quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Bocage que Herlander Machado teatralizou


“Vem! Agora serei eu a tua única companheira... És meu, Bocage! És meu!” À mistura com suspiros, a Sétima Figura antecede as duas intervenções de Bocage que encerram a peça, constando na última o conhecido soneto “Já Bocage não sou!”. A figura feminina com tão intenso sentido possessivo é a Morte, guardada para ser a última a manifestar-se, depois de se ouvirem outras seis - Razão, Ternura, Descrença, Beleza, Fama e Má Fortuna -, cada uma identificada pela cor que veste (prata, rosa, azul, branco, ouro, vermelho e preto), todas convocadas para os derradeiros momentos de Manuel Maria, na Travessa de André Valente, em Lisboa, quando corria 21 de Dezembro de 1805.

Esta despedida passa-se nas duas últimas cenas (de um total de 29, divididas por três partes) da obra Bocage - O homem que destruía o amor, de Herlander Machado (1927-1992), publicada em 1966. O Diário de Notícias, em 1 de Maio desse ano, referia que, na Festa dos Finalistas da Escola Comercial Ferreira Borges, no dia anterior, ocorrera esta representação, com “assinalável êxito”, explicando que “os alunos pediram a um dos seus professores, o dr. Herlander Alves Machado, que os ajudasse no intento” da Festa - o docente escreveu a peça e os jovens representaram-na. Maior destaque deu o Diário da Manhã, em 20 de Maio, acrescentando ter Herlander Machado “uma obra magnífica de carácter cultural, especialmente no que se refere ao cultivo do gosto pelo teatro, entre os alunos”. Quanto à obra, “de profunda significação polémica e de escorreito desenvolvimento dramático”, assentava na “esquematização biográfica” e na “fidelidade histórica exposta na construção dos diálogos”. Comum na boa apreciação dos dois periódicos foi ver que as falas bocagianas eram palavras do próprio poeta e que o aluno Barradas de Sousa interpretou excelentemente a personagem Bocage.

O início desta obra acontece à noite, entre vultos, com apenas duas falas: a primeira, com a conhecida tríade de questões “quem és, donde vens, para onde vais”; a segunda, com a resposta colada ao poeta - “Eu?... sou o Bocage / E venho do Nicola / E vou para o outro mundo / Se disparas a pistola.” Se esta quadra pode induzir o espectador num conjunto de graças sobre a personagem, a verdade é que todas as restantes intervenções do poeta são construídas com textos seus, desde logo a partir da sua segunda entrada, por meio do soneto “Magro, de olhos azuis, carão moreno”.

O correr da peça acompanha a cronologia do herói, transitando por espaços (o Nicola, a Índia, Lisboa, a prisão, o mosteiro de S. Bento) e lidando com personagens que fizeram a sua vida - Gertrúria e Anália (mulheres por quem se apaixonou), os amigos (José Pedro da Silva, Morgado de Assentis, Pato Moniz e Josino Leiriense), uma rapariga “do povo” (que canta Bocage, a provar a popularidade do vate), os adversários (Curvo Semedo e Caldas Barbosa) e mesmo o inimigo  que se vai tornando presente no discurso, embora apenas aludido, Pina Manique. A personalidade do protagonista é traçada pelo contributo das várias personagens, entre amigos e inimigos - “teimoso”, “opinioso e inflamado”, “o vate mais estimado pelo povo e mais temido pelos eruditos”, “alegre e cómico, mordaz e satírico, irrequieto”, “insatisfeito”, “singular, tantas vezes insensato, mas sempre vibrante e verdadeiro”, “independente”. 

A peça, que fecha com Bocage, “na negritude dominante, iluminado por um cone de luz vermelha”, celebra a personagem, na defesa da sua humanidade e da sua obra, sempre tirando partido da beleza através da cor, da música e da poesia.

*J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 533, 2020-12-23, p. 7.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Ruben A.: liberdade no pensamento e na escrita


 

“Para os que quiserem dados objectivos de catalogação, informo que nasci no dia 26 de Maio de 1920, na Praça do Rio de Janeiro, número 25, 1º andar, em quarto que dá para o jardim chamado do Príncipe Real e que tem por lá a árvore mais extraordinária da cidade de Lisboa. Até essa altura eu era propriedade de minha Mãe.” O aviso consta na abertura do primeiro volume de O mundo à minha procura (1964), de Ruben A., nome literário de Ruben Alfredo Andresen Leitão (1920-1975), obra que teve mais dois volumes (1966 e 1968).

A escrita autobiográfica é uma das partes significativas da bibliografia de Ruben A. - Páginas (seis volumes, entre 1949 e 1970) e Um adeus aos deuses (1963) são os restantes títulos, todos com uma escrita vertiginosa, alheia a escolas, única, ao ritmo dos acontecimentos, que alia a cultura, a alegria, o gosto e as histórias intensas de uma vida, contada desde a infância, num misto de memórias, diário, relato de viagens, ironia, literatura, reflexão, inovação - “Escrevo por uma necessidade vital, biológica, fisiológica, anti-séptica, antibiótica.” (Páginas, VI).

Esta intensidade trouxe-lhe amarguras logo no segundo volume de Páginas (1950): lido por Salazar, Ruben A. foi levado a abandonar o leitorado no King’s College e iniciar uma peregrinação difícil, mas sem que o entusiasmo o abandonasse. A escrita, essa, prosseguiria - “um tipo como eu sem caneta é como missa sem padre” (Páginas, III, 1956).

Ao longo dos dez volumes, surge também o retrato social do seu tempo nos mais variados planos. Apreciador do belo em todas as áreas, defende que “a classe de uma pessoa provém 75 por cento da boa educação, 20 por cento da cultura e os outros cinco por cento distribuídos por vários factores mais ou menos racionais” (Páginas, IV, 1960), apontando referências - “Classe: existir no mundo um museu onde só é permitido tocar Bach e Beethoven” (Páginas, I); também Inês de Castro, “a mulher com mais categoria na nossa pátria de pouca história de mulheres para contar” (O mundo à minha procura, II). Em oposição, cria uma personagem como o Dr. Barbosa e Costa, que passa aqui e ali, “a figura mais notável da minha imagística pessoal” (Páginas, VI), para justificar, talvez, que “raras vezes os títulos, os cargos, ou os canudos mudam a coluna dorsal instalada no esqueleto do indivíduo” (O mundo à minha procura, III).

O ideal estético levou-o à Grécia (com esfuziante relato em Um adeus aos deuses), onde visitou nu o Museu Nacional de Atenas - “disse ao director que para ver bem o museu tinha de me despir (...). Meus Deuses, foi a primeira vez que vi as estátuas contentes”. Assim exprimia o desejo “total, absoluto, de penetrar naquele mundo” das esculturas helénicas, autenticidade também experimentada quando, em Epidauro, teve necessidade de ler Ésquilo em voz alta no teatro, surpreendendo os outros visitantes.

A construção da liberdade passa por vivências como a república coimbrã “Babaouo”, a viagem num táxi londrino de 1933 (o “Lord Snob”) de Inglaterra até Carreço, a distinção acutilante entre o Ruben A. e o Ruben B., a invenção de palavras, um mundo em que cada vez se vê “menos teórico nas coisas da vida”.

Miguel Torga, que lhe foi próximo, classificou a escrita de Ruben A., quando soube do seu falecimento, como “a singularidade de um estilo desabusado, emblematicamente vivido” (Diário, XII), traços que devem determinar a sua leitura e o apreço do leitor de hoje.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 528, 2020-12-16, p. 2.

 

sábado, 12 de dezembro de 2020

“Jóias do Passado em Portugal” - Quatro são na região de Setúbal


 

Na colecção “Edição Especial Viagens”, a National Geographic publicou o título Jóias do Passado em Portugal, obra que reúne 51 propostas de visitas a esse passado em 160 páginas assinadas por um leque de 16 autores.

Organizada em seis partes - “Pré-História”, “Idade dos Metais”, “Mundo Romano”, “Mundo Pós-Romano”, “Antes da Nacionalidade” e “Museus Inesperados” -, esta revista propõe quatro visitas no distrito de Setúbal: Quinta do Anjo (Palmela), Alcácer do Sal, Tróia (Grândola) e Miróbriga (Santiago do Cacém).

Os hipogeus (monumentos funerários do final do Neolítico) de Quinta do Anjo, escavados pela primeira vez em 1876 por António Mendes, são abordados no primeiro capítulo, em texto subscrito por Paulo Rolão - “este conjunto tumular, constituído por quatro hipogeus, é único no território nacional” e as construções “obedecem à arquitectura característica deste tipo de sepultamento, com topo aplanado, uma câmara subcircular dotada de abóbada com clarabóia superior central, antecâmara de planta ovalada e um corredor estreito com sentido descendente para a entrada da câmara”.

Já no segundo capítulo, é apresentado o recém-inaugurado Museu Pedro Nunes, em Alcácer do Sal, espaço que deve o seu nome a “um dos maiores matemáticos de todos os tempos” nascido naquela cidade. Pedro Sobral Carvalho garante que esta valência “é um daqueles espaços onde nos orgulhamos do nosso passado, onde todos nós, mesmo não sendo de Alcácer do Sal, sentimos e percebemos o que somos como povo e como país”.

As ruínas de Tróia integram a terceira parte, sendo consideradas por Inês Vaz Pinto “o maior centro de produção de salgas de peixe do Império Romano” - no que ainda existe, são identificáveis 29 oficinas de salga e cerca de 180 tanques, pensando-se que o enchimento destes tanques levaria 700 toneladas de peixe e 300 toneladas de sal, dados que conferem a este antigo povoado o estatuto de importante “motor económico do baixo vale do Sado” e ponto fulcral no desenvolvimento do Império.

Finalmente, a região de Santiago do Cacém surge pelo espaço das ruínas de Miróbriga, também incluída na terceira parte, referindo Filomena Barata tratar-se de complexo urbano que se estenderia até 9 hectares e que incluía um hipódromo, identificado em 1949, “raridade no contexto da Lusitânia”, com as dimensões de 359 metros de comprimento por 77,5 metros de largura.

Dirigida ao grande público, esta edição de Jóias do Passado em Portugal constitui uma acessível listagem de pontos relevantes da História de sítios que vieram a ser Portugal, com documentação fotográfica que passa também pela reconstituição dos espaços abordados.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Amália Rodrigues: Palavras e memórias


 

“As árvores têm uma raiz na terra, mas as nossas raízes espalham-se pelas terras dos nossos avós. As raízes de Amália Rodrigues são beirãs.” Assim fideliza Rui Pelejão as origens da mais conhecida fadista portuguesa no seu contributo para o livro Amália - A raiz e a voz, organizado por Arnaldo Saraiva, editado pelo Jornal do Fundão (2020). Essa fidelização surge atestada com cópia do registo de baptismo de Amália, cerimónia realizada na Matriz fundanense em 6 de Julho de 1921, quando a criança rondava o final do primeiro ano de vida - envolto em mistério, o dia rigoroso do seu nascimento derivava de um calendário medido pela agricultura, pois que sua avó dizia ter a neta nascido “no tempo das cerejas”, enigma que, na altura dos exames, Amália desvendou ser 23 de Julho de 1920.

Arnaldo Saraiva, na abertura, lembra que, em Amália, “o seu canto fundo transporta e sublima como nenhum outro as dores ou as fugazes alegrias do povo português e de uma mulher do povo português; mas transporta e sublima também as dores e alegrias de existir, os dramas e os amores da humanidade”, razões intensas para a leitura ir ao encontro de um retrato multifacetado.

Fortemente ilustrada, graficamente apelativa, estamos perante uma bela antologia de memórias, em que a ligação afectuosa de Amália às terras do Fundão e a sua identidade com o fado são grandemente lembradas. Contributo importante advém do arquivo do jornal, recorrendo a notícias sobre as suas actuações ou visitas à região ou a textos ali publicados sobre a cantora - de que se destaca um, assinado por David Mourão-Ferreira em 1994, que, a dado momento, poetiza: “Amália. Um ‘heterónimo’ de Portugal, o ‘heterónimo’ feminino de Portugal. Do que em Portugal existe de profundo e de fluente, de fixado e de erradio, de raiz e de flor, de tronco e de brisa. De rio, de escarpa, de céu límpido ou nublado, de montanha e de vale, de lonjura de planície, de abraço do oceano.”

Uma outra componente surge pelas palavras de entrevistas de Amália - à RTP, em conversa conduzida por Arnaldo Saraiva, emitida em 1987, agora passada a escrito, e ao Jornal do Fundão (em 1991 e em 1992), onde há momentos fortes, pela emoção ou pelo saber - em 1987, sobre os seus poemas: “Eu, como sou um bocado cantigareira, tenho a mania, como canto cantigas, tenho um sentido de ritmo, tenho uma medida das frases para os fados, e ponho-me a escrevinhar”; em 1991, sobre o fado: “Tenho a impressão que o fado me tem dado de comer e me tem comido. Sou o prato-forte do fado. Tenho tudo o que ele quer: desencanto, desilusão, falta de ambição, de interesse (...). O fado quer isto e eu tenho.”; em 1992, sobre o seu canto: “A minha maneira de cantar talvez tenha sido influenciada pela Beira Baixa. (...) Acho que a Beira Baixa é a terra onde há melhor música de folclore. É quase ao nível do Alentejo, está um bocadinho mais para cima. Como o Minho é a única região de Portugal onde se canta e se é alegre. O sul é mais tristonho.”

Parte significativa é ainda a de testemunhos sobre Amália, alguns elaborados para este livro, assinados por nomes muito diversos do mundo da crítica, da história ou da música. De Pedro Abrunhosa, um dos depoentes, fica uma frase que vale uma obra: “Amália, de uma assentada, desconfinou Camões da estatuária do Estado Novo e o Fado da letalidade endogâmica da tradição.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 523, 2020-12-09, pg. 9.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Eduardo Lourenço e o conhecimento dos Portugueses


Em 2002, Fernando Pinto do Amaral, ao pensar a exposição “100 Livros Portugueses do Século XX”, integrou na lista O Labirinto da Saudade - Psicanálise mítica do destino português, de Eduardo Lourenço (1923-2020), de 1978, conjunto de ensaios forte no convite à reflexão sobre nós, portugueses, sobre a nossa identidade, ainda hoje obra fundamental.

A ordem por que estão ordenados os nove ensaios, escritos entre 1968 e 1978, não obedece à cronologia: o primeiro texto do livro é o de produção mais recente (“Primavera de 78”) e o último é o mais antigo (Abril de 1968), ambos relacionados com a psicanálise de Portugal, chave do conhecimento que pode ser um “abre-te Sésamo” para a entrada no mundo lourenciano.

“Repensar Portugal” (1978), o segundo ensaio, contém um desafio e uma verificação – “o português médio conhece mal a sua terra - inclusive aquela que habita e tem por sua em sentido próprio - é um facto que releva de um mais genérico comportamento nacional, o de ‘viver’mais a sua existência do que ‘compreendê-la’”. “Repensar” aparece como redefinição necessária para a autognose portuguesa, sobretudo depois do abalo da mudança de regime, de espaços e de práticas devido ao 25 de Abril. A imagem conseguida dos portugueses fora mais cáustica em “Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos” (1976), apontando a ostentação crescente, no domínio individual ou público.

O mito do “português-emigrante”, que o 10 de Junho explorou, surge em “A Emigração como Mito e os Mitos da Emigração” (1977), construção de uma outra imagem do português associada a Camões, nome que ocorre ainda em “A Imagem Teofiliana de Camões” e “Camões no Presente”, ambos de 1972. Durante o século XIX, Camões foi pretexto para a imagem de Portugal dentro e fora do país, haja em vista a utilização que dele foi feita pelos românticos, vincando-se a questão das imagens do poeta que conferiu a Portugal existência épica, com uma epopeia sobre assunto histórico, a única que da literatura portuguesa passou para o cânone universal, mas acautelando-se Eduardo Lourenço quanto às imagens criadas em torno de Camões.

O domínio da literatura evidencia-se em “Sérgio como Mito Cultural” e “Da Literatura como Interpretação de Portugal”. No primeiro, de 1969, questiona-se o ensaísmo de Sérgio, oscilando entre o seu espírito de polemista e uma “retórica da dúvida” que o caracterizará. De 1975 é o segundo, cujo título expõe o laboratório lourenciano, adepto de uma visão da literatura como forma de descoberta da identidade, num percurso desde Garrett.

Quanto aos dois restantes ensaios, separados entre eles por uma década, em “Psicanálise de Portugal”, de 1968, a propósito da obra Diálogo em Setembro, de Fernando Namora, ressalta a relação dos portugueses com o estrangeiro, mostrando uma tentativa de definição de Portugal obtida por espelho, em que pesam as abundâncias dos outros, isto é, do estrangeiro. A necessidade da viagem surge para o confronto com o que somos, sendo “o encontro com os outros o verdadeiro encontro connosco”. O primeiro texto do livro, de 1978, “Psicanálise Mítica do Destino Português”, constitui viagem pela imagem dos Portugueses, que só foi questionada no seu interior quando já corria o século XIX, manteve um percurso que até 1978 teve curta imaginação e foi marcada pelos traumas advenientes de momentos históricos. Quando o texto termina, deixa uma questão: “Para quando a nova viagem para esse outro desconhecido que somos nós mesmos e Portugal connosco?”, forma que poderia ser de concluir este livro se a ordem fosse diferente da que lhe ordena o índice... Foi essa viagem que Eduardo Lourenço fez e nos ensinou a fazer!

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 519, 2020-12-02, pg. 9.


terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Memória: Eduardo Lourenço (1923-2020)



De Eduardo Lourenço guardarei o saber do pensar pausado, questionador, burilador de caminhos novos. A inquietação perante aquilo que parece seguro. O muito que aprendi seguindo os seus textos, não esquecendo o deslumbramento com que li O Labirinto da Saudade. A simpatia com que me atendeu um dia. O despojamento e a modéstia com que falava, interrogava, partilhando momentos do pensar perante públicos que o ouviam, curiosos e atentos. Obrigado, Professor Eduardo Lourenço!