quarta-feira, 26 de maio de 2021

Um livro que convida para Setúbal



É com um cunho pessoal que a apresentação da obra Setúbal - Uma visão contemporânea se inicia, assinada por Maria das Dores Meira: “Todas as manhãs, quando começo mais um dia de trabalho, invade-me uma alegria incontida por ver como esta cidade, este concelho, mudou.” E, a finalizar essa nota: “Quando, todas as noites, saio do meu gabinete para voltar a casa, vou cansada mas com um sentimento de dever cumprido. Amanhã estarei de volta para mais uma jornada por Setúbal.” Assim, o livro, editado pela Câmara Municipal de Setúbal (2021), tem a marca do sentir da pessoa que tem presidido à autarquia sadina desde Julho de 2006, num registo que traz a partilha do sentimento entre o começo e o fim de um dia de trabalho, sugerindo que o prazer advindo deste olhar sobre a cidade e o concelho passa também pelo compromisso.

As dez partes em que a obra se organiza - Modernidade, Inovação, Tradição, Harmonia, Natural, Lazer, Sabores, Património, Cidadania e Pessoas - evidenciam um misto de características autóctones da região e uma apreciação do trabalho desenvolvido, tudo se conjugando num despertar para o bem-estar e o equilíbrio num “sítio onde é bom viver, onde vale a pena marcar presença”, ainda nas palavras de Dores Meira, sensação apoiada pela intensa presença da fotografia, que regista mais de quatrocentos instantes do concelho, a partir de ângulos conhecidos ou  captando novos olhares sobre objectos e paisagens que nos são próximos e comuns (devidas à lente de David Pereira, José Luís Costa e Mário Peneque).

A ligação das imagens a cada capítulo é cimentada por um texto que funciona como roteiro interpretativo, por lá passando os bairros, o urbano, o rio, a história, o trabalho, a empresa, o turismo, a pesca, o património, os sabores, a cultura, a Natureza, as ideias, a gente. Subscritos por Hugo Martins, Marco Silva e Susana Manteigas, numa abordagem muito acessível, os textos preocupam-se com a vastidão das ofertas e das coisas a ver e a sentir no território de Setúbal, por vezes com um apontamento que sugere fruições conjugadas com gostos pessoais - “há quem descubra no rio a tranquilidade para ler um livro e quem encontre a paciência para tentar a sorte com a cana de pesca” - ou o prazer das pequenas curiosidades a descobrir - da Gráfica de Santa Maria conta-se que “uma Heidelberg original continua a ter destaque na empresa, que, apesar de fiel à tradição, soube acompanhar a evolução dos tempos”, assim como, a propósito de livrarias, se fala da Culsete, mostrando-se o seu rosto actual e lembrando-se Manuel Medeiros na criação e promoção deste espaço, ou se passa pelo alfarrabismo da UniVerso, “caos harmonioso” de livros.

Os dois capítulos finais incentivam à prática da cidadania (um “olhar de dentro para fora”) e à chamada de atenção para personalidades que, pelos mais diversos motivos, são referências para Setúbal - se um passa por valores como a protecção do ambiente, a plena integração, a solidariedade, a defesa da valorização pessoal ou o incentivo para a igualdade  de género, o outro refere nomes que “ampliam o território”, num percurso que reúne mais de três dezenas de personalidades naturais de Setúbal ou ligadas à região.

Setúbal - Uma visão contemporânea é um interessante livro-documentário, capaz de apresentar o que somos a quem nos desconhece e de nos levar a descobrir formas plurais que fazem a nossa identidade.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 630, 2021-05-26, p 7.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Serafim Ferreira e o louvor dos editores



A experiência editorial de Serafim Ferreira (1939-2015) pautou-se por vários marcadores - Edições Saturno, Ulisseia, Círculo de Leitores, Portugália, Diabril, Fronteira. Em 1999, assinou o livro Olhar de Editor (reeditado em 2019, na Montag), doze capítulos e epílogo, assumida homenagem aos mentores de dezassete editoras de referência no mundo livreiro português - Luiz de Montalvor (Ática), Delfim Guimarães e Maria Leonor Cunha Leão (Guimarães Editores), Augusto dos Santos Abranches (Livraria Portugália, Coimbra), António Pedro (Confluência), Figueiredo de Magalhães (Ulisseia), Agostinho Fernandes e Augusto da Costa Dias (Portugália), Eduardo Salgueiro (Inquérito), Manuel Rodrigues de Oliveira (Cosmos), Américo Fraga Lamares (Civilização), Mário Figueirinhas (Figueirinhas), Viúva Moré e Ernesto Chardron (Lello & Irmãos), Manuel Rodrigues (Minerva), José Saramago (Estúdios Cor), Rogério de Freitas e Leão Penedo (Artis), Viriato Camilo (Prelo), Fernando Ribeiro de Mello (Afrodite) e Luiz Pacheco (Contraponto).

Os diversos capítulos assumem a forma de mensagens dirigidas ao amigo Luís Silveira (de quem há pistas ao longo da obra, ele também um devoto dos livros), organizadas como “desabafos entrelaçados em forma de narrativa”, num “propositado memorial”, em tempo de lembrança que a situação de reformado também permitia. Razão de ser para a escolha deste tema e deste grupo, regista-a Serafim Ferreira: “acho injusto como facilmente esquecemos os nomes daqueles que foram responsáveis pela publicação de tantos e tantos livros e de quem se ignora ou se perderam os seus nomes na confusão de títulos e de autores que ainda hoje se lêem”. Linhas adiante, apresenta o seu “propósito de erguer um memorial por alguns editores”, explicando serem escolhidos os “que cumpriram a sua acção no meio de grande desassossego”.

Os textos, muito próximos do género epistolar, com marcas de proximidade (pela coloquialidade sugerida ou por uma sintaxe não alheia à oralidade), cruzam o tom memorialístico e a biografia com algumas experiências testemunhadas pelo emissor e pelo destinatário (como a da discussão, em 1963, sobre a validade estética neo-realista, num debate em que também intervieram Cardoso Pires e Alexandre Pinheiro Torres). A construção deste livro, explica-a o próprio Serafim Ferreira, ao evocar Figueiredo de Magalhães: “perpassam por estas páginas ecos de muitas conversas, histórias e recordações de situações que vivi e não pude esquecer, me fizeram pensar o que penso da literatura, num misto de esperança e desencanto por valores que foram de ontem e ainda são de hoje.”

Desde o início da obra, a figura geométrica da leitura é o triângulo, cujos vértices são o leitor, o autor e o editor. E não será acaso Luiz Pacheco surgir como o último editor abordado (acumulando a perspectiva de escritor e de leitor), que, com “uma vida de sete e mais fôlegos, padeceu o que nem ao diabo lembra, mas fez a sua travessia na coerência e justa pretensão de publicar alguns dos bons livros que fez chegar às mãos de muita gente”, autor de “belíssimos textos marcadamente autobiográficos”, onde perpassa “a verdade sincera do que viveu dentro de si mesmo.”

O epílogo, reserva-o Serafim Ferreira para falar da sua derradeira experiência como editor, na Fronteira, reclamando o papel de agitador cultural, num percurso marcado por “intervir sem alienar e publicar sem nunca mercadejar”. Simultaneamente, este final é também a satisfação de ter partilhado histórias de que fez parte - os editores foram as suas personagens e o texto conclui com uma saudação ao amigo: “No fundo, acredita, foi agradável estar na tua e na companhia de tão boa gente.” Saudação que, por certo, abrangia também os seus leitores...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 625, 2021-05-19, p. 9.


quarta-feira, 12 de maio de 2021

Afonso Cruz - Por falar em livros...



“Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor.” Esta personificação sobre a resiliência dos livros é trazida por Afonso Cruz na sua recente obra O vício dos livros (Companhia das Letras, 2021), três dezenas de textos em que são contadas histórias relacionadas com livros, leitores e descobertas.

Tão interessante sensibilidade dos livros pode ser encontrada num texto intitulado “Porque não há muitos leitores”, exercício de reflexão sobre a vontade que não existe nos não-leitores para descobrirem a mensagem que escorre pelas páginas, com o argumento repetitivo da “falta de tempo”... isto é, para se ser mais claro, reconhecendo que ler dá trabalho e exige condições específicas - a atenção, o silêncio, o recolhimento, numa palavra, a dedicação do leitor, que nunca pode esperar uma compensação imediata.

Por estas incursões passam histórias sempre dominadas pela marca comum da valorização do protagonista que o livro assume ser. Umas são passadas com outros escritores e leitores - Kafka e as cartas de uma boneca para a sua dona-menina até um final feliz, Balzac e a sentida morte da personagem que era a duquesa de Langeais, Dionísio de Siracusa e os seus versos sem arte que nem o autoritarismo conseguiu impor, Eurípides e a força da poesia libertadora de escravos, a máxima que Ramsés II escolheu para a sua biblioteca - “casa para terapia da alma”. Outras ocorreram entre pessoas que sentem a vida pelas histórias que protagonizam - a avó quase centenária que se sentia útil por poder contar as suas memórias ou a discussão nos Montes Urais sobre a maior importância da poesia ou da prosa que levou a que o defensor da poesia matasse o seu oponente. Há momentos que foram vividos pelo próprio autor, relatados numa revisitação autobiográfica enquanto leitor - o adolescente que procurava a distância mais longa entre dois pontos para o tempo render em favor da leitura, a descoberta de uma escritora árabe para quem a leitura originou a sua libertação, a experiência são-tomense em torno do sabor e do afecto revelado pela atenção dada às palavras, a dedicatória deixada pelo avô num livro para o neto só descoberta vinte anos depois da morte do avô. E há a reprodução de muitas reflexões sobre a leitura, geralmente pontos de partida para associação de outras ideias ou para reflexão própria sobre o acto e o gosto de ler - de resto, a obra conclui com mais de três dezenas de referências bibliográficas, maioritariamente relacionadas com o triângulo formado pelo livro, escrita e leitura.

Algumas crónicas deste livro são curtas, quase não ultrapassando o apontamento. Outras surpreendem pelas associações e pelos extremos a que a paixão pelo livro pode levar. Em todas surgem verdades intensas sobre o acto de ler, num enredo capaz de enlaçar o leitor, que nelas acaba por se encontrar. É que “abrir um livro é abrir pessoas e explorar o nosso próprio mundo através da experiência dos outros. O território inexplorado dentro de nós é acessível através dessa imersão em personagens que nunca fomos e jamais seríamos ou talvez venhamos a ser, e em vidas que nunca tivemos e jamais teríamos ou vidas que serão o nosso destino. As personagens dos livros que lemos são o meio de transporte para o que não somos, ou melhor, para o que somos sem ser.” Afonso Cruz, leitor e construtor de personagens, dixit...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 620, 2021-05-12, p. 9.


quarta-feira, 5 de maio de 2021

António Manuel Ribeiro: de Almada para o Mundo


“Estamos em guerra - mas a invasão não é visível em colunas militarizadas, é invisível e não escolhe objectivos - vai a eito.” Fulminante, este texto de 13 de Março de 2020, início de confinamento e de pandemia! Oito meses depois, em 13 de Novembro, o título “Tenho saudades do meu país” choca e explica-se: “Que é o mesmo que dizer que tenho saudades de vós, da estrada negra que brilha, da poeira dos recintos, do som insistente da afinação da bateria (que me leva a fugir para longe), tenho saudades desse mosaico que é a festa de um espectáculo com os UHF entre os seus.”

Entre as duas datas, 52 crónicas e uma entrevista, assinadas por António Manuel Ribeiro, incluídas no livro De Almada para o Mundo - Crónicas do Isolamento (Aiemera, 2020), publicação que integrou um “cd” com o mesmo título, registo áudio do MMC (“Momento Musical Caseiro”) de 26 de Setembro. Os textos são provenientes das publicações facebookianas quase na totalidade; a gravação vale pelas onze músicas, mas também por homenagear a iniciativa que os UHF levaram a cabo quase semanalmente, os MMCs, iniciada em 11 de Março (cuja 52ª edição ocorreu há dias, em 1 de Maio), forma de o grupo contactar o mundo ao longo do confinamento, a partir de casa, tempo diferente que os músicos cruzaram “sem lamúrias, diminuídos de movimentos na estrada mas com o pensamento livre para criar o futuro”. 

As crónicas de António Manuel Ribeiro estão povoadas por uma vontade de partilhar vida e de fomentar a esperança, como se propõe em 14 de Março - “Não estou chateado, nem sequer deprimido, estou no meu aquário de escrita e canções. Mudei as minhas rotinas; sigo as directivas do governo. Aqui virei, pelo menos todos os dias, dar-vos o melhor de mim, a minha confiança.” Percebe o leitor que a permanência desta tónica se deve à necessidade de reforçar a forma de se ser humano - “ergam a vossa bonomia, cultivem o equilíbrio, desfrutem da alegria das pequenas coisas, não lutem com o medo, não existe, não o vêem e gasta muito de vós”, apela três dias depois. O convite para as precauções é permanente, lembrando a cada um a respectiva responsabilidade de ser.

Os temas abordados são plurais - o estado da arte, a coerência, aspectos biográficos e figuras da família, o significado das datas, as leituras feitas, a ligação às geografias da sua vida, situações do quotidiano, memórias de espectáculos, a discussão política, o olhar crítico, a cidadania, a liberdade, o papel dos “media”, o tratamento da língua portuguesa, uma panóplia de reflexões sobre a forma de ser e de estar, pautadas pelo desejo de comunicar e levar os outros a comunicarem e a serem um contributo para a solução necessária. O menos positivo do mundo também perpassa pelo quotidiano das crónicas - Bolsonaro e Trump, a morte do cidadão americano pelo joelho do polícia, o conflito do presente com a História do passado mais ou menos distante, o “drink” para que a ministra convidou os jornalistas, a “informação-covid”, a ilusão do “vai ficar tudo bem”...

Ficam também momentos sentenciosos importantes, pela aprendizagem que pressupõem e para que nos convidam, como este, de 29 de Maio: “Nunca me lamento, perante a realidade menos apetecível procuro uma saída. (...) Aprendi só a ser o que sou - um ser humano, não um ter humano. Um SER - do verbo nasce a acção.” Um pensamento que pode ser uma orientação, como vários outros que pelo livro circulam.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 615, 2021-05-05, p 5.