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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Sublinhados - José Rodrigues Miguéis, "O Espelho Poliédrico"



O Espelho Poliédrico, de José Rodrigues Miguéis (Lisboa: Estúdios Cor, 1972), é um conjunto de textos em que o cronista se assume como “simples narrador de histórias reais e experiências inventadas” (como refere no intitulado “O galo, o estudante e o professor”), embora algumas vezes povoando esses mesmos textos com uma dose de memorialismo, mesmo que tenha registado algo como: “Não escrevo memórias, talvez nunca as escreva: a não ser transpostas em ficção, ou quando um flash de lembrança, como agora, me ilumina.” (em “O Corcundinha”). No final da obra, lá vem a “nota do autor” a explicar que as crónicas são um conjunto vasto e diversificado de “memórias, comentários e ficções” e a indicar a origem - publicadas no Diário de Lisboa, na sua maioria, entre 1968 e 1971, algumas inéditas e outras surgidas em várias publicações periódicas.

Sublinhados
Automóvel - “O automóvel é também um prolongamento mórbido da personalidade e da sensibilidade: ao mais leve contacto, risco ou amolgadela no verniz da carroçaria ou nos niquelados, pior que insultos ou facadas; se alguém se me atravessa no caminho, me obriga a desacelerar a marcha, me ultrapassa ou me rouba o precioso parking - eu pulo fora do carro, espumante e de punhos em riste, pronto a insultar, a agredir, a matar até, como é frequente, o transgressor dos meus sacratíssimos ‘direitos’. O carro fez dos homens autênticos artrópodes metalomecânicos, lavagantes desmiolados, impessoais, isolados entre si pela carapaça de duas toneladas de aço-lata com motor e quatro rodas, capaz de esmigalhar ossos, carnes e nervos, na qual andam metidos e conduzem (ou são conduzidos) sem verem os seus semelhantes: com a mesma anarquia de sentimentos, a mesma fúria, indiferença ou hostilidade com que andariam entre inimigos ou em terra conquistada.” (“Sua Majestade o Automóvel”)
Eternidade - “A Eternidade não é feita da soma dos dias, dos instantes, mas do aprofundamento de cada instante, de cada átomo, de cada ser, em que a própria matéria se dissolve.” (“Enterro de um Poeta”)
Homem - “É nas mínimas circunstâncias do quotidiano que os homens, por vezes, melhor revelam a sua têmpera.” (“O galo, o estudante e o professor”)
Juventude - “O tempo da mocidade é curto, mas denso de afectos e actividades.”  (“Levanta-te e Caminha”)
Mudança - “As coisas, quando mudam, é: a) para melhor; b) para pior; c) para ficarem na mesma. Esta saída é mais frequente do que se imagina.” (“Aforismos e Venenos de Aparício - III”)
Ódio - “Os ódios e rancores não se calam nem à beira do túmulo.” (“Requiem para Junqueiro”)
Palavra - “Vale mais um pensamento lúcido, embora sem palavras, do que a verborreia a mascarar o vácuo ou pobreza das ideias.” (“Aforismos e Venenos de Aparício - III”)
Política - “O a-politismo é quase sempre uma política de sinal contrário (ou resulta nela).” (“Levanta-te e Caminha”)
Vida - “A vida é feita de tanta coisa! E nem toda a sabedoria se aprende nos livros.” (“A garrafa de conhaque”)

sábado, 23 de agosto de 2014

Máximas em mínimas - Manuel Jorge Marmelo numa história da Grande Guerra



Depois de ler A guerra nunca acaba, de Manuel Jorge Marmelo (Lisboa: Glaciar, 2014), na colecção “100 anos da Grande Guerra” (nº 3), que está a ser publicada semanalmente pela revista Sábado:
Certeza – “As certezas da vida são a coisa mais efémera que existe.” (pg. 39)
Felicidade – “A felicidade e o seu reverso são como duas faces da moeda que é a vida.” (pg. 41)
Guerra – “As guerras são quase sempre motivadas pela cobiça desmedida de um grupo muito pequeno de homens, os quais sacrificam os restantes à sua ambição e ao objectivo de subjugar povos e países que consideram inferiores; os impérios são edificados sobre um número incontável de cadáveres, sem que se perceba muito bem para que serve um império; os impérios não duram para sempre e, por isso, constituem de algum modo uma espécie de frivolidade.” (pg. 30)
Guerra – “As guerras nunca acabam. É impossível ganhá-las. Cada guerra e cada um dos seus mortos carregam a semente da guerra seguinte. (…) Desde o primeiro homem que matou o seu semelhante por soberba ou cobiça que estamos a repetir continuamente o mesmo círculo de ódio e vingança.” (pg. 89)
Homem – “O homem é o mais cruel de todos os animais, excepto quando é o mais bondoso dos seres vivos.” (pg. 53)
Morte / Memória – “A morte mais absoluta é esquecer e ser esquecido.” (pg. 38)
Morte (em guerra) – “Numa guerra, qualquer sítio é bom para morrer. Pode-se morrer a lutar, a fugir ou encolhido num buraco como um rato do campo.” (pg. 8)
Perda – “Nada é mais perigoso do que um homem que perdeu alguma coisa que lhe faz falta.” (pg. 83)
Vontade – “Os impulsos e as angústias individuais são uma força tremenda, tão poderosa em certas circunstâncias como a vontade de mil homens. (…) Um único desaire é suficiente para mudar para sempre o destino de alguém e até, se calhar, o rumo da História.” (pg. 33)

sábado, 28 de dezembro de 2013

Máximas em mínimas - Afonso Cruz


Depois de ler Afonso Cruz, em Os livros que devoraram o meu pai – A estranha e mágica história de Vivaldo Bonfim (Alfragide: Editorial Caminho / Leya, 2010), um percurso por muitas leituras e pelo que delas ficou, eis frases que são marcadores:

Árvore – “Para uns, a raiz é a parte invisível que permite à árvore crescer. Para mim, a raiz é a parte invisível que a impede de voar como os pássaros. Na verdade, uma árvore é um pássaro falhado.”
Consciência – “É dentro da sua cabeça que todos os homens são livres ou condenados.”
Homem – “Nós somos feitos de histórias, não é de a-dê-énes e códigos genéticos, nem de carne e músculos e pele e cérebros. É de histórias.”
Humano – “Se há seres vivos desumanos, só mesmo os humanos. Resultado: os animais humanizados tendem a voltar à sua condição primitiva, a de animais.”
Memória – “As memórias são a perspectiva do passado, mas não são a mesma coisa. Elas mudam com o tempo, não são crónicas postas em papel e descritas objectivamente com rigor. São coisas emotivas que variam a cada vez que são lembradas. As memórias são repensadas e vão-se tornando outra coisa. (…) As nossas memórias nunca são verdadeiras ou absolutamente verdadeiras, são apenas uma interpretação. Existem outras e ao longo dos anos vamos vendo o passado a uma luz diferente. As nossas memórias vão sendo vistas de diferentes perspectivas, conforme aquilo que aprendemos e conforme aquilo que sentimos no instante em que as relembramos.”
Vida – “A vida, muitas vezes, não tem consideração nenhuma por aquilo de que gostamos.”

terça-feira, 24 de julho de 2012

Máximas em mínimas (89)


“Ser imortal é insignificante; com excepção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível é saber-se imortal.”
Jorge Luís Borges, “O Imortal”, in O Aleph


quinta-feira, 19 de julho de 2012

Maria Barroso: "Cartas a Mário Soares" e uma biografia



Aos 87 anos, Maria Barroso resolveu partilhar a narrativa da sua vida com os leitores através da publicação das suas memórias e da correspondência mantida com o marido, Mário Soares, entre 1961 e 1974, num projecto co-editado pelo semanário Sol e pela Fundação Pro-Dignitate. É um conjunto de 18 volumes, publicados a ritmo semanal, em que a epistolografia ocupará 8 deles (Cartas a Mário Soares 1961-1974) e a biografia os restantes (Álbum de memórias). O trabalho foi coordenado pelo jornalista Vladimiro Nunes, que anotou as cartas e redigiu os volumes de cunho biográfico. Até ao momento, foram publicados cinco volumes deste projecto [o próximo sai amanhã, com o jornal Sol], sendo quatro deles da correspondência.
O primeiro volume da biografia ocupa-se sobretudo da história da ascendência de Maria Barroso, incidindo bastante sobre a actividade do pai, militar e republicano, alvo de perseguições e de prisões graças aos compromissos assumidos. O final do volume encontra Maria Barroso na sua infância em Setúbal, aos dezasseis meses (em Setembro de 1927).
Preocupação de Vladimiro Nunes é de contextualizar a narrativa no Portugal da época, com referências adequadas à vida política, cultural e social do país, com indicações cronológicas sobre acontecimentos e sobre outras personalidades que viriam a ser referências para o século XX português e que viriam a cruzar-se também com o percurso de Maria Barroso e de Mário Soares em muitos casos. Para a elaboração deste trajecto biográfico, Vladimiro Nunes teve como fontes a própria Maria Barroso, um vasto leque de amigos e de familiares da biografada e o arquivo de família, assim se justificando o título, que alia a capacidade da memória e a característica antológica dos eventos, das histórias e das personagens que fazem uma vida.
Quanto aos quatro volumes de correspondência já publicados, o leitor entra nos tempos de ausência de Mário Soares relativamente à família, fosse por estadias longas no estrangeiro, fosse pelos tempos de cárcere ou de desterro. As cartas de Maria Barroso para o marido são um ritual diário nesses tempos de ausência, muito próximas da escrita diarística, relatando o acontecido naquele dia, com considerações a propósito, por onde passam os registos da vida do Colégio Moderno (sobre os professores, sobre a gestão e organização, sobre as inscrições, sobre as obras, sobre as colónias de férias), o acompanhamento dos filhos João e Isabel (nos estudos, nas relações sociais, na educação), o cuidado prestado a familiares (sobretudo ao sogro, João Soares, na vigilância da sua saúde, no acompanhamento, na gestão das relações familiares), a gestão do património familiar (acompanhamento das obras na casa de Nafarros, da actividade no escritório de advocacia de Mário Soares e manutenção da casa de Cortes), as relações sociais (manutenção das amizades e presenças em eventos, muitas vezes em representação do casal ou do marido), a preocupação em minimizar os efeitos do afastamento (fazendo chegar à prisão livros, refeições por si confeccionadas, marcando presença nos escassos tempos de visita), as emoções (provas de afecto, considerações sobre a vida do casal, incentivo contra a solidão e a humilhação do estatuto de preso), a vida cultural em que estava envolvida (leituras, filmagens, sessões de poesia e de teatro).
Percebe o leitor que a intenção de Maria Barroso era a de tornar o mundo familiar presente a Mário Soares, assim impedindo que as interrupções da vida em comum equivalessem a descontinuidades e possibilitando que os projectos em que estavam envolvidos pudessem continuar a ser gizados a dois.
As cartas de Maria Barroso assumem também essa perspectiva de luta contra a solidão, passeando pelos relatos do quotidiano, mas demonstrando ainda as angústias e as dúvidas de quem não quer vacilar, de quem quer ser presente e vencer a distância, muitas vezes confessando o exercício de aprendizagem que aqueles afastamentos lhe proporcionam à medida que cresce a admiração pela forma como o marido enfrenta a adversidade da perseguição política.
No fundo, estas cartas são o retrato, a fixação do tempo comum possível naquelas circunstâncias, uma prova de cumplicidade efectiva na forma de fazer a vida com sentido, sempre com horizontes de esperança, muitas vezes matizados com as cores das plantas do jardim ou com os tons do dia, a evocarem momentos passados ou recortados por alusões a versos e à memória. São cartas que apaziguam quem as escreve e que pretendem idêntico efeito no destinatário, que se alicerçam na partilha e na comunhão para que o sofrimento das lonjuras seja, pelo menos, esbatido. Um belo documento humano e cultural, um bom testemunho de sinceridade e do que pode ser a vida de pessoas que caminham na mesma direcção!

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Homem (e mulher) – “Chego a pensar se de facto os homens merecem tanta ternura, tanta dedicação como aquela que algumas mulheres sabem dar. Afinal de nada serve a amizade, a dedicação, a profunda ternura de anos e anos lado a lado. A mulher chega a certa altura e está velha, gasta e já não serve – há que substituí-la por outra mais jovem, mais válida. Esta confusão, esta inversão de valores ou nos conduzem a uma atitude cínica e egoísta ou nos levam ao desespero. Sinto-me verdadeiramente atordoada com tudo isto!” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 2) – a propósito do divórcio previsto de um casal amigo, em carta de 19-08-1966]
Esperança – “A esperança é a mais linda flor que eu conheço mas a terra dela é o coração dos homens.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 3) – em carta de 29-02-1968]
Olhar em frente – “O voltarmo-nos excessivamente para dentro de nós próprios é que nos conduz muitas vezes a situações de angústia e de nervosismo. Se olharmos para a frente, para o que é jovem e espontâneo, por muito duro que seja o que nos rodeia, por muito violenta e injusta que seja a realidade que tenta esmagar-nos, há sempre maneira de encontrarmos dentro de nós a força e a coragem de seguirmos o nosso caminho, que é o caminho da dignidade e da compreensão humana.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 4) – em carta de 11-06-1968]
Palavra – “Duas pequenas palavras, repassadas de ternura e saudade, bastam, por vezes, para animar um coração desolado, para reanimar uma pessoa fatigada.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 4) – em carta de 08-07-1968]

sábado, 8 de outubro de 2011

António Damásio entre Shakespeare e Fitzgerald

Uma fotografia de António Damásio faz a capa da última edição do JL, saída na quarta-feira, abrindo porta para uma entrevista assinada por Maria Leonor Nunes e Luís Ricardo Duarte. Ciência, cultura e um percurso pessoal dão as mãos nesta conversa, de onde ressaltam as ligações com a literatura. Num trajecto entre a representação e a alma humana, entre Shakespeare e Fitzgerald, entre Hemingway e Hamlet.
Shakespeare – “Não tenho um autor preferido. Se tivesse que ter um ele seria, possivelmente, Shakespeare. (…) [Ele] foi muito mais longe no campo da observação do humano. Será nesse sentido o autor mais importante de todos os que li. E é especial, porque sendo um dramaturgo acaba também por no ser representado.”
Alma humana – “Todos os grandes escritores lidam com a mente e são capazes de fazer muitas observações interessantes e descobrir muito sobre os seres humanos. Mas não creio que mais profundas do que aquelas que fez Shakespeare ou quem quer que seja que escreveu aquelas peças.”
Hemingway – “Hoje olho para Hemingway e já não o acho espectacular como aos 16 anos. Vejo muito mais as limitações da pessoa e dos cenários em que trabalhou. Estive mais do que uma vez na sua casa, onde se suicidou, até experimentei a sua máquina de escrever. E pensando na cor das paredes, horrorosa, teria sido impossível para mim escrever em salas com aquela cor. Tudo isso pesa muito nos juízos que acabamos por fazer ao longo dos anos sobre os homens que achávamos extraordinários. Mas também tem que ver com a profundidade das obras. Há 40 anos, Hemingway era para mim mais interessante do que Fitzgerald. Hoje, é precisamente o contrário.”
Hamlet – “Só há uma personagem de ficção sobre a qual podemos reflectir a vida inteira: Hamlet. Aliás, grandes actores têm desempenhado o papel, dirigidos por grandes encenadores, e com tantas interpretações possíveis. O último Hamlet de Peter Brook e o mais antigo são muito diferentes. Porque Brook mudou e os actores são diferentes. O Hamlet de Christoph Clark não tem nada a ver com o de Lawrence Olivier, ou de Tony Richardson ou de Richard Burton. Tudo depende das personalidades que estão em jogo.”
Representar – “Tanto o teatro como o cinema são metáforas muito poderosas em relação ao que se passa na mente. Só que os filmes que se projectam no ecrã, tal como uma representação num palco, por melhores que sejam, são sempre incompletos em relação ao ser humano. Porque lhes falta o corpo. Ou seja, aplicam-se bem ao espírito humano, à maneira como o cérebro analisa o mundo exterior, assim como certos aspectos do interior, mas falta-lhes a ressonância que só pode vir de um corpo vivo. Aquilo que nós somos é muito mais completo. (…) O ser humano é o mais completo cinema possível, enquanto que o cinema propriamente dito é uma pálida representação do espírito humano.”

domingo, 11 de setembro de 2011

11 de Setembro, 10 anos

Dez anos sobre o 11 de Setembro, a data que arrecadou a marca da mudança no mundo, sobretudo no plano das relações entre povos e sistemas políticos, acentuada por sofrimento desmesurado.
É difícil escolher uma das memórias que retrataram esse dia, mas sempre me impressionou a fotografia captada por Richard Drew do homem em queda nas torres gémeas de Nova Iorque. Ainda ontem, num programa da SIC, o correspondente Luís Costa Ribas evocava essa fotografia para questionar o que teria pensado aquele homem, bem como todos os outros que tomaram idêntica decisão… Talvez a opção por uma corrida escolhida para a morte depois de se ter visto num beco sem saída, talvez o encontro da paz, numa fuga ao inferno, talvez... Mas fica também o sofrimento individual, o desespero, no meio da amálgama, sentido numa queda a velocidade vertiginosa num percurso de 400 metros, antecipadamente sabendo que a saída não seria para a salvação. E fica a figura humana, superior aos destroços, às alturas, aos conflitos… mas frágil e sempre vítima!
Nesse 11 de Setembro as vítimas foram quase três mil!

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia” dez cantos depois

A obra de Gonçalo M. Tavares Uma Viagem à Índia (Alfragide: Leya / Caminho, 2010) é daquelas que se começa a ler e não se descansa enquanto se não chega ao fim (aí incluindo o prefácio de Eduardo Lourenço), apesar de o seu autor, há dias, ter dito em Palmela que não seria necessário ler esta obra continuada, antes se podia começar num qualquer dos cantos que a alimentam.
O livro conclui com o verso “Bloom, o nosso herói”, em jeito de síntese do que foi toda a narrativa, uma apresentação das vivências de Bloom no seu itinerário pela vida e na sua viagem à Índia. Herói do século XXI, Bloom ruma para a Índia em busca da purificação. E, quando se pensa que tudo vai ser grandioso, vemos o herói a concluir a sua viagem em Lisboa, ofertando a sua mala com um exemplar raro do Mahabarata a um idoso desconhecido, na rua, e sabendo que é procurado pela polícia devido a dois crimes cometidos – assassínio do pai (imagem edipiana), que tinha assassinado Mary (mulher que Bloom amava, qual história de Pedro e Inês), e assassínio de uma prostituta em Paris.
O percurso de Bloom, numa narrativa várias vezes apelidada como epopeia, tem dois momentos importantes: a crença na perfeição e na purificação, buscada algures na Índia, depois de sentir a culpa do primeiro assassinato, e a desilusão trazida, depois de verificar que o mestre supostamente purificador era feito da matéria de todos os homens, roubava e conspirava. A decepção é forte, pois foi o resultado inesperado num destino onde era desejado o paraíso ou a utopia.
Bloom acaba perto do suicídio, impedido pela intervenção de uma mulher, aparente anjo salvador, apesar de ficar dito que “nada que aconteça poderá impedir o definitivo tédio de Bloom”. Com ele, apenas dele, só o velho rádio que pertencera ao pai, que “nem com a viagem voltou a funcionar”, imagem de uma purificação e de uma comunicação impossível, ironia sobre a solidão e a falta de companhia.
Neste trajecto sobre o homem só, há espaço para a reflexão sobre o mal e a maldade, numa viagem frequentemente pelo escabroso, pelas pedras que salpicam a vida. Se o texto se conclui com o termo “herói”, algo que rivaliza com a “inveja” que finaliza Os Lusíadas, certo é que, na lista de palavras que surge no final da obra como “Melancolia contemporânea – um itinerário”, a partir de pistas lançadas nas várias partes da história, a primeira é “razão”, mas a última é “tédio”, termo que, juntamente com “natureza”, tem o maior número de ocorrências nesse itinerário. Irónico, como o destino.
A epopeia de Bloom lembra a epopeia de Os Lusíadas, não apenas pela organização em dez cantos, em que cada um deles tem o mesmo número de estrofes que o poema camoniano, mas também porque o leitor consegue associar passos entre os dois poemas narrativos: os enganos e conspirações para atingir o herói, a ilha dos Amores parisiense, a existência de aliados, o feito “épico” várias vezes assinalado, as reflexões sobre o homem, a viagem, a história de Pedro e Inês (ou de Bloom e Mary), as reflexões sobre a guerra…
Livro de aprendizagem, num percurso repleto de máximas, bem se pode dele dizer que acaba por ser a epopeia do homem do século XXI, que não corre por grandes feitos, que sobrevive no meio de agressividades várias, que se desorienta por falta de pontos de ancoragem.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Haiti, 28 dias depois - milagre em busca de vida

A notícia e a fotografia estão na edição online do Público:
«Desidratado e malnutrido - Haiti: homem encontrado com vida quase um mês depois do sismo -Um homem foi hoje retirado com vida dos destroços do sismo que abalou o Haiti no passado dia 12 de Janeiro, quase um mês depois da catástrofe. O sobrevivente sofre de extrema desidratação e malnutrição, mas não parece ter sofrido nenhum traumatismo.»

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Máximas em mínimas (55)

"Os homens são as criaturas mais presunçosas - disse a cegonha. - Oiçam como são as conversas deles! E nem sabem dar um verdadeiro estalo com o bico. Enchem o papo com os seus dons de fala, a sua língua! É uma língua estranha. Correm para o ininteligível em cada viagem diária que nós fazemos. Uns não entendem os outros. A nossa língua podemo-la falar em toda a terra, tanto na Dinamarca como no Egipto. Voar também não sabem! Fazem viagens numa coisa descoberta e que chamam 'caminho-de-ferro' mas partem também por isso a cabeça muitas vezes. Fico com calafrios no bico quando penso nisso! O mundo pode existir sem homens. Podemos dispensá-los. Que nos deixem apenas rãs e minhocas!"
Hans Christian Andersen. "O sapo" (1866). Histórias e contos completos. Vila Nova de Gaia: Gailivro, 2005, pg. 643.

sábado, 17 de outubro de 2009

Máximas em mínimas (51)

SUPER-HOMENS OU SUPER-PERSONAGENS
“Os romancistas têm o condão de criar personagens super-humanas, cujas biografias nos fazem entrever angélicos habitadores das regiões cerúleas – porque na terra, por melhor que se esquadrinhe, não se encontram. Que, lá verdade, verdade: o Artista Máximo, às vezes, consente que à terra desçam anjos de incomparável formosura, com almas de pura essência divina. Mas só de séculos a séculos isso acontece. Também se Deus se lembra de encher o mundo de criaturas superiores, os romancistas perdem a originalidade e a faculdade de inventar.”
Manuel Boaventura. Contos do Minho. Barcelos: Companhia Editora do Minho, 1927, pg. 118.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Algumas verdades lidas em Saint-Exupéry

1. “Il faut longtemps cultiver un ami avant qu’il réclame son dû d’amitié. Il faut s’être ruiné durant des générations à réparer le vieux château qui croule, pour apprendre à l’aimer.”
2. “L’homme est animé d’abord par des sollicitations invisibles. L’homme est gouverné par l’Esprit. Je vaux, dans le désert, ce que valent mes divinités.”
3. “Les miracles véritables, qu’ils font peu de bruit! Les événements essentiels, qu’ils sont si simples! (…) L’essentiel, le plus souvent, n’a point de poids.”
4. “Un sourire est souvent l’essentiel. On est payé par un sourire. On est récompensé par un sourire. On est animé par un sourire. Et la qualité d’un sourire peut faire que l’on meure.”
5. “On prend de grands airs, nous les hommes, mas on connaît, dans le secret du cœur, l’hésitation, le doute, le chagrin…”
6. “La vie crée l’ordre, mais l’ordre ne crée pas la vie.”
7. “Notre ascension n’est pas achevée, la vérité de demain se nourrit de l’erreur d’hier et les contradictions à surmonter sont le terreau même de notre conscience.”
8. “Si le respect de l’homme est fondé dans le cœur des hommes, les hommes finiront bien par fonder en retour le système social, politique ou économique qui consacrera ce respect.”
Antoine de Saint-Exupéry. Lettre à un otage. 116e éd. Paris: Gallimard, 1954 [1ª ed.: 1945].

terça-feira, 10 de março de 2009

Máximas em mínimas (44)

O homem, esse conhecido
Os homens são iguais em todas as épocas, com os seus defeitos, contradições, crueldades, mentiras e algumas qualidades laboriosamente construídas e aperfeiçoadas à sombra do que se convencionou chamar civilização, e se algo mudou, até ao nosso tempo, foram as artimanhas, as justificações e os meios disponíveis para produzir o mal.
Mário Ventura. O reino encantado. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2005.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Quando D. Manuel Martins fala...

Foi no programa radiofónico “O Caminho de Emaús” no domingo passado. O entrevistado, uma personalidade bem conhecida em Setúbal, em Portugal mesmo: D. Manuel Martins, bispo na cidade do Sado desde 1975 até 1998, hoje Bispo Emérito de Setúbal. Da sua conversa, de pouco mais de dez minutos, quatro registos, todos eles fortes, uns por emoção, outros pela mensagem, outros ainda pela convicção.
Bispo de Setúbal – “Deus deu-me a graça de incarnar naquela terra. Procurei viver os problemas daquela gente. Ali passei 23 anos.”
Missão da Igreja – “A igreja tem como missão evangelizar. (…) Na evangelização há também uma missão profética e a igreja tem a missão essencial de proclamar a dignidade da pessoa humana. A igreja deve estar mergulhada até ao pescoço na vida dos homens.”
Direitos do Homem – “Falta tudo [para ser cumprida a Declaração Universal dos Direitos do Homem]. Muito do que é fundamental está a ser esquecido. Não vou mais longe. Falo só no que diz respeito ao trabalho e, se quiser, ainda afunilo mais e digo no chamado código do trabalho.”
Direitos – “A igreja deve incitar as pessoas a que reconheçam a sua dignidade, os seus direitos. Aqueles que têm responsabilidade estejam muito atentos para se evitar uma sublevação social onde tudo pode acontecer.”

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Máximas em mínimas (37)

Tendo deixado de ver as estrelas, os homens perderam a humildade, e com a humildade perderam a razão.
José Eduardo Agualusa. “Dos perigos do riso”. Fronteiras perdidas (1999)
[foto a partir de www.evanog.com]

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Máximas em mínimas (32)

Os homens, as coisas e a vida
A vida dos homens, a sua transformação, é rápida, vertiginosa; a da terra, a das coisas, leva séculos e dá-nos por isso uma impressão de eternidade.
Américo Olavo. Na Grande Guerra. Lisboa: Guimarães & Cª Editores, 1919.