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quinta-feira, 14 de julho de 2022

Donzela Teodora, entre a beleza e a inteligência (1)



Na cena V do primeiro acto de Frei Luís de Sousa, a peça com que Almeida Garrett quis renovar o teatro português (1843), a adolescente Maria discursa sobre o dever de os governantes atenderem aos mais necessitados em tempo de miséria, sendo interrompida pelo tio, Frei Jorge: “A minha donzela Teodora! Assim é, filha; mas o mundo é doutro modo: que lhe havemos de fazer?” Garrett não relata a história de Teodora, mas bem podia contá-la, mesmo que transferindo esse conhecimento para o saber de Jorge; conhecia-a, por certo, ele que era dado aos romances e lendas populares, como sabemos pela publicação de Adozinda (1828) e de Romanceiro (1843 e 1853).

Poucos anos antes de ser publicado Frei Luís de Sousa, tinha havido uma edição do folheto História da donzela Teodora em que se trata da sua grande formosura e sabedoria (1827), obra “traduzida do castelhano em português” por Carlos Ferreira Lisbonense. Antes desta edição, já outras tinham existido, pelo menos nos anos de 1712, 1735, 1741 e 1749, e outras ainda apareceriam na segunda metade do século XIX (conforme registos da Biblioteca Nacional de Portugal).

Começa a história com informação sobre o espaço e a principal personagem: em Tunes, rico mercador da Hungria, visitando o mercado, vê à venda “formosa donzela cristã”, espanhola, não hesitando em comprá-la ao negociante mouro. Acordado o negócio, “mandou-a ensinar a ler e a escrever e aprender todas as artes que pudesse, a qual se inclinou tanto à virtude e estudo que excedeu a todos os homens e mulheres que naquele tempo havia, tanto em Filosofia, com em Música e outras muitas artes.”

Tempos passados, “como todas as coisas neste mundo sejam mudáveis e inconstantes”, o húngaro perdeu a fortuna, disponibilizando-se a donzela para se enfeitar adequadamente a fim de que o mercador a levasse à presença do rei Miramolim Almançor para ser por este comprada por “dez mil dobras de bom ouro vermelho”. O rei, que “estimava muito ver perfeitas e formosas donzelas”, estranhou o valor pedido, argumentando o negociante que a donzela não seria vencida por nenhum sábio em qualquer ciência e acrescentando Teodora que aprendera “as sete artes liberais, a arte de astrologia e as propriedades das pedras, águas e ervas e das qualidades que tem toda a casta de animais e aves que Deus criou no mundo” e que sabia “também cantar música e tocar instrumentos melhor que pessoa alguma.”

Criado este ambiente na narrativa, fica o leitor com curiosidade quanto ao desfecho e à sorte das personagens. Apesar da auto-confiança da jovem, o rei carecia da prova do saber, pois que a da beleza lhe estava perante os olhos. Foram assim convocados três sábios para testarem Teodora - um especialista em Leis e Mandamentos de Deus; outro, “muito letrado em toda a Ciência, Lógica, Medicina, Cirurgia e também grande Astrólogo e Filósofo e em todas as Artes muito entendido”; o terceiro, “muito sábio em Filosofia, Gramática e em todas as sete Artes Liberais”.

Os dois primeiros, questionando sobre os signos e as suas características, as qualidades do homem e da mulher, a religião e a influência dos signos na medicina, atestaram a superioridade da “muito sábia” Teodora pelas suas respostas prontas e abrangentes.

O terceiro sábio, o judeu Abraão Trovador, considerando os seus antecessores “de pouco saber”, desafiou: “não sou tão simples como os outros sábios que tão vilmente tens vencido”. A provocação foi um bom ponto de partida para a história ganhar um novo impulso e despertar ânimo no leitor, intensificado pela resposta com que Teodora vai comprometer a discussão.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 888, 2022-07-13, p. 9.


quarta-feira, 6 de abril de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (4)



O terceiro folheto de temática bocagiana composto por António Maria Eusébio, o “Calafate”, intitula-se Cantigas para Guitarra dedicadas ao aniversário do grande poeta Elmano, o Bocage, publicação de quatro páginas, surgida em 1911, ligada ao primeiro aniversário bocagiano celebrado no regime republicano.

Em 9 de Agosto desse ano, a Câmara de Setúbal decidira instituir o dia 15 de Setembro, data de aniversário de Bocage, como feriado municipal, tendo a primeira celebração ocorrido durante três dias, entre 15 e 17 de Setembro.

As décimas do “Calafate” relatam o entusiasmo vivido na cidade - “Muita gente madrugou / P’ra ver nascer esse dia, / Até alguém cuidaria / Que não vinha, mas chegou. / N’Avenida se juntou / Nobre, rico e pobre artista, / Todos empregavam a vista / Para as bandas do Oriente, / P’ra ver, em aurora luzente, / O dia quinze setembrista.” A adesão popular, a quantidade de visitantes e o ambiente festivo merecem pinceladas fortes do poeta repórter - “Todo o Povo está contente, / Tem muita razão p’ra estar, / Muitos vivas há de dar / Aos autores desta festa, / Porque outra igual a esta / Só Setembro a pode dar.”

A apologia de Bocage, a sua fama, a necessidade de testemunhar e de dar continuidade à memória são acentuadas neste folheto, constando também algum espírito crítico e adesão à decisão republicana de celebração do nascimento de Bocage, pois os grandes eventos bocagianos anteriores tinham ocorrido sempre na data do falecimento - “Foi festa de luzimento / Que se fez pelo centenário, / Só o seu aniversário / Estava no esquecimento. / No dia do seu nascimento / ‘Stava a praça despovoada, / Estando a memória guardada / Por galegos andarilhos; / Setúbal, p’rós seus filhos, / Tinha uma dívida atrasada.” No meio de tal entusiasmo, António Maria Eusébio tem ainda uma palavra para um dos setubalenses que mais pugnaram pela memória bocagiana, Manuel Maria Portela, falecido em 1906 - “Que glória não teria / Portela, se fosse vivo, / Ele que era tão activo / Nos dotes da poesia.”

Se as outras celebrações bocagianas (inauguração da estátua em 1871 e festa do centenário do falecimento em 1905) tinham sido pontuais, ao ter sido feita a opção pela festa do aniversário estava garantida a continuidade da memória bocagiana e a sua celebração anual, aspectos que o “Calafate” antecipa - “Esta festa tão vistosa / Far-se-á para o futuro, / Para não ficar no escuro / Uma data gloriosa. / Bocage é que já não goza / Do seu alto monumento, / Nem vê o acompanhamento, / Melhor que o seu centenário. / Pobre, rico e operário / Festejam o seu nascimento.”

O folheto conclui com uma ideia que o “Calafate” já expusera nos versos de 1905 - a memória bocagiana ficará incompleta sem que se saiba dos restos mortais do poeta: “Tem aqui sua memória, / Seu corpo onde estará?”

Numa associação feliz, o nome de Bocage seria ainda usado em décimas de cunho publicitário que o “Calafate” redigiu para alguns dos seus patrocinadores, como o Mendes Chapeleiro - “Bocage é bom que apareça / (...) / No dia do seu aniversário, / com algum chapéu na cabeça. / (...) / Vão até ao chapeleiro Duarte, / Que tem lá para escolher.”

Não conhecendo a obra bocagiana pela leitura, António Maria Eusébio conseguiu ser um divulgador da memória bocagiana pela história que lhe foi contada, pelo respeito pela memória e pelo empenho nas coisas e nos acontecimentos da terra que o viu nascer.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 822, 2022-04-06, p. 8.


quinta-feira, 31 de março de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (3)



O centenário bocagiano de 1905 foi intensamente vivido em Setúbal, com o jornal O Elmano a envolver a população. Houve hino a propósito; conferenciou-se, recebendo Setúbal palestrantes como Manuel de Arriaga (1840-1917) ou Teófilo Braga (1843-1924); foi cunhada moeda de prata; o artista João Vaz esculpiu a lira que passou a adornar o monumento a Bocage; o cortejo de 21 de Dezembro foi apoteótico, com carros alegóricos, iluminações e filarmónicas; os participantes setubalenses nesse dia de festa rondaram os quinze mil, além de seis mil “forasteiros”, vindos sobretudo da capital.
António Maria Eusébio, no folheto Cantigas para Guitarra, de quatro páginas, publicado ainda em 1905 ou em 1906, reportou o evento em quatro poemas, como anuncia logo na primeira quadra, mote para o primeiro conjunto de décimas - “Parabéns irmão Bocage / Para ti nada faltou / Do teu primeiro centenário / Segunda memória ficou.” -, evidenciando o sucesso das realizações e a comparação, na grandiosidade simbólica, com o que acontecera 34 anos antes, na inauguração do monumento a Bocage. A impressão que ficou no “Calafate” foi tão intensa que a primeira décima se inicia pela hiperbolização - “Não é no século actual / Nem outro que há de vir / Que algum povo há de assistir / A um centenário igual.” No seguimento da narração, depois de considerar que “foi festejo extraordinário” (com “quatro arraiais”, “três sociedades”, “duas bandas regimentais”, “quatro oradores”), aconselha o poeta: “Se no teu itinerário, / Encontrares Camões, / Conta-lhe as manifestações / Do teu primeiro centenário.”

O segundo poema toma como assunto a limpeza que foi feita à estátua por um “peneireiro” habilidoso, fala de alguma desolação pelo final da festa (“Agora tudo tornou / Ao seu primeiro estado / Está o festejo acabado / Sem haver perdas nem danos / Para daqui a cem anos / Ficou tudo preparado.”) e denuncia o facto de não ter sido permitido ao “velho cantador” aproximar-se do centro do evento - “Também quis acompanhar / Esse teu rico festejo, / Mataram-me o meu desejo, / Não me deixaram passar. / Antes eu queria levar / Um bofetão no meu rosto, / Mas sofrendo esse desgosto / tornei p’ra trás, vim-me embora.”

A adesão de António Maria Eusébio a Bocage decorria das informações que lhe chegaram através de uma conhecida figura setubalense, que teve o condão de divulgar a história, as ideias e a importância do poeta, como reconhece: “Quando eu ignorava / Quem Bocage tinha sido, / Tive um velho conhecido / Que dele muito falava. / Valia ninguém lha dava, / Seu saber estava oculto, / Depois que houve o tumulto / Da sua inauguração, / Muitos dizem, e com razão, / Bocage foi grande vulto.” Consegue-se inferir a referência a Manuel Maria Portela (1833-1906), um dos maiores promotores da figura de Bocage em Setúbal.

No último poema do folheto, o tom é algo mais brejeiro. Referindo a conservação da escultura bocagiana, anota: “Tu estavas tão mascarrado / Dos pés até ao pescoço, / Agora és um rapaz moço, / Barba feita e cu lavado.” E, quanto à lira deposta na base do monumento, ri o “Cantador” - “Tens uma lira afinada / Que custou tanto dinheiro, / Sendo tu tão bom gaiteiro / Já não dás uma gaitada.” A finalizar, o “Calafate” exagera, dizendo ao poeta maior: “Ainda hás de ser aclamado / Por D. Bocage primeiro” e “Também hás de ser c’roado.”

À sua maneira, António Maria Eusébio contribuía para a promoção de Bocage, prolongando o inebriamento da festa que honrara o poeta...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 817, 2022-03-30, pg. 5.


quinta-feira, 24 de março de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (2)


Reconhecendo a distância cultural e social entre si e Bocage, o “Calafate” dialoga com a memória de Elmano Sadino, tendo-lhe dedicado três dos seus folhetos e algumas décimas avulsas.

O primeiro, Cantigas dedicadas ao Centenário do grande poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, de 1905, antecedeu a celebração do centenário do falecimento do poeta, ocorrido em 21 de Dezembro. Na primeira quadra, é assinalada a coincidência biográfica quanto a Dezembro (falecimento de Bocage, em 1805, e nascimento de António Maria Eusébio, em 1819) - “Bocage dá-me licença / Que eu quero falar de ti, / No mês do teu centenário / Tu morreste e eu nasci.” -, proximidade logo contrariada pela diferença cultural (“Bocage tinhas nascido / Para ser astro brilhante / E eu nasci para ignorante / E nada ter aprendido.”) e pela distância social (“Sou um velho sem valor, / Ao pé de ti sou um pobre; / Tu filho d’um homem nobre / E eu filho d’um pescador.”) O poema termina a lamentar a forma de se afirmar a memória - “Só uma falta conheço, / E talvez haja outras mais, / São os teus restos mortais / Não estarem ao pé de teu berço.”

Nas décimas seguintes, o elogio bocagiano sublinha a vida difícil que levou, oposta à glória de que se revestia passados cem anos - “Este é o senhor da festa, / O poeta setubalense, / Tudo isto lhe pertence, / Mas para ele já não presta. / (...) / Foram precisos cem anos / Para ser tão festejado”. Bocage é ainda comparado com Camões, pela miséria em que ambos acabaram - “Se mais tivesse vivido / Sofreria privações, / Seria o que foi Camões, / Que foi na vida esquecido.” Neste preâmbulo aos festejos do centenário, é relembrado que também “em Dezembro a sua imagem / Teve a inauguração” (referência à festa de 1871, aquando da inauguração da estátua) e regista-se o envolvimento social e as influências - “O lojista e o proprietário, / O poeta e o camarista, / todos estes fazem vista / Na festa do centenário. / Não lhes falta o numerário, / Nem falta a boa vontade; / Nenhum tem necessidade / De certos expedientes, / De homens tão influentes / Grande é a sociedade.”

Seguem décimas sobre diversos assuntos elmanistas: biografia bocagiana (valorização da sua arte, alistamento no Regimento de Infantaria de Setúbal, relação de Bocage com o dinheiro e com a vida nocturna, passagem pela prisão, morte em Lisboa); familiares de Bocage que o “Cantador” ainda conheceu - o padre Francisco Barbosa du Bocage (“Este padre espiritual / Chorava pela sua cela: / No convento de Palmela / Foi freire e conventual.”) e Maria Luísa du Bocage, casada com João Lima (“Pois dos Bocages viventes / Só um ramo está em cima, / É o ramo Bocage Lima, / Um dos últimos parentes.”); comparação da “obra rica” do homenageado com a “obra pobre” do “Cantador”; reconhecimento de Bocage em Portugal e no Brasil e necessidade de haver sempre um monumento em sua honra em Setúbal.

Quase no final do folheto, duas décimas reflectem sobre o talento e a fortuna, aproximando-se o “Calafate” de Bocage quanto à sorte, pois sente-se “ora farto, ora faminto, / como Bocage viveu.” A conclusão acontece em quatro décimas, diálogo entre Bocage e o autor, gesto de proximidade social, em que, após agradecimento ao patrono, o “Cantador” se despede - “Seja eu bom ou ruim, / Minhas cartas estão dadas; / Já tenho as contas fechadas / Brevemente darei Fim.”

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 812, 2022-03-23, pg. 9.