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quarta-feira, 27 de julho de 2022

Donzela Teodora, entre a beleza e a inteligência (3)



História da donzela Teodora não conclui sem que o rei queira ainda conversar com a jovem, prolongamento do deleite de estar na sua presença, argumentando que, “já que tanto sabia, lhe declarasse certas dúvidas que tinha, pois nisso teria grande gosto”. As perguntas, de conteúdo religioso - sobre a penitência, o valor da missa, o “dia do Juízo”, a utilidade dos sacramentos -, motivam argumentação, exemplos e lições nas respostas de Teodora.
No final, o rei manifesta o pesar de não a poder manter em sua companhia, assumindo a decisão tomada de contribuir para um final feliz: “ordenou ao seu mordomo lhe desse mais dez mil dobras de ouro e lhe desse mais um vestido de brocado e enviou a ela e a seu senhor com grande honra para a sua terra.” O narrador finaliza a história com uma garantia - “esta discreta donzela tirou a seu senhor de tanta miséria” e “outras muitas coisas fez, e mostro por experiência, as quais se não referem aqui.” E o leitor acredita neste muito conhecer de que o narrador se reveste...

O folheto História da donzela Teodora, traduzido por Carlos Ferreira Lisbonense, terá tido a sua primeira edição portuguesa, a partir do castelhano, por 1712. Não há certezas sobre a quantidade de edições (e de versões) desta história - em 2019, Sophie Coussemacker admitiu que, “desde 1498, pelo menos, a história de Teodora conheceu um tal sucesso editorial que se podem contar 59 versões”. E compreendem-se as motivações para as “versões” - as religiosas, entre o cristianismo e o islamismo; as de censura, mesmo que devida aos costumes; as da criatividade dos diversos redactores. Como exemplo, refiram-se duas edições espanholas desta obra: em 1628, em Jaén, saía uma edição que pode ter servido a tradução portuguesa, quer pela estrutura narrativa e frásica, quer pela similitude dos acontecimentos; em 1865, em Carmona, na Andaluzia, era publicada uma edição com alterações substantivas - a proposta de Teodora ao terceiro sábio, nesta edição, não tem nada a ver com o despir e a perda das roupas do vencido: “se me vencerdes, ficarei como vossa escrava enquanto viverdes e, se for eu a vencedora, havereis de me dar dez mil dobras de ouro”.

As origens desta história, que assenta sobre pares antitéticos como o saber e a ignorância, a honra e a desonra, a ostentação e a simplicidade, afirmando verdades universais, perdem-se nos tempos. Não lhes serão estranhos os contos orais (vários capítulos se iniciam com a frase “diz a história que...”) ou a “História da douta Simpatia”, inserta em As Mil e Uma Noites, em que a escrava Tawaddud (Simpatia) vence todos os sábios que a inquiriram.

A popularidade da História da donzela Teodora chegou ao Brasil, adaptada em verso, em data desconhecida,por Leandro Gomes de Barros (1865-1918), de Paraíba, em 142 sextilhas, sempre com idêntico esquema rimático (abcbdb), seguindo a versão portuguesa e concluindo com a referência ao trabalho do poeta: “Caro leitor, escrevi / Tudo que no livro achei / Só fiz rimar a história / Nada aqui acrescentei / Na história grande dela / Muitas coisas consultei.”

Teodora tornou-se assim o símbolo feminino de inteligência e beleza que o garrettiano Frei Jorge usou para classificar a jovem Maria. Mas também houve quem preferisse outra perfeição numa donzela - António Manuel Couto Viana, em 1948, na revista Atlântico, versejou sobre uma Teodora, “menina tristonha / com livros na mão”, dizendo, quase no final: “Menina que pensa / Não sabe brincar / A maior doença / Na vida: é pensar.” Teodora foi, assim, uma questão de modelos e de paradigmas...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 898, 2022-07-27, p. 10


terça-feira, 29 de maio de 2012

Memórias de António Manuel Couto Viana em conversa com Ricardo de Saavedra



António Manuel Couto Viana (1923-2010), nome para sempre ligado à poesia portuguesa e ao teatro, foi exímio memorialista dos outros, servindo-se de uma prodigiosa memória para contar sobre poetas e autores, lidos e conhecidos, sobre épocas e personagens que no seu caminho se cruzaram. Pena seria que a sua vida extremamente preenchida não desse origem a um volume de memórias, contando o seu trajecto sempre diversificado, absolutamente dominado por uma dinâmica que nunca lhe permitiu a paragem na escrita, tendo mesmo, na fase final da sua vida (a partir de 2004), encetado o caminho do conto. É assim de saudar o aparecimento da obra assinada por Ricardo de Saavedra, intitulada António Manuel Couto Viana – Memorial do coração (Conversa a quatro mãos), recentemente editada (Lisboa: Quetzal Editores, 2012).
O título informa-nos sobre a organização da obra: é, com efeito, uma entrevista, uma longa entrevista, edificada sobre onze capítulos e cerca de cinco centenas de páginas, resultante de um tempo de conversas de aproximadamente cinco anos (desde Março de 2005), tendo o entrevistado ainda tido a oportunidade de conhecer grande parte da versão escrita.
O que impressiona neste texto é a fidelidade de Ricardo de Saavedra ao tom de conversa de Couto Viana, quase sendo dada a possibilidade ao leitor de “assistir” a este diálogo entre os dois, viajando na memória, por vezes alterando a ordem cronológica, sempre contando histórias da vida ou a propósito dos momentos por que vai passando a revisitação. Bem marcante é o poder descritivo e a ordem narrativa de Couto Viana, conversador e nato contador de histórias, nunca deixando que a sua história ande apenas em redor de si, antes mostrando a sua vida na relação com os outros, na dedicação às artes – da literatura e da representação – e aos prazeres – gastronomia, leitura, viagens – e na luta pela sua independência e pelo seu caminho.
O nível de linguagem é sempre elevado, culto, com observações de uma nobreza de sentimentos e de saberes que impressionam, não só pela forma airosa como todo o seu trajecto é partilhado, como pela meticulosidade posta numa memória que deve ser um contributo para a história. São de ternura evidente as palavras que deixa sobre a sua “cidadezinha”, Viana do Castelo, e sobre o ambiente e experiências ali vividas, ponto de eterno retorno que sempre o chamou; são de realização assumida as entradas pela memória da sua vida dedicada ao teatro, enquanto actor, empresário, autor, cenógrafo, criador de companhias, num périplo que passa pelo Teatro-Estúdio do Salitre, Teatro da Mocidade, Teatro da Campanha Nacional de Educação de Adultos, Teatro do Gerifalto, Oficina de Teatro da Universidade de Coimbra, Grupo Português de Teatro (de Macau), entre outros, percebendo-se que a história do teatro português da segunda metade do século XX não estará completa se o nome de Couto Viana for omitido; são quase fílmicas as lembranças da chegada a Lisboa (em 1946) e os contactos com os escritores que sempre lera e de quem se ia tornando amigo ou com aqueles que, tal como ele, se iniciavam na aventura literária, atingindo especial elevação as referências àqueles que foram amigos de sempre, como David Mourão-Ferreira ou Fernando de Paços, por exemplo; é contributo para a história literária o seu esmiuçar pelas revistas e publicações em que participou ou a associação que faz de muitos momentos da vida a outros tantos instantes de poesia; é prestação para a história do teatro a dinamização a que procedeu no âmbito do teatro infantil, na “descoberta” de actores, no gesto de levar o teatro aos mais diversos recantos do país; é retrato de desolação a lembrança dos momentos menos bons provocados por uma remissão para o esquecimento a partir de 1974, com o consequente abandono por parte de muitos amigos, ou por um jogo de influências movido em Macau que lhe deixou feridas e desgosto, mesmo na apreciação destes casos não se vislumbrando linguagem menos nobre, antes exprimindo-se o lamento, ao mesmo tempo que a literatura se anuncia como contínua tábua de salvação.
António Manuel Couto Viana diz-se na alegria do reencontro com a sua obra, longa viagem que também o transportou ao oriente de Camões, deixando-se o leitor levar por um guia que entra na China e noutras orientais paisagens, vivamente descritas, quase se estando mais perante uma recriação literária do que na presença de algo que se diz de memória, de tal forma a riqueza das cores, das sensações, das emoções pulsa por estas páginas de reconstituição de uma vida, o mesmo se podendo dizer a propósito do pormenor na narração e na descrição do encontro com Savimbi na Jamba. O próprio entrevistador tem momentos em que interrompe a conversa para, apreciativamente, elogiar a memória do entrevistado, registo que se destinará também ao leitor, desta forma desperto – ou lembrado – quanto à realidade deste livro, que não é uma ficção, antes o retrato de uma vida.
Preocupações máximas de Couto Viana são a sua obra, os seus amigos e os seus lugares. Da obra vai falando enquanto mostra o regulador que ela foi da sua vida, com o verso sempre a renovar-se e o lirismo continuamente no seu caminho; dos amigos tem a preocupação de registar os nomes e os traços, às vezes em escassas referências, mas sempre querendo inscrevê-los no seu percurso e por vezes pedindo antecipadamente desculpa de qualquer omissão; os espaços, vai-os revisitando, com uma ternura particular sobre Viana do Castelo, berço da vida e da obra sobre o qual diz: “Viana influencia toda a minha obra! A infância marca, para sempre, a vida de um poeta e a minha foi toda passada em Viana, que continua a ser uma cidade sedutora. A timidez aguçou-me o sentido de observação e toda a minha meninice e juventude foi plena de motivos de interesse, rica de momentos inesquecíveis, vivida num ambiente familiar que muito contribuiu para estimular o meu crescente gosto pelas artes. Muitos dos meus escritos narram tudo isto, decorrem deste acumular de sensações e sentimentos, com raiz nos tempos em que cresci em Viana. E a raiz nasce no coração.”
O final do ciclo de conversas coincide com o termo da vida de Couto Viana, cujas últimas palavras para o entrevistador constituem um pedido para que o livro não esmoreça, para que o livro exista, para que a memória perdure. Um derradeiro capítulo mostra o sentimento de perda de um amigo que se tornará presente pela sua obra, extensa obra, de poeta, que António Manuel Couto Viana se chamava, nome que constitui “um decassílabo perfeito”, como Ricardo de Saavedra faz questão de lembrar logo na primeira frase do volume.
O leitor encontra ainda quarenta páginas, em dois cadernos, a constituírem um álbum fotográfico, disperso por geografias, por tempos e por amizades. E, no final, uma exaustiva lista de bibliografia activa ordenada por modos de escrita e por assuntos (poesia, teatro, contos, ensaios, memórias, gastronomia, traduções e adaptações, antologias, prefácios e apresentações), uma circunstanciada resenha da teatrologia e um índice onomástico (a que ainda poderia ter sido acrescentado um índice de títulos). A fechar, na lista dos “agradecimentos”, Ricardo de Saavedra relembra a construção do livro – desde a primeira reunião dos dois já velhos amigos, em 18 de Março de 2005, com a intenção de se contar esta vida, foi sendo construído “um livro nascido de conversas, registos avulsos e papéis dispersos, que cresce[u] ao sabor dos temas sem cuidar de cronologias, confiado quase exclusivamente na memória elefantina do interlocutor.”
Umas boas memórias de António Manuel Couto Viana. Num memorial também do coração!

sábado, 21 de abril de 2012

Para a agenda: Ricardo Saavedra biografa António Manuel Couto Viana

É de Ricardo Saavedra a primeira biografia sobre António Manuel Couto Viana. De Ricardo Saavedra e do biografado, já que o texto resulta de longa entrevista e não menos longas conversas entre os dois. Daí, um livro a quatro mãos este António Manuel Couto Viana - Memorial do Coração, a ser editado pela Quetzal e com apresentação pública marcada para 4 de Maio, na Feira do Livro de Lisboa. Ler mais aqui >>>

quarta-feira, 6 de julho de 2011

António Manuel Couto Viana - "Tens Visto o Antão? (Contos Pícaros e Outros Não)"

O primeiro livro póstumo de António Manuel Couto Viana não foi de poesia, mas de contos, arte e escrita a que se dedicou com afinco no último período da sua vida, tendo publicado três títulos que lhe granjearam elogios merecidos, além de terem constituído surpresa na sua ficha bibliográfica, sobretudo ocupada com poesia, teatro e memorialismo.
Tens Visto o Antão? – Contos Pícaros e Outros Não (Lisboa: Quetzal Editores, 2011), em edição preparada por Ricardo de Saavedra, prossegue a narrativa picaresca com que Couto Viana tinha brindado os seus leitores, enredada em dezena e meia de histórias de onde não estão ausentes a paródia de costumes, o retrato impiedoso das situações mais caricatas de uma determinada sociedade, a montra das fraquezas e das pequenas vaidades humanas.
Os narradores dos vários contos vão variando no nome e na sua caracterização, mas conservam sempre algo de uma memória que lhes é comum, construída nas vivências da “cidadezinha” que o leitor desde cedo percebe ser Viana do Castelo, terra de infância e raiz do próprio Couto Viana.
As histórias deste livro partem das memórias distantes do seu autor, cruzadas com o fazer narrativo, com a obra de arte, havendo lembranças de sítios, de pessoas, de hábitos e costumes, de saberes, da paisagem, sendo ainda possível ver tratados assuntos de todos os tempos, como a questão da identidade (em “Onde, o Natal?”) ou um elogio à paternidade (como em “Pai Incógnito”).
O leitor chega ao final de cada conto e tem vontade de sorrir, tais são o espírito certeiro com que as personagens são esculpidas ou a vivacidade posta na narração de situações caricatas que todos podemos facilmente imaginar por verosímeis. Mas o primeiro a usufruir desse prazer é o próprio narrador, como o demonstra no final da história de Elisete Fernandes, personagem do conto que fecha o livro e que lhe dá título: “Eu arrebatei a papelada, atirei para a mesa as moedas do café e do bagaço e corri para a esplanada, a soltar uma gargalhada colossal!”
Fim da história, conclusão do livro e a gargalhada da satisfação, depois de uma representação em que, pelo menos, outras tantas personagens quantos os contos desfilaram, mostrando-se e… talvez mostrando-nos.
Para mim, que conheci António Manuel Couto Viana e de quem ouvi a leitura de alguns dos contos aqui inseridos, acabadinhos de fazer (privilégio, eu sei), torna-se difícil ler estes contos sem ver passar a figura do seu autor, gargalhando e revivendo as histórias que estiveram na origem destes textos, ainda que ele se tenha disfarçado na escrita usando a personagem de outros tantos narradores.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Memória: António Manuel Couto Viana (1923-2010)

Quando, ontem, a meio da tarde, vi uma mensagem de uma amiga a dar-me a notícia da morte de António Manuel Couto Viana, senti a revolta que nos fica quando um encontro adiado acaba por não acontecer porque a vida nos troca as voltas. Não pude estar na apresentação do seu último livro (Ainda não. Lisboa: Averno, 2010), que decorreu em Abril, em Lisboa, um conjunto de poemas maioritariamente autobiográficos, em que se canta o prazer de estar vivo e a alegria da escrita – o último poema do livro, datado do seu 86º aniversário (em Janeiro de 2009), assim celebra na derradeira quadra: “E aceito os 86, / Numa condição, que é: / Tê-los com livros, papéis, / Amizade, amor e fé.”
Não sei desde quando conheço a escrita de Couto Viana. O primeiro contacto pessoal com ele foi no final dos anos 80, através de um amigo comum – o Miguel Castelo Branco. Depois, na segunda metade dos anos 90, tivemos uma aproximação grande por causa da revista Távola Redonda, projecto por que foi responsável, com David Mourão-Ferreira, em que interveio Sebastião da Gama e que assumiu a perspectiva do lirismo como condição da poesia portuguesa, num tempo algo indeciso e conturbado no domínio da escrita e das correntes. Dava-se o caso de eu estar a investigar sobre essa revista para uma dissertação de mestrado e Couto Viana quis acompanhar a evolução do meu trabalho, forneceu-me elementos e aproximou-me de pessoas que também pelo grupo "tavoleiro" tinham passado – Júlio Evangelista e Fernando Paços, sobretudo. Interessado como era na poesia, na sua obra e na cultura, fez questão de assistir à minha defesa da tese, acto que me impressionou pela disponibilidade, pela atenção e pela amizade revelada.
Depois, foram os encontros regulares de visita, com conversas à mesa do café “Ribalta” ou no Teatro Dona Maria, diálogos à volta de gastronomias diversas, momentos sempre dominados pela poesia e pela literatura, muitas vezes intervalados com apresentações de livros ou em conferências, por vezes com os encantos das emoções (como acontecia sempre que me falava da bisneta, nascida há cerca de dois anos).
Couto Viana deu-me o privilégio de construirmos uma amizade com dois pilares muito fortes: a nossa origem de Viana do Castelo e a questão literária. Por isso, tive, ao longo destes anos, a sorte de ser um leitor imediato de alguns dos seus textos e de acompanhar, em pormenor, a sua vida de autor. Personalidade de uma cultura extraordinária, de uma memória infindável, de um sentido de humor invencível, Couto Viana ultrapassou as adversidades ocasionadas por uma saúde irregular – diabetes e a amputação de uma perna, que o limitaram bastante na sua autonomia – através do contacto com os amigos e, sobretudo, por via da escrita, num ritmo quase religioso de poema diário e de leitura intensa. Em todas as vezes que o visitei, havia sempre poemas ou contos ou textos acabados de fazer, que me lia (gostava de se ler) ou, quando mais fatigado, me convidava a ler. Passei boas tardes com a amizade de António Manuel Couto Viana.
Mais recentemente, a partir de 2006, outra causa intensificou o nosso relacionamento: a criação da Associação Cultural Sebastião da Gama, de que se fez associado desde início, sempre estando disposto a testemunhar sobre a poesia desse seu parceiro de letras e de versos que foi o Poeta da Arrábida. Em variadas sessões e actividades promovidas pela Associação pude(mos) contar com a presença rica de Couto Viana.
Fica-me uma saudade grande do tempo em que com ele aprendi. Como me fica o desgosto do tal encontro adiado que não vai poder acontecer. E fica o convite para a leitura da sua poesia, porque, como escreveu no quarto poema de Ainda não, sobre a solidão dos poetas: “Cada poeta sente / Que é uma ilha no mar? / Será um continente / Se alguém o escutar!”
[foto: Couto Viana, em 9 de Junho de 2007, em Azeitão, na inauguração do monumento a Sebastião da Gama, fotografado por Cília Costa]

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

António Manuel Couto Viana e os contos pícaros

Que é que eu tenho, Maria Arnalda? e outros contos pícaros é a mais recente obra de António Manuel Couto Viana (Guimarães: Opera Omnia, 2009) e constitui o terceiro livro de contos na bibliografia do autor, todos eles publicados nos últimos cinco anos, faceta que torna curiosa a obra de Couto Viana, desde sempre ligada à poesia, ao ensaio memorialístico e à escrita teatral. Os outros títulos são Meias de seda vermelha e sapatos de verniz com fivelas de prata e outros contos (Lisboa: Prefácio, 2004) e Os despautérios do Padre Libório e outros contos pícaros (Guimarães: Opera Omnia, 2008).
Só nos dois últimos livros de contos é que Couto Viana assumiu, no título, o género das suas narrativas – “contos pícaros” –, desde logo dando a entender ao leitor que tipo de literatura pode esperar – histórias com um narrador que ridiculariza e explora a sátira social, pondo o heroísmo a favor desses objectivos, rindo dos outros e, muitas vezes, de si próprio, sem a preocupação de definir modelos de virtudes.
Ora, quem passa por estes contos vai encontrar narrador na primeira pessoa, a fim de sugerir credibilidade ao contado, dando a ideia de uma certa dimensão autobiográfica. No entanto, este “eu” vai variando a sua identidade de texto para texto, nome incluído, pelo que a própria sugestão autobiográfica só pode viver na linha de experiência do narrador, logo aí deixando campo aberto para a ficção.
As histórias acontecem no período da primeira metade do século XX, remetendo para retratos sociais dessa época, e situam-se, maioritariamente, na “cidadezinha”, burgo alto-minhoto, encostado ao mar, ao rio, ao campo e à serra, que outro local não pode ser senão Viana do Castelo, geografia de que não restam dúvidas depois de se ler a dedicatória da obra de 2008 à memória de uma tia do autor, que conhecia “toda a História e todas as histórias pícaras e dramáticas da sua cidadezinha, meu berço”.
São pequenas historietas, pois, coladas ao burgo que Couto Viana recorda, mas muito fantasiadas e reconstruídas. Por elas passa uma mestria de linguagem, assente na capacidade para descrever o pormenor ou os gestos, na graça com que a acção vai sendo dada a presenciar ao leitor. Por elas transitam personagens inesquecíveis, a que estão associados feitos não menos inolvidáveis e singulares, ficando o leitor a saborear o riso despertado por criaturas como o Maluquinho dos Comboios, o Lopes, o Toninho, o Sete-Cus ou a Cló (para lembrar o último livro) ou o Macário, o Malaquias, o padre Silvério, a Carminho ou o padre Libório (se falarmos do penúltimo conjunto de contos).
Se Couto Viana já era senhor de uma obra vastamente variada, estes três títulos, num género que ainda não experimentara nas suas seis décadas de vida literária, vêm reconfirmar o autor multifacetado sobre quem Ricardo Saavedra, no prefácio que integra o mais recente título, garantiu que terá “menção na História da Literatura Portuguesa”.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

A Oriente, António Manuel Couto Viana

Em Março de 2007, António Manuel Couto Viana proferiu uma conferência na Delegação Económica e Comercial de Macau, em Lisboa, cujo texto foi agora publicado, sob o título O Poeta no Oriente do Oriente (Col. “Mosaico”, Instituto Internacional de Macau, 2008).
Este texto assume um cariz autobiográfico, ainda que a partir de uma história que é contada na 3ª pessoa, protagonizada por uma personagem apenas designada como “Poeta”, mas a que, num poema a pretexto da gruta de Camões, acrescenta o nome próprio como identificação: “António sou (tenho o teu nome) / E escravo, também, da poesia. / Para ela é que estendo, em cada dia, / A mão à minha fome.” Mas o cunho autobiográfico aparece logo no título, ao associar a personagem a uma das obras do próprio poeta.
São quatro os títulos de poesia que António Manuel Couto Viana dedicou ao Oriente: No Oriente do Oriente (1987), Não há outro mais leal e Até ao longínquo China navegou (ambos de 1991) e Orientais (1999), conjunto que, neste texto, serve como referência para explicar o fascínio desde cedo sentido por essa região e para apresentar o seu roteiro iniciático pelo Oriente a partir da sua poesia e de outros poetas portugueses nela evocados, em cuja linhagem Couto Viana se integra.
Convidado para trabalhar no âmbito do teatro em Macau em 1985, Couto Viana deixou-se arrastar pelo apelo do Oriente que já se exercia desde a infância – “O fascínio do Oriente distante e sortílego exercera-se logo sobre o seu espírito, recém-saído do colo materno e do hesitante tem-tem, surpreendendo, pelas salas da casa familiar, um ou outro móvel de exótico fabrico (…); um ou outro prato de faiança delicada e ornado de rosas e aves de comprido pescoço; o azul cantonês dos pagodes (…); a caixa de charão lustroso (…); a lata de chá com figuras estranhas de rabicho e cabaia (…)”. Houve ainda as histórias contadas pelo pai, vindas através de um amigo que conviveu com Camilo Pessanha, e a própria actividade do avô, em cujo comércio havia peças japonesas, “graças às diligências de Wenceslau de Morais”. Houve ainda a descoberta de Macau através da mão (e dos ensinamentos) de Monsenhor Manuel Teixeira e o prazer de redescobrir o Oriente com marcas de portugueses, sobretudo escritores, aqui se mencionando Pessanha, Camões, Bocage, Osório de Castro, António Patrício. E há também uma poesia que se nutre do ambiente das ruas povoadas, das paisagens, do clima, do folclore, da história, das mulheres, dos tufões, do encanto de Á-Má. O poeta vive intensamente o seu tempo macaense: “”Mergulho-me na vida, na voz deste bazar / Com lojas, tendas, vendedores de rua: / É um rio de rumor e cor, tentacular, / que flui, reflui e, de repente, estua.”
Em 1988, Couto Viana regressava a Portugal, vindo de Macau, onde assumiu um papel “de enamorado e pedagogo”. Foi um regresso sentido e difícil. Mas, passados quase vinte anos, é ainda forte o enamoramento por esse Oriente que viveu. Nesta palestra, tudo fica muito próximo do “breve roteiro lírico de Macau”, texto em prosa com que abriu o seu livro No Oriente do Oriente: “Chegas por mar. (…) E, neste primeiro instante, quase lamentas não ter aportado aqui, muitos séculos atrás, ao asilo da praia acolhedora, penetrado de lenda, trajando uns trapos sujos de cabaia do pescador que, por suprema felicidade, transportara no seu junco a divindade de A-Má (…).”
O Poeta no Oriente do Oriente é, assim, a palavra que revisita as terras e o tempo do fascínio, numa peregrinação em que a memória escrita e poética é uma forte aliada.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Dia Mundial da Poesia - é hoje!

Na 30ª sessão da Conferência Geral da UNESCO, em 15 de Novembro de 1999, foi decidido criar o Dia Mundial da Poesia, a ter lugar em 21 de Março, com início de celebração no ano de 2000.
Honra aos Poetas, pois! Escolho António Manuel Couto Viana para os representar. Razões? Porque tem lindos poemas; porque tem levado a vida a poetar (já com dezenas de livros publicados); porque é considerado um dos mais importantes poetas portugueses do século XX; porque sou seu amigo; porque tem vários poemas alusivos à quadra festiva que agora passa. Assim, ligando este Dia com as celebrações que marcam este tempo, apresento, de António Manuel Couto Viana, o poema

Páscoa
É tempo de Páscoa no Minho florido.
Já se ouvem os trinos dos sinos festeiros
Na igreja vestida de branco vestido,
Entre o verde manso dos altos pinheiros.

Caminhos de aldeia, que o funcho recobre,
Esperam, cheirosos, que passe o “compasso”
À casa do rico, cabana do pobre...
Já voam foguetes e pombas no espaço.

Lá vêm dois meninos, com opas vermelhas,
Tocando a sineta. Logo atrás, o abade
Já trôpego e lento. (As pernas são velhas?
Mas no seu sorriso tudo é mocidade.)

Com que unção o moço sacristão, nos braços,
Traz a cruz de prata que Jesus cativa,
Para ser beijada! Enfeitam-na laços
De fitas de seda e uma rosa viva.

Um outro, ajoujado ao peso das prendas
(Não há quem não tenha seu pouco pra dar...)
Traz, num largo cesto de nevadas rendas,
Os ovos, o açúcar e os pães do folar.

Mais um outro, ainda, de hissope e caldeira
Cheia de água benta, abre um guarda-sol.
Seguem-nos, e alegram céus e terra inteira,
Estrondos de bombos e gaitas de fol’.

Haverá visita mais honrosa e bela?
Famílias ajoelham. A cruz é beijada.
(Pratos de arroz-doce, com flores de canela,
Aguardam gulosos na mesa enfeitada.)

Santa Aleluia! Oh, festa maior!
Haverá mais bela e honrosa visita?
É tempo de Páscoa. O Minho está em flor.
Em cada alma pura, Jesus ressuscita!
António Manuel Couto Viana. Postais de Viana.
Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1986, pp. 12-14.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

António Manuel Couto Viana, 85 anos, hoje

No dia de hoje de 1923, nascia em Viana do Castelo António Manuel Couto Viana, filho de Manuel Couto Viana, figura importante para a vida cultural e social da urbe do Lima.
A marca do envolvimento cultural prolongar-se-ia na família através do próprio António Manuel Couto Viana e de suas irmãs, Maria Manuela Couto Viana (1919-1983) e Maria Adelaide Couto Viana (1921-1990), que constituíram um trio ligado à literatura, cultivado em vários géneros – a poesia, a narrativa, o memorialismo, o teatro.
De António Manuel Couto Viana ficar-nos-ão, sobretudo, o seu percurso lírico, bem como os seus escritos ensaístico-memorialísticos. Mas gostaria de destacar a primeira vertente, afirmada logo desde os primeiros escritos e ainda hoje, quando passam os 85 anos, cultivada.
Com efeito, foi logo no livro inicial, O avestruz lírico, de 1948, que ficou registado o seu estatuto de poeta, evidente nas duas estrofes de “O poeta e o mundo”, que recusam o circunstancialismo na poesia e afirmam o valor do eu nessa mesma poesia:

Podem pedir-me, em vão,
Poemas sociais,
Amor de irmão pra irmão
E outras coisas mais:

Falo de mim – só falo
Daquilo que conheço.
O resto… calo
E esqueço.


Depois, foi o prosseguir na senda da poesia, em regime de fidelidade a este propósito, com uma produção continuada e intensa, chegando a haver várias compilações da obra, fosse como reunião de “obra completa”, fosse como antologia, de que se referem títulos como Uma vez uma voz (Lisboa: Editorial Verbo, 1985), O velho de novo (Porto: Edições Caixotim, 2004) e 60 Anos de poesia (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, em 2 vols.). Paralelamente, um género como o memorialismo viu já vários títulos publicados por Couto Viana, com destaque para os ensaios dedicados a personalidades várias da cultura portuguesa (sendo impossível enumerá-las todas, gostaria de destacar os nomes de Sebastião da Gama e de David Mourão-Ferreira, com quem trabalhou e teve intensa relação de amizade), resultantes da experiência e do testemunho do leitor e do conhecedor da história de que tem sido contemporâneo, sendo justo assinalar obras como Coração arquivista (1977), As (e)vocações literárias (1980), Gentes e cousas d’Antre Minho e Lima (1988), Colegial de letras e lembranças (1994), Escavações de superfície (1995), Ler, escrever e contar (1999) e Poetas Minhotos, Poetas do Minho (2002-2005, em 3 vols.). Finalmente, o teatro, área em que Couto Viana foi não apenas actor ou conhecedor dos meandros da arte de representar, mas também autor, sobretudo no âmbito da dramaturgia que privilegiou o público juvenil e de que se pode ver a recolha em Teatro infantil e juvenil (Lisboa: Nova Arrancada, 1997), a partir da primeira peça, Era uma vez… um dragão.
As antologias, o conto, a crónica são ainda outras áreas que têm merecido a atenção deste autor. A sua obra revela uma atitude vincadamente lírica, denota forte presença do humor e da ironia e deixa-se conduzir, muitas vezes, por uma fina tonalidade aristocrática. Em Couto Viana, a sensibilidade, a escrita e a cultura caminham juntas.
Quando passam 60 anos sobre o seu título inaugural, quando giram 85 anos de um trajecto de vida dedicado ao saber e à arte, justo é que se felicite esta voz e este percurso!
[foto de Setembro de 2005]

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Memória: Fernanda Botelho (1926-2007)

Fernanda Botelho, falecida ontem, começou o seu percurso poético na revista Távola Redonda, em 1950, em cujo primeiro número (de Janeiro desse ano) publicou seis poemas. Dirigida por António Manuel Couto Viana e por David Mourão-Ferreira, a revista durou 20 números, tendo Fernanda Botelho participado com poemas nos números 1, 2, 4, 7, 8, 10, 12, 14 e 19/20, e com notas de leitura nos números 6 e 12. Nesse número inaugural da Távola, colaboraram, além dos directores e de Fernanda Botelho, nomes como Sebastião da Gama, Alberto de Lacerda e Luiz de Macedo. Seria ainda a Távola Redonda que, numa colecção dedicada a obras poéticas, publicaria em 1951, o primeiro livro de Fernanda Botelho, Coordenadas líricas.

"Seis poesias de Fernanda Botelho" no número inaugural de Távola Redonda (Janeiro.1950)

Apesar de o seu primeiro livro ser de poesia, foi como prosadora que esta autora ficou conhecida, depois de publicar títulos como O ângulo raso (1957), Calendário privado (1958), A gata e a fábula (1960), Xerazade e os outros (1964), Terra sem música (1969), Lourenço é nome de jogral (1971), Esta noite sonhei com Brueghel (1987), Festa em casa de flores (1990), Dramaticamente vestida de negro (1994), As contadoras de histórias (1998) e Gritos da minha dança (2003).
[Fotografia de Fernanda Botelho a partir de www.dn.sapo.pt]

sábado, 28 de julho de 2007

Couto Viana, Mourão-Ferreira e Sebastião da Gama: um trio numa geração

Um artigo de António Manuel Couto Viana na última edição da revista Prelo (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, nº 4, Janeiro-Abril.2007) reúne memórias sobre três figuras da cultura portuguesa nascidas na década de 20, que se tornaram emblemáticas na literatura a partir de meados da década de 40: David Mourão-Ferreira (1927-1996), Sebastião da Gama (1924-1952) e Couto Viana (n. 1923).
O texto acentua o seu cariz autobiográfico logo no título – “David Mourão-Ferreira nas minhas memórias de adolescente” – e poderá fazer parte de um já extenso rol de escritos memorialísticos de Couto Viana, cuja maior parte está reunida em livro – Coração arquivista (1977), As (e)vocações literárias (1980), Gentes e Cousas d’Antre Minho e Lima (1988), Colegial de letras e lembranças (1994), Escavações de superfície (1995) e Ler, escrever e contar (1999).
Ao longo das quinze páginas do artigo, Couto Viana relembra as afinidades culturais, literárias e geracionais com David Mourão-Ferreira a partir de um encontro ocorrido em 1946, ano em que, com 23 anos e vindo de Viana do Castelo, chegou a Lisboa. No ano anterior, já Sebastião da Gama tinha publicado o seu livro inaugural, Serra-Mãe. E é por aí que começa a relação – “Nesse ano de 1946, recebi de uma amiga de infância, Eugénia Aurora, a notícia de que o poeta Sebastião da Gama, autor do livro Serra-Mãe, por mim tão admirado, havia sido convidado por seu pai, Conde d’Aurora, para passar uns dias no seu solar de Ponte de Lima. (…) Eugénia falara-lhe de mim e desejava que nos conhecêssemos. Para isso, dera-lhe o meu contacto.” [sublinhado meu]
Regressado da sua viagem a terras do Lima, Sebastião da Gama não demorou a telefonar a Couto Viana, tendo sido aprazado encontro para o Café Chiado, em Lisboa. Quem esteve presente nesse encontro? Sebastião da Gama não apareceu sozinho; trouxe com ele Luís Amaro (n. 1923) e, no interior do café, juntaram-se a outro amigo de Sebastião, o jovem David Mourão-Ferreira. Assim se iniciava um caminho de amizade, em que todos os convivas estavam unidos pela poesia e a que muitos outros viriam a juntar-se...
Depois deste primeiro encontro, chegaram as afinidades culturais. E prossegue o memorialista: “Porque tínhamos amigos que prezavam a literatura, sobretudo a poesia, e partilhavam de iguais gostos estéticos, começámos a considerar-nos uma geração, bem diferenciada da anterior, a dos anos 40, voltada para o social, intitulando-se neo-realista.” Os encontros foram mais assíduos entre Couto Viana e Mourão-Ferreira, quer porque ambos moravam em Lisboa, quer porque ambos tinham também a paixão do teatro. Mas “a boémia nocturna espalhara-se por longos passeios na Lisboa pacata, às vezes na companhia de Sebastião da Gama”.
Tal convívio desembocou no aparecimento da revista literária Távola Redonda (que andava a germinar desde 1947, primeiro com o título proposto de Clima e, depois, de Arame Farpado, hipóteses que, na hora da decisão, acabaram por pender para o mito arturiano, aí se enaltecendo a poesia e a tradição, que viria a ser o encontro com o lirismo). “Com a concordância do núcleo fundador, o David, o Luís de Macedo, o Vaz Pereira, o Sebastião da Gama, o João Belchior Viegas, a Fernanda Botelho, o Fernando Guedes e o Fernando de Paços, Távola Redonda, ‘folhas de poesia’, vinha a lume no dia 17 de Janeiro de 1950, ainda que com a data de 15 desse mês. E prometia ocupar as bancas das livrarias, quinzenalmente.” Todos estes nomes viriam a assinar obra literária autónoma, com excepção de Vaz Pereira, que continuou a assinar na área do desenho e da ilustração.
O texto de Couto Viana continua, relatando a história do percurso literário que teve com Mourão-Ferreira. Mas, a partir daqui, os encontros, fossem eles físicos ou epistolares, entre Sebastião da Gama e Couto Viana foram ainda muitos, sobretudo por causa da Távola Redonda. Desde o Portinho da Arrábida, onde Sebastião da Gama vivia, as missivas para Couto Viana e para Mourão-Ferreira eram assíduas, tendo como motivo a qualidade e a publicação da revista, o aconselhamento, a crítica. Sebastião da Gama teve colaboração nos números 1, 6, 7 e 8 da Távola. Já postumamente, apareceram textos seus nos números duplos 16/17 e 19/20. A revista terminou o seu ciclo no vigésimo número, datado de 15 de Julho de 1954. Mas o número 16/17, saído em 30 de Abril de 1953, constituiu uma homenagem a Sebastião da Gama (que falecera em 7 de Fevereiro do ano anterior), vinda dos seus colegas de geração – Matilde Rosa Araújo (n. 1921), Júlio Evangelista (1927-2005), Couto Viana, Miguel de Castro (pseudónimo de Jasmim Rodrigues da Silva, a residir em Setúbal e “descoberto” para a poesia por Sebastião da Gama, n. 1925), Fernando Guedes (n. 1929), Mourão-Ferreira, Luiz de Macedo (pseudónimo de Luís Chaves de Oliveira, n. 1925), Cristovam Pavia (1933-1968), Artur Ribeiro (de Setúbal), Fausto Denis, João Sant’Iago (n. 1918) e Leonor de Castilho – e de alguns vultos já respeitadíssimos na cultura e na literatura portuguesa – José Régio (1901-1969), seu amigo, e Hernâni Cidade (1887-1975), seu professor e amigo. No texto “Para uma interpretação da poesia de Sebastião da Gama” aí publicado, Mourão-Ferreira escrevia que ela constituía “uma pessoalíssima e lírica epopeia de exaltação à Vida” e “uma das mais extraordinárias aventuras da Poesia portuguesa contemporânea”. Já Couto Viana exarou no poema “Lápide”, divulgado também nesse número, o desafio à memória: “Cada hora que somos nos desgasta: / O tempo é vil e a juventude é casta. / - Só merece viver quem morre cedo.” O ciclo da amizade firmou essa mesma memória.
[A primeira fotografia, de António Manuel Couto Viana, visto por Cília Costa, data de 9 de Junho de 2007, aquando da inauguração do monumento a Sebastião da Gama, em Azeitão; a segunda fotografia, captando um encontro entre Sebastião da Gama e David Mourão-Ferreira no Portinho da Arrábida, data de 1946.]