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quinta-feira, 10 de abril de 2014

David Magno, um português em La Lys, em 9 e 10 de Abril de 1918



[9 de Abril] “O bombardeamento aberto às 4h15 vai alastrando, crescendo e aproximando-se como um imenso incêndio numa seara. (…)
Estou (…) assistindo (…) ao bombardeamento, ao despejo contínuo dessa cornucópia infernal, que em volta de nós vasa projécteis espantosos, muitos dos quais de trajectória mais curva se ouvem vir, uivando e dando a impressão da morte, a chegar de instante a instante!
A terra treme, o ar vibra, o arvoredo geme e a minha caserna oscila até aos alicerces. Nos seus subterrâneos, como os antigos cristãos que esperam a hora de serem lançados às feras, um punhado de almas rezam a oração do amor da Pátria e um punhado de corações batem uníssono de amor à vida. A igualdade da adversidade os une. Só eu não rezo, com medo de ter medo, mas em compensação alguém o faz por mim!
A ferme vai-se desconjuntando até que por fim vem a ser devorada pelo incêndio. Por aqui e por ali os tectos voam, as paredes fendem e os adobes despenham. A padieira e os umbrais a que me encosto esmagar-me-ão, mas… este é o lugar que o meu brio me determina! (…)
Chamo os poucos homens que me restavam, formo-os e parto mas, entretanto, a deslocação de ar produzida por uma granada de grande calibre sacode-nos. Os meus soldados lançam-se por terra para escaparem aos estilhaços e alguns até correm a procurar abrigos detrás das paredes de lona de uns anexos ao alojamento como se fossem paredes de aço! Depois erguem os olhos espavoridos para mim que, levantado, tenho rebuço de curvar a cabeça à morte que passa e continua a passar, assobiando árias macabras…
O espectáculo é como os nossos sentidos, habituados a bombardeamentos, jamais tinham visto. Campos de esmeralda a serem pontuados pelas explosões. Altos choupos decepados como vidas que desaparecem. O nevoeiro a envolver tudo em mais escura tragédia, porque o sol se recusa a iluminá-la. (…)”

[10 de Abril] – “Neste segundo dia, o fogo passou a ser mais renhido, incluindo granadas de gás, e as perdas sensíveis , principalmente entre os escoceses.
Com efeito, adiante de nós todos, nas primeiras e segundas linhas, já não existe desde ontem senão um extenso sepulcro português. Tantos corpos desfeitos na lama flamenga, embora com suas almas nimbadas de glória, devem sentir o peso das tropas e viaturas de um exército imperial. Os que não se renderam morreram. Sem dúvida, os mais heróis são estes. Os mais habitual e ingratamente esquecidos os mesmos. Mártires todos, sem deixar de contar os mutilados, feridos e gaseados. A aumentar o horroroso quadro, cadáveres inimigos em número muito superior se misturam com aqueles. Bandos de corvos, como águias negras, prussianas, vão assinalando a marcha vitoriosa.”
David Magno. Livro da guerra de Portugal na Flandres (vol. 1).
Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1921

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Em La Lys, na Flandres, há 94 anos

Na obra Notas do Cativeiro – Memórias dum Prisioneiro de Guerra na Alemanha [Lisboa: J. Rodrigues & Cª (depositário), 1919], Adelino Delduque ocupa o primeiro capítulo, intitulado “De Cense de Raux a Salomé-La Bassée”, transmitindo a visão do que ficou do 9 de Abril, dia da batalha de La Lys.
Datado de “Rastatt, Abril de 1918”, este texto é a memória do momento em que o narrador e camaradas seus (entre os quais o então tenente-coronel Craveiro Lopes) foram feitos prisioneiros pelos alemães em 9 de Abril. Depois da descrição do saque produzido pelos soldados inimigos aos souvenirs (“termo extremamente singelo e não sei se quase carinhoso, à sombra do qual fomos ficando sem as coisas que lhes iam apetecendo e que para nós em não sei quantos casos tinham além do seu valor intrínseco o da recordação que representavam”) que eram os objectos de uso pessoal (artigos de toilette, relógio, carteira, casaco e outros), torna-se forte a impressão causada pela destruição, pela ruína – dos homens e dos sítios:
«(…) A barragem de artilharia, essa música ensurdecedora e horrível de nove horas consecutivas, ouve-se já a maior distância. (…) Agora vamos ao longo da rua du Bois, antiga estrada que atravessava as linhas e que entre elas estava quase desaparecida. (…) A todo o longo há um horroroso espectáculo de carnificina. Jazem a um e outro lado numa verdadeira igualdade, nesta que só nestas condições é verdadeiramente igual, soldados nossos e inimigos. Há-os desfigurados, disformes, contorcidos, despedaçados, as mãos crispadas, o rosto profundamente contraído, mostrando bem o horror do sofrimento em que se debateram e em que morreram. Lutaram como soldados e diz-nos o aspecto que nos últimos momentos em que os rostos da lucidez lhe avivaram memórias que não falham, sentimentos que se não perdem, lutaram ainda desesperadamente para viver. (…) Foi por entre este horrível espectáculo que atravessámos as linhas. (…) O efeito do nosso bombardeamento íamo-lo encontrando a cada passo. Havia muitos cavalos mortos, muitas viaturas em destroços. Infelizmente, porém, não fora o bastante. (…)»

Adelino Delduque da Costa (10.Jun.1889-25.Jun.1953), natural de Viana do Castelo, foi oficial do Exército. Passou à situação de reserva como coronel em 1948. Participou no CEP, tendo sido feito prisioneiro em 9 de Abril; leccionou no Instituto dos Pupilos do Exército e no colégio Militar; foi Chefe do Estado-Maior do Estado da Índia e Governador do distrito de Damão. Pertenceu ao Instituto Vasco da Gama e à Comissão de Arqueologia do Estado da Índia. Foi autor de Notas do Cativeiro – Memórias dum Prisioneiro de Guerra na Alemanha (1919), Diu – Breve notícia histórica e descritiva (1928) e Os Portugueses e os Reis da Índia (1933).

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Menezes Ferreira, "O fuzilado" (1923)



O fuzilado, de Menezes Ferreira (1889-1936), é novela curta, ao jeito do ritmo de publicação da série em que se integrava – semanal –, tomando para ambiente a Grande Guerra, que outro não podia ser o contexto, cinco anos depois do seu termo, para o narrador – “eu sou um caturra da Grande Guerra e pesa-me deixar passar esta data do 9 de Abril sem lhes contar a lamentável história do meu amigo Harry Budd.” Para um combatente do Corpo Expedicionário Português (CEP), o 9 de Abril era data memorável e este volume da colecção, que saía às quintas, viu o público a 12 de Abril.
O narrador de O fuzilado (Col. “Novela Sucesso”. Lisboa: 1923) explica o efeito da presença na linha da frente sobre a memória, o que serve também de pretexto para justificar o tema: “Os que viveram aqueles torturados momentos da Guerra no tempo do Gross Bertha, dos gases asfixiantes e dos bombardeamentos feéricos do front, mal podem ainda alinhavar meia dúzia de ideias concretas ou quadros definitivos sobre a formidável tragédia” – forma de dizer que as memórias estão ainda muito vivas e não permitem uma distância analítica suficiente relativamente ao vivido, maneira de justificar uma história com laivos de humanidade e de valores, nela preponderando a afirmação da vontade do homem e até uma atitude contrária à guerra.
O tom é crítico quanto ao vivido na frente, um conjunto de “sucessos grandiosos, trágicos, brutais ou miseráveis que, uma vez abertos os diques da ferocidade humana, foram vividos em todos os campos de batalha, tanto de cá como de lá do arame farpado e até muitas vezes ali mesmo na Terra de Ninguém.”
Assim contextualizado o estatuto da memória, o narrador, dialogando com o leitor e aproximando os espaços e o tempo, convida: “os senhores não se importarão decerto a ir comigo ali à Flandres, no norte da França, onde uma mancha cinzenta que é a soldadesca portuguesa se agita, combate e sofre pela maior glória de Portugal”.
Antes de ser contada a história do herói Budd, há ainda lugar para contestar o retrato desfavorável que em Portugal estava feito sobre o CEP, sobretudo porque não eram consideradas as circunstâncias em que os contingentes desembarcaram em França – bem diferentes das que marcavam as tropas britânicas, por exemplo – com ausência de motivação e com medo e ignorância quanto ao saber com actuar perante o desconhecido – “uma vergonha”, conclui o narrador, para testemunhar de seguida que foram necessários três meses para haver mudanças. Se o tom utilizado serve para responder ao que fora a negativa opinião que tinha sido construída sobre o CEP pelos seus detractores – “eu bem sei que os senhores costumam sorrir-se incrédulos quando se fala nos dias afadigados e nos transes perigosos a que frequentemente se sujeitava essa mísera população das trincheiras” –, também não estará ausente uma crítica às parcas condições proporcionadas aos convocados portugueses.
A história do tenente Harry Budd ocupa metade do volume e conta-se rapidamente. Homem habituado aos combates, Budd fora nomeado intérprete das forças portuguesas em Laventie, uma vez que falava castelhano, pois tinha andado pela América do Sul. Apesar de habituado às guerras (participara em vários conflitos), Budd não escapou à chamada neurastenia das trincheiras e, num belo dia, por sua conta e risco, despediu-se dos amigos portugueses, dizendo “já estar chateado de guerras”. O que podia ser apenas uma atitude precipitada teve consequências, pois Budd decidira mesmo a sua retirada e, em presença dos superiores, recusou-se a cumprir uma missão arriscada – ele, que já cumprira tantas! –, tendo declarado por escrito a sua resolução de “não estar disposto a guerrear mais”.
Combatente galardoado por serviços prestados, a sua decisão foi responsável pelo seu infortúnio: “Na madrugada seguinte, quando no horizonte o sol rompia numa enorme sangueira por entre nuvens roxas de tragédia, o tenente Harry Budd, cinco citações, três ferimentos em combates, duas promoções e a Victoria Cross, caía ingloriamente junto aos muros arruinados de uma ferme, varado por uma dúzia de balas de um pelotão de execução.”
A história de Budd, que Menezes Ferreira apresenta, dá a dimensão da tragédia individual do combatente, que, estando no campo de operações, se revolta contestando a guerra e a carnificina. É com uma reflexão desse tipo que a narrativa se conclui: “Assim, o meu infeliz amigo, num supremo arranco de revolta, e com o sacrifício da própria vida, impusera pela primeira vez a sua vontade de homem e dispusera a seu talante da sua carne desprezível de soldado. Os outros que o julguem se puderem.”
Moralizador? O último fuzilamento português de que há notícia ocorreu justamente durante a Primeira Grande Guerra, em Setembro de 1917, quando um soldado condutor foi acusado de tentativa de passagem para o inimigo e o julgamento militar foi no sentido da execução. A história que Menezes Ferreira narra não resulta de traição, antes de uma decisão individual de pôr cobro à guerra e à matança. Mas, num conflito como este, não havia lugar para decisões individuais nem para objecções de consciência nem para recuos. Segundo a lógica bélica, Budd teria de continuar a matar; recusar isso podia ser uma libertação, mas também era matar-se a si próprio.

sábado, 9 de abril de 2011

Sobre o 9 de Abril [de 1918], em La Lys, na I Grande Guerra

«França, 11 de Abril de 1918
Minha muito querida Helena
(...) Quando receberes esta carta já saberás decerto que os boches fizeram um grande ataque à frente da nossa divisão da linha e de mais duas divisões inglesas. Executaram-no com 5 divisões sobre 3 divisões aliadas. A nossa estava no meio. Iniciaram-no com um bombardeamento brutal. A nossa gente aguentou-se lindamente, mas os ingleses cederam nos flancos, de um e de outro lado das nossas forças, e a nossa não se podendo aguentar mais teve de retirar. A luta foi épica; os homens portaram-se como leões. O terreno disputado palmo a palmo, a baioneta em luta corpo a corpo. As peças de artilharia disputadas a tiro de espingarda. (...)
Perante a superioridade esmagadora do número, as nossas tropas retiraram e estão agora concentrando-se cá muito à retaguarda. Outras divisões inglesas e escocesas de reserva é que estão agora lá disputando o terreno aos alemães.
As nossas tropas estavam para sair nesse mesmo dia das trincheiras e virem todos descansar à retaguarda. Foi pena que não tivessem saído um dia antes ou o ataque não tivesse sido um dia mais tarde. Todos os nossos batalhões tinham efectivos reduzidíssimos, pois de Portugal não vêm reforços desde o fim de Novembro. Se tivessem vindo, estou certo que não recuaríamos nem um passo e teríamos repelido os alemães. Mas, para protegerem meia dúzia de meninos que não querem vir como é seu dever, sacrificam-se todos os que cá estão. O não mandarem reforços é o maior crime que essa gente tem cometido. (...)»

Quem assim escrevia a partir da Flandres era o então major Manuel Maia Magalhães, em carta dirigida à esposa. No dia seguinte, em nova carta para Helena Bravo Torres, corrigia os números, escrevendo: «Disse-te que eles atacaram com 5 divisões contra uma nossa e duas inglesas, mas não foi: atacaram com 8, isto é, com 80 000 homens de infantaria além de muita artilharia as 3 de cá.»
Estas cartas, bem como as restantes enviadas a sua mulher, tiveram publicação recente, em edição organizada por Vitorino Magalhães Godinho - Manuel Maia Magalhães. Correspondência da Grande Guerra. Col. "Biblioteca de Autores Portugueses". Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2010.

Só um aparte: vi alguns jornais de hoje; nem uma palavra sobre a efeméride. A memória tem destas coisas!...

domingo, 20 de abril de 2008

O 9 de Abril na revista "Batailles"

O mais recente número da revista Batailles - L'histoire militaire du XXe siècle (nº 27, avril-mai.2007) traz como tema de capa “Les offensives allemandes de 1918” e dá algum destaque à colaboração portuguesa no exército aliado da Primeira Grande Guerra, assim como ao desastre sofrido em La Lys, em 9 de Abril de 1918.
“Les soldats portugais dans la Grande Guerre” é a primeira referência à participação lusa no conflito, assinada por Dominique Bussillet, que parte das seguintes ideias: “La présence portugaise aux côtés des Alliés pendant la Première Guerre Mondiale est peu souvent évoquée; elle est pourtant bien réelle. Mais quels motifs avaient pu pousser la toute jeune république portugaise à prendre part à un conflit que ne la concernait pas directement?” A questão é pertinente porque Portugal se mantinha fora dos conflitos europeus, mais ocupado com a política interna e com a segurança das colónias, ameaçadas por combinações internacionais, particularmente Angola e Moçambique.
Iniciada a Grande Guerra, a posição portuguesa adquiriu os contornos de uma “frágil neutralidade”, sempre na dependência da aliança com Inglaterra, até Março de 1916, altura em que Portugal decidiu aprisionar os barcos alemães que aqui estavam aportados, assim respondendo a um pedido inglês, e se tornou, em consequência, inimigo da Alemanha. Para Bussillet, o retrato da entrada de Portugal na Guerra tem razões plurais: “C’est donc un concours de circonstances et de raisons diverses qui motive cette décision du régime républicain portugais d’entrer dans le conflit: le souci de maintenir ses colonies, avec l’arrière-pensée de revendiquer sa souveraineté à la fin de la guerre, le besoin de créer une légitimité à une jeune république et de lui donner une identité distincte de l’Espagne, avec une véritable indépendance nationale, sans oublier l’envie du gouvernement en place de s’affirmer politiquement sur la scène européenne.”
A evocação passa ainda pela referência ao “milagre de Tancos” (“en un temps record, il s’agit de transformer des hommes qui connaissaient une vie paisible et plutôt rurale en combattants aguerris pour un conflit dont on connaît la dureté”), pela duração da viagem até à Flandres (3 dias de barco até ao porto de Brest e outros tantos de comboio até Aire-sur-La-Lys, a 30 quilómetros das trincheiras), pela descrição da vida dos portugueses na frente de 11 quilómetros que constituiu o “sector português” (tranquilidade no Outono e Inverno de 1917, ainda que com condições de vida adversas, e catástrofe de Abril, momento em que Gomes da Costa dispunha de 20 mil homens para defender 11 quilómetros enquanto os americanos tinham 60 mil homens para defender 14 quilómetros). O desfecho não poderia ser muito diferente do que foi, pois, como Bussillet refere, “les hommes souffrent du travail incessant de remise en état des tranchées, de leur mauvais équipement, des conditions climatiques, d’une alimentation plus que rudimentaire”, além de que “le moral est au plus bas et la propagande allemande ne manque pas de s’affirmer que le gouvernement portugais de Sidónio Pais ne veut pas de cette guerre”.
A batalha de La Lys integrou o programa de ataque Georgette, preparado pelo alemão Ludendorff. O massacre sofrido a partir das 04h15 de 9 de Abril fica caracterizado como sendo de uma “rare violence”, devida ao uso da artilharia pesada e do gás, cifrando-se, no lado português, na morte de 29 oficiais e 369 soldados e no aprisionamento de 270 oficiais e de 6315 soldados.
“Que s’est-il passé le 9 avril 1918?” é o segundo texto sobre a intervenção portuguesa, assinado por Yves Buffeteaut. A pergunta do título pretende encontrar resposta nos relatórios do general Horne e do general Gomes da Costa, ambos veiculando versões nem sempre coincidentes. O relator britânico atribui a responsabilidade do insucesso aos portugueses, mas Buffeteaut, depois de ler o texto do general português, conclui: “On comprend que les Portugais ont été littéralement assommés par le bombardement allemand et que les Britanniques ont aussi beaucoup souffert. Dans ces conditions, il semble que chacune des divisions se soit en quelque sorte repliée sur elle-même, tentant d’éviter d’être submergée, mais bien incapable de conserver ses liens avec les unités voisines. Dans ces conditions, les Portugais ne se sont pas comportés plus mal que les Britanniques et ne peuvent en aucun cas être tenus pour responsable de l’effondrement allié du 9 avril. Ils ont probablement résisté moins longtemps, mais leur division était évidemment plus faible et moins aguerrie que les unités voisines”.
Yves Buffetaut escreve ainda “Circuit de La Bassée”, um roteiro sobre os cemitérios e a memória de militares estrangeiros na região, com destaque para o Cemitério Militar Português, em Richebourg, e para o monumento de Teixeira Lopes em La Couture, inaugurado em 1928, em pedra e bronze, com recurso à alegoria – na parte da frente: “La scène se déroule devant les ruines d’une église gothique. Devant une arcade, le Portugal, représenté dans les traits d’une femme armée de l’épée de Nun’Álvares, le héros légendaire de l’indépendance du pays, encourage un soldat portugais. Celui-ci se bat à coups de crosse avec la mort, un squelette armé d’une faux”; na parte traseira do monumento, em pedra: “un tombeau qui surplombe différents effets militaires, dont les casques très reconnaissables, des fusils, un tambour crevé, etc. Un Christ en croix a été ajouté postérieurement au-dessus du tombeau.”
[fotos do monumento de La Couture a partir de mémoires de pierre]

sábado, 19 de abril de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da auto-estima– 79
Rio Lys – No dia 9 de Abril, passaram 90 anos sobre o ataque que os alemães fizeram na frente ocidental, no sector protegido por portugueses, na zona de Armentières, nas margens do Lys, em (ainda) plena Primeira Grande Guerra, e de que resultaram sete mil baixas do lado português (com 400 mortos e 6600 prisioneiros, dos quais 230 faleceriam no cativeiro) e 1500 feridos. Provavelmente, não estaremos em tempos de efemérides; mas a atenção que se dedicou a esta data foi curta. Estamos longe do que sentiriam (e sentem) os franceses relativamente ao conflito de 1914-1918; mas a memória não pode ser apagada. Há uma década, em França, num inquérito que pretendia assinalar os mais importantes acontecimentos do século XX, a 1ª Grande Guerra ficou em quarto lugar, antes da construção europeia, do choque petrolífero ou da revolução russa; nesse mesmo inquérito, os jovens na faixa entre os 15 e os 19 anos puseram a Primeira Grande Guerra em segundo lugar. Obviamente, os inquéritos valem o que valem. Mas os resultados foram estes. Em Portugal, onde já não há sobreviventes dessa guerra, rapidamente se esqueceram os homens que deram a vida e o esforço a esse conflito. O mesmo risco se corria relativamente à Guerra Colonial, bem mais recente e de que há (ainda) muitos sobreviventes… Felizmente, os relatos sobre a Guerra Colonial estão a surgir, feitos pelos seus participantes, assim se pondo fim a um tempo de quase silêncio. Estes sofrimentos não podem ser esquecidos.
Arrábida – O Dia Municipal da Arrábida, em 10 de Abril, teve a sua primeira realização neste ano. Aprovada pela Câmara Municipal de Setúbal a sua criação em 2006, a data para o assinalar viria a ser fixada em finais de Abril de 2007. Razão para a escolha: o dia de nascimento de Sebastião da Gama, poeta azeitonense, que, no curto período de vida que teve (27 anos), manteve a Arrábida como tópico da literatura portuguesa, assumiu publicamente a preservação do ambiente da serra, deu-a a conhecer nos seus segredos de beleza. Veremos por quanto tempo se vai poder sentir a Arrábida como lugar de eleição, como motivo estético, como fundamento de espiritualidade… É ela o sítio onde “o mato cheira como dantes… Fala / comigo como dantes, reza, escuta…/ E o perfil da Montanha, como dantes, / adoça-se no escuro…”; é ela a “catedral / onde o órgão-Silêncio salmodia”; é ela, onde “a Primavera, quando chega, / já se encontra a si própria a esperar-se!” Assim o dizia o Poeta da Arrábida, Sebastião da Gama de seu nome.
(Des)acordos – Depois da manifestação em Lisboa que reuniu os 100 mil professores, ficaram as perguntas: e agora? que fazer com esta adesão? Era um pouco à maneira do que aconteceu com os votos no candidato Manuel Alegre, nas últimas eleições presidenciais, uns e outros números surpreendentes pelo que demonstravam de descontentamento, de união, de vozes de indignação. O discurso do poder parece ter amaciado no que respeita à educação; um entendimento parece ter surgido entre Ministério e Plataforma sindical; nas escolas, quem quis votou quanto à adesão a esse entendimento; a Plataforma veio dizer que os votos na concordância quanto ao entendimento foram “esmagadores” (e voltou-se à linguagem bélica da separação e da oposição entre frentes, questão sub-reptícia talvez, mas implícita). Ainda que dando o desconto do tempo (talvez curto ou a ser encurtado), fica a dúvida: eram estas as expectativas dos 100 mil que se manifestaram e de todos os outros que, não tendo estado lá fisicamente, se solidarizaram à distância das suas vidas?

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Em lembrança dos mortos na Primeira Grande Guerra

Memória sobre os mortos na Grande Guerra de 1914-1918, em Coimbra

Rostos (43)

Tropas canadianas, em 1917, na trincheira
[foto a partir de World War I - The experience, de J. M. Winter (2006)]

La Lys, em 9 de Abril de há 90 anos… (2)

As perdas portuguesas em La Lys rondaram os 7 mil homens, tanto como cerca de um terço da força combatente portuguesa nessa data: 398 mortos e 6585 prisioneiros. A acrescer, mais ou menos um milhar e meio de feridos. Entre os prisioneiros, 233 viriam a morrer durante o cativeiro. Portugal mobilizara cerca de 100 mil homens para participar na Primeira Grande Guerra, deixando no local do confronto cerca de 8 mil. Ao longo dos 51 meses que a guerra durou (a contrariar as expectativas iniciais de que o conflito seria rapidamente resolvido), houve 65 milhões de mobilizados, 8 milhões e meio de mortos, 20 milhões de feridos e milhares de prisioneiros e desaparecidos. Números que impressionam nesse tempo entre o início de Agosto de 1914 e 11 de Novembro de 1918, data da assinatura do armistício.
Com a batalha de La Lys, o sector português foi aniquilado. Às perdas somava-se o cansaço pela longa permanência na frente, o abatimento moral, o abandono a que Lisboa votara o Corpo Expedicionário Português (CEP) e a falta de pessoal, essencialmente de oficiais.
De todas as figuras participantes em La Lys bem poderíamos falar de um herói colectivo, mas a história encarregou-se de encontrar um símbolo no soldado “Milhões”, de seu nome Aníbal Augusto Milhais, originário da Infantaria de Chaves. Em 9 de Abril, com uma metralhadora, em Huit Maisons, esquecendo o fogo inimigo, protegeu a retirada de muitos militares portugueses e escoceses.
Em Portugal, já não há combatentes da Primeira Grande Guerra vivos, mas muitos dos seus nomes são lembrados em placas toponímicas, em listagens locais, em pequenos memoriais, nas sempre procuradas avenidas “dos Combatentes” e nos monumentos aos “Mortos da Grande Guerra”. São marcas que vão ficando e bom seria que não passassem. Estamos, obviamente, longe do que aconteceu em França, onde não houve família que não tivesse um parente na linha de combate. Talvez por isso a memória seja lá mais viva e constantemente estejam a ser produzidos estudos sobre a Primeira Guerra Mundial. Lá mesmo, num inquérito a 1015 pessoas realizado no início de Novembro de 1998 para o jornal Le Monde e para France 3, a fim de serem indicados os acontecimentos marcantes do século XX, foram obtidos os seguintes resultados: 2ª Guerra Mundial – 62%; movimentos estudantis do Maio de 68 – 43%; queda do regime soviético – 38%; 1ª Grande Guerra – 35%, seguindo-se a construção europeia, a descolonização, o choque petrolífero dos anos 70, a crise de 1929, a revolução russa de 1917 e a revolução islâmica iraniana – dados que se tornam importantes uma vez que foram os inquiridos mais jovens a colocar a 1ª Guerra nos lugares cimeiros (a classe dos 15-19 anos atribuiu-lhe o 2º lugar).
A literatura memorialística e militar deu destaque ao 9 de Abril. Mas também a ficção não lhe foi alheia, tendo a data servido, por exemplo, para título de uma narrativa assinada por José Rosado e pelo capitão Silva Neves (Lisboa: João Romano Torres & Cª – Livraria Editora, s/d) e de uma peça de teatro assinada por António Botto (Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, s/d). E ainda recentemente, em 2004, José Rodrigues dos Santos procedeu à recriação do sucedido em La Lys no seu romance A filha do capitão (Lisboa: Gradiva, 2004).
Muito embora a presença de Portugal nos campos da Flandres tenha ocorrido apenas a partir de Janeiro de 1917, certo é que o nosso país teve de combater também nas frentes de África, em Angola e em Moçambique. Das três participações ficaram relatos interessantes e sentidos, numa prática da literatura do vivido, do testemunhado, da memória, intensa, ainda que, hoje, quase só sejam lembrados os escritos memorialísticos de autores como Pina de Morais - Ao parapeito (Porto: Renascença Portuguesa, 1919) e O soldado-saudade na Grande Guerra (Porto: Renascença Portuguesa, 1921) -, André Brun - A malta das trincheiras (Lisboa: Guimarães & Cª, 1919) -, Augusto Casimiro - Nas trincheiras da Flandres (Porto: Renascença Portuguesa, 1919) e Calvários da Flandres (Porto: Renascença Portuguesa, 1920) - e Jaime Cortesão - Memórias da Grande Guerra (Porto: Renascença Portuguesa, 1919) -, apesar de muitos outros terem deixado o seu testemunho.

La Lys, em 9 de Abril de há 90 anos… (1)

… através da memória do capitão Vicente José da Silva (n. em Viana do Castelo, em 1886), no livro A guerra de 14 – Memórias de um combatente (Lisboa: 1993), num percurso que poderá ser pela poética das ruínas (usando a expressão de Roland Mortier):
Não vou aqui fazer a descrição detalhada do que foi a batalha de La Lys, desencadeada no dia 9 de Abril; porque, além de ser um assunto por demais batido e debatido, não está na índole desta obra. A guerra é um episódio da minha vida como qualquer outro. Se faço referência a ela, é porque me toca de perto, e para mostrar a influência desastrosa que teve em todo o resto da minha vida. (…)
Seriam quatro horas da manhã quando um bombardeamento de extraordinária violência começou a atroar os ares ininterruptamente, por toda a parte, com inaudito fragor. Fácil foi adivinhar que tinha chegado o dia da tão receada ofensiva alemã. Desde logo sem comunicação de parte alguma, passam-se intermináveis momentos de incerteza dolorosa e de expectativa, numa desorientação que as trevas da noite mais complicavam. Anseia-se pelo dia, pela luz, como se esta tivesse o condão mágico de acalmar a tempestade e trazer a paz e a tranquilidade aos corações… Rompe o dia finalmente. Mas, ai!, este só serve para nos revelar toda a grandeza da tragédia. Ó espectáculo horrivelmente grandioso! Um ciclone de ferro e fogo varre impiedosamente tudo e fustiga a torto e a direito com espasmos de metralha em demoníaca bacanal. A povoação apresenta agora um aspecto profundamente desolador. Há casas desmanteladas, árvores desarreigadas ou cruelmente mutiladas, o solo milhares de vezes revolvido, cadáveres por toda a parte. Nem a fúria devastadora dos elementos desencadeados da Natureza conseguem igualar em magnitude e destruição o belo horrível deste cataclismo de fábrica humana e… desumana.Ao troar contínuo das explosões vem juntar-se o gemido dos moribundos em uníssono, fantástico estertor… Enfim, ao cabo de algumas horas deste banquete abominável, verdadeiramente infernal, tudo está desorganizado ou reduzido a pó. Não há comunicação; as ordenações encarregadas de qualquer missão partem, mas não voltam; as linhas telefónicas estão interrompidas; cada um sabe de si, ou nem isso, mas ninguém sabe absolutamente nada do que se passa nas zonas de vizinhança. Sente-se apenas que uma espécie de sismo formidável convulsiona a terra, ou que um monstro de forma estranha, besta apocalíptica de proporções gigantescas, assola toda a região, onde a Parca infatigável domina soberanamente. (…)