quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Albérico Afonso Costa e as datas de Setúbal

Sabe o leitor qual foi o primeiro rei a visitar Setúbal? Ou quando houve a primeira demarcação do concelho de Setúbal? Ou que Nuno Álvares Pereira foi impedido de pernoitar na cidade do Sado? Ou que Setúbal foi a terra onde D. João II casou com Leonor de Lencastre? Ou que navegadores diversos zarparam de Setúbal rumo aos Descobrimentos? Ou que Fernão Mendes Pinto em Setúbal se abrigou quando o barco em que viajava foi assaltado? Ou que uma postura do século XVIII punia quem cortasse árvores no campo do Bonfim com açoite público e degredo para África? Ou que aquele que viria a ser o marido de Ana de Castro Osório esteve preso durante um mês? Ou que, em 1918, militares idos de Setúbal sofreram pesadas baixas na Grande Guerra?
As perguntas são estas, mas podiam ser muitas outras e sobre tão diversas épocas. As perguntas são estas e correm como elementos seguros da identidade setubalense. E a fonte onde podemos encontrar as respostas é-nos trazida por Albérico Afonso Costa, no seu livro História e Cronologia de Setúbal (1248-1926) (Setúbal: Estuário / Instituto Politécnico de Setúbal – Escola Superior de Educação, 2011), com aparato gráfico agradável e facilitador da leitura surgido sob a responsabilidade de outro setubalense, José Teófilo Duarte.
Logo de início, o autor adverte-nos quanto às escolhas – “Numa cronologia, o desafio que está sempre presente é o da opção por este ou aquele acontecimento, no sentido de lhe determinar o significado, de lhe perspectivar as consequências, de o entender no seu todo enquanto elo da corrente histórica.” E o leitor segue, então, esse trajecto, resultante das escolhas feitas no tempo de Setúbal, num desvendar cada vez mais intenso, num querer saber mais e mais, sentindo as pulsações e os ritmos desta beira-Sado.
São quase trezentas páginas de datas e de acontecimentos, divididos em quatro partes – “Setúbal Medieval e Moderna” (entre o 15 de Agosto de 1248, em que abriu ao culto o mais antigo templo sadino, a igreja de Santa Maria da Graça, e o 15 de Dezembro de 1819, dia em que nasceu António Maria Eusébio, o poeta popular “Calafate”, conhecido como o “Cantador de Setúbal”, cujas cantigas mereceram o apreço de muita gente da cultura da época), “Setúbal Liberal” (entre 24 de Agosto de 1820, em que Setúbal assiste à criação de uma Sociedade Patriótica, angariadora de apoios para o regime liberal, e Outubro de 1910, quando surgiu uma greve dos carroceiros locais) e “Setúbal Republicana” (entre o 5 de Outubro de 1910, data de revoltosos e de incêndio na Câmara, e 28 de Maio de 1926, sem reacções ao golpe militar mas com o anúncio de que os trabalhadores da Câmara tinham começado o ano com salários em atraso).
Cada uma das partes é antecedida de um texto introdutório, apresentando resenha sobre o que de mais importante aconteceu em Setúbal nessa época, quase funcionando essas indicações como a estrutura axial da identidade desses tempos.
No final, o leitor pode percorrer uma listagem de bibliografia adequada, bem como um índice analítico (que bem mereceria ter sido mais demorado e completo por constituir um roteiro e um complemento importante numa obra deste género) e cerca de meia centena de páginas de “Iconografia Setubalense”, com reproduções fotográficas de documentos já raros na maior parte dos casos.
Com esta obra, Albérico Afonso Costa retoma uma prática que já iniciara em 1988, ao publicar uma breve Cronologia Geral da História de Setúbal (Setúbal: Escola Superior de Educação), mas dela se distanciando na precisão, quantidade de informação e datas encontradas.
História e Cronologia de Setúbal, radicando numa prática que já teve antecessores como Almeida Carvalho, Manuel Maria Portela ou Peres Claro (nomes que trabalharam, recolhendo e divulgando as datas de Setúbal), passa a constituir, pois, um elemento indispensável para qualquer pesquisa relativa à história local sadina. Não será apenas um repositório de datas, alinhadas com a precisão do calendário, ou um baú de curiosidades; é muito mais do que isso – um documento que se dá a ler com agrado, com discurso acessível e preciso, frequentemente acompanhado de imagens e de textos que funcionam como documentos, uns na versão integral, outros apresentados em resumos. Conhecer a identidade setubalense terá de passar, inequivocamente, por este trabalho de Albérico Afonso Costa – ela está lá, seja no que foi a construção deste local, seja no que foram os obstáculos e adversidades a essa construção, as migrações (ponto de partida ou de chegadas), as acções políticas que a Setúbal vieram ter ou que em Setúbal começaram (ou passaram), as ondas de industrialização, as formas de socialização, o associativismo ou a intervenção cultural.
Setúbal tinha falta de uma obra assim!

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Máximas em mínimas (76)

Descobrir
“Sempre que um povo ou um homem tenta desvendar e conhecer paragens até então ignotas, ou realizar um acto nobre e grande, parece que as forças da Natureza, ou a inveja dos outros homens tudo fazem para os não deixar vencer.”
João de Barros. “Os Lusíadas” contados às crianças e lembrados ao povo. 23ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1989, pg. 17.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Para a agenda - Paulino de Oliveira na prisão

Paulino de Oliveira (1864-1914), setubalense, escritor e adepto do Partido Republicano, passou um mês no cárcere graças a protesto lavrado na sequência dos acontecimentos que envolveram uma greve em Setúbal em 1890. Na sequência dessa prisão, Paulino de Oliveira registou testemunho na obra Em ferros d’El-Rei (Lisboa, 1893), com o sugestivo subtítulo de “Considerações acerca da minha prisão”.
O Centro de Estudos Bocageanos reeditou a obra na sua colecção “Clássicos de Setúbal”, com um prefácio de Daniel Pires, que será apresentada amanhã, pelas 16 horas, na Biblioteca Municipal de Setúbal.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Viriato Soromenho-Marques em entrevista

Florindo Cardoso (entrev.). O Setubalense: 15.Fevereiro.2012

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Azulejos do Mercado do Livramento, em Setúbal (VIII)

Quadro retratado pelos azulejos de Pedro Jorge Pinto no Mercado do Livramento, em Setúbal, peça que ficou destruída com o desabamento ocorrido em 7 de Fevereiro.
Uma vista geral de Setúbal...

Azulejos do Mercado do Livramento, em Setúbal (VII)

Quadro retratado pelos azulejos de Pedro Jorge Pinto no Mercado do Livramento, em Setúbal, peça que ficou destruída com o desabamento ocorrido em 7 de Fevereiro. Uma figuração do antigo mercado, o retrato de um tempo outro...

Azulejos do Mercado do Livramento, em Setúbal (VI)

Quadro do mundo rural retratado pelos azulejos de Pedro Jorge Pinto no Mercado do Livramento, em Setúbal, peça que ficou destruída com o desabamento ocorrido em 7 de Fevereiro. A lavra e a sementeira.



Azulejos do Mercado do Livramento, em Setúbal (V)

Quadro retratado pelos azulejos de Pedro Jorge Pinto no Mercado do Livramento, em Setúbal, peça que ficou destruída com o desabamento ocorrido em 7 de Fevereiro.
A cena evocada é do mundo rural: a rega do pomar.

Azulejos do Mercado do Livramento, em Setúbal (IV)

Um quadro retratado pelos azulejos de Pedro Jorge Pinto no Mercado do Livramento, em Setúbal, peça que ficou destruída com o desabamento ocorrido em 7 de Fevereiro.
Cenas de um mundo rural, nas vindimas...

Azulejos do Mercado do Livramento, em Setúbal (III)

Dois quadros retratados pelos azulejos de Pedro Jorge Pinto no Mercado do Livramento, em Setúbal, peças que ficaram destruídas com o desabamento ocorrido em 7 de Fevereiro.
As duas cenas retratadas evocam as colheitas da azeitona e do arroz.



Azulejos do Mercado do Livramento, em Setúbal (II)

Dois quadros retratados pelos azulejos de Pedro Jorge Pinto no Mercado do Livramento, em Setúbal, peças que ficaram destruídas com o desabamento ocorrido em 7 de Fevereiro.
As duas cenas retratadas bem podiam constituir um "ciclo do sal".



Azulejos do Mercado do Livramento, em Setúbal (I)

Três quadros retratados pelos azulejos de Pedro Jorge Pinto no Mercado do Livramento, em Setúbal, peças que ficaram destruídas com o desabamento ocorrido em 7 de Fevereiro. As três cenas evocadas bem podiam constituir um "ciclo do peixe".



Mercado do Livramento, em Setúbal - breve historial

Painel de azulejos da parede sul no Mercado do Livramento (O Setubalense, de 27.Junho.2005)

Nos primeiros anos do século XX, o poeta setubalense António Maria Eusébio, mais conhecido por "Calafate", dava a conhecer aos contemporâneos as suas décimas sob o título de "Recordações da Minha Vida", conjunto de memórias de quem viu as modificações sadinas ao longo de quase um século (1819-1911). Referindo-se à época em que apareceu o Mercado do Livramento, lembrava o "Cantador de Setúbal", a testemunhar o movimento dos produtos agrícolas naquele espaço: "Vi a nossa praça antiga / Com quarenta hortelonas / Da cidade e palmelonas / Muita velha e rapariga. / Cada qual na sua giga / Tinha o seu lugar marcado".
Construído na esplanada do baluarte do Livramento, junto à ribeira do mesmo nome, o Mercado do Livramento foi inaugurado em 31 de Julho de 1876, pelas seis horas da tarde, data em que passavam os cinquenta anos sobre o início da vigência da "Carta Constitucional".
Até essa data, o mercado funcionava em dois pontos da cidade: na Ribeira Velha, era vendido o peixe; num recanto da Praça do Sapal (actual Praça de Bocage), procedia-se à venda de produtos hortícolas. A dispersão e a falta de higiene terão sido duas razões que determinaram a construção do Mercado do Livramento.
Poucos dias antes da inauguração, a Câmara sadina publicou edital a avisar que, a partir da inauguração do Mercado, seria proibida a venda de "peixe, frutas, hortaliças, etc., nas praças onde até ao presente se expõem à venda aqueles géneros, devendo os vendedores, quer de peixe, quer de frutas e hortaliças, tomar os lugares que pretenderem no referido mercado pela ordem que lhes for indicada pelo fiscal". Por outro lado, a vigilância e controlo sobre as condições higiénicas dos alimentos em venda constituíam outra área de intervenção, tal como se pode verificar pelo noticiado no semanário Gazeta Setubalense, de 6 de Agosto de 1876: "O sr. Santana, fiscal do novo mercado público, fez enterrar duas porções de peixe arruinado que se estava vendendo ao público". Logo a seguir, o jornal lembrava: "Tem havido grandes abusos com a venda de peixe naquele estado e bom é que se não repitam".

o corte da fita
A inauguração do Mercado do Livramento ocorreu também em período da Feira de Santiago, tendo a Gazeta Setubalense informado que, no domingo que antecedeu a inauguração, cerca de mil e quinhentas pessoas tinham vindo a Setúbal de comboio, data em que a Filarmónica do Lavradio actuou no Passeio da Praia.
Se, presentemente, o Mercado encerra à segunda-feira, certo foi que a sua inauguração teve lugar nesse dia da semana, em cerimónia que reuniu a vereação actual e a anterior, tendo o Presidente da Câmara, António Rodrigues Manito, discursado sobre "a utilidade do novo mercado, considerado como meio higiénico e pela comodidade pública que dele resultará", como relatava a Gazeta Setubalense. O povo acorreu à festa de tal forma que a imprensa referiu que "quase todos os operários deixaram de trabalhar, associando-se assim na manifestação de júbilo que sempre deve suscitar um melhoramento tão importante". À noite, o Mercado "foi iluminado a gaz e por meio de balões de cores", com actuação da filarmónica da Capricho.
O edifício, com planta desenhada pelo apontador de obras públicas Marcelino Alemão de Mendonça Cisneiros de Faria, fora já apresentado pelo mesmo jornal, no dia anterior à inauguração: "o mercado forma um quadrilongo de 80 metros de comprido por 52 de largo; a sua fachada voltada para a Rua da Praia está encimada com as armas do município abertas em mármore; tem 33 casas bem construídas, duas das quais servem para estação fiscal do município e alfândega e as outras para venda de géneros; em 7 rectângulos, simetricamente dispostos e separados por espaçosas ruas para trânsito público, há 44 mesas, 24 de pedra para venda de peixe e 20 de madeira para venda de hortaliça". A questão da limpeza do espaço e das bancas não fora esquecida: "dentro do mercado, há um poço, cuja água se extrai por meio de bomba e é conduzida por canalização às casas de salga e preparo das pescarias, onde existem os competentes canos parciais para despejo que comunicam com o cano geral".
As inovações eram de tal forma que, logo no ano seguinte, Alberto Pimentel registava na sua obra Memória sobre a História e Administração do Município de Setúbal que "Lisboa não possuía ainda um mercado relativamente tão bom como este" e enaltecia as condições do Mercado e a sua localização, "pois que fica a igual distância dos dois bairros extremos da cidade, o de Tróino, a oeste, o de Palhais, a leste". Poucos anos depois, Pinho Leal anotava, no nono volume de Portugal Antigo e Moderno, que o edifício era "incontestavelmente" um dos mais sumptuosos "deste género, que actualmente existem em Portugal".
Relativamente aos custos, Pinho Leal registou que a construção do Mercado custara 28 contos, verba obtida pela Câmara através de empréstimos. As previsões apontavam para um rendimento anual de três contos a favor da Câmara, importância que, rapidamente, reporia as verbas gastas. No início de 1877, com seis meses de funcionamento de Mercado, o fiscal Santana divulgava as contas, apontando receita líquida no valor de um conto e 679 mil réis. As quantias cobradas eram, no entanto, elevadas e motivavam queixas, como o deixou cantado o poeta Calafate: "Temos novo mercado / Para recreio da cidade. / Quem o paga somos nós, / Isto é a pura da verdade".

marco da cidade
Em função do desenvolvimento sentido em Setúbal, por decisão camarária da equipa presidida por Carlos Botelho Moniz, o Mercado viria a ser demolido para, no seu lugar, ser construído outro, com obra iniciada em 1927 e concluída três anos depois. Durante este período, a venda dos produtos passou a ser feita em barracões construídos na Praça Almirante Reis (actual Largo dos Combatentes).
Mais uma vez, o mês de Julho foi o escolhido para a inauguração das obras. Em 10 de Julho de 1930, era retomada a actividade de venda no Mercado do Livramento. O jornal O Setubalense desse mesmo dia registava: "no amplíssimo Mercado pairaram a alegria e a satisfação de todos os setubalenses; foi dia de festa para os que de há muito almejavam este benefício; dia de regozijo para os que edificaram, duma vez para sempre, uma obra digna, que bem serve a nossa cidade".
O novo Mercado, com exterior ao gosto "Art Déco" da época e colunas em ferro fundido, inseriu, na parede interior sul, vários painéis de azulejo, legendados, de teor folclórico, assinados por Pedro Jorge Pinto (1900-1983) e executados por Lena, datados de 1929 ("Descarga das Redes", "Transporte do Sal", "Reparação das Redes", "Recolha do Sal", "Descarga da Sardinha", "Salga do Peixe", "Setúbal - Vista Geral" e "Colheita da Azeitona") e de 1930 ("A Vindima", "O Antigo Mercado" e "Rega do Pomar"). Um outro painel inserido no mesmo conjunto e datado da mesma época, "Lavra e Sementeira", foi restaurado em 1991 por Andreas Stocklein.
Posteriormente, as duas entradas do lado norte, a partir da Avenida Luísa Todi, foram também decoradas com painéis de azulejo, contendo quadros da cidade, do Sado e do campo, não legendados, datados de 1944, pintados por Rosa Rodrigues e feitos na Fábrica Battistini.
Constituindo uma atracção, estes painéis, fazendo recuar a história até ao antigo mercado na Ribeira e enaltecendo marcas da identidade que fez Setúbal, associados ao valor arquitectónico do edifício, colocaram o Mercado do Livramento na rota cultural da cidade.
No entanto, os painéis azulejares da parede sul tiveram, a partir de Maio de 2010, de ser sujeitos a protecção, porquanto caíram várias das peças decorativas, tendo sido aventada a hipótese de reconstituição num regime de parceria. Entretanto, as condições do Mercado tiveram de ser sujeitas a melhoramentos e, no início de Outubro de 2010, o edifício foi encerrado e submetido a obras de reconversão e reorganização de espaços, tendo os serviços de fornecimento e venda continuado a funcionar em terrenos adjacentes de uma antiga conserveira e em instalações improvisadas nas ruas Ocidental e Oriental do Mercado. As obras duraram cerca de um ano, acontecendo a reabertura em 11 de Outubro de 2011, com uma remodelação que, de uma forma geral, agradou, ainda que sem o funcionamento dos espaços comerciais da galeria do primeiro andar, cujas obras se mantiveram em curso.
Os painéis azulejares da parede sul permaneceram protegidos e foram introduzidas novas obras de arte da autoria de Augusto Cid – as esculturas de figuras típicas do Mercado, representado o descarregador de peixe, a vendedeira de galinhas e de ovos, o homem do talho e a vendedeira de flores, peças oferecidas pela Fundação Buehler-Brockhaus.
Na tarde de 7 de Fevereiro, o país foi surpreendido com a derrocada total da parede sul do Mercado do Livramento, que provocou cinco mortes a trabalhadores que executavam obras de ampliação do espaço destinado ao Mercado. O saldo foi trágico nesse acidente ocorrido pelas 17 horas ao não terem sido poupadas vidas humanas. Com o desabamento, desapareciam também os octogenários painéis de azulejos. O Mercado esteve encerrado até averiguação das condições de segurança e reabriu quatro dias depois, em 11 de Fevereiro. Entretanto, a Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão (LASA), ao mesmo tempo que tornou público o lamento pelas vidas perdidas, defendeu a reconstituição dos painéis de azulejo.


sábado, 11 de fevereiro de 2012

As paixões de Fernando Assis Pacheco contadas por Nuno Costa Santos

São duas centenas de páginas, recheadas com algumas fotografias, que constituem Trabalhos e paixões de Fernando Assis Pacheco (Lisboa: Tinta da China, 2012), de Nuno Costa Santos.
O título parte de uma obra do biografado – Trabalhos e paixões de Benito Prada (1993) –, romance sobre um antepassado galego. E esta obra é, de alguma maneira, o romance de Fernando Assis Pacheco (1937-1995), o contar da sua vida, do seu quotidiano, quase o trazendo à convivência, seguindo-lhe os passos.
É biografia na medida em que alguém conta uma vida de alguém. Mas foge do estilo canónico da biografia, demarcando-se mesmo do carácter de estudo e de ensaio que a biografia também é, optando o autor por uma escrita mais próxima do género da reportagem jornalística, em que são recolhidos testemunhos, muitos testemunhos, de quem conviveu e conheceu o biografado, pessoas que falam mais do que as obras do próprio, citadas, é certo, mas sem serem a tónica desta obra.
Muito mais do que a obra de Assis Pacheco passa por aqui o seu trajecto – o canto familiar, os locais de trabalho, os refúgios para a escrita, os prazeres da gastronomia, os amigos, as disposições, as geografias e os fragmentos da vida, os hábitos, as teimosias. E as memórias de quem com ele conviveu.
Leitura fácil e próxima, este livro é ponto de encontro de todas as vozes que privaram com Fernando Assis Pacheco e que, quase dúzia e meia de anos volvidos sobre a sua despedida, o tornam presente, ficando ao leitor a sensação de que, num destes dias, se cruzará algures com esta personagem que caprichava no convívio, nas histórias, no humor e no prazer de viver.
Recorrentemente, é o discurso do biografado que nos visita, saltando das entrevistas dadas, em excertos que dialogam com os testemunhos recolhidos, sem se lhes sobreporem, ficando mesmo a ilusão de que estes encontros são recentes e são reais.
Para alguém que foi jornalista e contador de histórias, uma biografia só se poderia entender desta forma, isto é, uma longa peça jornalística, que não um estudo, que não uma moldura, que não um retrato distante. E se tivesse o seu quê de poético, mesmo que apenas com os versos do herói, tanto melhor. São estes atributos que permitem ao leitor esse encontro com Fernando Assis Pacheco. Só falta mesmo a fotografia que memorize essa conversa entre os dois… e, já agora, aprofundar algumas questões que vão ficando em aberto ao longo do livro ou, pelo menos, tratadas de passagem…

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Sebastião da Gama, 60 anos depois

Já lá vão 60 anos sobre o 7 de Fevereiro de 1952, data em que, logo pela manhãzinha, a vida abandonava Sebastião da Gama no Hospital de S. Luís, em Lisboa, depois de, na véspera, ter sido transportado desde o seu Estremozinho… A última palavra que terá dito, sabemo-lo pela Joana Luísa, mulher do poeta, foi “poesia”, conforme ainda recentemente recordou na reportagem publicada na revista do jornal Sol. E não deixa de ser curioso, no mínimo, que o percurso poético de Sebastião da Gama se tenha iniciado na infância, com uma quadra engendrada depois de uma visita à Arrábida, para reportar à família uma descoberta – “Fui passear / à serra da Arrábia / e encontrei / uma mulher grávia” –, e se tenha concluído com essa palavra que lhe foi mágica, a “poesia”, já pronunciada com a dificuldade de quem sentia que lhe fugia!...
Sebastião da Gama foi poeta na vida e na escrita. Isto é: Sebastião da Gama foi, sobretudo, poeta e viveu poetando. Em 27 anos que peregrinou, escreveu, escreveu, escreveu. Publicou três livros, de títulos sugestivos, dando a ideia de uma sequência que emergiu de um ponto que lhe foi âncora forte – a Arrábida – para chegar à totalidade de um espaço livre, universo franco à poesia, depois da passagem do cabo. Veja-se essa trilogia: Serra Mãe (1945) – Cabo da boa esperança (1947) – Campo aberto (1951). Que mais completo itinerário se poderia desejar? Bem ele dizia: “meu caminho é por mim fora”…
No dia 8 de Fevereiro de 1952, a Azeitão acorreu um universo de admiradores e amigos, aí se reunindo, não apenas os conterrâneos, mas também os seus colegas (Mourão-Ferreira e Lindley Cintra, por exemplo), os seus professores (Hernâni Cidade, por exemplo), os seus alunos (Nicolau da Claudina, por exemplo, o jovem que não resistiu ao fascínio do mestre e, a pé, fez o caminho entre Palmela e Azeitão para a última despedida devida ao seu professor). A comoção terá sido muita, imagina-se. Os jornais noticiaram. E David Mourão-Ferreira, o amigo que talvez mais tenha escrito sobre Sebastião da Gama – fosse como análise da obra, fosse como testemunho memorialístico –, registou o facto no seu diário, peça ainda inédita, inscrevendo no dia 9: “Lisboa. 3 horas da tarde, Pastelaria Herculano: Ontem, enterro do Sebastião. Estava um dia lindíssimo: atravessei o rio e fui, de camioneta, até Azeitão; apeei-me precisamente no local onde, há cinco anos e meio, ele me esperara, quando da primeira vez que fui à Arrábida. Desta vez, porém, não subimos a serra. Acompanhei-o ao pequeno cemitério da vila, onde agora repousa no ‘campo aberto’ que ele próprio previra. Era o melhor de todos nós, o Sebastião: o menos literato de todos nós.” O registo é curto, mas é comovente.
Nesse 7 de Fevereiro de 1952, passam agora 60 anos, iniciava-se a memória de Sebastião da Gama. Para trás, ficava um percurso feito de alegria e de humor, num desafio permanente à vida; ficava a convicção da aliança com a Natureza, celebrada pela palavra e materializada também na defesa da serra (uma carta sua, de 1947, foi o ponto de partida para a criação da Liga para a Protecção da Natureza, no ano seguinte); ficava uma experiência pedagógica vivida e relatada de forma ímpar, que ainda hoje é uma revelação e uma pista para professor que se preze; ficava uma obra constituída por cerca de novecentos poemas (muitos ainda inéditos), centenas de cartas (a sua epistolografia não foi ainda estudada e só uma pequena parte está publicada), um diário, diversos ensaios; ficava uma vida cimentada de leituras, muitas e variadas, de escritos que lhe foram contemporâneos ou anteriores a si, de latitudes distintas; ficava uma licenciatura e um percurso de professor, a todos os títulos julgado ímpar (pelos alunos, pelos seus orientadores e professores, pelos seus colegas); ficava a passagem de testemunhos para outros (Mourão-Ferreira reconheceu, em diversos momentos, o quanto ficou a dever a Sebastião da Gama nos faróis literários que lhe apontou, mesmo de outras literaturas que não a portuguesa); ficava uma colaboração intensa em jornais e revistas, num percurso por vários pontos do país (desde Braga até Elvas); ficava uma colecção de poemas dispersos por livros de curso, num gesto de dádiva aos amigos... Tudo isto num percurso que não ultrapassou a idade de 27 anos, num trajecto em que as primeiras assinaturas em poemas surgiram em 1939 (um itinerário literário de pouco mais de doze anos), num caminho que foi traçado a par com uma doença de recuperação suspeita e que acabaria por o vitimar – a tuberculose manifestara-se-lhe por 1938.
Uma vida intensa, feita de literatura e de olhares sobre o mundo. De que ficou uma obra que merece ser lida e estudada. Sebastião da Gama sempre quis que os amigos e os leitores dissessem o que pensavam da sua obra. A correspondência e os encontros que teve com Torga, Pascoaes, Régio e muitos outros aconteceram a pretexto da admiração, mas também com o fito de saber o que eles pensavam sobre os seus escritos. Assim, foi extremamente criterioso no que publicou e na forma como o fez. Quando morreu, tinha já ordenado outro livro, que viria a ser dominado pelo verso conhecido “pelo sonho é que vamos”. A publicação da sua obra prosseguiu em edições póstumas, num trabalho que se ficou a dever, sobretudo, a Joana Luísa da Gama, a mulher que teve a sensibilidade suficiente para não deixar que a obra de Sebastião se finasse com esse 7 de Fevereiro… mas que teve também o concurso cuidado de amigos como Lindley Cintra, Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Lourdes Belchior, Hernâni Cidade, Luís Amaro, Couto Viana e António Osório. É graças a esta constelação que, hoje, podemos continuar a conviver com a palavra de Sebastião da Gama, um poeta que não se deixou enredar em escolas e que serviu a taça do lirismo a todos os convivas da mesa literária.
Que melhor forma de concluir esta evocação senão com as palavras de Ruy Belo, também poeta? Ele, que foi o primeiro prefaciador de uma obra de Sebastião da Gama que não fez parte do seu círculo de amigos, que nem o conheceu pessoalmente, escreveu na revista Rumo, em 1957: “Um poeta é o que foi. Está aí. É assim. (…) Sebastião da Gama é um poeta integral (…). O que sai da sua pena aparece transmutado, digerido, obtido através de um conhecimento co-natural em que a distinção entre matéria e forma, se existe, equivale à distinção entre obra e não obra (…). A esta luz se pode apreciar a sua autenticidade. Nem nos impõe a sua própria vontade de homem, que fica lá atrás com a vida, com as suas circunstâncias, com a sua biografia, nem a sua voz se faz ouvir devido a razões extra-literárias. (…) Nem romântico, nem social, portanto. Poeta, simplesmente.”
Sebastião da Gama aí está, pois. Sessenta anos volvidos, merece a nossa leitura. É a melhor forma de construirmos a memória e de o homenagearmos.
[Na foto: lápide colocada na casa onde Sebastião da Gama viveu até aos 14 anos, em Azeitão, em homenagem que ali foi prestada em Fevereiro de 1953]

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Há 95 anos, em Brest, os portugueses preparavam-se para entrar na guerra...



Há 95 anos, em 30 de Janeiro, partia de Lisboa para França o primeiro contingente do Corpo Expedicionário Português para combater na Flandres. Três dias depois, desembarcavam em Brest, de onde seguiriam por cerca de 800 quilómetros até à zona de guerra. Faz agora 95 anos, andariam os nossos primeiros soldados por Brest ou a partir de lá, saudade e surpresa, aventura e desconfiança estampadas no rosto. A descoberta de um outro mundo e forma de viver, a sensação da guerra e da possibilidade de não regressar, a revolta e a obediência, a inferioridade em relação aos outros exércitos, o frio e a neve, o mistério, uma outra língua… Há 95 anos, permanecia uma guerra que já levava cerca de dois anos e meio e que, inicialmente, se pensava que ficaria resolvida em pouco tempo, ainda antes do Natal de 1914! Ficou, de facto, resolvida antes do Natal… mas de quatro anos mais tarde, em 1918, com os resultados que se conhecem…
Em 1940, estreou em Lisboa o filme João Ratão – O Soldado que foi à guerra, assinado por Jorge Brum do Canto. Uma das músicas nele incluídas é o “Fado das Trincheiras”, com música de António Melo e letra de João Bastos e Félix Bermudes, apresentado pela voz de Óscar de Lemos. Mais tarde, o fado foi interpretado por Fernando Farinha, aqui reproduzido a partir do You Tube.
Há 95 anos, a guerra. Há 95 anos, portugueses em terras de Brest, a caminho da carnificina. Há 95 anos, a Primeira Grande Guerra.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

"Ó malta da minha terra" - Teatro de revista em Azeitão

São cerca de duas horas numa viagem por quadros da história de Portugal, apresentados com graça, humor, algum sarcasmo, música e cor, muita cor. É a revista Ó malta da minha terra, levada a cabo pelo grupo de teatro da Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense, de Azeitão.
Cerca de setenta pessoas, no seu amadorismo e paixão, enfeitam o palco e dão vida a uma história de Portugal “como nunca ninguém ouviu… e, muito menos, viu”, em três dezenas de quadros que vão sendo ligados pelas personagens Luso Manél, Britânico Richard e Nativo Sábado, uma escolha multicultural.
Sendo uma abordagem de história(s) de Portugal, em que o primeiro quadro é a “criação do mundo”, há também a homenagem ao próprio género e à arte dramática, haja em vista a presença do quadro “Molière e a revista” e daquele que fecha o espectáculo, intitulado “Os pais do teatro e a revista”, evocativo de Gil Vicente e de Almeida Garrett.
Alguns números surgem bem achados, pela surpresa, pelo trabalho e pelo relevo, como são os casos dos episódios de Afonso Henriques, da chegada ao Brasil, da padeira de Aljubarrota, da Maria da Fonte, do aeroporto de Beja (este com um cenário repleto de humor, como o da companhia Aero Pias ou a sinalética dos serviços do aeroporto ou o quadro das "xigadas" e das "abaladas") ou do quadro sobre Lisboa (com um belo texto e muito bem transmitido). Pelo meio, porque de uma viagem à(s) história(s) se trata, há também a poesia de Fernando Pessoa e de Camões, que animam o quadro dos Descobrimentos, claro.
O guião e os textos são da autoria de Carlos Zacarias, a direcção musical é de Cristiano Dias. O espectáculo repete hoje, pelas 21h30, na sede da SFPA, e merece bem a visita.