterbo: Sette Città, 2010).

O acesso dos leitores ao Diário do professor azeitonense fica a dever-se também a Joana Luísa da Gama (1923-2014), esposa do autor - depois do estágio, Sebastião da Gama quis oferecer o manuscrito ao metodólogo, mas Joana Luísa opôs-se e disponibilizou-se para copiar o texto, tendo sido essa cópia a ofertada. Se assim não tivesse acontecido, talvez nunca chegássemos a conhecer esta obra, cuja leitura deveria ser indispensável na formação de professores e por todos aqueles que se dedicam à educação, independentemente do grau em que lidam com ela, tal é a sua actualidade.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 536, 2021-01-13, pg. 14


segunda-feira, 10 de abril de 2017

Sebastião da Gama, 93 anos, hoje



Fosse Sebastião da Gama vivo e faria hoje 93 anos. A sorte não quis, contudo, que assim fosse e, quando os 27 anos lhe corriam nas veias, a vida quebrou-se. E, a partir daí, ficou a memória, ficaram as memórias.
Sebastião da Gama é hoje lembrança de muitos que ainda o conheceram - alunos (de Setúbal, de Lisboa, de Estremoz), amigos e alguns familiares, gente que recorda a bom humor, a delicadeza de trato, a pedagogia, a graça e a poesia que o caracterizavam. Sebastião da Gama é hoje memória para muitos mais, uma memória trazida pela escrita de um poeta compulsivo e não menos compulsivo leitor, uma memória advinda da poesia que se cruzou com a Arrábida (a "serra-mãe"), com o divino, com a Natureza, com a vida e as suas coisas simples, com a tradição literária portuguesa, uma memória intensa trazida também pelo seu Diário, que, como alguém disse (creio que foi Maria de Lourdes Belchior), se tivesse tido um autor francês, inglês ou americano, seria estudado em todo o mundo culto.
Sebastião da Gama é autor a ler e a divulgar pelo seu importante contributo para a poesia portuguesa de meados do século XX. Sebastião da Gama é autor a ler porque das suas obras jorra um sempre contínuo fluxo de descoberta e de mergulho na beleza da vida! 

sábado, 25 de dezembro de 2010

Um presépio, um Natal (VI)

Presépio em Azeitão, na Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense (Dez.2009)

Senhora do Presépio


Tudo tão simples e tão natural:
(um nascimento igual aos dos filhos dos homens?)
a mãe serena, aliviada após o parto,
contempla o filho recém-nascido,
carne da sua carne, recém-parido.

Tudo tão simples e sobrenatural:
mistério de uma virgem dando à luz
um menino filho de Deus, gerado
por obra e graça do Espírito Santo.

Tudo tão simples e sobrenatural:
em Belém uma virgem dava à luz o Salvador.
Filho de Deus e de Maria
nascia para o mundo o Redentor.

Maria de Lourdes Belchior. Cancioneiro para Nossa Senhora / Poemas para uma Via-Sacra (1988).

quarta-feira, 7 de abril de 2010

"Diário" de Sebastião da Gama editado em Itália

Sobre o Diário de Sebastião da Gama e sobre a recepção que ele tem tido, escreveu um dia Maria de Lourdes Belchior: "Este Diário se tivesse sido escrito em francês ou inglês já teria dado ao seu autor jus a ser conhecido em largos sectores do mundo da educação." (in Resendes Ventura. Papel a mais. Lisboa: Esfera do Caos, 2009, pg. 191).
De facto, a importância dada a esta obra de Sebastião da Gama tem variado ao longo dos tempos, mas mantenho que deveria ser de leitura obrigatória para professores, educadores, pais e políticos (pelo menos, os ligados à área da educação, independentemente do lugar que ocupem na política).
Por cá, isto é, por Portugal, pode haver quem goste mais de citar os pedagogos estrangeiros, dando razão a esse traço que nos caracteriza de imitarmos o que chega de fora, mesmo que o seu grau de qualidade seja inferior ao que se faz por cá... Mas outros nos descobrem, felizmente.
Pois é! Em Itália, na Università degli Studi della Tuscia, em Viterbo, uma edição de excertos do Diário vai ser apresentada publicamente, trabalho preparado por Maria Antonietta-Rossi (Frammenti di "Diario". Viterbo: Sete Città, 2010). Ver mais pormenores aqui.