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domingo, 11 de novembro de 2018

Valle-Inclán: As ruínas das coisas e das vidas que a guerra alimentou



“Era meu propósito condensar num livro os vários e diversos lances de um dia de guerra em França.” Assim começa Ramón del Valle-Inclán o seu livro A Meia-Noite - Visão Estelar de um Momento de Guerra recentemente editado em versão portuguesa (Porto Editora / Assírio & Alvim, 2018). Era, pois, intenção do autor relatar a guerra, a partir de diversas latitudes e a um tempo, de forma a haver uma visão de conjunto. Coisa impossível, como se imagina - e como o próprio autor admitiu no mesmo texto prefacial, ao dizer que “todos os relatos estão limitados pela posição geométrica do narrador.”
Valle-Inclán (1866-1936), galego, pertencente a um país que manteve a sua neutralidade aquando da Primeira Grande Guerra, cedo assumiu uma posição a favor dos Aliados, ao subscrever, em 1915, o “Manifiesto de los Intelectuales Españoles”. No ano seguinte, em Abril, por indicação do seu amigo Jacques Chaumié, tradutor, visitaria França, andando, pelos finais de Maio e início de Junho, pela “Frente”, na zona das trincheiras. Passados uns meses, entre Outubro de 1916 e Fevereiro de 1917, o periódico madrileno El Imparcial publicaria as crónicas resultantes dessa viagem, que Valle-Inclán reuniria em livro ainda em 1917, apresentando visões de uma guerra que só viria a acabar em Novembro de 1918.
Ainda na nota introdutória, Valle-Inclán refere já indicações do que viria a ser o sofrimento por causa da guerra, antecipando um quadro que foi real e dramático: “Quando os soldados de França voltarem às suas aldeias, e os cegos caminharem pelas veredas com os seus cães, e os que não têm pernas pedirem esmola à porta das igrejas, e os mancos correrem de um lado para o outro com alegre ofício de recebedores do dízimo; quando no fundo dos lares se nomearem os mortos e se rezar por eles, cada boca terá um relato distinto, e serão centenas de milhares os relatos, expressão de outras tantas visões, que acabarão por resumir-se numa visão, cômputo de todas. Desaparecerá então o pobre olhar do soldado, para criar a visão colectiva.” De facto, todas as marcas que ficaram da guerra, físicas ou psicológicas, assemelharam-se a um estado de ruína humana, povoado pela dor, pelo sofrimento, pelo desgaste e pela descrença. Depois de um século cheio de guerras como foi a época oitocentista, o menos desejado era o ciclo da guerra - mas foi exactamente o que aconteceu.
Nas trincheiras visitadas por Valle-Inclán, fedia “a morto como na jaula das hienas”, não se calando “o estrondo do canhão rolante pelo seu céu”. O desprezo pelo humano era intenso - “os ratos correm vivazes pelos taludes, as ratazanas aguadeiras pelo fundo lamacento, e rajadas de vento trazem frias pestilências de cadáver”. O repórter vai passando e o que vê são marcas dessa ruína que dos edifícios passa para os humanos e para as relações pessoais - se, de um e de outro lado, “as casas mostram os seus esqueletos vermelhos e fumegantes”, noutro ponto, são “cadáveres de alguns soldados alemães” que “flutuam nas águas” apresentando um aspecto de horror, “inflados e tumefactos”, uns sem cabeça, outros com marcas de flagelo nos corpos.
Os cenários descritos são infernais - aldeias a arder, personagens trágicas, bombas que cavam a terra. E, enquanto a tempestade de ferro atroa os ares na sua função destruidora, “os mortos ficam para trás, esmagados sobre a terra, seminus, com as roupas desfeitas pelas explosões” e os feridos “arrastam-se pelas esgaivas, procuram onde esconder-se, e, encontrando um local seguro, levantam os seus clamores pedindo socorro”. Para onde o olhar se dirija, “a névoa está cheia de vozes perdidas, empenhadas de dor”.
Foi Aquilino Ribeiro que, em Alemanha Ensanguentada (1935), registou sobre os bombardeamentos da cidade de Arras que “nesta linha se escreveu uma epopeia de sangue e de bravura que escurece a Ilíada”. Nessa viagem aos campos de batalha que Aquilino fez em 1928, embora assistindo-se já à reconstrução ensaiada pelos franceses, vai havendo sempre margem para registar as “árvores decapitadas”, a paisagem que “trasborda de melancolia” ou o chão em que “os mortos escutam”. Dez anos eram passados sobre o final da Grande Guerra e as marcas da dor e do sofrimento permaneciam, mesmo que sob as luzes da reconstrução. A mesma cidade de Arras foi apresentada, depois de destruída, por Valle-Inclán como “o espectro de uma cidade bombardeada”.
Na sua missão de observador, o cronista vai também contando histórias ouvidas, dramáticas de dor, pungentes no sofrimento que transmitem, como a da rapariga francesa grávida que se volta para o médico e clama: “Doutor, eu não quero ter um filho dos bárbaros!... Não quero carregar com este! Se não me liberta desta cadeia, mato-me!”
Valle-Inclán participou também numa viagem aérea de observação e sentiu como os soldados a tensão do assalto às trincheiras, ora classificado com qualitativos como “magnífico” e “pujante”, ora anulado o heroísmo perante um “cego impulso de vida sobre o fundo de dor e de morte”.
As crónicas são curtas (pouco mais de uma centena de páginas para quarenta capítulos), não ultrapassando o absolutamente necessário quanto a narração ou a descrição, mexendo sobretudo com a forma de sentir. O parágrafo final apresenta uma ideia premonitória do que será o final da guerra, trazida pelo nascer do dia que permite ver o que aconteceu durante a noite: “Nos átrios das velhas cidades estalam as granadas, caem as pedras das catedrais, os pórticos corados de santos tremem nos seus cimentos, rompem-se as rosáceas, e as andorinhas voam assustadas pelas naves desertas. À luz do dia que começa, a terra mutilada pela guerra tem uma expressão dolorosa, reconcentrada e terrível.”
Os textos deste A Meia-Noite - Visão Estelar de um Momento de Guerra encontram unidade no cenário catastrófico que se vai tornando visível, espécie de caos, num mundo povoado de destruição, construído de ruínas. As personagens que entram nas histórias são fugazes, ajudando a compor o sentido da dor, quase tendo necessidade de desaparecerem, não vá a ruína tomar conta delas...
Não sendo esta uma obra dominada pelo cunho autobiográfico de um combatente - que Valle-Inclán não foi -, é preenchida pelo traço autobiográfico do testemunho, questionando a guerra e todos os seus efeitos, confrontando o heroísmo humano com a morte, afinal o que mais hipóteses tem de acontecer numa situação de guerra. Rapidez, leveza e emoção, associadas a uma quase prosa poética, em que o ser humano se confronta com o inimaginável, são aspectos fortes deste livro, que ajuda o leitor a conhecer o cenário que os combatentes usaram, já que são eles, colectivamente, que agem em todas as histórias e que, pensando na vitória, semeiam a tempestade bélica.
Esta obra de Valle-Inclán é uma proposta de leitura para este tempo em que passa o centenário do armistício, uma proposta de leitura para que o mundo seja construtor de paz e não espaço de guerra.

domingo, 7 de dezembro de 2014

O Natal de 1914 e a confraternização dos dois lados da "terra de ninguém"


Recordação de um Natal... em 1914, na fúria das trincheiras. Ou de como o homem pode construir a paz! Na "Revista" do Expresso de ontem (nº 2197, pg. 114), a memória assinada por Luís Pedro Nunes sobre o Natal em que soldados dos dois lados da trincheira confraternizaram, umas tréguas decididas por eles mesmos, sem a concordância ou a autorização das chefias. Já era sabido, como o autor lembra, que "a humanização do inimigo é o pior que um general pode desejar às suas tropas"...


domingo, 17 de novembro de 2013

Como Terry Deary conta a Primeira Grande Guerra aos jovens...



Adjectivar a Primeira Guerra Mundial com o qualificativo “terrível” será talvez pouco. Mas, ao tê-lo feito dessa maneira, quando escreveu A terrível Primeira Guerra (Mundial), em 1998 (com tradução portuguesa em 2001, nas Publicações Europa-América), Terry Deary (n. 1946) terá pretendido justificar a entrada do tema e do título na série “História Horrível”, de que é autor, anunciada como “a História que não esconde as piores partes”. A colecção visa um público de jovens leitores e é recheada com ilustrações, que, no caso deste título, são devidas a Martin Brown (n. 1959).
O excerto que Deary escolhe para iniciar a obra é o testemunho de um soldado que esteve nas trincheiras, ali mesmo junto da designada “terra de ninguém”: “Corpos e pedaços de corpos, e coágulos de sangue, e um lodo verde metálico viscoso formado pelos gases explosivos flutuavam à superfície da água. Os nossos homens viviam e morriam ali, a poucos metros do inimigo. Agachavam-se por debaixo dos sacos de areia e escavavam abrigos nas paredes das trincheiras. Estavam infestados de piolhos. Se cavassem mais fundo para se protegerem melhor, as suas pás encontravam os corpos macios daqueles que tinham sido os seus amigos. Pedaços de carne, pernas com botas, mãos enegrecidas, cabeças sem olhos, caíam sobre eles quando o inimigo disparava contra a sua posição.” Ainda que não sendo revelada a identidade do autor desta descrição, ela não surpreende, pois traça um quadro que vários outros combatentes descreveram, designadamente alguns portugueses.
A abordagem da Primeira Grande Guerra nesta obra surge em capítulos alinhados ao ritmo dos anos em que ela decorreu, com títulos que são, eles próprios, uma leitura dos acontecimentos: “1914 – O ano do primeiro tiro”, “1915 – O ano da guerra total”, “1916 – O ano do Somme”, “1917 – O ano da lama”, “1918 – O ano da exaustão”. Cada uma das partes inicia-se com breve cronologia e o restante capítulo é ocupado com o relato de curiosidades e de pormenores sobre o conflito, sobretudo abordando as formas de viver, não só dos combatentes, mas também dos familiares e das populações, numa quase entrada pelo quotidiano de uns e de outros.
Ao longo da obra, o jovem leitor vai tomando contacto com a situação política europeia da época e com a divisão dos Estados participantes na guerra, com a vida militar, com os marcos dessa fase histórica e com muitas curiosidades sobre que se foi construindo o quotidiano. Mas o que predomina no livro, eivado de humor, é o que aflige o homem que combate na Frente (o soldado comum e não as chefias), independentemente do lado por que lute – são os medos, os hábitos, as crenças, os truques para a sobrevivência, com evidência para a necessidade de aprender a viver uma outra vida, assente em condições precárias, de improvisação e de perigo, frequentemente acompanhado pelas ratazanas e pelos piolhos. Simultaneamente, vão aparecendo referências quanto às formas de vida das famílias, quanto ao papel da mulher nesta guerra e quanto à maneira como a sociedade se foi fazendo sobre ausências ao longo de uma guerra que, em vez de ter sido resolvida em três meses (como era esperado no início), se prolongou por quatro difíceis anos.
Alguns testemunhos vão sendo invocados para este rol de informações e de pequenas histórias, intervalando com apontamentos sobre factos ou pormenores das vivências. Mas o mais importante testemunho é uma aprendizagem ou um alerta que surge no epílogo e relembra a história de um jovem soldado alemão que teve a sorte de não ter morrido quando um obus atingiu a trincheira onde ele e os seus camaradas se encontravam, aquando da batalha do Somme. Sobrevivente que foi, com muitos a caírem mortos ao seu lado, esse soldado ficou com leves arranhões na face e viria a marcar – e de que maneira! – a rota do século XX: era Adolfo Hitler. E, quase a concluir, refere Deary: “Houve muitas tragédias na Primeira Guerra Mundial. Quase todas as famílias em Inglaterra, em França, na Alemanha e na Rússia perderam alguém. Em qualquer cidade ou aldeia poderás ver os nomes dos mortos em monumentos de pedra. Muitos dos homens que se alistaram morreram juntos e deixaram as suas cidades natais desoladas. Mas a verdadeira tragédia não foi essa. A coisa mais cruel de todas foi que a Primeira Guerra Mundial não resolveu quaisquer problemas e não trouxe a paz. Conduziu à Segunda Guerra Mundial e a muito, muito mais miséria, morte e destruição.” Na origem deste segundo conflito do século XX esteve o tal soldado que escapou quase ileso da trincheira do Somme…
Esta conclusão do autor é o pretexto para a recomendação pedagógica com que o livro encerra: “A história pode ser horrível. Mas cada um de nós deve descobrir o monumento aos mortos da guerra mais próximo de onde vive, ir lá e ler os nomes. Depois deve dizer ‘Nunca mais’. Se toda a gente disser isso, com sinceridade, então as mortes não terão sido em vão.” Dois apelos, pois: o de respeitar a memória e a obrigação que todos temos de evitar que a paz seja apenas uma utopia.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

"Portugal nas Trincheiras", uma exposição a ver (em nome da memória)


“Portugal nas Trincheiras” é o título de exposição patente nos Museus da Politécnica (Lisboa) até 23 de Abril, organizada pelo Museu da Presidência da República. Subintitulada como “a I Guerra da República”, a participação portuguesa no conflito mundial de 1914-1918 bem merece uma visita, seja por razões de contacto com a história e com a memória, seja por uma questão de identidade.
Esta exposição devia estender-se a outros sítios de Portugal. Na verdade, ela poderia dar vida e ajudar a justificar os monumentos que os nossos antepassados ergueram pelo país em memória dos homens que partiram rumo a África e à Flandres, num reavivar da História, uma vez que os quase cem anos que nos separam desse conflito, a passagem por outras histórias e alguma traição da memória nos têm levado a esquecer o que foi a saga portuguesa na Primeira Grande Guerra.
Nesta exposição “Portugal nas Trincheiras”, os núcleos temáticos são diversos – desde a contextualização dos acontecimentos até à forma como Portugal entrou na guerra, com chamadas de atenção para o quotidiano das trincheiras e para a batalha de La Lys, obviamente, mas também passando pelos Serviços de Saúde, pelo papel das mulheres, pelo estatuto dos capelães (com destaque para o caso de D. José do Patrocínio Dias, o chamado “bispo-soldado”), pelas ligações estabelecidas entre os portugueses e os naturais da região em que o CEP interveio, pelas dificuldades encontradas pelos portugueses para regressarem a Portugal, pelos políticos lusos envolvidos nas decisões da guerra, pela memória.
O visitante vê fotos (testemunho trazido pela objectiva de Arnaldo Garcez, sobretudo), desenhos (devidos a Sousa Lopes e a Carlos Carneiro, por exemplo), objectos, armas, utensílios, manuscritos, alguns livros... e sente o que foi o esforço da nossa participação.
Creio que teria valido a pena mostrar mais exemplares de escrita memorialística da nossa entrada na Grande Guerra (reduzir esses escritos a Jaime Cortesão, Pina de Morais, André Brun e Augusto Casimiro é pouco, apesar de serem os mais conhecidos e, talvez, os mais importantes). Creio ainda que teria valido a pena a edição de um catálogo a propósito (a exposição é apenas acompanhada por um jornal de quatro páginas que contém os textos introdutórios de cada secção, algumas fotografias e a ficha técnica e o visitante pode ainda adquirir a segunda edição do nº 4 da revista Visão – História, originalmente saída em Fevereiro de 2009, dedicada ao tema “I Guerra Mundial – Portugal nas Trincheiras”).
Ver a nossa passagem pelas trincheiras da Flandres é útil, em nome da História. Mas, sob o signo “A I Guerra da República”, também poderia ter cabido a nossa acção em África aquando da I Grande Guerra. E esse lado da nossa participação não ressalta na exposição.
Apetece destacar o penúltimo parágrafo do jornal da exposição: “Longe das apropriações ideológicas de outros tempos e de preconceitos em assumir o passado, importa reavivar um acontecimento e uma época que fazem parte da nossa memória colectiva. Assim o fazem as outras nações das quais Portugal foi aliado, com as comemorações anuais da Grande Guerra.” Este pode ser um apelo para a lembrança, porque esta fase da nossa História tem sido esquecida, ainda que, de vez em quando, ela seja lembrada (honra seja feita à literatura portuguesa, que, já no século XXI, produziu alguns bons romances históricos, com histórias contextualizadas na nossa participação na Grande Guerra!).
Felizmente, algumas acções se vão vendo por estes tempos! A realização desta exposição pode ser um sinal, claro. Mas, aqui bem perto, a Sesimbra, a memória chegou também: o dia 9 de Abril possibilitou uma conferência sobre o tema, devida a Abílio Lousada, e uma “evocação dos soldados participantes na I Grande Guerra” junto ao monumento ali construído recentemente.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Rostos (135) - No Dia do Armistício

Monumento aos Mortos na Grande Guerra, em Estremoz (1941)
Às 11 horas do dia 11 do 11º mês de 1918, punha-se fim ao flagelo iniciado no Verão de 1914. Aquilo que inicialmente se pensava que não chegaria ao Natal de 1914 estendeu-se, afinal, por quatro natais, quase chegando ao quinto!... A guerra no seu esplendor, na sua barbaridade! Saldo: 8 milhões de mortos e 22 milhões de feridos, destruição e o lançamento das raízes que viriam a gerar uma nova guerra dali a duas décadas. Na trincheira, lembrada no monumento estremocense, era o convívio dos homens com a sobrevivência, a vida, a morte, a lama, os ratos, os piolhos, a coragem e o medo. Sobre esse mítico número 11, passam agora 91 anos.

domingo, 31 de agosto de 2008

Max Arthur e as vozes da Primeira Grande Guerra

Em Agosto de 2004, Max Arthur começou a redigir o livro Last Post, título explicado pelo acrescento “The final Word from our First World War soldiers”. Publicado em 2005, foi agora traduzido para português sob o título Palavra de Veterano – Os sobreviventes da Guerra de 1914-18 (Col. “Para que conste”. Colares: Pedra da Lua, 2008).
O que Max Arthur fez foi entrevistar os 21 sobreviventes ingleses da Primeira Grande Guerra que ainda havia nessa altura, homens nascidos entre 1896 e 1900, já todos centenários. Nem todos chegaram a ver o livro com o seu depoimento por terem falecido entretanto, mas foram vários os que ainda puderam ver a obra de Max Arthur. Refira-se ainda que dois desses veteranos ingleses estão ainda vivos – Bill Stone, nascido em 1900, e Henry Allingham, nascido em 1896, com 112 anos feitos em Junho passado, considerado o europeu mais idoso.
No livro, não é dito como foram conduzidas as conversas, mas o leitor consegue perceber que o que estes sobreviventes fizeram foi contar a sua vida, aí incluindo a sua lembrança sobre a Primeira Grande Guerra.
As sensações que perduraram nas suas memórias são idênticas àquelas que, na altura, mais foram vincadas entre os combatentes: a dureza das trincheiras, a convivência com a morte, o sofrimento nas batalhas, a coragem necessária para ver morrer e também para matar.
Mais do que um conjunto de testemunhos sobre o vivido, este é um livro de memórias sobre acontecimentos distantes no tempo – afinal, em 2004, tinham já passado 90 anos sobre o início da Grande Guerra e 86 sobre o seu fim. Mas, pela expressão destes homens (alguns tiveram que mentir quanto à idade para se alistarem e poderem participar) passa a condenação da guerra, a consciência de que se tratou de um tempo e de uma luta sem sentido (que eles fizeram). Alguns referiram mesmo a sua surpresa perante esta lembrança pois nunca o tinham querido fazer. Eles, que tiveram que lutar pela sua sobrevivência, ultrapassaram o século com o pesar de o seu sacrifício não ter servido para nada, nem sequer para acabar com as guerras… Pelo meio, há a evocação dos companheiros e algum humor quanto às condições de vida, como quando John Oborne (n. 1900) refere o caso dos piolhos que coabitavam nas trincheiras – “Eu não tinha piolhos. Os piolhos é que me tinham a mim. As costuras das calças eram o seu ninho – tínhamos de passar as costuras pela chama de uma vela. Lembro-me sempre, havia um tipo, quando estávamos a catar piolhos, que dizia: ‘Ah, pá, vou voltar a pôr-te na roupa e apanho-te amanhã, quando fores maior.’”
A referência à participação portuguesa é escassa – apenas Harold Lawton (n. 1899) refere de relance o Abril de 1918 e o martírio infligido aos portugueses para dizer que por isso teve que ir ocupar uma trincheira com alguns camaradas. A outra referência a Portugal é mais tardia e relaciona-se com a experiência na marinha mercante de Nicholas Swarbrick (n. 1898) – “Estive na Marinha Mercante nos anos vinte – a época perfeita para se estar no mar. Conheço muito bem Portugal e tínhamos quatro dias de três em três semanas e um dia ou dois em Lisboa e um dia na Madeira.”
Alguns destes sobreviventes preocuparam-se também com uma mensagem educativa, como foi o caso do já referido Oborne: “O que é que diria agora a um jovem de dezoito anos? Suponho que lhe diria: ‘No emprego, faz um bom trabalho e tem mais maneiras com as pessoas – sê mais educado.’ Uma data de jovens não têm maneiras hoje em dia. Acho que nunca serão chamados para uma guerra, mas, se o fossem, não tinham energias. Não iam conseguir aguentar o que nós passámos na Primeira Guerra Mundial. A juventude de hoje não aguentava.”

Frases vivas
Alfred Anderson (n. 1896): “Não quis reviver essas memórias. Acabou-se, já passou. Se tivesse ficado agarrado ao que aconteceu naqueles tempos terríveis, nunca teria vivido para chegar à idade que tenho hoje. Tento pôr tudo isso para trás das costas. Não tenho vontade nenhuma de reviver essas memórias. Mas o que vi e aquilo por que passei ainda me afecta, mesmo hoje. (…) Olhando para trás, pergunto-me: ‘O que é que ganhámos?’ Perdemos de certeza muito e, no entanto, voltámos à estaca zero. Acho que o homem combaterá sempre. A guerra é necessária, suponho, para resolver certas coisas – mas talvez haja um método melhor.”
Albert ‘Risonho’ Marshall (n. 1897): “Para ser franco, ninguém chegou muito longe. Tudo o que acontecia era morrerem dez ou vinte pessoas por razão nenhuma. Para chegar a lado nenhum. (…) Durante uma batalha, era impossível dizer quantos morriam de um lado e de outro. A única coisa que sabíamos era qual era o nosso papel. Podia estar a decorrer uma batalha terrível mesmo ali ao lado, mas não se sabia que o nosso melhor amigo morrera senão no dia seguinte. Só se sabia da parte da batalha que podíamos ver, o resto era apenas uma questão de bombas a rebentar aqui, a rebentar ali, a rebentar em toda a parte – e ninguém se livrava delas. Não interessava muito o que se fazia. Por isso, para dizer a verdade, não se pensava para além da zona em que estávamos. De vez em quando, as coisas acalmavam, mas ouvíamo-los disparar mais adiante. Sabíamos que havia gente a morrer, mas não sabíamos dizer quantos. Perdíamos gente todos os dias.”
Henry Allingham (n. 1896): “Pensando na primeira guerra, acho que não sabia o que esperar. Pensava que havíamos de ganhar – mas nunca esperei que tivéssemos de voltar a combater daquela maneira nos cem anos seguintes. Nunca esquecerei os meus camaradas, mas uma pessoa não pode deixar-se afundar nas coisas terríveis que aconteceram. Não se poderia continuar a viver, se fosse assim. Porém, em dias como o do Armistício, rezo por eles.”
Alfred Finnigan (n. 1896): “Não acho que o país em geral tenha apreço pela guerra. É uma coisa que aprendi em jovem, que a guerra – como todas as guerras – era uma coisa idiota. Absolutamente idiota e não gostei de ver os meus mais velhos a apoiarem aquele disparate. (…) Quando me casei, tomei conscientemente a decisão de nunca ter filhos – não estava disposto a fabricar carne para canhão para o exército ou para a indústria. Hoje em dia, não tenho paciência para políticos nem para governos – nem para qualquer forma de religião. Nenhum se saiu bem na Grande Guerra. As lições são ignoradas e a humanidade continua a cometer os mesmos erros. Recuso-me a ver televisão por causa da guerra, das más notícias e da porcaria que dá. Recentemente, sofri uma pequena operação aos olhos que me restaurou a vista, pelo que posso voltar a ler os meus livros. Prefiro manter-me à parte do que se passa hoje no mundo. A Primeira Guerra Mundial foi uma idiotice. Começou idiota e manteve-se assim. Era um disparate, tudo aquilo.”
Harry Patch (n. 1898): “Todas aquelas vidas perdidas para uma guerra que se resolveu a uma mesa. Diga-me lá se isto faz algum sentido. Era só uma discussão entre dois governos.”
William Roberts (n. 1900): “Olho hoje para trás e penso que a Grande Guerra não passa de treta política. Não devia haver guerra. Essa guerra foi uma data de maldita treta política.”
George Rice (n. 1897): “Tenha eu a opinião que tiver hoje, nessa altura essa era a minha função como soldado. Eles eram o inimigo e tinham de ser rudemente combatidos. Era eles ou nós; os sentimentos não entravam na conversa.”
Ted Rayns (n. 1899): “As coisas ainda me afligem, mas nunca falei muito acerca das minhas experiências de guerra. Hoje é duro de recordar. Foi tudo há tanto tempo!”