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terça-feira, 30 de julho de 2024

Palavra de escritor nas entrevistas de Luís Souta

 


Uma dezena e meia de escritores surgem reunidos, trazidos pela persistência e curiosidade de Luís Souta, na obra Vozes da Escrita - 15 Entrevistas a Escritores Portugueses (Edições Ex-Libris, 2024), sob o pretexto inicial de descoberta do “olhar que emergia do campo literário sobre o processo educativo”.

As entrevistas, maioritariamente realizadas entre 2001 e 2002 (distância que leva a que já só cinco dos entrevistados estejam entre nós), trazem-nos nomes bem conhecidos como: Matilde Rosa Araújo e Natália Nunes (nascidas em 1921), Fernando Miguel Bernardes (n. 1929), Maria Rosa Colaço (n. 1935), Júlio Conrado e Mário Ventura (n. 1936), Altino do Tojal (n. 1939), Cristóvão de Aguiar (n. 1940), António Damião (que usou o pseudónimo de Henrique Nicolau para as obras policiais, n. 1941), Fernando Venâncio e Mário de Carvalho (n. 1944), Fernando Dacosta (n. 1945) e Alice Vieira, Eduarda Dionísio e Ricardo França Jardim (n. 1946).

A anteceder as entrevistas, Luís Souta explica os critérios de escolha, de que se destacam: as referências mais ou menos autobiográficas nos retratos e episódios que as respectivas obras mostram sobre a escola; a perspectiva da vida escolar a partir dos pontos de vista do aluno ou do professor (uma vez que vários dos entrevistados tiveram o ensino como profissão e muitos dos relatos literários assentam no olhar e nas marcas que ficaram do tempo de alunos) e do romancista ou do pedagogo; a acção dialogante entre os escritores e a escola.

No entanto, não são apenas essas as pistas deixadas nas conversas — os escritores acabaram também por falar do mundo que tem entrado nas suas obras e das próprias condições de edição e do universo da leitura, em segmentos tão diversos como a crítica literária, os movimentos culturais e artísticos, o papel do professor, o valor da memória para a criação escrita, entre outros, chegando, muitas vezes, a conversa a revelar aspectos menos conhecidos do viver de cada um, fornecendo apontamentos de enriquecimento das respectivas biografias.

Pelo caminho, ficam-nos retratos de muita humanidade, coloridos com a experiência da vida e com o gosto de (re)construir ambientes e personagens. É assim que nos tocam observações sobre o que é ser professor, como a de Cristóvão de Aguiar (que também foi professor), ao dizer: “Não acredito que um professor, para ser bom, tenha de estudar muita pedagogia. Ela ajuda quem já possui vocação. Ser professor é uma arte, como a de actor. Não se aprende, nasce connosco, pode apenas aperfeiçoar-se. A pedagogia não constrói um professor. Aperfeiçoa-lhe o talento.” Ou ainda a de Maria Rosa Colaço (a escritora alcacerense, autora desse ainda hoje inovador livro que foi A Criança e a Vida): “Cabe ao professor (...) a semente destes valores essenciais à Paz, à Fraternidade, ao Entendimento dos Povos que devia ser preocupação primordial de todos os agentes de ensino.” É assim que nos entusiasmam reflexões tão pertinentes quanto as de Eduarda Dionísio (professora e filha de professores) sobre a distância que vai entre a certeza e a dúvida: “O meu itinerário foi sempre o da dúvida, ao contrário da geração do meu pai que precisava de certezas e por isso era um grande drama quando a certeza desaparecia... (...) O drama vem quando deixa de haver um número significativo de pessoas (...) que não acha que a dúvida faz avançar o mundo.” É assim que também a postura cívica do leitor fica preparada para falhas da sociedade, como no momento em que Júlio Conrado (que enaltece o papel exercido na sua formação por professores como Virgílio Couto e Xavier Roberto, mestres que também o foram de Sebastião da Gama e de Matilde Rosa Araújo), falando de um dos seus romances, revela: “A corrupção é um fenómeno permanente na vida das sociedades que não é propriedade exclusiva deste ou daquele grupo social. A arte de furtar é de sempre e as suas denúncia e crítica também.” É assim que uma verdade essencial sobre a função da literatura nos impressiona, trazida pela voz de Mário Ventura (escritor que viveu em Setúbal e que, na conversa, relembra também a origem do Festival de Cinema de Tróia por si proposto): “Sem uma literatura não há um povo culto. (...) Hoje em dia, é a literatura, e não só a portuguesa, que discute o Mundo, que o analisa e teoriza sobre ele. Os políticos são incompetentes, impróprios para consumo intelectual. Os filósofos também não são de consumo fácil. Por isso, penso que a literatura é o melhor (senão o único) veículo para compreender o Mundo.” É assim que nos deixamos enternecer por uma entrevistada como Matilde Rosa Araújo, que faz das suas respostas um prolongamento dos seus poemas e das suas histórias.

Luís Souta soube ser a possibilidade equilibrada de fazer chegar estas vozes, sem condicionamentos, sem imposição do seu intuito, mostrando que a vida não prescinde do pensamento e que há verdades que passam além do tempo em que são proferidas. Só assim se compreende como entrevistas com mais de vinte anos mantêm a sua pertinência na actualidade...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1352, 2024-07-30, pg. 10.

 

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Máximas em mínimas (71)

“[O] mais comum entre nós, Portugueses, [é] que prometemos muito e depressa confiamos na passagem do tempo para encerrar o compromisso assumido mas não satisfeito.”
Mário Ventura. O Reino Encantado, Cruz Quebrada, Casa das Letras, 2005.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Entre o Forum Luísa Todi e o Cinema Charlot, em Setúbal

Na edição de O Setubalense de hoje, António Elias, na sua rubrica "Conversas de Café", clama pela normalidade, num desabafo que muitos setubalenses perfilharão: é a urgência de Setúbal ter (de novo) o Forum Luísa Todi em funcionamento, condição mínima, determinante e essencial para algum ritmo na vida cultural da cidade. Chega a ser deprimente ver as instituições culturais da cidade arrastarem-se nos seus projectos porque não há uma sala de espectáculos em Setúbal! E, já agora, quanto ao cinema Charlot, será de pensar na atribuição àquele espaço do nome de Mário Ventura, como tão bem sugeriu Luís Souta no Encontro de Estudos Locais do Distrito de Setúbal, que teve lugar no final da semana passada.
Aqui fica o excerto do jornal a que faço referência:

sábado, 6 de novembro de 2010

Estudos Locais de Setúbal (1) – Luís Souta e a escola dos escritores ligados a Setúbal

No II Encontro de Estudos Locais do Distrito de Setúbal, que decorreu ontem e hoje, assisti à conferência de Luís Souta (acontecida ontem), de que gostei, pelo cruzamento com identidades e com a cultural local, sem esquecer o mais vasto âmbito da cultura portuguesa.
Intitulada “Na escola da dor e do sofrimento, segundo cinco escritores do distrito”, Souta acentuou tratar-se de um conjunto de retratos feitos a partir de obras literárias, passando por obras de Mário Ventura, Maria Rosa Colaço, Romeu Correia, Manuel da Fonseca e Sebastião da Gama (tendo ainda havido remissões para Carlos Ceia e para Matilde Rosa Araújo), pretendendo mostrar “o olhar da literatura sobre o universo escolar”.
A originalidade da leitura de Luís Souta foi interessante, bem para lá da discussão do autobiografismo na literatura, mostrando que a ficção nasce de realidades, aí incluindo realidades vividas. A evocação de Manuel da Fonseca veio bem a propósito ou não tivesse sido ele a figura destacada (e presente) no I Encontro de Estudos Locais do Distrito de Setúbal que se realizou há 22 anos; também Romeu Correia, outro contador de histórias, mereceu ser lembrado, ele que tem tido a sua obra quase esquecida; igualmente a recordação de Rosa Colaço e desse mítico (e quase fundador) livro que foi A criança e a vida fez recuar no tempo, chamando a atenção para a sensibilidade que, desde cedo, pode invadir a escrita; Mário Ventura foi mencionado a propósito da história de Miguel Zuzarte e, não sendo de Setúbal, por aqui viveu e empurrou o nome da cidade para a história do cinema em Portugal – haja em vista a realização do Festroia –, motivo que levou Souta a sugerir que o nome de Mário Ventura deveria ser atribuído ao Auditório Charlot, espaço municipal sadino de encontros e de cinema (proposta certeira, diga-se, e a merecer ser levada avante); Sebastião da Gama foi chamado pelo seu Diário, obra de referência para a pedagogia e para o pensamento do professor, sobre ela afirmando Luís Souta que “é suposto num estágio o professor aprender”, mas Sebastião da Gama foi “um professor em formação que produziu um texto formador que veio a marcar a pedagogia”, outra forma de dizer que o Diário do poeta da Arrábida, registo do que foi o seu ano de estágio na Escola Veiga Beirão, é a marca de “um professor reflexivo”.
Luís Souta proporcionou, desta forma, um outro olhar sobre a escola. De outros tempos e igual para todos, é certo, mas valorizando a experiência e a literatura, chamando a atenção para a pluralidade de leituras que a arte pode conter.

domingo, 31 de outubro de 2010

Máximas em mínimas (65)

IDEAL
“Quem espalha um ideal espera sempre que a sua concretização não atraiçoe o que lhe vai no pensamento, talvez porque nunca tenha imaginado que a realidade pode sempre deturpar as ideias originais.”
Mário Ventura. O reino encantado (2005).

terça-feira, 10 de março de 2009

Máximas em mínimas (44)

O homem, esse conhecido
Os homens são iguais em todas as épocas, com os seus defeitos, contradições, crueldades, mentiras e algumas qualidades laboriosamente construídas e aperfeiçoadas à sombra do que se convencionou chamar civilização, e se algo mudou, até ao nosso tempo, foram as artimanhas, as justificações e os meios disponíveis para produzir o mal.
Mário Ventura. O reino encantado. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2005.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Máximas em mínimas (16)

A Guerra (em quatro andamentos)
A próxima guerra será silenciosa, esteticamente organizada, não haverá necessidade do ruído desagradável das bombas e da visão traumática e em último caso perfeitamente dispensável das cidades arrasadas, porque as cidades ficarão intactas, só as pessoas e os seres vivos morrerão, mas em silêncio, sem estertores nem gritos, nem nada de excessivo ou patético, tudo será eficiente, limpo, límpido.
Teolinda Gersão. O Silêncio (1981)
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Não vale grande coisa, a felicidade. Por vezes, está presa por um fio, outras por um braço. A guerra é o mundo de pernas para o ar: consegue fazer de um amputado o mais feliz dos homens.
Philippe Claudel. Almas Cinzentas (2004)
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As guerras em geral, como as tragédias da natureza, são impessoais, diluem-se na abstracção dos grandes números. Falar de milhares ou milhões de mortos não choca e só teoricamente ofende, mesmo aqueles que são capazes de chorar quando vêem uma criança com o rosto sulcado por um fio de sangue. A magnitude das tragédias é a sua fraqueza, porque ninguém consegue sentir, ou sequer imaginar, a desgraça particular dos milhares de mortos que jazem sobre um campo de batalha. É uma forma de fuga, pois todos receiam não resistir a um horror que ultrapassa a sua própria sensibilidade. Por outro lado, há sempre algum tipo de álibis, usados sem o menor pudor: não seriam assim tantos os mortos, a fotografia é a ilusão da aparência, as estatísticas enganam-se, é impossível existir tanta maldade…
Mário Ventura. O Reino Encantado (2005)
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A guerra massacra, mutila, macula, suja, esventra, decepa, esmaga, tritura, mata, mas por vezes também acerta o passo a muita gente.
Philippe Claudel. Almas Cinzentas (2004)