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quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Meneses Ferreira: "À luz do lampadário"



Em 4 de Agosto de 1918, o capitão Humberto de Ataíde suicidava-se em Moçambique para evitar a humilhação de ter de entregar ao inimigo o posto que comandava. O gesto valeu-lhe o reconhecimento e o louvor, chegando Meneses Ferreira a dedicar-lhe o livro À luz do lampadário (Lisboa: Ed. Autor, 1927) nos seguintes termos: “À sagrada memória do Capitão Humberto de Athayde, ferido cinco vezes em combate e que, na Grande Guerra em Moçambique, pelo orgulho da sua farda, se suicidou em frente das tropas inglesas”.
O livro é composto por dezoito quadras (que usam o decassílabo e a rima alternada) e ilustrações do próprio autor, mas é antecedido por uma nota em prosa contra as intromissões estrangeiras na administração das colónias, como era, na altura, o caso do porto da Beira. Já em 30 de Abril de 1925, em crónica publicada no Diário de Lisboa sob o título “Carta a um colonial do Chiado sobre a influência inglesa na cidade da Beira”, Norberto Lopes se queixava  do ambiente inglês que dominava a cidade, chegando mesmo ao ponto de dizer que os caixeiros se dirigiam aos clientes das lojas em inglês antes de usarem a língua portuguesa, que o jornal ali existente era em inglês, que ele próprio se sentia “estrangeiro em território nacional”, para concluir de forma quase apocalíptica: “Se o dinheiro inglês fomenta e desenvolve este pedaço da nossa África Oriental, nem por isso ele deixa de constituir amanhã um perigo para a soberania portuguesa.” Revoltado com um certo estado de subserviência relativamente ao estrangeiro, o poeta de À luz do lampadário refugia-se na Batalha para ouvir a voz “d’Aquele que, pela integridade dos territórios de Além-Mar, caiu para sempre, mordendo a terra conquistada pelos nossos Maiores”.
Logo na primeira quadra, o poeta ilustra o cenário em que lhe foi dado ouvir a mensagem, um ambiente de silêncio e de luz, ingredientes necessários para a meditação e para que a voz do Soldado Desconhecido se tornasse audível, ou, por outras palavras, para que a memória aflorasse – “À doce claridade que se espalha / nas naves do Mosteiro adormecido, / à luz do lampadário da Batalha / Assim falou o Herói Desconhecido”. A segunda quadra, sendo o início do discurso do Herói, é uma acusação (contra a interferência estrangeira) e uma justificação para o que se vai seguir (uma chamada de atenção): “Voltam de novo à terra apetecida / as aves de rapina em hora incerta… / Acorda, sentinela adormecida! / Soldado português, alerta! Alerta!”
A mensagem envereda depois pela lembrança de vários heróis portugueses, todos considerados exemplares – o Fundador, o Príncipe Perfeito, o Infante Santo, descobridores, Salvador Correia, Mousinho, coronel Galhardo e João Coutinho (“heróis de Marraquene”, em finais do séc. XIX), Martins de Lima, capitão Roçadas, Leopoldo da Silva e os mortos de Nevala e, finalmente, Humberto de Ataíde, trazido para o poema como último herói, mas com uma acção diversa da que cometeu – “Humberto de Ataíde, o teu exemplo / Não deve ser seguido desta vez…”. O nome é invocado pelo que simboliza de patriótico, mas é usado para apelar à energia do soldado português – “Vamos! Sacode os vendilhões do Templo! / Levanta-te, soldado português!...” O que vai sendo valorizado em todos estes nomes, individuais ou símbolos do colectivo, são traços como a humildade, o valor, o sangue vertido, o tormento, a coragem, chegando esta voz a manifestar-se contra a perda da memória (“Recorda a pouco e pouco a minha história, / vencendo o esquecimento em que mergulho”) e a chamar a atenção para os padrões e monumentos, provas absolutas desse heroísmo necessário.
A intenção apelativa e imperativa sobre o soldado português aparece várias vezes ao longo do poema com o objectivo de impelir este destinatário para a acção, que, surge claramente expressa nas duas últimas quadras: “Erguei-vos todos já para acusar / aqueles que, por ódio e por traição, / queiram vender, trocar, alienar / o santo património da Nação!... // Contra o Porto da Beira apetecida / a trama vil, enfim, foi descoberta! / Acorda, sentinela adormecida! / Soldado português, alerta! Alerta!”
O texto é, sem dúvida, de teor panfletário, jogando com símbolos fortes para os combatentes – o poder do desafio feito pela memória, o sofrimento do soldado desconhecido e heróico, as referências de personalidades históricas que se destacaram na vida militar. Uma década depois do termo da Grande Guerra, este texto era um toque a reunir para a defesa do património histórico e do território e para a reafirmação da soberania, vindo de um autor, João Guilherme de Meneses Ferreira (1889-1936), que, sendo também ele militar (embarcou para Angola em Setembro de 1914, comandado pelo general Roçadas, e esteve em França, integrando o CEP), pautou a sua obra pelo anti-belicismo e por um sentir humanitário como bem o provam os títulos João Ninguém – Soldado da Grande Guerra (1921), texto de onde não está arredio o humor aplicado à participação portuguesa, e O Fuzilado (1923), novela em torno de um combatente louvado que um dia resolve deixar de combater. Com tal sentir humanitário, o refúgio do poeta só podia ser junto de um dos símbolos intensos para os combatentes portugueses da Grande Guerra: na Batalha, onde, seis anos antes, em 10 de Abril de 1921, se inaugurara o túmulo do Soldado Desconhecido, para ali tendo sido transladados os corpos de dois soldados, um falecido em África (Moçambique) e outro em França, escolha espacial que acaba por dominar a mensagem…

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Menezes Ferreira, "O fuzilado" (1923)



O fuzilado, de Menezes Ferreira (1889-1936), é novela curta, ao jeito do ritmo de publicação da série em que se integrava – semanal –, tomando para ambiente a Grande Guerra, que outro não podia ser o contexto, cinco anos depois do seu termo, para o narrador – “eu sou um caturra da Grande Guerra e pesa-me deixar passar esta data do 9 de Abril sem lhes contar a lamentável história do meu amigo Harry Budd.” Para um combatente do Corpo Expedicionário Português (CEP), o 9 de Abril era data memorável e este volume da colecção, que saía às quintas, viu o público a 12 de Abril.
O narrador de O fuzilado (Col. “Novela Sucesso”. Lisboa: 1923) explica o efeito da presença na linha da frente sobre a memória, o que serve também de pretexto para justificar o tema: “Os que viveram aqueles torturados momentos da Guerra no tempo do Gross Bertha, dos gases asfixiantes e dos bombardeamentos feéricos do front, mal podem ainda alinhavar meia dúzia de ideias concretas ou quadros definitivos sobre a formidável tragédia” – forma de dizer que as memórias estão ainda muito vivas e não permitem uma distância analítica suficiente relativamente ao vivido, maneira de justificar uma história com laivos de humanidade e de valores, nela preponderando a afirmação da vontade do homem e até uma atitude contrária à guerra.
O tom é crítico quanto ao vivido na frente, um conjunto de “sucessos grandiosos, trágicos, brutais ou miseráveis que, uma vez abertos os diques da ferocidade humana, foram vividos em todos os campos de batalha, tanto de cá como de lá do arame farpado e até muitas vezes ali mesmo na Terra de Ninguém.”
Assim contextualizado o estatuto da memória, o narrador, dialogando com o leitor e aproximando os espaços e o tempo, convida: “os senhores não se importarão decerto a ir comigo ali à Flandres, no norte da França, onde uma mancha cinzenta que é a soldadesca portuguesa se agita, combate e sofre pela maior glória de Portugal”.
Antes de ser contada a história do herói Budd, há ainda lugar para contestar o retrato desfavorável que em Portugal estava feito sobre o CEP, sobretudo porque não eram consideradas as circunstâncias em que os contingentes desembarcaram em França – bem diferentes das que marcavam as tropas britânicas, por exemplo – com ausência de motivação e com medo e ignorância quanto ao saber com actuar perante o desconhecido – “uma vergonha”, conclui o narrador, para testemunhar de seguida que foram necessários três meses para haver mudanças. Se o tom utilizado serve para responder ao que fora a negativa opinião que tinha sido construída sobre o CEP pelos seus detractores – “eu bem sei que os senhores costumam sorrir-se incrédulos quando se fala nos dias afadigados e nos transes perigosos a que frequentemente se sujeitava essa mísera população das trincheiras” –, também não estará ausente uma crítica às parcas condições proporcionadas aos convocados portugueses.
A história do tenente Harry Budd ocupa metade do volume e conta-se rapidamente. Homem habituado aos combates, Budd fora nomeado intérprete das forças portuguesas em Laventie, uma vez que falava castelhano, pois tinha andado pela América do Sul. Apesar de habituado às guerras (participara em vários conflitos), Budd não escapou à chamada neurastenia das trincheiras e, num belo dia, por sua conta e risco, despediu-se dos amigos portugueses, dizendo “já estar chateado de guerras”. O que podia ser apenas uma atitude precipitada teve consequências, pois Budd decidira mesmo a sua retirada e, em presença dos superiores, recusou-se a cumprir uma missão arriscada – ele, que já cumprira tantas! –, tendo declarado por escrito a sua resolução de “não estar disposto a guerrear mais”.
Combatente galardoado por serviços prestados, a sua decisão foi responsável pelo seu infortúnio: “Na madrugada seguinte, quando no horizonte o sol rompia numa enorme sangueira por entre nuvens roxas de tragédia, o tenente Harry Budd, cinco citações, três ferimentos em combates, duas promoções e a Victoria Cross, caía ingloriamente junto aos muros arruinados de uma ferme, varado por uma dúzia de balas de um pelotão de execução.”
A história de Budd, que Menezes Ferreira apresenta, dá a dimensão da tragédia individual do combatente, que, estando no campo de operações, se revolta contestando a guerra e a carnificina. É com uma reflexão desse tipo que a narrativa se conclui: “Assim, o meu infeliz amigo, num supremo arranco de revolta, e com o sacrifício da própria vida, impusera pela primeira vez a sua vontade de homem e dispusera a seu talante da sua carne desprezível de soldado. Os outros que o julguem se puderem.”
Moralizador? O último fuzilamento português de que há notícia ocorreu justamente durante a Primeira Grande Guerra, em Setembro de 1917, quando um soldado condutor foi acusado de tentativa de passagem para o inimigo e o julgamento militar foi no sentido da execução. A história que Menezes Ferreira narra não resulta de traição, antes de uma decisão individual de pôr cobro à guerra e à matança. Mas, num conflito como este, não havia lugar para decisões individuais nem para objecções de consciência nem para recuos. Segundo a lógica bélica, Budd teria de continuar a matar; recusar isso podia ser uma libertação, mas também era matar-se a si próprio.