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sábado, 28 de junho de 2025

Onde fica o Paraíso?



“No princípio, Deus criou o Céu e a Terra.” Assim começa o primeiro dos livros bíblicos, o Génesis. Foi o aparecimento da luz, do firmamento, da terra, do mar. Sobre a terra, cresceu a relva e ervas com semente. Sobre o firmamento, foram criados dois luzeiros, um para a noite, outro para o dia. As águas foram povoadas por seres vivos e o firmamento por animais voadores. A terra ganhou animais domésticos, répteis e feras. E foram criados o homem e a mulher. “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom.” E o homem e a mulher viveram no Éden, jardim onde nada faltava... até à descoberta do mal, vinda através da serpente...

De um momento para o outro, o paraíso virava dificuldade, dor, sofrimento. Tudo perante o olhar humano, frágil. Seria, talvez, uma primeira aprendizagem, dura, mas para a vida — a da brevidade das coisas. Sobretudo quando são belas e dotadas de fascínio. Nuno Gomes Garcia, num romance sobre a participação portuguesa na Guerra de 14, Arame Farpado - As Peripécias de um Soldado Republicano (2011), escreveu, numa frase rápida, essa perda do espaço edénico — “O paraíso é efémero e tende, tal como aconteceu na génese da humanidade, a terminar abruptamente.” Pior do que isto, só a crueza com que Agustín Fernández Paz registou, em Só Resta o Amor (Edições Nelson de Matos, 2008), a verdade iniludível segundo a qual “todos os paraísos têm uma data de validade.”

Imaginar o paraíso. Chegar a um local e achar que se está no paraíso. Porque sugere felicidade, porque é bonito, porque nos transcende, porque se celebra o nosso encontro com a beleza suprema, porque... não, talvez não o possamos imaginar. Numa crónica saída no Público (23.Maio.2015), Miguel Esteves Cardoso dizia porquê: “O paraíso nunca pode ser imaginado. Se é preciso imaginar é porque não se está lá. O paraíso pode ser sonhado mas nunca satisfaz porque, para ser um paraíso, é preciso consciência que se está lá, acordado, cheio de toda a sorte do mundo.”

Acontece então que os paraísos são sempre momentâneos e relacionam-se com o sentir. A felicidade pode ser permanente? Ela pode ser buscada, mas nunca deixará de se mostrar em curtos fragmentos, episódios, instantes. “Não há nada mais frágil e insubsistente do que a felicidade”, disse-o Domingos Monteiro num conto do livro Histórias das Horas Vagas (1966). Há quem lute contra isto, afirmando o seu estado de felicidade permanente com uma marca do género “sou feliz”. E duvida-se, porque, como noutras coisas, a felicidade não é uma via permanente, aí se percebendo a diferença entre o estatuto do verbo “ser” e a realidade do verbo “estar”... ainda que acreditemos que a vida é também o percurso em que se demanda a felicidade.

Voltemos ao Éden para lembrar Os Diários de Adão e Eva, que Mark Twayn (1835-1910) publicou em 1904 (o de Adão) e em 1906 (o de Eva), textos assentes sobre diários ficcionados, em que não faltam o humor nem um contributo para o entendimento do que têm sido as relações entre a mulher e o homem ao longo dos tempos. É Eva quem escreve, a dada altura, “depois da Queda”: “Quando evoco o passado, o Jardim é como um sonho. Era belo, incomparavelmente belo, e agora perdi-o e nunca mais o hei-de ver.” Mas, logo a seguir, diz sobre a sua conquista: “O Jardim está perdido, mas encontrei-o, por isso estou contente. Ele ama-me tão bem quanto pode; eu amo-o com todo o ímpeto da minha natureza passional.” Neste escrever para o diário (mesmo que ficcionado), Eva confessava essa ideia da procura e mesmo da construção da felicidade pela via do amor, um estado em que sonho, imaginação e alguma dose de realidade se misturam.

Pensando no Éden (ou no Paraíso), logo associamos o painel do tríptico “Jardim das Delícias”, de Hieronymus Bosch (1450-1516), que representa esse espaço, um cenário de equilíbrio e de coabitação pacífica e deslumbrante, completo e perfeito. Ainda que a descrição do Paraíso dependa do que dele se espera ou deseja, podemos subscrever o que algumas personagens nos passam, sobretudo retratos que não se preocupam tanto com a apresentação física, antes com o bem-estar, quase num momento de encontro do ser humano consigo. Sophia de Mello Breyner (1919-2004) permitiu que uma sua personagem nos antecipasse esse Éden numa narrativa como “A Viagem” (incluída em Contos Exemplares, obra de 1962): “Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.” No entanto, o conto não deu para que a personagem ali chegasse...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1557, 2025-06-25, pg. 10.


quinta-feira, 12 de junho de 2025

Conceição Rendeiro: Sobre o rio das palavras



Impossível olhar para este título, Flúmen, e não associar de imediato o poema de Camões conhecido pelo seu primeiro verso, “Sôbolos rios que vão”, cenário e imagem escolhidos pelo poeta para falar do rio que de seus “olhos foi manado” porque, entre outras coisas, “ali, lembranças contentes / na alma se representaram”. E conseguimos, com um pouco de imaginação, acompanhar a narrativa de Jorge de Sena escrita em 1964, “Super flumina Babylonis”, que nos apresenta essa suposta noite em que Camões poderia ter escrito esse poema, numa luta pela memória e pelo reaver do passado, com todas as suas marcas de alegria e de tristeza, fazendo correr as palavras no flúmen, porque “bem são rios estas águas / com que banho este papel”. Flúmen, de Conceição Rendeiro (ed. Autora, 2025), conhecida médica pediatra em Setúbal, é, pois, um rio, o caudal dos sentimentos que a poesia permite expressar, o espelho que o poeta ajuda a construir e em que se revê.

Os poetas trazidos para epígrafe deste livro ajudam nesta interpretação, haja em vista o poema “Impressão digital”, de António Gedeão, afirmação do olhar individual sobre o mundo e o que o forma, ou um outro, “Inicial”, de Sophia de Mello Breyner, em que o mar, local maior de todas as águas, retribui o tempo inicial depois que agitou, entre ondas e torvelinhos, aquilo que se foi.

Surge este livro organizado em oito partes, indiciando um percurso, a avaliar logo pelo título da primeira, “Prenúncio”, que reúne dois poemas associados a circunstâncias históricas e pessoais, datados de 1969, ano de epopeia estudantil, poemas da busca da paz e da afirmação pela palavra, causa maior da geração, e outro, não datado, mas mais recente, de confessada adesão à leitura de Saramago, num revelar que tal simpatia advém da clareza e da coerência das palavras, apelativas que são para a construção alicerçada da solidariedade.

Nos grupos “Breves” e “Ritmos”, os poemas são dominados pela força dos instantes (resultantes de um “sentir de comoção / que por momentos / nos sacode o peito / e os olhos ilumina”), valorizando o prazer de imaginar um abraço ou de sentir o deslumbramento provocado por um trecho musical, indicando propósito de vida e chamando a atenção para o jogo entre a brevidade que a vida é e a exigência imposta a esta “condição de passagem”, qual seja a do cuidado a haver com o legado, algo entre os valores recebidos e transmitidos. Por vezes, ressalta a poesia que emerge do quotidiano, provenha ela de situações presenciadas (como o cruzar com o homem das castanhas ou o passar pela rua adornada de jacarandás) ou de momentos em que se é absorvido pelo silêncio e pela paragem, contrariando o “viver / em constante sobressalto” como opção.

Em Flúmen, não estamos perante o desabafo de quem se encerra na sua teia, pois também por aqui passa a expressão de preocupações colectivas, como vemos no grupo “Sobressaltos”, em que vive mais um conjunto de textos que toma para tema situações como o confinamento, a guerra, as migrações, os desastres, mazelas de que o poema se apropria para reconhecer a perturbação causada pelo atraso da “alegria / o sentimento / da vida / habitual”. Acrescente-se ainda a este núcleo da vivência do colectivo o poema que fecha o livro, “Cubo mágico”, pelo tom crítico, em que o brinquedo serve para retratar o “mundo desconcentrado” (a que Camões poderia chamar desconcertado...). Também o segmento “Arte de cuidar” agrupa poemas que oscilam entre o olhar crítico e a mensagem a passar, por vezes motivados por situações da contemporaneidade, como as questões de género e as diferenças, ou por referências resultantes do percurso autobiográfico da autora, como surge patente nos olhares sobre as crianças ou, particularmente, no que se intitula “Mensagem de pediatra”, uma quase cartilha orientada pelo terceto inicial que anuncia: “Crescer é aprender / ganhar autonomia / fazer-se gente”.

Os dois últimos conjuntos de poemas, “Vida” e “In memoriam”, são aqueles em que perpassa mais a expressão lírica do eu, ainda que por razões diferentes. No primeiro, essa expressão assenta na admiração pelo outro, na partilha (de que é exemplo o texto “O meu 25 de Abril para ti”, forma emotiva de permitir a comunhão das vivências e a preservação da memória), na glorificação do amor e de tempos de êxtase, de emoção, visando a celebração dos mesmos. Já nos poemas reunidos sob o título “In memoriam”, assiste o leitor à valorização da lembrança que recompõe os últimos tempos da presença do outro, marcados pela dor da perda, anunciada e concretizada — o poema “Na hora do adeus”, à semelhança do que acontecia nas cantigas de amigo medievais, usa a estratégia do desabafo com a Natureza, “brisas trazei / afagos do meu amor”, apelo que acentua a dor, pois nas cantigas de amigo a jovem apaixonada queria saber notícias do amado temporariamente distante e, neste caso, a distância é definitiva.

Flúmen surge, pois, como o caudal que permite que as “lembranças contentes” na alma se representem, que lembra que “o tempo vale / pela qualidade testemunho / intensidade das nossas vivências / empenho e dedicação aos outros / exultação de alegria e prazer / dor pessoal e do próximo / cumplicidade de momentos únicos”. Os poemas são, por isso, uma forma de povoar a memória e também de valorizar o tempo, de usar a palavra para assinalar a intensidade da vida. 

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1548, 2025-06-11, pg. 10.

 

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Cores e Palavras de Abril desde Grândola



O título da colectânea, publicada em 2024, advém de um poema de Sophia de Mello Breyner motivado pelo 25 de Abril, publicado na sua obra O Nome das Coisas (1977): “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”. Intitula-se O Dia Inicial (numa caixa dominada por fundo verde e letras vermelhas, com os nomes dos autores em prateado) e é uma colecção de 25 postais sobre o cinquentenário do 25 de Abril, cada um deles tendo, numa face, uma ilustração e, na outra, um texto, reunião de meia centena de autores (tantos os escritores quantos os artistas do desenho), num trabalho produzido pela Câmara Municipal de Grândola.

Se a imagem do cravo surge em 21 das ilustrações, já a força da cor vermelha perpassa por todas elas, ora mais viva, ora menos acentuada. Algumas das propostas artísticas misturam o desenho com o “slogan” (exemplo da ilustração de Joana Mosi, cruzada com excerto de canção de Sérgio Godinho), outras reforçam a urgência de assinalar a data (em várias, aparece o slogan imperativo “25 de Abril Sempre”, como são as ilustrações de Bernardo P. Carvalho, Tamara Alves, Nuno Saraiva e Mafalda Milhões), outras ainda dão azo a uma valorização de alguns momentos do 25 de Abril (como é o caso de João Vaz de Carvalho, que nos deixa ver uma multidão de cravos a ser emitida a partir de uma telefonia, ou o de Bernardo P. Carvalho, cuja mistura de rostos, de profissões, de gestos e de olhares sugere a união em torno da data e da sua simbologia), havendo ainda espaço para o humor (como na proposta apresentada por Nuno Saraiva, que parodia “slogans” em reconstruções como “A terra a quem a compra!” ou “Viva a reforma agro-turística!”, levando o mesmo tom parodístico para o desenho, substituindo a foice pelo símbolo da moeda euro) ou para a sugestão de narrativas relacionadas com o 25 de Abril (como se nota na figura salazarenta que foge de um alvejamento de cravos, concebida por Cristina Sampaio).

Relativamente aos textos, a maioria dos autores optou pela prosa, tendo o poema sido a modalidade preferida por Almeida Faria, José Agostinho Baptista, Helga Moreira, Yvette K. Centeno e Hélia Correia. Seguindo o índice, é Afonso Cruz quem abre a escrita, com uma mensagem que joga com algumas frases de “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, assumindo um cunho pedagógico sobre o sentimento da democracia e sobre a necessidade de pensar. Reflexão sobre a maneira como foi vivida esta data há 50 anos é feita por Onésimo Teotónio Almeida, que junta a memória e as imagens guardadas — “O 25 de Abril foi a festa onírica do grafito que captou o espírito dominante no tempo: ‘Queremos tudo!’, enlevados nos mais doces e utópicos sonhos de um homem e de um mundo novos.”

Histórias imaginadas ou reconstruídas povoam alguns dos textos (Dulce Maria Cardoso ou Ana Margarida Carvalho), havendo lugar também para o humor (Cláudia Andrade redige uma carta, em que não falta o final “a bem da Nação!”, dirigida ao director da polícia política a informar sobre “actividades indizíveis” acontecidas no quintal), para as memórias do tempo anterior ao 25 de Abril (Maria do Rosário Pedreira, Anabela Mota Ribeiro ou Ana Bárbara Pedrosa) ou para a memória da data ocorrida em tempo de juventude (Possidónio Cachapa ou Julieta Monginho), assim como para a lembrança do que foi viver essa data (Germano Almeida). Não faltam também os textos que problematizam a concretização das esperanças que vieram com esse Abril (Joel Neto ou Richard Zimler)

Feliz é o tom de José Luís Peixoto (nascido em 1974, já depois de Abril). Só tendo conhecido o país em regime de liberdade, confessa ter demorado “a entender a importância do 25 de Abril”. Mas a alegria de não ter conhecido o tempo anterior cola-se-lhe à escrita, num reforço do que é viver: “O passado era o peso de tanta injustiça, sofrimento, medo. (...) Fico feliz que essa sombra não me tenha tocado a pele. E todos os dias, em todos os momentos, agora mesmo, encho o peito de ar, sinto o gosto fresco do oxigénio. Estou vivo, estamos vivos, sou livre, somos livres.” Um excelente convite para concluir estas leituras a favor de Abril surge de um nome, também nascido em 1974, depois de Abril, Jacinto Lucas Pires, que relembra a intensidade da canção de José Afonso, avivando, numa interpretação pessoal, o significado de “Grândola, Vila Morena”: “Voltei hoje a ouvir esta canção que marca a nossa vida. Um detalhe pouco referido é o que se pode escutar antes da voz: o som dos pés na terra. O som da terra, o som de gente sobre a terra, a caminhar. Sempre que me lembro de ‘Grândola, Vila Morena’, vejo a imagem límpida de uma utopia, uma ‘terra de fraternidade’, um lugar ideal que nos serve de bandeira e inspiração - mas a canção que sonha um mundo novo começa com os pés na terra. É bom lembrar isso. Ter sempre presente que uma revolução que não caminha, morre. E que esta canção — como o próprio 25 de Abril — pede gestos concretos e a nossa melhor participação.”

João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1516, 2025-04-23, pg. 8.


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Sebastião da Gama acompanhado de Rilke e de Sophia - duas histórias...

 


Esta foto foi tirada no dia 19, data em que O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama, foi posto à venda, no escaparate de uma livraria. O conjunto das obras expostas terá sido por acaso. Mas esse acaso lembrou-me duas histórias de Sebastião da Gama a propósito desta fotografia e de dois autores que figuram ao lado do seu O Inquieto Verbo do Mar.

A primeira tem relação com Rilke. Em 10 de Fevereiro de 1948, Sebastião da Gama escrevia uma carta para David Mourão-Ferreira, onde, a dado momento, dizia: “E por ter lido o Rilke. Pega, David, nas Cartas a Um Poeta. Ele sabe muito bem que sem a solidão nada feito. Olha que a mim até me dá para ser cruel e irreverente. Chego a doer-me a mim próprio. Andava doente, por despaísado, por desintegrado da minha solidão e foi um fim-de-semana de convivência a nu com a Serra que me pôs bom. Estas férias, com o folhado aberto, consolidam a cura.”

A segunda relaciona-se com Sophia de Mello Breyner. Em 1949, no dia em que fazia 25 anos, Sebastião da Gama escrevia uma dedicatória para Sophia num exemplar de Campo Aberto, que dizia: “Para a Sofia, que chegou à Gramática Portuguesa e onde estava ‘feminino: poetisa’ escreveu: ‘feminino: Poeta’. Arrábida 10.4.1949”

Neste expositor, Sebastião da Gama está bem acompanhado, pois.


quarta-feira, 26 de junho de 2019

Manuel dos Santos Rodrigues - Ofício poético em louvor da vida



“Não me considero um poeta.” É a primeira frase que salta neste Altar de Pena Escrita, de Manuel dos Santos Rodrigues (Ed. Autor, 2018), que carrega ainda o subtítulo de “Tríptico Poético”. Poucas palavras andadas, uma explicação: “Isto não quer dizer que não tenha momentos, raros talvez, mas genuínos, de sensibilidade poética”. E, logo a seguir: “nesses momentos, com um pouco de habilidade versífera, pode surgir um poema”.
Um poema é um estado, uma técnica, uma voz própria, resulta de um momento, congrega tudo isso? Um poema é o sublime de uma língua que se escreve? Um poema justifica-se? O “prólogo” que Manuel Rodrigues apresenta tenta fundamentar os momentos poéticos que constituem este livro, desde logo assinalando a capacidade metafórica e a alegoria que podem existir nas pequenas coisas - “Um dia, alguém passa e repara naquele pequeno pormenor. Visto ao longe, é massa indistinta na paisagem, mas eis que, tocado pela vista, brilha com um relevo particular, dotado de especial encanto.” A poesia exige então esse movimento que se estabelece entre o “parar” e o “reparar”, daí surgindo a revelação, uma descoberta - “Viesses tu, poesia, / e o mais estava certo”, escreveu Sebastião da Gama, assim como quem diz que a poesia cauciona a graça, impõe a maravilha.
O jeito deste “prólogo” é semelhante ao “imprimatur” aposto pela autoridade para que o livro possa ser publicado, com a diferença de que, aqui, é o próprio autor que o atribui - “Este será o meu único livro de poesia. Valerá a pena? (...) Ainda assim, publique-se.” Quase parece que o autor tem de se pôr de acordo com o poeta que se esconde para que o livro aconteça!
E o autor volta a intervir logo a seguir, agora sob a forma de “Manifesto”, um conjunto de dez quadras em defesa da forma de escrita, em contestação do Acordo Ortográfico, por onde circulam a ironia e a recusa, mesmo o maldizer, em jeito de bengalada mais camiliana que queirosiana, numa brincadeira poética que não pode ser lida sem o acompanhamento da nota que, no início adverte que o autor não segue o Acordo “por o considerar inconsistente do ponto de vista científico e incoerente do ponto de vista técnico”.
Só a partir daqui entra o leitor no caminho do Altar de Pena Escrita, obra que se apresenta organizada em três partes: “Memória”, “Insano Amor” e “O Canto e a Pena”. É obrigatório de imediato associar esta trilogia a três momentos de um percurso - desde “Memória”, o primeiro conjunto de poemas, que nos remete para o tempo mais distante, para os fragmentos que desse tempo ficaram gravados, até “O Canto e a Pena”, a última parte, que nos chama a atenção para o título da obra, a juntar a necessidade da expressão (o “canto” ou a escrita que coroa a vida) e o sofrimento e dificuldade que compõem a vida (a “pena”). A escolha dos títulos para estas partes acaba por ser uma decisão poética que lhes associa os epítetos de clássicos como Plutarco, Anacreonte e Estesícoro e ainda criações mitológicas como Eros (na segunda parte) e Apolo e Hades (na terceira), assim se conferindo um tom alegórico a esta obra.
De facto, o leitor está perante uma obra em que se misturam o autor e o poeta, nisso se estabelecendo um certo pacto autobiográfico, umas vezes mais assumido, outras vezes mais sugerido. Poderemos dizer que este Altar de Pena Escrita é uma autobiografia que se aloja numa alegoria, grande sucessão de imagens que se colam a momentos, a lugares, a gestos. Um exemplo: qual a função das seis histórias que iniciam a primeira parte do livro, sob o título “Fábulas”? As histórias são conhecidas e circulam em todo o lado - a raposa e as uvas, o corvo e a raposa, a rã e a vaca, a cegonha e a raposa, o lobo e o cordeiro, o burrinho e o lobo -, tenham elas chegado a partir de Esopo, de La Fontaine ou da tradução que Bocage de algumas fez. Se as fábulas remetem para os ensinamentos através das narrativas, também nos lembram a simplicidade dos primeiros textos orais e sugerem ainda o tempo da infância. Ora, o percurso inicia-se numa infância, que pode ter uma dupla interpretação: a infância do traçado autobiográfico e a infância da escrita.
Este grupo é ainda constituído por poemas que denotam a aprendizagem veiculada pela via religiosa e por outros em que a prova autobiográfica surge evidente, desde logo pela evocação de Marmelos, a aldeia do concelho de Mirandela em que o autor nasceu, designada por “aldeia pequenina” (em que o adjetivo tem a dupla leitura da dimensão do lugar, por um lado, e a associação à infância - logo a seguir, há um poema, “História de vida”, cujo primeiro verso recorre ao mesmo qualificativo, “quando eu era pequenino”). Outras marcas topográficas povoam esta primeira parte, todas fazendo parte do trajecto geográfico que seguiram os passos do autor, como Moçambique, Lourenço Marques, Ourique ou a terra africana. A estas referências espaciais, estão associadas vivências felizes, despertando alegria e nostalgia, que não é apenas dos sítios, mas também de um tempo, o da infância despreocupada e satisfeita, imaginativa e revivida, como se pode verificar no poema “No meu tempo de cow-boy”: “No meu cavalo de pau / Ia fazendo tau! tau! / Co’a pistola de madeira. / Desta forma, a tauitar, / Via as horas a passar / Sem nunca sentir canseira.” (com a particularidade daquele neologismo inventado para relembrar o poder da voz associado ao gesto de brincar).
A primeira parte conclui-se com o poema “Ocaso”, melódica forma de pôr fim a esse tempo infantil, ainda que passando em revista todos os estádios da vida - o sol vai-se embora com saudades da criança  que “não se cansa de saltar e de correr”, do jovem “a nascer para a poesia”, do par que debica “segredos de amor, do velho que risca com a bengala “como querendo traçar / os passos da sua vida”. Um poema que fecha uma das partes parece congregar um tríptico dos ciclos da vida, assim como se anunciar a continuidade...
A segunda parte, “Insano Amor”, corre sob o signo de Eros e, logo no primeiro poema, não podemos esquecer a imagem de Fernando Pessoa, ainda que sob a capa de Ricardo Reis: “Vem, senta-te junto a mim, / tranquilamente, na margem verde do regato, / e escuta este rumorejar interior...” Reis diria: “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. / Sossegadamente fitemos o seu curso (...) / Amemo-nos tranquilamente.”
Alguns poemas fazem ecoar estruturas da lírica amorosa galego-portuguesa, seja pela semelhança temática do questionamento da ausência - “Onde estás, por que não vens?” -, seja pelo recurso ao refrão, que vai deixando um ressoar de sentido no poeta - “Ai, Deus, onde irás tu!”. Outros textos acompanham Camões na sua forma de sentir o amor como algo impossível de definir - “Há uma incógnita pendente / Um não sei quê mal assente / Entre ti e mim.” - ou como algo que faz assumir uma nova identidade - “Concedessem os deuses a quem ama / transformar-se o amador na coisa amada / Unindo os corações numa só chama” - ou pelas ressonâncias de imagens como a do “cativo” de amor. O erotismo afirma-se também por via da invocação dos mestres (Bocage e Camões, de novo, para aqui chamados), demonstrando que a arte da sedução visa também aquilo que será a mais humana reacção - “Não quero honras, não, só quero engenho / Pra levar-te comigo para a cama. (...) / Dou-te versos, em troca peço beijos, / Só por amor construo os meus poemas.”
Este grupo de poemas consagrados à temática do amor e da paixão faz reviver mitos clássicos que lhe estão associados, como o do rapto de Europa, de Hero e Leandro, de Narciso. Por ele transitam também princípios como o “carpe diem” - “simples mortal que sou, sem vã magia, / contente de ir vivendo o dia a dia” -, como o da escrita enquanto momento de celebração - “Flor que eu celebro, em poesia ou prosa, / Acirrado p’la força do desejo.” Ainda nesta parte, é valorizada a dimensão artística da escrita - “Não me apetece / ler ou escrever / ou sequer conversar”, como se estas três acções fossem as mais importantes que dominavam o poeta -, bem como a dimensão autobiográfica (num texto “feito a pedido de um amigo, que, tendo de se ausentar, lhe confiou a sua amada”, o nome do autor aparece registado) - “Pra ti espero um dia regressar, / Mas deixo-te, entretanto, em meu lugar / O bom Manuel, um grande e fiel amigo.”
O texto que encerra esta parte contém um tom algo disfórico ao intitular-se “Poema de fim de Verão”, dominado por verbos que remetem todas as acções para um passado concluído, fechado, mesmo no que aos deuses respeita: “Afrodite sorriu, Dioniso falou, / Eros feriu, esse insano e cruel deus. / O ciclo fechou-se. Resta dizer adeus...”
O terceiro grupo de poemas, “O canto e a pena”, deixa-se dominar pelo par mitológico de Apolo e Hades, a aproximação à luz e à glória, por um lado, e a certeza do sofrimento e da morte, por outro. O poema que abre este ciclo, “Invocação”, sugere aquela parte da escrita épica em que é pedida ajuda às musas para que a arte não falte. Sendo disso mesmo que se trata, o terceto que o encerra afirma-se pelo pragmatismo e por alguma ironia - “Pudera eu ser Camões no grande engenho, / No engenho sim, mas não no triste fado, / Pois penas que me cheguem já eu tenho.” -, embora no poema seguinte, o poeta reconheça a sua modéstia - “Perdoa, pois, ó divina Poesia, / Que a minha oração seja um mero bocejo”.
Nesta secção, o percurso parece ser muito mais autónomo, mais distante do convencional, seja pela mistura do cantar ao desafio com a poesia de José Afonso e de Sophia, seja pela pressão do academismo, que é violentamente recusado - “Poético. Vulgarmente poético. Pouco me importa, / odeio a poesia. Há alturas em que a odeio. Melhor, não / odeio a poesia, odeio as figuras de estilo, a conotação, a / literariedade, a metáfora, essa peste que se mete em / tudo que se presume literário.” A vida do poeta é atrofiada pela cidade e deixa enredar-se nas imagens clássicas do labirinto, da efabulação, dos temas horacianos (retomando Ricardo Reis).
É o momento da aprendizagem dolorosa das incapacidades que governam as vidas, como a invencibilidade do tempo ou o desgaste da memória - “E dói, dói, dói - caramba, se dói! / esta incapacidade de aprisionar a memória, / que o tempo, esse, nem vale a pena tentar pará-lo.”
À medida que o livro se aproxima do final, também a geografia das origens vai ocupando um cada vez maior espaço, numa posição antípoda das referências do início. Aqui, é a procura de lugares míticos, antigos, repletos de simbologia, começando por um “marco miliário”, medidor de distâncias quilométricas ou temporais, cruzando a ponte romana, bebendo na fonte também romana, olhando Vilarinho das Furnas, contemplando ruínas, cumeando uma mitologia própria que se diviniza no Larouco.
Aqui chegados, o derradeiro poema toma o título do livro, justificando-o - é sobre esse “altar” que a obra é posta, seja ela a obra poética, seja o percurso que se conclui. A poesia mistura-se com a braveza, a dureza e a eternidade da pedra - “Em pedra escrevi teu nome, Poesia, / Na pedra dura em que minha alma habita. / Na pedra o escrevi com pena esguia / Na pedra pura do altar de pena escrita.”
Este poema surge como a celebração final, cerimónia de conclusão, prova de que esta escrita outra coisa não foi senão a prova de uma vida - seja ela uma biografia, seja ela uma viagem de aprendizagem da poesia. Não faltam os elementos simbólicos como o sangue e o fogo, elementos fortes para gravar, exprimir, destruir, renovar; não falta o “sacerdote” perante a ara em que ritualiza e oferece a vida em sacrifício poético. E fica a oração final: “Eu te invoco, Poesia, eu te conjuro / Sobre esta pedra dura derrama teu olhar / Aceita minha vida, meu sangue puro / Que deponho na pena escrita deste altar.”
Uma vida que se conta (ou que se alegoriza), um poema que se conclui, um livro que termina. “Viesses tu, poesia, / e o mais estava certo”, dizia Sebastião da Gama. Esta poesia certificou a certeza desta vida.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Joaquim Gouveia - Três perguntas para um universo de respostas



Desde 2011, Joaquim Gouveia, setubalense ligado ao jornalismo e a outras artes, tem vindo a publicar na blogosfera entrevistas com pessoas ligadas a Setúbal (por nascimento ou por adopção), a um ritmo de periodicidade variável. Escolheu para nome do blogue a designação “Gente gira da região”, sugerindo um misto de admiração, de beleza e de respeito, talvez porque seja isso mesmo que devemos ver em primeiro lugar em todas as pessoas.
Em finais de 2013, no Mercado do Livramento, Joaquim Gouveia expôs uma parte das entrevistas feitas até aí, mas o seu projecto prosseguiu e as conversas continuaram a ter lugar sob o céu de Setúbal, com aromas de Sado.
O modelo da entrevista tem-se mantido: as perguntas não se preocupam com a actividade actual do entrevistado ou com o seu estado, procuram perscrutar-lhe um caminho, encontrar linhas de pensamento, ainda que sem aprofundamento, mesmo porque o espaço para a escrita e para a leitura é o que é.
Dessas entrevistas, Joaquim Gouveia resolveu agora mostrar fragmentos daquilo que estes setubalenses pensam, na obra Como pensam os setubalenses (Setúbal: ed. Autor, 2014), enveredando por três áreas – o mundo, a crise, Deus. Uma centena de respostas é perfilada para cada um dos vértices deste triângulo, todas resultantes de momentos de reflexão súbita, proporcionados pela vertigem de uma entrevista, sem esboço ensaístico, sem análise de “prós” ou de “contras”, sem a medida das consequências do próprio pensamento. Primeiras ideias sobre um pensamento, sobre uma palavra, pois. Passos iniciais sobre algo com que todos nos confrontamos no quotidiano, na vida. Afirmações sem certezas, mas com a emoção de se olhar para o que rodeia este actor e agente que é o homem, que somos nós.
O mundo, o que se pensa do mundo? É sabido que todos olhamos o mundo em função do que somos e do que sentimos. Descobriremos coisas novas, absolutamente novas? Descobrimo-las para nós, mas elas já estavam lá antes da nossa descoberta. Olhamos o mundo pelos nossos prismas e ele é multifacetado. Escreveu algures o poeta José Fanha: “Que o mundo está todo do avesso já sabemos. Às vezes está do avesso para bem e outras para mal. Mas se resolvêssemos aparafusá-lo, deixava de rodar e isso é que não tinha graça nenhuma.” Assim, vamos achando graça ao mundo, isto é, vamos acreditando que podemos contribuir para que ele melhore, mas… o que sentimos depois de todo o esforço nem sempre é feliz! Perpassamos os olhos pelas respostas aqui presentes e elas não se distanciam do essencial da resposta de Fanha – sobrepõe-se, talvez, o tom do cepticismo, em que são valorizados os conflitos, as desigualdades, o (ir)respirável, à mistura com a constante dos recuos e dos regressos aos sonhos, com uma falta de reconhecimento do homem no mundo, com uma Europa que se desmorona (que o mesmo é dizer sobre as mudanças ou alterações de valores). A visão que os entrevistados apresentam do mundo, do planeta Terra em que habitam e com cuja organização convivem, não é feliz; é maioritariamente descrente, com um tom de decepção cuja responsabilidade é remetida para o ser criador que o homem poderia ser. Nostalgia do paraíso? Antes, talvez, a ideia de que o homem é pequeno para tanta coisa, apesar de ser latente a crença de que, como dizia Sebastião da Gama, “pelo sonho é que vamos”…
E entra-se na segunda questão seleccionada: como se ultrapassa a crise? Ambígua, esta ideia de crise! Por isso, alguns entrevistados se questionam quanto ao tipo de crise – portuguesa, mundial, económica, financeira ou de valores? Associadas andarão elas, porque as crises podem ser plurais e universais. Mas é verdade que a tónica dos entrevistados caminha no sentido da humanização, isto é, do respeito pelo homem, ao mesmo tempo que ressalta a ideia de haver um certo artificialismo nesta ideia generalizada de “crise”. Poderíamos ir buscar muitas citações de outros que neste livro não entram, mas bastará a lembrança do momento em que um político afirmou ser a crise uma situação de oportunidade. Perguntaremos: de quê? O balanço que se faz das respostas não é assim tão promissor quanto o dos discursos políticos. Depois, há ainda a ideia de que a crise assenta sempre sobre os mesmos. E, aqui, convém ir pedir emprestada uma citação à escritora Dulce Maria Cardoso, que, numa entrevista, a propósito dos sacrifícios impostos em nome das mudanças, referiu: “Cada um de nós vale a mesma coisa. Nós não somos peças de uma engrenagem em que uns vão para carne picada para salvar outros.” Esta rejeição surge porque o princípio parece real. Isto é: não sobressai das respostas dos entrevistados que a crise seja ultrapassada por meio dos sacrifícios impostos. Pior: não ressalta das respostas dos entrevistados que, no que diz respeito a Portugal, a crise esteja a ser gerida no sentido de ser ultrapassada. E, sem convicções, o homem, mesmo que o mundo pule e avance, não constrói a sua salvação…
Finalmente: Deus. A pergunta joga com ideias, sugere respostas, impõe-se: “Deus criou o homem ou foi o homem quem criou Deus?” Algo entre a fé e o “big bang”, algo entre a religião e a ciência. As respostas valem o que valem, porque as dúvidas também se mostram. Nas respostas apresentadas, há a fé, a crença, a prática religiosa, como há a falta de tudo isto. Um mundo e um tempo em que cada qual pensa a sua relação com o divino ou a falta dela. Permita-se-me que regresse à entrevista de Dulce Maria Cardoso, quando afirma algo de tão sensível e de tão religioso como isto: “Deus é um comunicador. É a maior invenção da humanidade. Eu espero até que à força de tanto ser inventado exista mesmo. Mas o meu Deus não é o dos caminhos ínvios. É um Deus que permite a espera. Toda a vida é uma espera. A mais evidente é a da morte. A menos evidente é a da felicidade. A existência de Deus torna essa espera menos dolorosa.” Pelas respostas dos setubalenses entrevistados passam mesmo as causas pelas quais (des)acreditam. Embora não tenham de resolver a questão, os entrevistados partilham razões, pensamentos, momentos de fé, porque, na verdade… Deus continuará a ser uma interrogação, independentemente do lado em que se esteja. Pensar em Deus implica um encontro do homem consigo, diálogo cujo resultado será inesperado. Confessou-o Jorge de Sena, ainda que pela poesia: “Senhor, não peço mais do que o silêncio do mundo, / o silêncio dos astros, o silêncio das coisas / que outros homens fizeram, e o das coisas / que eu próprio fiz. E o teu silêncio / de senhor que foi. Não peço mais. / Não é nada o que peço. Dá-me / o silêncio. Dá-me o que não fui: / silêncio (porque calei tanto): / o que não sou (pois que calo tanto): / o que hei-de ser (já que falar não adianta): / silêncio. / Senhor: não peço mais.” E, na mesma senda da poesia, a insubstituível Sophia de Mello Breyner retratou: “Deus é no dia uma palavra calma / Um sopro de amplidão e de lisura.” Será, porventura, na resposta a esta pergunta que mais diferenças existem nas respostas que ornamentam este livro. Mas esse é o preço que se paga pela coragem que todos assumiram ao tentar justificar Deus ou ao ensaiar o contrário. Seja como for, Deus e o homem passeiam-se pelas respostas…
Daqui para a frente, fique o leitor com um plural conjunto de argumentos, de opiniões, de pensamentos, de ideias. Com que pode concordar ou de que pode discordar. Mas que lhe hão-de suscitar o diálogo e a sua própria resposta. Depois, é consigo…
[Prefácio à obra]

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sobre Sophia, dez anos depois, para sempre



Sobre Sophia. Quando passa uma década sobre a sua morte e a sua escrita nos fustiga e alimenta. Um bom documentário sobre uma das vozes mais importantes da literatura portuguesa de sempre. Realização de Pedro Clérigo, em 2007, para a RTP. Com muitos excertos de obras, muitos testemunhos, muita memória.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Marcos de uma semana em que não disse (1) – Sophia no Panteão Nacional



Gostei muito do texto de opinião, um quase manifesto ou uma quase exigência, assinado por José Manuel dos Santos no Público de domingo, 17 de Novembro (pg. 54), que alerta o leitor, o país, os responsáveis políticos – Assembleia da República, diga-se – para o imperativo de termos Sophia de Mello Breyner no Panteão Nacional.
O texto começa, de resto, com uma chamada de atenção para todos nós: “Não são os poetas que precisam de nós. Somos nós que precisamos deles e das suas palavras de vida e de morte. Somos nós que necessitamos das suas acusações e das suas celebrações, das cóleras e dos êxtases, dos anátemas e dos louvores, das profanações e das sagrações. Somos nós que necessitamos desse voo da voz, dessa veemência da vida, desse fogo da fronte. Nos grandes poemas dos grandes poetas, o mundo — ou a sua recusa — está perante nós e ficamos à altura da sua altura.” Um bom elogio para os poetas, uma boa lição para nós.
Depois, vêm as razões da proposta, centradas no cruzamento do estar de Sophia entre a palavra, o poema, a cultura e a cidadania. “A participação de Sophia na política fez-se das mesmas perguntas e das mesmas respostas de que a sua poesia se faz. É por isso que a coragem de Sophia era uma ética e a sua lucidez um compromisso com o mundo e com os homens que o habitam. É por isso que a sua morte foi um momento de despedida, de descoberta, de despertar. Ao vermos que a morte não prevaleceu sobre a sua obra, aprendemos que somos os herdeiros da sua palavra, da sua nobreza, do seu desassombro.”
O apelo de José Manuel dos Santos vai muito além do que poderia ser defender o poeta ou a sua obra. Encontra sentido para os tempos que nos invadem, para o exemplo e para a memória. Tudo associado às datas que passam em 2014 – os 40 anos sobre o 25 de Abril, os 10 anos sobre a morte de Sophia.
É que, na obra de Sophia, “a vida e a poesia não se separaram nunca e foram liberdade livre e justiça justa” e “no que escreveu e no que viveu, passa esse sopro de inteireza, de verdade e de audácia que a tornou um símbolo para todos.”

É bom que a proposta de José Manuel dos Santos seja tida em conta e que venha a ter um desfecho feliz. Seria uma excelente forma de celebrar a ética, de celebrar a arte, de apontar um caminho forte da identidade portuguesa.

domingo, 14 de agosto de 2011

Urbano Bettencourt - uma escrita fina...

... de ironia inteligente, com humor quanto baste, divertida, que mexe com o leitor.
Um exemplo?
Este, retirado de Que Paisagem Apagarás? (Ponta Delgada: Publiçor, 2010), que, em boa hora, foi apresentado em Setúbal pelo Manuel Medeiros há uns meses. Ei-lo:

Vida Social
Ele frequentava muito a literatura.
Para falar de gastronomia, citava o lascivo e doce passarinho de Camões. Os transportes marítimos não passavam sem dois ou três versos do poeta Alegre. A ecologia vinha, por norma, acompanhada de uns excertos de Sophia. O boletim meteorológico pendia sempre para umas frases de Nemésio. E até os problemas oftalmológicos desembocavam fatalmente em Saramago.
Era o perfeito socialite da literatura.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Dia de Reis

Conta o evangelista Mateus (2: 1-12) que os Reis Magos vieram do Oriente, seguindo uma estrela que lhes indicaria o caminho até à gruta em que estava a Sagrada Família com o Menino recém-nascido. Depois, vieram pormenores que o tempo se foi encarregando de adornar, assim enriquecendo a trama da história.
A tradição baptizou-os como Baltasar, Gaspar e Belchior (ou Melchior), cada qual representante de uma raça, todos representantes de tronos. Idades não se sabem, apesar de já ter havido quem as atribuísse a cada uma das três personagens. Na visita, cada Rei levou o seu presente: ouro, a cargo de Belchior; incenso, pelas mãos de Gaspar; mirra, ofertada por Baltasar. A cada um destes elementos têm sido atribuídas simbologias diversas.
Simpáticos, os Reis Magos têm lugar marcado na toponímia portuguesa, como consta num lugar da freguesia de Barroselas (distrito de Viana do Castelo). O calendário regista também que 6 de Janeiro é o seu dia, supostamente dando ideia do tempo que mediou entre o nascimento de Cristo e a chegada destes visitantes. Na cidade brasileira de Natal, tiveram direito a fixação num monumento. A literatura tradicional da época natalícia não os esquece e Sophia de Melo Breyner Andresen deu-lhes guarida na narrativa “Os três reis do Oriente”, inserida em Contos Exemplares (1962).

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Sobre Sophia e os "Contos Exemplares"

Nos cruzamentos dos cinco livros, a Teresa Lopes escolheu textos de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e, ao dizer que apreciava na sua escrita "a claridade das coisas e das palavras, a medida, o rigor, os valores que podemos passar sem ser moralistas, o simples prazer de ler, apenas por ler", pôs lá muito do que caracteriza a escrita poética ou ensaística de Sophia.
Há um seu livro que sempre me impressionou - Contos Exemplares (1962), com particular atenção sobre as narrativas "A Viagem" e "Homero".
Na primeira, há sabedoria sobre a vida ("Todas as coisas pareciam acesas. (...) É o meio da vida."), sobre o feminino ("Na concha das suas mãos a mulher bebeu e deu de beber ao homem." ou "O perfil da mulher recortava-se entre as flores."), sobre a ecologia ("Ouvia-se o silêncio dos musgos e da terra." ou "Mas só ouviu o silêncio palpitante da terra."), sobre a memória ("Viu que, quando as raízes se rompessem, não se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois era ela própria o que ela agora ia perder.")
Na segunda, há a força que ressalta da personagem Búzio, que era "como um monumento manuelino", e a valorização da palavra e do discurso - o título do conto é, de resto, emblemático - a tal ponto que a personagem narradora recorda, muito tempo volvido e em jeito de memória, o discurso de Búzio ao mar: "Lembro-me de que eram palavras moduladas como um canto, palavras quase visíveis que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que chamavam pelas coisas. Palavras brilhantes como as escamas dum peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os rostos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas." Homérico? Sim, por ser uma homenagem à língua e à literatura.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Abertura

Mais um a dizer. É o direito à palavra, à opinião, ao pensar. Às vezes, pensar alto. Como se pode fazer num blog. Outras vezes, andar no nosso tempo, no meu tempo. Sem passadismos, sem passadices. Só isto: neste tempo, de que não se é dono, mas que se vive. E se pensa e se diz e se lembra. O meu tempo nesta hora será constituído pelas notas que a fazem. Quanto ao porquê da escrita, houve uma palavra construída por Urbano Tavares Rodrigues no título de um dos seus livros que sempre buliu: escreviver (cf. Ensaios de escreviver, 1971). Não carece de explicações. E lembro também um pequeno excerto de uma entrevista de Sophia de Mello Breyner, aparecida no JL (nº 135, 05.Fev.1985, pg. 3), a propósito da escrita: "Houve uma fase em que reflecti muito sobre a natureza da escrita. Agora não me interrogo muito sobre o modo, o quê e o como do que escrevo. Vou navegando. Vou encontrando, vou dizendo o que surge e o que faço. Sem dúvida, a palavra é uma forma de não se ser devorado pelo caos, pela confusão, pela contradição e o tumulto, apesar de ter um pacto com tudo isso e de sem isso não atingir a sua plenitude." Também não carece de explicações, tão límpido é o dizer de Sophia!...