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quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Daniel Pires e o essencial bocagiano



“Livre-pensador insubmisso, heterodoxo, Bocage foi um arauto do porvir, anunciando algumas das medidas que, mais tarde, a Revolução Liberal de 1820 e o regime republicano implementaram. E, aliando o génio poético à sede de pugnar por direitos humanos inalienáveis, ponderou questões fraturantes que continuam pertinentes na atualidade.” Assim termina Daniel Pires a sua mais recente obra, O essencial sobre Manuel Maria Barbosa du Bocage (Imprensa Nacional, 2023), forma de demonstrar a importância do vate sadino e de manifestar a sua adesão a esta figura da cultura nacional a partir de Setúbal, sabido como é que parte da obra de Daniel Pires segue a temática bocagiana.

O que será imprescindível saber sobre Bocage passa pela sua vida e pelas circunstâncias do tempo, pela obra legada e pela memória bocagiana - três áreas que correspondem a outros tantos capítulos do livro.

O primeiro capítulo, “O homem e as suas circunstâncias”, é eminentemente biográfico, conjugando a história da família, o contexto da Setúbal da época e a saída de Bocage da sua terra-natal para um percurso recheado de aventura, de risco, de desafio, até à morte em 1805, três meses depois de fazer 40 anos. Cruza-se o leitor com a vida inconstante da personagem, na sua peregrinação pelo Oriente e no seu confronto com as instituições e com o poder em Lisboa (prisão no Limoeiro incluída), assim como é possível acompanhar-se o que seriam os seus círculos de inimigos (provocadores e acusadores) e de amigos (que o ampararam, defenderam, reconheceram, publicaram e até lhe pagaram o funeral). A imagem que domina é a de uma personalidade excepcional, tal como o reconheceu e registou William Beckford, testemunho que Daniel Pires reproduz: “O Sr. Manuel Maria, a mais fora do comum, mas talvez a mais original das criaturas poéticas formadas por Deus”, que deixou o inglês emocionado - “quando começava a recitar algumas das suas composições, nas quais a profundeza de pensamento se mistura com os rasgos mais patéticos, senti-me abalado, comovido.”

O segundo capítulo, “O legado de Bocage”, historia a obra do poeta nos seus vários títulos (incluindo os póstumos) e deixa ressaltar os principais contributos que a caracterizam, evidenciando a paixão que a poesia sempre foi para si, forma maior de viver, como deixou explícito na advertência do terceiro tomo das “Rimas”, ao referir que os poetas “nasceram com a brilhante mania de metrificar, sacrificam os proveitos da vida civil e até as comodidades da existência física”. Assim, Daniel Pires leva-nos a uma viagem na obra bocagiana, mostrando as influências clássica e sua contemporânea, portuguesa e europeia, a prática dos mais variados géneros poéticos da tradição literária, a tradução, a extensão e o escritor multímodo, bem como os temas da sua poesia (lirismo, autobiografia, intervenção política, crítica social, religião, erotismo, didatismo). A vastidão da obra analisada permite que seja olhada como um repositório de muitas influências e de inovações, pois Bocage “cultivou, de forma inovadora e autêntica, a poesia, o drama e a tradução, pondo em causa cânones, aparentemente inamovíveis, contribuindo para a construção de outros mais consentâneos com o dinamismo que caracterizou a sociedade do século XVIII”.

O último capítulo, “Posteridade, és minha!” (título saído de um verso bocagiano), elenca alguns contributos que têm construído a memória do poeta - edições póstumas, biografias, monumentos, homenagens, comemorações e abordagens artísticas (artes plásticas, teatro, cinema, música). Esta parte é curta, embora a lista seja vasta, limitando-se, na quase totalidade dos casos, a mencionar o nome dos autores, sem indicações de datas ou de títulos. O episódio de memória que tem mais larga presença é o da construção do monumento a Bocage em Setúbal (1871, por iniciativa dos irmãos Castilho), bem como as comemorações que nesta cidade foram surgindo (1905 e 1965, centenário do falecimento e bicentenário do nascimento).

Tratando-se de uma obra que pretende apresentar “o essencial”, cumpre bem a sua missão (embora pudesse considerar mais alguns títulos na lista da bibliografia passiva). O texto acessível e de considerável síntese torna este livro num vade-mécum útil e oferece uma abordagem séria de Bocage ao grande público.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1159, 2023-10-04, p. 10.


terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Bocage olha o Sado há 150 anos



As referências de Bocage (1765-1805) a Setúbal, onde nasceu, são escassas; no entanto, sempre ficou gravado aquele verso de despedida “Eu me ausento de ti meu pátrio Sado”, que, abrindo um soneto, se outra mensagem não contivesse, sempre atestaria o laço biográfico do poeta com Setúbal. Mas, quando eram passados 66 anos sobre a partida definitiva de Bocage, a cidade encarregou-se de o pôr a olhar eternamente o mesmo Sado de que se despedira, ao erigir-lhe uma estátua, localizada no centro cívico, com os olhos postos na paisagem que se estende até ao rio.

Batiam as duas da tarde de 21 de Dezembro de 1871 quando se iniciou a cerimónia de inauguração do monumento, figura desenhada por Pedro Carlos dos Reis (1819-1893) e talhada por Germano José de Sales (?-1902), com António Rodrigues Manito (1819-1906), presidente da Câmara de Setúbal, a intervir: “Setúbal paga no dia de hoje uma dívida que não era só nossa, era de todos os que falam a língua portuguesa (...), assinala entre os maiores dias das suas glórias este da inauguração da estátua do grande poeta seu conterrâneo.” E, valorizando o papel da memória: “Do alto daquela coluna será Bocage o incitador da civilização dos seus patrícios, o guia dos nossos progressos, e, ainda depois da trabalhosa vida, o escudo da sua terra natal.”

Documento importante para a reconstituição do ambiente vivido nesse dia é o “Auto da inauguração da estátua de Bocage na cidade de Setúbal”, publicado no Diário do Governo, em 29 de Dezembro de 1871, que transcreve também a intervenção do Marquês de Ávila e Bolama (que presidiu à cerimónia) e lista grande parte dos presentes - aí constando importantes nomes das letras portuguesas como Bulhão Pato, Pinheiro Chagas, Silva Túlio ou Feliciano de Castilho, entre outros.

Século e meio volvido sobre esse 21 de Dezembro, o catálogo O monumento a Bocage - 150 anos olhando o Sado, concebido para a exposição com o mesmo título (em curso na Galeria Municipal do 11, com curadoria de Francisca Ribeiro), constitui bom contributo para o leitor ajuizar do que tem sido a memória bocagiana, seja pela reprodução de documentos, seja pela revelação de alguns dados novos, seja pela coerência quanto ao simbolismo que o tempo tem atribuído à estátua - desde a ideia da construção e respectiva angariação de fundos (1864), passando pelo momento da inauguração (1871), detendo-se na celebração do primeiro centenário do nascimento (1905) e mostrando como até hoje o espaço tem merecido a consideração da cidade.

Interessante é ver que, em torno desta figura e deste monumento, se tem congregado e manifestado a população pelos mais diversos motivos locais assim como a política nos mais variados momentos. Não menos curioso é vermos que a celebração de Bocage teve celebração partilhada com Frei Agostinho da Cruz em 1905 - primeiro centenário do nascimento de Bocage e terceiro centenário da chegada do poeta franciscano à Arrábida.

A ideia da construção do monumento a Bocage terá partido de outro poeta, António Feliciano de Castilho (1800-1875), quando soube da colocação da lápide na casa onde se supunha ter nascido Bocage, em 1864, ideia devida ao setubalense Manuel Maria Portela (1833-1906). A conjugação destas figuras e a participação brasileira através de José Feliciano de Castilho (1810-1879) permitiram que a ideia germinasse e se concretizasse sete anos depois.

Este relevo dado a uma figura nacional como foi Bocage não escapa às tonalidades do Romantismo - independentemente do que valham os prefixos, a verdade é que temos um “pré-romântico” (Bocage) enaltecido à custa da ideia de um “ultra-romântico” (Castilho)...

Exposição a ver e catálogo a conservar, pois!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 758, 2021-12-21, p. 3


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Castilho e a estátua a Bocage



Data de 20 de Março de 1867 a longa carta que António Feliciano de Castilho (1800-1875) dirigiu aos “Presidente e Vereadores da Câmara, Notáveis e Habitantes em geral da ilustre Cidade de Setúbal”, tendo como motivo a construção de um monumento que lembrasse Bocage na sua terra-natal. Homenagear o vate sadino cerca de seis décadas após o seu falecimento ganhara entusiasmo depois de, em 1864, Manuel Maria Portela ter conseguido pôr lápide na casa onde teria nascido Bocage, acto que aproximou e entusiasmou António Feliciano de Castilho. 

O primeiro motivo dessa carta é o agradecimento do subscritor por a Câmara o ter designado presidente honorário da comissão promotora do evento em honra do “Cisne do Sado”, satisfeito porque “os Shakespeares, os Molières, os Schillers, os Cervantes, os Camões e os Bocages pertencem a este número de eleitos” merecedores de serem imortalizados pelo cinzel.

A valorização de Bocage prossegue pela aproximação a Camões - se este “regulariza e fixa, com o adjutório do latim, do italiano e do espanhol, a arte do escrever claro e culto”, aquele, “outro Messias literário, ofusca, dispersa, quase aniquila de todo a sinagoga arcádica.” Se ambos recorrem à milícia para servir a Pátria, vão para o Oriente, são encarcerados, assistem à crise social e morrem na miséria, também as vivências privadas são paralelas: “Amores: qual dos dois levará nisto a palma ao outro? Nem um nem outro é Petrarca para uma só Laura ou Dante para uma só Beatriz”, pois “não amam a uma formosa, enleva-os a formosura” e “a feminidade, sob qualquer forma ou nome, é o seu íman perpétuo.”

Feliciano de Castilho antecipa depois a festa que Setúbal promoverá aquando da inauguração do monumento a Bocage: “Daqui me estou eu deliciando a antever essa festa nacional! Toda a vossa cidade de gala; a capital visitando-a com inveja; a praça alcatifada de loiros e murtas; a música alvoroçando ainda mais os corações; os edifícios colgados de púrpura; os representantes do município em toda a pompa oficial e, a convite dele, as damas indo coroar de flores seu escravo agora rei.” O entusiasmo leva-o a sugerir a realização de outeiros poéticos, retoma de prática do tempo de Bocage, e a insistir na construção de uma “escola-asilo”, verdadeiro monumento ao poeta, o que levaria Setúbal a ser “uma cidade famosa”.

Uma semana depois, em 27 de Março, o executivo camarário respondia: “É esplêndida a maneira como V. Exª expressa os seus elevados conceitos; será modesta a nossa resposta, porque modestos são os nossos recursos.” No entanto, a mensagem de Castilho calara fundo nos decisores locais: “Aquela carta, Exmo. Senhor, devera ser lida em assembleia aonde concorresse o maior número possível dos conterrâneos de Bocage, se não fosse ainda mais útil dá-la à estampa e distribuí-la com profusão para que fique bem gravada na inteligência e no coração de todos e seja um poderoso talismã que avive mais e mais neste povo o amor às instituições humanitárias”. Dois dias depois, Castilho respondia a autorizar a publicação, numa curta carta em que também defendia o método de ensino que criara, apesar de saber que muitos o desprestigiavam.

As três missivas foram publicadas nesse mesmo ano sob o título Cartas do Exmo. Sr. António Feliciano de Castilho e da Câmara Municipal de Setúbal a respeito do Monumento a Bocage, impressas na Tipografia de José Augusto Rocha, em Setúbal.

O monumento a Bocage, na praça que já tinha o seu nome, foi inaugurado em 21 de Dezembro de 1871, com festejos, muito público e comitiva grande, que integrava nomes como Eça de Queirós e Ramalho Ortigão.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 688, 2021-09-08, p. 5


quarta-feira, 7 de abril de 2021

Andersen: um tempo feliz em Portugal em 1866



Em 3 de Maio de 1866, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) tomou a diligência de Madrid para Mérida, onde apanhou comboio para Lisboa, tendo como companheiro, por coincidência, Garcia Peres (que dali a quatro anos passaria a viver em Setúbal). A chegada à margem do Tejo aconteceu três dias depois, instalando-se Andersen na Quinta do Pinheiro (Sete Rios, Lisboa), propriedade de Jorge O’Neill. Em 1868, consequência desta viagem, publicava o relato Uma visita em Portugal em 1866, só editado em português em 1971, em tradução do setubalense Silva Duarte (1918-2011).

A memória que Andersen levou de Portugal foi de um tempo feliz, num “paraíso”, em que não se cansou de classificar o que por cá sentiu como momentos de bem-estar que lhe faziam lembrar a sua Dinamarca - estava, portanto, “em casa”, situação que também lhe foi proporcionada pelo facto de privar com amigos antigos.

Depois de atravessar a fronteira entre os países ibéricos, Andersen anotava: “Que transição, ao entrar em Portugal, vindo de Espanha! Era como sair da Idade Média para entrar no presente. Via à minha volta casas acolhedoras caiadas de branco, matas cercadas por sebes, campos cultivados e nas grandes estações podia-se sempre tomar qualquer refresco. Aqui haviam chegado também, como uma brisa, as comodidades dos tempos modernos da Inglaterra, ou do restante mundo civilizado.”

Esta viagem de Andersen começara em 31 de Janeiro, em Copenhaga, cidade onde regressaria apenas em 9 de Setembro; em Portugal, o contista dinamarquês esteve entre 6 de Maio e 14 de Agosto, data de embarque para Bordéus. Nos três meses lusitanos, viveu em Lisboa (na Quinta do Pinheiro), em Setúbal (na Quinta dos Bonecos, de Carlos O’Neill) e em Sintra (na Quinta do Duche, de José Carlos O’Neill), com deslocações rápidas a Aveiro e a Coimbra.

Curioso pela cultura e pela identidade portuguesas, conheceu Feliciano de Castilho (em Lisboa) e Manuel Maria Portela (em Setúbal), convivas que lhe falaram de Camões e de Bocage. Perspicaz e com sentido de humor, não olhava o mundo sem lhe pôr a sua marca - dirá, em Lisboa: “O cemitério maior não o vi, tem o nome de Prazeres. Quase nos faz crer ter sido um humorista que baptizou o lugar. O mesmo sucede com o nome do palácio da Rainha: Necessidades.” A Setúbal dedicou um dos mais longos capítulos do livro - conheceu a cidade, andou pela Arrábida e S. Luís, chegou a Palmela, atravessou para Troia, participou na festa de Santo António, viu uma tourada. Deixou-se ofuscar pela Igreja de Jesus, ao comentar: “Pequena igreja das mais belas que até agora vi. Tem algo de aéreo e luminoso.” Na Praça de Bocage, associou-lhe o seu sentir de poeta: “A maior e mais bonita praça é incontestavelmente aquela que tem o nome do poeta português Bocage, nascido em Setúbal e que, como é frequente com os poetas, morreu em pobreza. Vai agora ser-lhe levantado um monumento, para o qual se está a fazer uma subscrição. Setúbal é orgulhosa do seu vate.” Efectivamente, Bocage ali viria a ter a sua estátua anos depois, em 1871...

É ainda sabido que, em Setúbal, Andersen arranjou motivo de inspiração para o seu conto “O sapo”, como documentou em anotações feitas em 1868.

Viajante persistente (30 viagens entre 1831 e 1873, equivalendo a nove anos fora da Dinamarca), Andersen descobriu-se em cada saída, o que lhe permitiu afirmar, ao concluir o relato da viagem a Espanha em 1862: “A vida é o mais maravilhoso dos contos.”

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 595, 2021-04-07, pg. 10.