sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Património: classificação de 25 bens imóveis no distrito de Setúbal tem um ano

Por Despacho do IGESPAR saído no Diário da República de ontem, até de hoje a um ano devem estar concluídos os procedimentos alusivos à classificação de bens imóveis em curso. No distrito de Setúbal, a lista de tais bens, no total de 25, é a seguinte: a Igreja da Misericórdia de Almada; a Fortaleza da Torre Velha (Caparica); a Igreja de Santa Maria, adro envolvente e edifício dos serviços paroquiais – actual Externato Manuel de Melo (Alto do Seixalinho); a Ermida de Nossa Senhora do Rosário (Gaio – Rosário); a Igreja de São Sebastião ou Igreja da Misericórdia (Canha); a reclassificação do Chafariz D. Maria I (Palmela); a reclassificação do Cine -Teatro São João (Palmela); o Alto Forno da Siderurgia Nacional, incluindo os cowpers, ou regeneradores de calor, a sala de comando, o pote de poeiras e ciclones, a nave de sangria, a rampa dos skips, o alto forno, os silos de matérias-primas e unidade de despoeiramento secundário do gás (Aldeia de Paio Pires); a Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços (Corroios); o Edifício do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Setúbal; as Muralhas, Torres, Portas, Cortinas e Baluartes do Centro Histórico de Setúbal; o Sítio Arqueológico de Abul (Alcácer do Sal); os Fornos Romanos do Pinheiro (Alcácer do Sal); a Ermida de Nossa Senhora do Bom Sucesso (Torrão); a Capela de São João dos Azinhais (Torrão); a Igreja e Convento de São Francisco (Torrão); o Monte da Tumba (Torrão); a Igreja Matriz de Grândola; a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Oliveira, Matriz de Alvalade do Sado (Santiago do Cacém); o Palácio da Carreira (Santiago do Cacém); a Igreja da Misericórdia de Santiago do Cacém; a Igreja Paroquial de Santo André (Santiago do Cacém); a Igreja, Casa de Romeiros e Fonte de Nossa Senhora da Graça (Santiago do Cacém - Santo André); a Ermida de São Bartolomeu (Sines); a Igreja Matriz de São Salvador (Sines).

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia” dez cantos depois

A obra de Gonçalo M. Tavares Uma Viagem à Índia (Alfragide: Leya / Caminho, 2010) é daquelas que se começa a ler e não se descansa enquanto se não chega ao fim (aí incluindo o prefácio de Eduardo Lourenço), apesar de o seu autor, há dias, ter dito em Palmela que não seria necessário ler esta obra continuada, antes se podia começar num qualquer dos cantos que a alimentam.
O livro conclui com o verso “Bloom, o nosso herói”, em jeito de síntese do que foi toda a narrativa, uma apresentação das vivências de Bloom no seu itinerário pela vida e na sua viagem à Índia. Herói do século XXI, Bloom ruma para a Índia em busca da purificação. E, quando se pensa que tudo vai ser grandioso, vemos o herói a concluir a sua viagem em Lisboa, ofertando a sua mala com um exemplar raro do Mahabarata a um idoso desconhecido, na rua, e sabendo que é procurado pela polícia devido a dois crimes cometidos – assassínio do pai (imagem edipiana), que tinha assassinado Mary (mulher que Bloom amava, qual história de Pedro e Inês), e assassínio de uma prostituta em Paris.
O percurso de Bloom, numa narrativa várias vezes apelidada como epopeia, tem dois momentos importantes: a crença na perfeição e na purificação, buscada algures na Índia, depois de sentir a culpa do primeiro assassinato, e a desilusão trazida, depois de verificar que o mestre supostamente purificador era feito da matéria de todos os homens, roubava e conspirava. A decepção é forte, pois foi o resultado inesperado num destino onde era desejado o paraíso ou a utopia.
Bloom acaba perto do suicídio, impedido pela intervenção de uma mulher, aparente anjo salvador, apesar de ficar dito que “nada que aconteça poderá impedir o definitivo tédio de Bloom”. Com ele, apenas dele, só o velho rádio que pertencera ao pai, que “nem com a viagem voltou a funcionar”, imagem de uma purificação e de uma comunicação impossível, ironia sobre a solidão e a falta de companhia.
Neste trajecto sobre o homem só, há espaço para a reflexão sobre o mal e a maldade, numa viagem frequentemente pelo escabroso, pelas pedras que salpicam a vida. Se o texto se conclui com o termo “herói”, algo que rivaliza com a “inveja” que finaliza Os Lusíadas, certo é que, na lista de palavras que surge no final da obra como “Melancolia contemporânea – um itinerário”, a partir de pistas lançadas nas várias partes da história, a primeira é “razão”, mas a última é “tédio”, termo que, juntamente com “natureza”, tem o maior número de ocorrências nesse itinerário. Irónico, como o destino.
A epopeia de Bloom lembra a epopeia de Os Lusíadas, não apenas pela organização em dez cantos, em que cada um deles tem o mesmo número de estrofes que o poema camoniano, mas também porque o leitor consegue associar passos entre os dois poemas narrativos: os enganos e conspirações para atingir o herói, a ilha dos Amores parisiense, a existência de aliados, o feito “épico” várias vezes assinalado, as reflexões sobre o homem, a viagem, a história de Pedro e Inês (ou de Bloom e Mary), as reflexões sobre a guerra…
Livro de aprendizagem, num percurso repleto de máximas, bem se pode dele dizer que acaba por ser a epopeia do homem do século XXI, que não corre por grandes feitos, que sobrevive no meio de agressividades várias, que se desorienta por falta de pontos de ancoragem.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Mário Balseiro Dias e a republicanização de Montijo

A história da implantação da República não se pode dissociar da história política de Montijo, como bem demonstra Mário Balseiro Dias na sua obra A Republicanização do Concelho de Aldeia Galega do Ribatejo (1881-1910) (Montijo: ed. Autor, 2010), que constituiu a sua tese de mestrado em História Regional e Local.
Com efeito, o ideário republicano alastrou em Aldeia Galega do Ribatejo (nome que, até 7 de Junho de 1930, foi dado a Montijo) desde cedo, pelo menos desde que, em 1870, José de Sousa Rama o começou a proclamar localmente. Não admira assim que o primeiro Centro Eleitoral Republicano criado na Margem Sul tenha sido o de Aldeia Galega do Ribatejo, em Março de 1881, e que, logo no ano seguinte, duas importantes figuras republicanas como Manuel de Arriaga e Magalhães Lima o tenham visitado.
Este Centro não teve longa duração, pois desapareceu em 1884, mas, na segunda onda da criação dos Centros Republicanos, novamente Aldeia Galega do Ribatejo levou a dianteira na Margem Sul, criando-o em Setembro de 1906 (em Palmela, surgiria apenas em 1908; em Setúbal, em 1909), para, em 1907, merecer a visita de outro republicano insigne, António José de Almeida. Os republicanos locais viriam, de resto, a ter visitas e presenças em comícios dos mais importantes nomes ligados ao republicanismo em Portugal, como aconteceu com, além dos citados, Afonso Costa, Bernardino Machado, João Chagas ou Miguel Bombarda.
A implantação da ideologia republicana em terras de Montijo não passou ao lado das querelas com as outras forças (como os monárquicos), nem deixou de parte a corrida à ocupação dos órgãos dirigentes de instituições como a Santa Casa da Misericórdia de Canha ou de outras associações locais. Certo é que, nas eleições de 5 de Abril de 1908, o Partido Republicano venceu em Aldeia Galega do Ribatejo por margem considerável, devido às razões que Balseiro Dias aponta: “o triunfo do PRP no município de Aldeia Galega resultou da sua propaganda, força e tenacidade, consequência da sua organização e disciplina, sem paralelo nos partidos monárquicos.”
Por estas e por outras histórias ligadas à republicanização de Montijo passa o livro de Mário Balseiro Dias, não esquecendo de registar que foi aquela “a primeira terra portuguesa a hastear, com carácter definitivo, a nova bandeira, após as vinte e três horas do dia 3 de Outubro de 1910” ou a circunstância da antecipação sentida em Aldeia Galega, Barreiro, Seixal e Almada ter sido crucial para o sucesso dos republicanos em Lisboa, em 5 de Outubro de 1910, uma vez que estas localidades permitiram o “controlo das comunicações e a dissuasão de eventuais tentativas de socorro à cidade por parte de tropas monárquicas vindas de outras regiões do país”.
O reconhecimento do papel desempenhado pela sociedade montijense na propagação do ideário republicano foi desde cedo reconhecido por um tribuno como António José de Almeida, que, na Câmara dos Deputados, disse, em Agosto de 1909: “Aldeia Galega é, talvez, a terra mais maciçamente republicana de Portugal”, um epíteto que o mesmo político sublinharia em visita ao Montijo, em Março de 1911, quando já estava instalado o novo regime: “Já no tempo da Monarquia Aldeia Galega era como que uma pequena República.”
É assim que o trabalho de Mário Balseiro Dias se revela escrupuloso na investigação e no relato, em linguagem acessível, fazendo emergir muitas figuras públicas locais que contribuíram para a construção do regime republicano. Esta obra, com amplas referências bibliográficas e fontes consultadas, é um bom caminho para se perceber o que foi a luta pelo controlo local (ou regional) que viria a dar a vitória aos republicanos, ao mesmo tempo que se constitui como elemento imprescindível para o conhecimento e estudo da republicanização da Margem Sul.

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto X

* “A morte é ao lado ou ao longe, ou não é nada – pois a nossa não existe para nós. Morre-se já fora da vida, o que é um absurdo e uma evidência.” (est. 7)
* “O vocabulário não aumenta com o álcool, mas a rapidez arguta com que as palavras se juntam muda bruscamente.” (est. 9)
* “Quem corre rápido, mesmo com olhos muito abertos, nada vê. Como a imobilidade e a atenção são sinónimos! Não corras tanto: ficas cego.” (est. 25)
* “Os olhos são máquinas que discriminam cores e formas, mas um acto não é apenas cor e forma, é também a sensação que o suporta.” (est. 29)
* “A tradição do tacto é aconselhar imprudências e prazeres diversos; é raro o tacto ser tímido, mas há limites.” (est. 34)
* “Nada melhor que a beleza à frente dos olhos para esquecer a melancolia.” (est. 62)
* “As viagens são um pouco de morte quando se chega, e um pouco ainda de morte quando de um sítio se parte.” (est. 80)
* “O dia não tem margens para onde possamos fugir.” (est. 85)
* “A fisionomia é o primeiro naco a ser conquistado pelo coração.” (est. 90)
* “Não poupes os olhos quando queres seduzir.” (est. 90)
* “Quem não corre quando combate ou dorme longe, esquece aquilo de que se afastou.” (est. 92)
* “O mundo é feito de pequenos parágrafos, grandes saltos, nenhuma continuidade.” (est. 94)
* “Um homem perde o essencial quando não tem uma única vontade forte; pára ou avança, que importa?” (est. 119)
* “A ética é uma espada que separa, nunca juntou ninguém.” (est. 124)
* “Qualquer biografia é assim: avança-se para o sítio de onde se partiu.” (est. 130)
* “O que se faz quando nada se sente é brutal e as circunstâncias arrancam-nos dos bons conselhos.” (est. 134)
* “Quando se foge, quando se tem medo, a ética é nada. E o que, no homem, é patas de animal e velocidade torna-se o importante.” (est. 136)
* “A ingenuidade é irrecuperável.” (est. 155)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto IX

* “No exacto momento em que estão concentrados a roubar, os ladrões são mais facilmente assaltados que uma velhinha de vista imóvel e passo retrógrado.” (est. 8)
* “Nenhuma descoberta da ciência modifica tão fortemente o rosto de um homem como os momentos de prazer.” (est. 24)
* “A única velharia que chegou intacta ao estúpido século XXI é a do amor.” (est. 32)
* “Certas mulheres bem treinadas são capazes de acariciar com os seus seios mãos desprevenidas e ingénuas. Quem toca em quem, eis a questão.” (est. 68)
* “Fora do trabalho os homens descarregam para o solo a educação (como um peso) e mais leves ficam então preparados para a maldade ou para a diversão. No ócio o rosto desembaraça-se e sozinho ganha um estilo individual; portanto: perigoso.” (est. 70)
* “Quando não há líquidos como o vinho, homens e mulheres comportam-se de modo sério, discutem símbolos e não são abandonados pela inteligência e pela necessidade de a exibir.” (est. 71)
* “Os homens quando têm medo fogem e nessa fuga pisam o chão ou outros animais.” (est. 89)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Inês Gato de Pinho, "Vilegiatura Marítima em Setúbal"

O que poderia ser Setúbal se tivesse sido dada continuidade àquilo que, no início do século XX, se prefigurava na margem do Sado como uma estância balnear? A resposta pertencerá a uma espécie de história virtual, mas a pergunta pode ser feita com toda a legitimidade se pensarmos no complexo que ali existiu a cargo da Empresa Setubalense de Banhos e se quisermos especular a partir da forma como se conclui o livro Vilegiatura Marítima em Setúbal (Setúbal: Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2010), de Inês Gato de Pinho, quando a autora regista: “Resta-nos reavivar a memória de um período pouco documentado e deixar em aberto a reflexão sobre o futuro que Setúbal teria como estância balnear.”
No final do século XIX, Setúbal era um destino de férias, motivado por condições climáticas e pelas suas praias (umas e outras excelentes), recomendado pela medicina e pelos publicistas (destacando-se, neste último grupo, o nome de Ramalho Ortigão, autor de obras como Banhos de Caldas e Águas Minerais, de 1875, e As Praias de Portugal, de 1876, ambas sugerindo sítios saudáveis de Portugal).
Sendo esta vocação sadina uma área mal conhecida na história setubalense, Inês Gato de Pinho consultou autores da época, como Arronches Junqueiro ou o próprio Ramalho Ortigão, leu recortes jornalísticos da Gazeta Setubalense ou de A Folha de Setúbal, cruzou informações trazidas pelas investigações de Rogério Peres Claro e de Carlos Mouro, por fotografias e postais da época, verificou processos e projectos de arquitectura, e reconstruiu o que seria Setúbal enquanto cidade acolhedora de turistas nesse início do século XIX.
O leitor pode assim circular no Passeio do Lago, ao mesmo tempo que lê os conhecimentos da altura ou que passa os olhos pelos escritos de Paulino de Oliveira, pode contemplar a paisagem já centenária e sentir o olfacto invadido pela labuta piscatória, venha ela do afã com que as redes são tratadas ou dos odores que ressaltam das fábricas de conservas de peixe, pode mirar as páginas da revista social Ilustração Portuguesa, pode penetrar no luxo que dominaria o Cais do Trindade ou vaguear pelas alas do estabelecimento de banhos que a Empresa de Banhos Setubalense levantou a partir do projecto do arquitecto seixense Ventura Terra. Tudo suficientemente documentado e ilustrado. Simultaneamente, o leitor pode ainda ver como a cidade de Setúbal tem sido um ponto de encontro (ou de choque) entre modas nem sempre conciliáveis com uma visão de ordenamento da cidade, antes preferencialmente sujeitas àquilo que no momento mais dá….
E termino quase como comecei. “Um momento supôs-se que, desde Setúbal até ao Portinho da Arrábida, se estenderia, em poucos anos, uma linha de construções marginais, chalets de luxo e vivendas formosas, em volta das quais iriam tomando vulto povoações de recreio e de repouso. Viriam a finança e a aristocracia semear o seu ouro fecundo, transformando a encosta inútil em uma admirável estação marítima, que só teria rivais na margem do Tejo, de Lisboa a Cascais, e na margem do Douro, do Porto a Leça da Palmeira.” Quem assim escrevia era Câmara Reis, na já referida Ilustração Portuguesa, em Junho de 1918, citado pela autora. Desse sonho, algo visionário, ficou o palacete da Comenda, mandado construir pelo representante da França em Portugal, o Conde Armand, e projectado por outro arquitecto português de renome, Raul Lino. O resto… pertence às memórias que a autora percorreu e à tal história virtual.

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto VIII

* “O que é o passado? Isto: tempo que cada vez ocupa menos espaço (…). O presente – agora, este momento –, pelo contrário, ocupa todo o espaço que nos rodeia.” (est. 2)
* “Tudo é único e diverso na natureza. Ninguém quer equilíbrios numa floresta.” (est. 17)
* “Os homens fazem sempre o papel de turistas quando próximos da água.” (est. 26)
* “A hipocrisia é das velharias mais difíceis de o homem se livrar; apegou-se ao homem como o lixo ao trapo já sujíssimo de pó.” (est. 28)
* “Nem mesmo os santos, que não sejam mentirosos, têm o passado límpido. A suavidade permanente não é terrestre, é, sim, mentira, e falsa: ninguém acredita.” (est. 39)
* “O veneno, quando enviado em forma bela, é recebido como um condimento pacífico.” (est. 52)
* “Os amigos são animais como os outros. Muito mais inofensivos são os inimigos, pois mantêm-se longe, por medo da nossa arma ou preparando armadilhas que já esperamos, enquanto os amigos, esses, cheiram ombro a ombro a mesma flor que nós, dividindo, pela proximidade, a alegria que o mundo atira para um metro quadrado de jardim. / E os amigos dão conselhos, o que é perigosíssimo. Inimigos acumulam ameaças, mas essas suportam-se bem. (…) As ameaças dos inimigos são pois os verdadeiros conselhos.” (est. 53/54)
* “A ética não é assunto de células, envolve sim a vontade, a decisão inequívoca de avançar por um lado e não por outro.” (est. 64)
* “Somos inseparáveis do nosso pior. Pode-se fingir durante anos, mas cada um é inseparável da sua maldade. (…) A vida é desleal para os vivos porque ninguém se conhece por completo.” (est. 84)
* “Quando sozinhos e com os nossos hábitos não nos defendemos. Não há esconderijo para um homem que está feliz. E mais facilmente é caçado um cidadão apaixonado que um coelho num campo deserto.” (est. 87)
* “O dinheiro torna os homens previsíveis, como a galinha que segue até ao fim dos dias uma linha recta traçada no chão. O dinheiro existe nas montanhas, planícies, cidade e campo. Destrói reis, carpinteiros e santos. (E quando não há, ainda destrói mais.)” (est. 97)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto VII

* “As circunstâncias insólitas ocorrem por vezes apenas para interromper a redundância dos dias: o destino não é maldoso: aborrece-se; quer ser criativo, inventa.” (est. 2)
* “São importantes as teorias, mas convém não esquecer os sentimentos.” (est. 7)
* “É a História de um país que dá a intensidade da ligação da árvore à terra. E cada país é uma árvore.” (est. 17)
* “O mundo não é claro e depois escuro, o mundo, cada pedaço dele, é claro e escuro.” (est. 21)
* “Do início da Europa ao fim do mundo o mundo é igual: ambíguo como tudo o que enoja e atrai.” (est. 32)
* “O consumo, por mais que o repitam, não é invenção do capitalismo: os deuses formaram homens incompletos, com estômago, frio e vaidade, como queriam outro resultado?” (est. 41)
* “Entre a ética de um santo e de um canalha, as diferenças são mais de direccionamento da habilidade.” (est. 45)
* “O que enoja varia menos, ao longo do universo, do que aquilo que entusiasma.” (est. 47)
* “A arte que repete o mundo e a realidade, que os copia como um principiante com a língua de fora a desenhar no papel a cadeira que está à sua frente, essa arte é errada, imbecil, inútil, decadente, miserável, mesquinha, vazia, estúpida, e fica bem nos catálogos.” (est. 55)
* “Os números não são compatíveis com melancolias, qualquer número a nível do coração é zero.” (est. 62)
* “Entre dois dias grandes há dias pequenos, e nesses dias individuais secretos reside a outra metade de um ser vivo.” (est. 66)
* “Um homem é as dez palavras fundamentais que usa, os três amigos que tem e as cinco acções mais importantes que fez.” (est. 67)
* “Uma casa pequena é uma casa essencial. O que não cabe numa casa pequena não é indispensável para a alegria, e o que não é indispensável para a alegria é dispensável.” (est. 73)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.

"Charroque da Prrofundurra", escrever setubalense

Começou por ser nome de blogue, eminentemente dedicado a Setúbal. Agora, virou livro, reunindo alguns postais publicados no blogue e também no mensário sadino O Farol. Chama-se Charroque da Prrofundurra – O Livrro (Setúbal: ed. Autor, 2010).
Logo pelo título, o leitor percebe que o título se relaciona com o falar setubalense, do “r” gutural, assim algo que, na pronúncia, soa entre o “r” e o “g”, muito característico dos setubalenses autóctones, talvez derivado de influência francesa do tempo em que os industriais gauleses por aqui andaram… Depois, no conteúdo, o leitor vê que, de facto, não se tinha enganado e embarca na companhia de cinco parceiros que costumam pescar a bordo do “Marrgarrida do Sáde”: o Toine (que se apresenta como o autor dos dizeres), o Chique, o Manel, o Ptinga e o Russe. Paixões, para além do mar (na faina): o Vitórria (com hino transcrito, acentuando os “rr”), o “polve seque”, as “mines”, o Fiat 127 “vermelhinhe”, o choco frito. Razão de ser dos textos (e do blogue e do livro): “uma grrande necessidade de acrreditarr que a nossa cidade vai sairr da obscurridão das desgrráças”, porque “há 20-30 anes nã acontcia nada e ia tudo prra Lisboa currtirr” e “agorra acontece e fica tude em casa”, o que anuncia que “tames aqui com um prrublema”.
O livro fala do Vitória (momentos bons e menos bons) e da Arrábida, de figuras e personalidades locais (Zé dos Gatos, Maurício Abreu, Finura), de questões sociais (a crise – “ê cá gostava que em prrimêrre lugarr me dêxassem mandarr a crrise à merrda: Crrise vai à merrda!”; os assaltos; a política), de questões locais (obras do Forum Luísa Todi; a luta contra o fecho das urgências pediátricas – “Os Setubalensses conseguirrem prruvarr que têm munta forrça e que podem ganharr batalhas futurras!”), de hábitos (pulseira do equilíbrio, viagem à Disney). A escrita, que tenta reproduzir as sonoridades de um determinado falar setubalense (em declínio), confere humor aos textos, ainda aumentado por algumas situações hilariantes que são relatadas e pelos retratos fornecidos das próprias personagens envolvidas.
Em paralelo, uma outra leitura vai sendo feita, surgida no rodapé de cada página, onde são reproduzidas frases características, em que abunda o tom provocatório, mas em que vale a riqueza das imagens, muitas vezes hiperbólicas – “levas um murre pus bêces q’até ficas a fazêrre dóminó pós dôs lades”, “à pá sóce… nã vêje nada com estes sapátes!”, “já tas mazé a porr muita mante’ga do pão!”
O leitor passeia por uma centena de páginas de bom humor e vê que há muitas verdades sobre Setúbal, ao mesmo tempo que é cumprido o preceito estipulado no prefácio: “este livrre é o suprassúme do garrgalharr com Setúbal e em Charroquês”.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto VI

* “Para conheceres as melhores mentiras de um país ou de um homem terás que te sentar longamente ao pé dele. Ninguém mente aos gritos, de longe.” (est. 2)
* “Não se aprende a ser sábio como se aprende a resolver uma equação. Nas duas aprendizagens exige-se atenção total, é certo, mas há no caminho para a sabedoria mais obstáculos, como se algures, deuses de voz rouca tivessem assumido o compromisso de não deixar a filosofia sensata ocupar por completo os homens. E talvez a causa seja puramente egoísta, pois se todos fossem sábios quem precisaria de templos?” (est. 7)
* “O mar não é como o fogo em que uma pequena parcela dá ideia do conjunto: o mar não existe em caixas, não se mantém intacto quando passa para um aquário. O mar não é apenas água salgada, é a sua grandeza que lhe dá o nome.” (est. 18)
* “A coerência de uma coisa, de um objecto ou de uma pessoa, dispensa a inteligência dos outros, dispensa ainda a investigação. (A excitação depende mais daquilo que está escondido do que do visível, toda a gente o sabe.)” (est 22)
* “A Natureza é mais ágil no ataque do que na defesa: constroem-se cidades em cima de florestas, mas debaixo das estradas e dos estabelecimentos comerciais há uma vida animal que persiste e faz ruído.” (est. 24)
* “De entre os vários reinos e géneros animalescos, os mamíferos são de longe os que melhor põem a funcionar a amizade; mas mesmo assim, nessa amizade, surgem avarias constantes.” (est. 31)
* “Se a ligação entre os homens fosse perfeita não teria existido a necessidade de inventar a linguagem. Falar é a maneira mais civilizada de marcar uma distância de segurança; os animais rosnam entre si, os homens elaboram sobre o clima e citam autores clássicos. Mas ambas as acções têm o mesmo efeito.” (est. 32)
* “Há no escutar, que parece acto passivo e pacífico, uma estranha parte activa, que são os olhos. Escuta bem quem tem olhos atentos.” (est. 39)
* “A timidez não é um valor benéfico no campo de batalha. Ou se avança ou se foge muito rápido, hesitações demoradas transformam-se habitualmente na última acção de um soldado.” (est. 46)
* “Cada homem tem, de modo telegráfico, as duas faces: tem medo e mete medo. Um homem unilateralmente corajoso não existe, a não ser que seja unilateralmente pouco inteligente.” (est. 53)
* “O que é contar uma história senão esticar a distância entre a primeira palavra e a última?” (est. 69)
* “O sítio essencial de um corpo é o sítio por onde se começa a morrer ou por onde a doença é inaugurada. Cada morte diz qual o bocado do corpo que afinal deverias ter defendido.” (est. 70)
* “Perigos nunca fizeram adormecer, nem cansadas ficam as pernas que fogem ou perseguem.” (est. 95)
* “No mundo, o sofrimento ensina mais do que cem professores bem-intencionados. (…) Os sofrimentos não são todos da mesma espécie animal: de uns, sais aperfeiçoado, de outros, canino e obediente.” (est. 97)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Um presépio, um Natal (VI)

Presépio em Azeitão, na Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense (Dez.2009)

Senhora do Presépio


Tudo tão simples e tão natural:
(um nascimento igual aos dos filhos dos homens?)
a mãe serena, aliviada após o parto,
contempla o filho recém-nascido,
carne da sua carne, recém-parido.

Tudo tão simples e sobrenatural:
mistério de uma virgem dando à luz
um menino filho de Deus, gerado
por obra e graça do Espírito Santo.

Tudo tão simples e sobrenatural:
em Belém uma virgem dava à luz o Salvador.
Filho de Deus e de Maria
nascia para o mundo o Redentor.

Maria de Lourdes Belchior. Cancioneiro para Nossa Senhora / Poemas para uma Via-Sacra (1988).

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto V

* “Entre os astros só o sol fornece indícios sobre a época do ano: a lua provoca aos vivos o mesmo frio e a mesma luz no Inverno e no Verão.” (est. 2)
* “É instante a instante que se sobrevive: os momentos sucedem-se e ainda não morremos, eis tudo.” (est. 3)
* “São os homens e as mercadorias que conservam a estrada.” (est. 10)
* “Terra! (…) É uma coisa que do ar parece rara, porém a terra é suficiente para cobrir todos os homens depois de qualquer massacre, por mais extenso que este seja.” (est. 25)
* “Não dizer: sou grande, mas falta-me metade de tudo. Dizer, sim: falta-me metade de tudo, mas sou grande.” (est. 31)
* “Pese embora a tecnologia e, na pintura, os novos movimentos de vanguarda, a cor negra mantém-se distribuída pelo mundo.” (est. 61)
* “Para os acontecimentos, a torre de Babel não foi derrubada. / As línguas separaram-se, mas os gestos não. Vê um murro, o acto de penetração numa vagina ou em outros recantos, vê ainda o forte abraço ou o homem que no último momento salva quem está prestes a cair de um oitavo andar. Vê isto tudo e tudo entenderás, não é difícil.” (est. 71-72)
* “As coisas do mundo estão fortemente ligadas, sim, mas também fortemente desligadas. Sábio é aquele que percebe as duas forças; imbecil, o que não percebe nenhuma; assim-assim, o que percebe uma. E a democracia assenta nas inteligências assim-assim.” (est. 79)
* “Nada no percurso, no mundo, se faz sem peso; mesmo no ar o homem sabe que em breve regressa ao que pertence e, lá em baixo, o chama.” (est. 91)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.

Um presépio, um Natal (V)

Presépio em Setúbal, na Praça de Bocage

Entrar pela chaminé...

O Setubalense: 24.Dezembro.2010

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto IV

* “Como a estaca de madeira que marca um limite importante, a lucidez é uma qualidade que modera os movimentos.” (est. 3)
* “O desespero vê, no metro quadrado onde está, o metro quadrado que tem ao seu dispor; o de olhos optimistas vê, do metro quadrado onde está, o restante mundo, o vasto mundo.” (est. 14)
* “Um fracasso excelente produz inumeráveis formas de um homem se levantar.” (est. 22)
* “A mulher é certamente um elemento humano fora do comum: as casas só não envelhecem porque ela existe. Um cuidado feminino suporta a construção (como o cimento). Uma casa só não cai, se dentro dela existir alguma delicadeza.” (est. 27)
* “Os caixões existem porque são requisitados, e em tempo de guerra o número de pedidos transforma a própria terra num caixão natural.” (est. 36)
* “Todos os vencidos amaldiçoam a guerra, mas os vencedores sensatos também. (…) A conclusão é evidente: a guerra foi inventada por insensatos ou distraídos.” (est. 44)
* “A vida é um objecto rudimentar, tosco, disforme, que nunca os homens entenderam como agarrar. Ainda nem sequer perceberam qual o lado de cima desse estranho objecto. Ainda mal pousaste as mãos sobre a vida e já a vida pousou fortemente as mãos sobre ti.” (est. 50)
* “As folhas caem das árvores altas mais lentamente que um avião, de bem mais alto, num desastre.” (est. 53)
* “Um homem quando dorme está mais próximo da astronomia que da sua cama propriamente dita.” (est. 67)
* “Em qualquer ponto do mundo a velhice mete dó, mas a compaixão provocada nos outros varia de acordo com o hemisfério.” (est. 71)
* “Para deixar de sentir frio não basta olhar para o céu ou para a fotografia de um incêndio: o Inverno prossegue e é independente do local para onde direccionamos os olhos.” (est. 75)
* “Deve chegar-se cansado ao sítio onde se quer envelhecer, pois se chegarmos fortes ainda, e impacientes, arrancaremos de novo. E falharemos o destino.” (est. 80)
* “Um homem não conhece a sua verdadeira ambição até passar por uma tragédia forte, uma tragédia individual. Só se sabe olhar, depois de se aprender.” (est. 97)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.

Um presépio, um Natal (IV)

Presépio, em cerâmica, de Albertinho Alves Silva

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Setúbal, distrito há 86 anos

O Setubalense (suplemento): 22.Dezembro.2010.

Desde que, em 14 de Fevereiro de 1927, o cargo de Governador Civil do distrito de Setúbal passou a ser desempenhado por Miguel Homem d’Azevedo Q. Sampaio e Melo, foram as seguintes as personalidades que se lhe seguiram no cargo, por ordem cronológica, até hoje: António Alberto Bressane Leite Perry Sousa Gomes, António Raul da Mata Gomes Pereira, Alexandre Inácio de Barros Vanzeler, Joaquim Lança, Mário Cais Esteves, António Manuel Gamito, Francisco Luis Supico, António Barveira Cardoso, Mário Lampreia de Gusmão Madeira, José Guilherme de Melo e Castro, Francisco Alberto Correia Figueira, Miguel Pádua Rodrigues Bastos, Francisco Pereira Beija, José Maria Cardoso Ferreira, Manuel Sanches Inglês Esquível, Serafim de Jesus Silveira Junior, Duarte António Carlos Fuzeta da Ponte, Helder da Silva Nobre Madeira, Fernando José Capelo Mendes, Manuel da Mata de Cáceres, Vitor Manuel Quintão Caldeira, Irene do Carmo Aleixo Rosa, Luis Maria Pedrosa dos Santos Graça, Domingos José Soares de Almeida Lima, Alberto Marques Antunes, Carlos Eduardo Duarte Rebelo, Maria das Mercês G. Borges da Silva Soares, Maria Teresa Mourão de Almeida, Eurídice Maria de Sousa Pereira, Mário Pinto Cristóvão e Manuel Luís Macaísta Malheiros.

Já devia ter sido há muito tempo... (um problema de filosofia de educação)

No Natal, o pecado do costume

Um presépio, um Natal (III)

Presépio (Gaeiras, Exposição de Presépios, Dez.2009)

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto III

* “Antigamente, uma grande cidade era o sítio onde vivia um excelente filósofo, agora uma grande cidade é aquela que tem muitos cidadãos em idade de votar e, pelo menos, um edifício com 140 andares. Se no meio dos 15 milhões existir um homem que pensa: excelente, sim, é certo, mas não indispensável.” (est. 16)
* “As mulheres sempre foram mais minuciosas na vingança. Folheiam-na sem saltar uma página. E tratam das unhas antes de pegar no machado. Pelo contrário, um homem com raiva e ressentimento é atabalhoado, desastrado, incapaz de encontrar a pronúncia perfeita da violência, como se pegasse em ferramentas despropositadas: a charrua para arrancar uma flor, o martelo para ver mais perto.” (est. 27-28)
* “O homem pensa a Natureza como se esta fosse uma mesa a que pode cortar uma das pernas para a endireitar.” (est. 36)
* “O ódio não necessita de grande tecnologia de suporte: bastam duas mulheres para um único homem, ou dois homens para um único território.” (est. 48)
* “Tantos se espantam com o facto de o amor ocorrer em seres vivos de idades muito diferentes, e nenhum assombro perante a bem maior diferença da idade que o ódio liga.” (est. 50)
* “Fazer e desfazer: as duas rectas mais paralelas da espécie humana. Nunca se cruzam.” (est. 64)
* “Ninguém é capaz de se acorrentar a um dia de sucesso como um cão a um poste. Os dias são, em geral, móveis, um autocarro que não pára.” (est. 73)
* “As derrotas devem surgir enquanto somos novos e fortes, pois aí os insucessos fortalecem, enquanto mais tarde poderão enfraquecer.” (est 74)
* “Agir é coisa longa que começa quando aprendemos a caminhar e termina apenas quando morremos ou quando já não temos inimigos.” (est. 79)
* “Bomba subtil e lentíssima, a velhice, a mais primitiva guerra que a Natureza nos declarou.” (est. 85)
* “Uma flor encolhe os ombros quer seja cheirada por uma linda menina de seis anos ou pela fealdade absoluta. Para a bela flor a beleza é insignificante.” (est. 88)
* “Vigiai os crápulas e vigiai os homens que falam manso; há no excesso de fragilidade exibida a preparação de uma maldade.” (est. 99)
* “A legislação de um país é um tratado de paz entre os seus habitantes, mas o ódio entre os homens é bem mais estável do que as leis que os homens estabelecem. Porque o ódio é uma lei da natureza.” (est. 110)
* “A vida é isto: a lua está mais próxima de alguns homens que treinam para astronautas que um prato quente da boca de outros homens. É aquilo a que podemos chamar: distâncias relativas.” (est 114)
* “O amor será útil internamente, mas externamente não carrega um tijolo.” (est. 137)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

No dia em que Bocage morreu (21.Dez.1805)

Era uma vez... um Poeta!
Bocage, rosto de chocolate artesanal (na loja Caetobriga, em Setúbal)

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto II

“Embora a humanidade demore tempo a chegar a um sítio, devido a imprevistos espantosos e a obras no caminho, a natureza, essa, nunca se atrasa.” (est. 1)

“Um homem pode demorar mais tempo a percorrer a minúscula casa da mulher que deseja do que a atravessar o mundo, de uma ponta à outra, com mochila às costas.” (est. 5)

“As pessoas aperfeiçoam mais os engenhos mecânicos da corrupção e das traições mesquinhas que os da hospitalidade.” (est. 31)

“Quando numerosos, os homens, os animais, as plantas, as pedras e até as máquinas perdem a higiene do raciocínio individual.” (est. 32)

“O Destino não é uma decisão unívoca de um tribunal que só sabe desenhar linhas rectas.” (est. 41)

“O mundo, como qualquer outra coisa, apenas se torna belo quando pela beleza é olhado.” (est. 42)

“Cada língua poderá ser definida como um modo especializado de interromper o silêncio.” (est. 80)

“Um estrangeiro é sempre uma novidade, tanto verbal como no número de hábitos que traz para a paisagem.” (est. 85)

“A vaidade tem um único sentido, não expira. É substância que um atira para dentro de si mesmo, e aí fica, engrossando-o de nada e coisa nenhuma.” (est. 97)

“No fundo, cada vida, no geral, não é mais do que um estilo literário.” (est. 101)

Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.

Um presépio, um Natal (II)

Presépio em Évora, na Praça do Giraldo (2010)

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares: "Uma Viagem à Índia", canto I


“É indispensável tornar conhecidas acções terrestres com o comprimento do mundo e a altura do céu, mas é importante também falar do que não é assim tão longo ou alto.” (est. 11)

“Se uma cara tem duas metades – uma bela, outra medrosa –, os inimigos só vêem o medo e os amantes, o belo.” (est. 17)

“A amizade e a paz são apenas momentos intermédios que, no fundo, aguardam mudanças.” (est. 48)

“Tão espontânea é no cidadão a brutalidade que jamais se verá abertura de espaços académicos para a sua aprendizagem.” (est. 78)

“Se um homem cair e não mais se levantar é sinal de que ficou sem duas pernas ou sem uma vida.” (est. 83)

Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Um presépio, um Natal (I)

Presépio com figuras da Nazaré (Exposição de presépios de Gaeiras, Dez.2009)

Luísa Borges, "A Senhora da Fonte"

“Há pessoas tão secretas como os lugares escondidos desta história”. Esta é uma das primeiras afirmações do livro A Senhora da Fonte (Lisboa: Chiado Editora, 2010), de Luísa Borges, verdade que logo nos remete para o mundo da fantasia e do mistério, do fantástico, levando o leitor pelas veredas de uma narrativa que vai sendo guiada por temas clássicos como a luta entre o bem e o mal, por referências a histórias locais, por um grupo de personagens que fazem lembrar as aventuras em grupo, por uma entrada na história sem tempo.
Desde início nos apercebemos de que estamos a ser levados a pactuar com esse reino da fantasia, assim como quem se deixa levar pelas mágicas palavras de “era uma vez”. A diferença é que, nesta história, o tempo é o de 2007, no Verão, bem próximo, portanto, a contrastar com o longínquo calendário do “era uma vez”... Mas o carro em que as crianças viajam com a mãe vai entrando “para dentro do vale e da tarde” e, pouco depois, uma outra viatura corre “cada vez mais para dentro do lusco-fusco”. De entradas se fala na geografia, no tempo e num ambiente em que o mundo pode adquirir outras cores, outras tonalidades, tal como, já quase no final do livro, quando procuram Bernardo, os amigos vão “entrando, um após outro, por baixo do pórtico escuro e desaparecem nas entranhas da terra”.
Por outro lado, quando está a caminho da Arrábida, o jovem Bernardo, espreitando pelo vidro do automóvel em circulação, vai chamando a atenção à irmã, dizendo-lhe para olhar as árvores, que “estão a falar”, figura excelente para a animação da natureza, numa evocação de um país das maravilhas que poderia vir a ser o da estadia dos dois irmãos no colégio por um período de tempo indeterminado… quer dizer, um tempo de preparação até que o pai de Bernardo e de Catarina, militar, fosse resgatado depois de ter sido dado como desaparecido algures no Iraque, género de prémio para os filhos e para a família e marca que poria fim ao tempo necessário para haver a história.
Cada situação que vai acontecendo nesta aventura vai tendo o seu adensamento de mistério: de cada vez que as duas crianças são apresentadas a alguém, logo lhes é dito que já eram esperadas há muito tempo, assim se lhes antevendo uma missão; a casa da avó Henrieta tem “jardins misteriosos” e uma “campainha de outras eras”; a própria Henrieta é uma personagem antipática, severa, misteriosa e inacessível (como convém que haja numa história de aventuras e de mistério), vivendo na sua anacronia – fazia-se deslocar num carro “há muito extinto”, dos anos 30, mas “a grande velocidade” –, parecendo dar a conhecer as várias peças de um puzzle de que se desconhece o desenho final. O maior mistério é o que fica para resolver na história e constitui a trama da aventura: descobrir o paradeiro de Bernardo, que desaparecera inesperadamente porque – sabemo-lo nós, leitores – se deixara enlear numa teia de fascínio até ser absorvido num pântano que constituía um destino proibido.
Catarina e Bernardo, irmãos, sofrendo a ausência temporária dos pais (a mãe partira para o Oriente, em demanda do marido), vão descobrindo um mundo novo de relações e de histórias, numa viagem em que a imaginação muito ganha e em que o mundo é traçado a partir da imaginação, como se pode ver no raciocínio que Bernardo faz ao ver o carro da avó – “era igualzinho ao modelo miniatura da sua colecção” – isto é, o real é igual ao imaginário, ao brinquedo, ponto de partida para conhecer o mundo. Mas esta permanência no colégio é também a responsável por os levar até ao inferno ou até ao tempo dos dinossauros, ao conhecimento do mal, do sofrimento e da morte, a um passo de uma viagem na barca de Caronte, mas tendo obtido a salvação porque viajaram num barco remado por um poeta.
Ao longo de todas as experiências que essa vinda para um colégio, algures encostado à Arrábida, em Azeitão, lhes proporcionou, algumas vão sendo mais marcantes, sobretudo o encontro com o Cristóvão, o homem do ferro-velho, fumador de um cachimbo de porcelana que se passeava em charrete puxada por éguas, personagem saída das velharias, contador de histórias de antanho, uma outra forma de garantir a fantasia. É ele que vai introduzir a história de Hildebrando, o comerciante-navegador que povoa a lenda da Arrábida, já recriada por Henrique Lopes de Mendonça, por Miguel Caleiro ou por Carlos Alberto Ferreira Júnior ou, recuando mais, em antigas crónicas. E, a propósito desta entrada, é interessante registar o cruzamento da fantasia com a realidade, porque o velho Cristóvão conhecera esta lenda “através do seu conhecido Carlos Alberto Ferreira Júnior”, isto é, mistura-se a personagem de ficção Cristóvão com a figura local de Azeitão que foi Carlos Alberto, escritor e personalidade ligada ao movimento associativo, sobre quem já passou o centenário do nascimento.
A propósito de leituras, esta narrativa deixa-se levar também pelo confronto entre dois livros – um, dos sonhos; outro, de borboletas. Nenhum deles é, contudo, um livro inócuo e a luta pelo sucesso das personagens vai passar pela oposição entre os dois livros, uma vez que o dos sonhos é visto como uma preciosidade para ajudar, só o conseguindo ler quem esteja purificado, porque ele se torna quase profético e revelador, ao passo que o volume que contém as imagens das borboletas foi o responsável pelo acto de feitiçaria que levou Bernardo até muito perto da morte. A opção por um ou outro livro e respectivas consequências e a capacidade de as personagens os poderem ler é algo para que a narrativa também chama a atenção, como surge explícito quando a professora Lia recomenda a Catarina: “Cuidado com o que leres nos livros.” No extremo, um livro pode conduzir à salvação ou à condenação.
A história contada em A Senhora da Fonte apresenta vários pontos de contacto com a região azeitonense, não só pelas descrições que são feitas da serra da Arrábida, vista a partir da vila, mas também pela lenda de Hildebrando, pela presença dos golfinhos roazes e ainda pela invocação de Dona Constança, que por estas terras terá andado com o seu Pedro no que foi a Quinta da Nogueira.
Mas a ligação mais intensa surge através do poeta, figura algo mítica e fantasmática que funciona como adjuvante do grupo de jovens aventureiros na busca de Bernardo. Vários versos de Sebastião da Gama vão intercalando a narrativa, normalmente para funcionarem como chave de revelação, característica que bem assenta na ideia de poeta. A imagem que do poeta surge é a identificação com a figura de Sebastião da Gama, ainda que isso não seja explicitado, mas apenas sugerido por um adereço como a boina ou pelo permanente ar de simpatia e pelo sorriso ou por a personagem estar a dizer versos que têm como autor o poeta de Azeitão, assim o caracterizando. Interessante se torna verificar que é através da orientação dada pelo poeta que os jovens da história se salvam, ora porque ele se torna presente quando menos se espera, ora porque é ele quem conduz o barco que afasta o grupo de todos os perigos. Esta ideia de ser um poeta a salvar as crianças é forte nesta história, num quase hino de exaltação à poesia, verdadeiro “salvo-conduto” que o remador poeta vê renovado quase no final da narrativa, depois de uma viagem “debaixo da terra, dentro da montanha”, navegando num “rio secreto”.
Nesta viagem, em parte conduzida pela força do poeta e em parte bem sucedida pela capacidade de um ser alado com o simbólico nome de Archangel ter destruído os répteis transportadores do mal, o tempo foi marcado pela duração necessária para salvar duas personagens – Bernardo, desencarcerado do pântano e do mundo de vermes que dele se tentava apoderar, e o pai, o tenente Nogueira, encontrado no Iraque – e para restituir ao colégio e às outras personagens o bom ambiente de que necessitavam.
Livro que nos mergulha na fantasia, pois, e que transforma o final em festa, depois de nos levar às catacumbas do sofrimento. E, no momento em que a história e o livro se encerram, o leitor vê que o Poeta parte “sozinho, no bote”. E, com o narrador, apetece perguntar: para onde irá? Afinal, uma outra maneira de dizer que a história chegou ao fim e que acontece a saída do mundo da fantasia, pelo menos até ao momento em que o salvo-conduto do poeta sirva novamente para nos abrir as portas do sonho…
[Na apresentação do livro, no Museu Sebastião da Gama, ontem.]

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Manuel Medeiros, "honoris causa"

A Manuel Medeiros foi atribuído, na tarde de hoje, o título de “doutor honoris causa” pela UNISETI de Setúbal. Por razões profissionais, não pude estar presente e não sei o que lá foi dito. Não é já a primeira vez que Manuel Medeiros tem homenagem em Setúbal, felizmente. Mas, para lá das homenagens de pompa e circunstância que as instituições lhe vão promovendo, creio que o melhor reconhecimento devido a este açoriano é o da visita ao seu recanto de trabalho, ninho de saber(es), ponto de encontro com o universo, a livraria Culsete, em Setúbal.
Se digo isto, é porque, já antes de ter vindo viver para Setúbal, frequentava o recanto deste livreiro, que agora teima em ser o Livreiro Velho. Por lá tenho continuado a passar e a descobrir. Pessoas, livros, ideias, momentos de revelação. Porquê? Porque o Manuel Medeiros faz de cada livro uma festa, porque ele nos leva pelo meio dos livros como quem passeia numa biblioteca e não como quem poderia vender salsichas ou automóveis. Porque na Culsete conheci muita gente, convivi com muita outra, mantive conversas com amigos, participei em debates, assisti a apresentações, aprendi. Porque tanto me posso cruzar com a poesia como com o ensaio, com a ficção como com a divulgação, com as enciclopédias como com os fait-divers. Porque o Manuel Medeiros vai cumprimentando os livros como quem se cruza com as palavras pelo passeio, vai falando dos autores como se estivéssemos em tertúlia no café mais próximo, vai levando os visitantes pelas teias dos conteúdos, muito mais do que pelos fascínios do material, vai separando aquilo que é papel do que é um livro, vai escrevendo a sua história e vai abrindo as portas das inscrições e da memória. Já lá levei outros, já lá levei alunos. Continuo a sentir o fascínio da entrada pelos livros a partir de uma livraria como a do Manuel Medeiros, em grande parte devido ao cicerone que ele teima ser.
É excesso isto? Não, de todo. Apenas reconhecimento por um trabalho criterioso, por uma prestação cultural que muito dignifica Setúbal.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Sebastião Fortuna na paleta da vida

No domingo, encerrou a exposição de pintura de Sebastião Fortuna, que esteve patente na igreja de S. João, em Palmela. Não estive presente no encerramento, mas visitei-a no dia anterior, em que pude aproveitar uma viagem guiada por todos os quadros através do dizer e do sonho do pintor, privilégio trazido por uma tarde fria, de poucas saídas e com outras opções.
Conheço o Sebastião Fortuna há quase três décadas e sempre o vi como o homem que se enreda nos sonhos, nas histórias… e na tentativa de concretização de tudo o que idealiza. Cada um dos quadros expostos foi pretexto de uma narrativa, indo muito para lá do contar como ou porque nasceu; foi, antes, uma motivação para deambular pelas palavras, pelas ideias e pelos símbolos, assim como quem governa o seu barco no rio, construindo a viagem e tomando conta dela, ou como quem idealiza espaços ou tempos, vidas.
Cada título de um quadro de Sebastião Fortuna é a entrada para um poema. Ou é um poema mesmo que ele vai desfiando enquanto fala dos seus pintares. Longe dos títulos abstractos e inóquos, as palavras que Fortuna escolhe para denominar (e explorar ou explicar) as suas telas comprometem-se com a simplicidade e com o sentir, obrigando a leituras plurais e ao encontro com valores. Foi por isso que tive de lhe dizer que ele não poderia passar sem registar esses poemas por escrito. “Pois, eu sei…” E a gente vai esperando. E, quando se deixou fotografar junto ao quadro “Eu gosto das piteiras”, comentou: “Como não hei-de gostar? Está a ver? Elas são altas, verticais, seguras… Como se deve ser na vida… Eu gosto de piteiras!”

domingo, 5 de dezembro de 2010

Francisco Moniz Borba põe o Museu de Setúbal em livro

“Pela minha parte, sinto-me feliz por, de algum modo, me ter sido dado contribuir para essa realidade e poder dizer à terra onde nasci: Aqui está o Museu!” Foi com estas palavras que, em Janeiro de 1961, João Botelho Moniz Borba concluiu o seu discurso na inauguração do Museu de Setúbal, velha aspiração local. A partir de 21 de Junho desse ano, este homem, autodidacta em museologia, dirigiu o Museu por um período de quase 17 anos, até ao seu falecimento, em 12 de Dezembro de 1977.
A história surge contada pelo filho deste fundador, Francisco Moniz Borba, na obra recentemente apresentada ao público Museu de Setúbal e o seu fundador João Botelho Moniz Borba (Setúbal: ed. Autor, 2010), álbum que traz para a memória o que foi o Museu de Setúbal durante esse tempo.
O volume, de quase três centenas de páginas, passa por uma biografia de João Borba (de onde não anda arredada a memória do seu autor, como quando lembra que o pai “contava em casa as pequenas descobertas” que ia fazendo), pela apresentação das instalações que o Museu utilizou (minuciosamente pensadas e esquematizadas pelo fundador), pela evocação da actividade do Museu (que, no período entre a sua abertura, em 1961, e 1977 – descontando cinco meses para obras –, teve uma média de 7187 visitantes anuais e uma assinalável diversidade de acções, entre as exposições – em que se contaram artistas como Fernando Santos, Álvaro Perdigão, Celestino Alves, Morgado de Setúbal, Lima de Freitas, entre muitos outros –, os concertos e as conferências), por divulgação de correspondência com João Borba, pela reprodução de quatro textos escritos por João Borba ("Fragmento de vitral da Igreja de Jesus de Setúbal", 1975; "Pequena notícia sobre o Museu de Setúbal e a conservação das suas obras de arte"; "A utilidade das gipsotecas – A gipsoteca do Museu de Setúbal", 1974; "Os sinos medievos da Igreja de Jesus de Setúbal", 1976) e por dados relativos ao património do Museu (incluindo a reprodução fotográfica das fichas individuais de cada peça de pintura religiosa, ourivesaria e gipsoteca, registos meticulosos de João Borba, com as características das obras, referências bibliográficas e história respectiva – proveniência e trânsito por exposições, restauros, etc.)
A obra contém ainda um dvd, em que, além da reprodução das fichas que figuram no livro, divulga o espólio para as áreas da escultura, pintura, desenho e gravura, reproduzindo as respectivas fichas elaboradas por João Borba. De fora ficaram as indicações do suporte livro, apesar de constar o registo da quantidade de items de cada uma das bibliotecas existentes no Museu – arquivo histórico da Misericórdia (1294 volumes), biblioteca Olga Moraes Sarmento (1654 volumes), biblioteca Garcia Perez (4629 volumes), biblioteca Correia da Costa (4264 volumes) e biblioteca do Museu (64 volumes).
A utilidade desta obra não se discute, tão oportuna ela é pelo que traz de volta aos setubalenses e aos estudiosos (haja em vista que o Museu de Setúbal tem, desde há anos, um reduzidíssimo espaço aberto ao público) e pelo contributo que constitui para a memória (seja pelas informações relativas a João Moniz Borba, seja pelos dados alusivos ao Museu, às pessoas que o ergueram e às peças que o constituíam).
Aos setubalenses (e aos visitantes da região) resta esperar que o Museu se reafirme e que a sua menção deixe de ser um eufemismo, ainda que explicado a partir do que (não) tem sido a conservação do Convento de Jesus que o alberga. A propósito, referindo-se à recuperação do Convento de Jesus, na edição do mensário sadino O Sul, de Outubro, o Secretário de Estado da Cultura Elísio Summavielle admitiu que, "dentro de dois a três anos, o monumento esteja utilizável"

sábado, 4 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares na "Ler"

No número de Dezembro da revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 97), a habitual entrevista dirigida por Carlos Vaz Marques foi buscar Gonçalo M. Tavares, português, escritor, 40 anos, 27 livros publicados. Os sublinhados que seguem são de lá, alfabeticamente ordenados pelo tema a que dizem respeito, mas não respeitando a ordem da conversa havida. Algumas das ideias aqui expressas apresentou-as o escritor, na tarde de hoje, no encontro com leitores que aconteceu na Biblioteca Municipal de Palmela.
Camões -Os Lusíadas é uma obra tão central na língua portuguesa que é quase natural passar por lá. Seria acaso ou má sorte um escritor hoje não se cruzar com Os Lusíadas. Há inúmeros autores que de uma forma ou de outra se cruzam com Camões. É como se fosse uma praça central de uma cidade. E é tão central que temos obrigatoriamente de passar por aí. Quando estamos fascinados por qualquer coisa é natural querermos fazer algo em redor disso.”
Leitor - “Os leitores, quando entram numa livraria, escolhem um livro. Mas também acho que o livro escolhe os leitores. É muito importante o livro escolher os leitores. Não ser uma espécie de livro fácil, no sentido de que vai com todos.”
Linguagem - “A lógica da linguagem não tem nada a ver com a lógica da matemática. (…) A linguagem é sempre uma coisa que não dá resto zero. As frases não dão resto zero. (…) Há sempre mais qualquer coisa que se pode dizer.”
Literatura e ética - “Toda a gente está em diálogo. Só não o está quem não deu atenção mínima ao passado. Há quem escreva como se não existisse memória. Mas a conservação da memória é aquilo que distingue o homem do animal. Ou seja, os animais não conservam as coisas que as gerações anteriores fizeram. Nesse aspecto, a memória é uma marca humana extraordinária – a ideia de fazer o novo mas ao mesmo tempo conservar o que vem de trás e dizer: ‘Sou herdeiro destes extraordinários escritores que nos antecederam.’ É quase questão de responsabilidade literária e ética.”
Livro - “Um livro sério é um livro que quer interferir com as pessoas. É um livro que não é para aquela semana. Há aqui um combate muito forte com o mundo em que nós estamos – que já não é semanal nem diário, que com a internet é ao segundo, uma coisa quase brutal. Um dos grandes combates actuais é o combate entre a actualidade e o importante. (…) Estamos num mundo em que a questão do actual e do importante se joga minuto a minuto. O que quer dizer que se o actual é ao minuto, o não-actual é logo passado um minuto. O problema é que esta lógica da velocidade é uma lógica opressora. A grande velocidade é muito violenta.”
Memória - “Há uma coisa importante que tem a ver com uma certa responsabilidade de quem escreve. É uma responsabilidade humana: a questão da conservação da memória. A única hipótese de conservarmos o antigo é tornarmos o antigo presente. Acho que isso é uma responsabilidade do escritor: dar a sua atenção ao clássico.”
Pensar - “A boa narrativa pensa, é evidente, e o bom pensamento conta histórias. Pensar não é mais do que contar uma história que é a história de uma ideia. (…) O pensamento é a história de uma ideia. Alguém que pensa está a ter uma ideia que desenvolve ao longo do tempo. Portanto, essa ideia é como se fosse uma personagem que se vai transformando. Tem até opositores. A personagem-ideia tem sempre um inimigo, que é o contra-argumento. Pensar é uma narrativa.”
Século XX - “O século XX é um século que nos está a dizer que temos de estar atentos.”
Tédio - “O tédio é uma sensação muito importante. Se eu tivesse de aconselhar alguma coisa para a escola, em geral, seria que se ensinasse a lidar com o tédio. (…) Tenho muito medo das pessoas que não sabem lidar com o tédio. As pessoas mais desesperadas são aquelas que estão sempre a fugir do tédio. O tédio é uma coisa central, base. O que é o tédio? É um momento de espera em que aparentemente nada está a acontecer. É uma sensação de inutilidade. Mas a vida tem uma percentagem enorme de momentos em que nós estamos à espera. Se não soubermos lidar com isso, estamos a desperdiçar uma matéria fundamental.”

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Rostos (146) - S. Francisco Xavier

Monumento a S. Francisco Xavier (padroeiro de Setúbal), em Setúbal, por Soares Branco
[Foto: Quaresma Rosa]

Em 21 de Abril de 2001, foi inaugurado em Setúbal um monumento a S.Francisco Xavier, no Jardim da Beira-Mar, ideia surgida em 1989, aquando do início das celebrações dos "500 Anos de Evangelização" sob o lema do "Encontro de Culturas".
O monumento, em que o santo surge virado para a cidade, empunhando o crucifixo, parecendo acabado de desembarcar, numa figura sugestiva de movimento, é constituído por duas partes: a estátua do padre jesuíta sobre pedestal e, destacado, um arco a sobrepor-se à imagem. Na base da estátua, estão registados os nomes dos seus autores (Soares Branco, o escultor, e Fernando Nunes, o serralheiro); no pedestal, existem as inscrições relativas à efeméride e aos patrocínios ("5 Séculos de Evangelização / Diocese de Setúbal e Câmara Municipal / 1989 - 2001", na parte fronteira, e a indicação dos apoios recebidos de empresas e instituições diversas no lado oposto - "Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra, Fundação Belmiro de Azevedo, Caixa Geral de Depósitos, Fundação Oriente, Governo de Macau, Solisform, Sigma Coatings, Tecor e Navigomes"). O arco, assinado pelo escultor e por Lasindustria e Paulo Ferreira, apresenta um conjunto de dez inscrições que resumem a vida do homenageado: "Nasce em Javier a 7 de Abril de 1506", "Mestre em Artes e Teologia - Universidade de Paris - 1530", "1534 - Junta-se a S.Inácio de Loiola", "Entra em Portugal por Setúbal - 1537", "Viaja para a Índia - 1540", "Aporta a Goa em 1541", "1549 - Missionou no Japão e Molucas", "3-12-1552 - Morre em Sanchão às portas da China", "S.Francisco Xavier sepultado e venerado em Goa" e "Patrono da cidade de Setúbal desde 1722". No meio da ordem destas inscrições, sobre a cabeça da figura, há uma invocação ao Espírito Santo, a atestar a santidade do evocado.
Na base da estátua, aos pés do santo, existe um símbolo associado à biografia milagrosa de S.Francisco Xavier - o caranguejo que lhe terá recuperado o crucifixo perdido. A história ter-se-á passado por 1546, quando o missionário se dirigia para a ilha de Baranura, e foi relatada pelo seu biógrafo Daurignac: "Bem depressa se declarou uma tempestade tal que os próprios marinheiros ficaram aterrados. Francisco Xavier toma o seu crucifixo, inclina-se sobre a borda do barco para o mergulhar naquele mar em fúria... e o crucifixo escapa-lhe da mão! O santo apóstolo mostra-se em extremo consternado por aquela perda". Continua o narrador dizendo que, na manhã seguinte, já na ilha de destino, "o padre Xavier, acompanhado de Rodrigues, dirigia-se para o Bairro de Tálamo, seguindo pelo litoral, quando, depois de terem caminhado uns quinhentos passos, proximamente, viram sair do mar e vir para eles um caranguejo trazendo entre as suas garras, que tinha levantadas, o crucifixo de Francisco Xavier". O biógrafo deixou que a emoção tomasse conta do momento do encontro do animal com o santo: "O caranguejo vai direito ao Santo apóstolo e pára junto dele. Xavier ajoelha-se, prostra a fronte em terra, toma o seu amado crucifixo que lhe será dali em diante muito mais precioso, beija-o com todo o amor e reconhecimento de que está cheio o seu coração, e o caranguejo, voltando sobre os seus passos, desapareceu nas ondas". É o mesmo Daurignac que relata terem os índios descoberto, mais tarde, "um caranguejo duma espécie desconhecida, trazendo uma cruz latina sobre a concha", a que chamaram "caranguejo de S.Francisco Xavier".

Que nomes têm estas coisas? (Ou: é preciso não acreditar!)

Há tempos, dando a entender que o fazia contrariado, o Primeiro-Ministro anunciou cortes nos salários e muitas mais medidas para combater a crise em Portugal. Foi a gente começando a acreditar que isto ia tocar a todos, que era necessário um esforço colectivo.
Mas a vida paralela tem continuado: ordenados que não serão tocados em empresas públicas (em nome da não fuga de quadros!!!), criação de mais uma empresa pública por parte do Estado para gerir as parcerias público-privadas (como é que essas parcerias têm sido geridas, como foram pensadas?), distribuição antecipada de dividendos em empresas para não haver taxas a valores de 2011 e, agora, o Governo Regional dos Açores a anunciar que vai criar um subsídio para compensar os cortes nos salários públicos que se situam entre os 1500 e os 2000 euros!
Não sei se estamos a ser bem informados, se vivemos todos no mesmo país, se os governantes de uns e de outros são os mesmos ou se falam a mesma língua. Estamos perante a oportunidade da política ou perante o oportunismo na política? Estamos perante que valores? Oscilo quanto ao nome a dar a tudo isto, mas lá que tem nome, tem! E não é coisa boa!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Ilídio Gomes, "Promessa"

Quando se lê um título como este – Promessa (Setúbal: ed. Autor, 2010) –, o que se pode esperar dele? Promessa, palavra assim liberta e isolada, sem nenhum determinante a antecedê-la, sem nenhuma outra palavra a qualificá-la… Promessa, apenas.
Talvez a máxima que inaugura o livro nos acrescente alguma coisa – “uma promessa é a exaltação de um compromisso”. E, aqui, se nos afigura uma linha que ganha consistência no poema de abertura, com um título que é de designação: “Eis o livro”. A primeira coordenada dirige-se ao leitor – “Este o livro que ofereço a quem ama a poesia.” O poeta promete, pois, o seu produto, a sua poesia, e conta com um interlocutor à altura, o leitor amante ou amador de poesia. A segunda coordenada relaciona-se com o mundo do poeta, com o que pode ser o povoamento do seu livro – “revela o meu sentido ético, irreverente, das minhas ideias e estéticas próprias”. O poeta promete traçar a sua paisagem privada, materializar pela palavra o seu pensar, associado a um dizer de onde a estética não esteja arredia. No fundo, fazer com que as ideias permaneçam pela arte. E temos a terceira coordenada, mesmo no final deste poema – “Continuarei escrevendo, defendendo sempre / os valores supremos da nobre arte.”
Serão estes os três ingredientes da “promessa” com que Ilídio Gomes nos povoa estas páginas, albergadas à sombra da poesia. E são eles mesmos que vão fechar o livro, cerca de uma centena de páginas adiante, quando o poema “A vida” é assim rematado: “A vida afinal não é mais do que um livro / que se lê e sempre tem um fim.” Algo que quase nos diz que a promessa foi cumprida e a missão obteve o seu termo.
Estes pouco mais de oitenta poemas, em que a poesia várias vezes é definida – ou, pelo menos, invocada – pairam maioritariamente em torno de quatro eixos temáticos: o da perspectiva biográfica, o das aprendizagens, o do local e o da construção da poesia.
No primeiro grupo, podemos integrar textos que nos dizem os percursos do poeta no mapa da vida, num misto de desbravamento e de dádiva, de descoberta e de demanda: “A vida levou-me para lá do fim do mundo, / Naveguei por mares de águas ondulantes / Em busca de coisa nenhuma, / Rompendo a roda do tempo, / Alheio à vida, face à vida!” Este grupo de textos mais marcados pela biografia socorre-se por vezes da memória – “Vejo-me e revejo-me / No que era e sempre fui”. Mas há também a preocupação da imagem a deixar, seja para afirmar a imprecisão – “imagem controversa / quase sempre fugitivo de mim” –, seja para delinear a tela de um auto-retrato (que é, de resto, o título de um poema), em que estão patentes as marcas da solidão, da honestidade, da razão, da diferença, da tranquilidade, valores que sublinham a construção de um quase manifesto pessoal.
O segundo grupo, a que chamo das aprendizagens, integra estrofes ou versos que resultam como máximas ou orientações, normalmente relacionadas com o trajecto de vida. É assim que o leitor aprende que “não é onde se bifurcam os caminhos / que morrem as encruzilhadas” ou que “o homem raramente se lembra / que a vida floresce no alvor / de todas as madrugadas”. A ideia dos caminhos ganha consistência nas aprendizagens que Ilídio Gomes faz passar e, mais adiante, reaparece a imagem do itinerário: “Há sempre uma rota, um rumo / por mais duro que seja. / Há sempre dois caminhos / há sempre duas margens / em cada rio…” Saberes que se adquirem com a prática da vida, mas também com as marcas que os outros vão deixando, tal como é revelado num texto intitulado “Compromisso”, que outra coisa não é senão uma carta dirigida ao poeta Sebastião da Gama, a reforçar a promessa do cumprimento, o compromisso com valores veiculados através do poeta da Arrábida – “Eu quero ser verdadeiro / eu quero afirmar hoje e sempre / que foi contigo que aprendi / que quanto mais se sonha / mais tarde se acorda do sonho” ou, noutro passo do mesmo poema, “Aprendi a não fugir do medo, / que com coragem se chega ao fim, / que é a coragem que anima a força / e tempera o cansaço.”
Quanto ao terceiro eixo, relacionado com o local, podemos dizer este livro de Ilídio Gomes se compromete também com a região de Setúbal. Poemas há que projectam a paisagem sadina nos versos de Promessa, num quase alargar de horizontes. Entre os motivos possíveis, o poeta elege os seguintes: a rua, “tão estreitinha”, “maneirinha”, com “janelas pequeninas / todas viradas ao mar”, constituindo-se como ponto de partida para a descoberta do universo, por um lado, e da singularidade do bairro, por outro; o rio, Sado de seu nome, ora avistado à distância, a partir da janela, matizado por tonalidades várias do azul e do verde, ora tornado elemento que afaga os pés do poeta e se manifesta em “murmúrio lânguido”, perante uma cidade “por dentro cheia de luz, / por fora feita de mar (…) /onde o sol se acolhe / em cada asa de gaivota”; resta a serra, brevemente evocada como “serra-mãe”, a mostrar ligação a outros poemas e a outro poeta, paraíso de melodias e de doces entardeceres. Este compromisso do livro com a região de Setúbal é ainda visível em duas fotografias alusivas a conhecidas paisagens setubalenses – o palácio da Comenda, junto ao Sado, e a Doca dos Pescadores, na Anunciada – introduzidas no livro, relacionando-se com o conteúdo apenas por esta dimensão do local.
Finalmente, o quarto conjunto, aquele que se relaciona com a escrita da poesia, muito recorrente, com contínuas entradas nos versos, mesmo que apenas por referência aos momentos em que o poeta se encontra com a poesia. O tempo entre o “crepúsculo” e a “madrugada” é o ideal para o poeta, uma viagem de escrita pela “noite”, que chega a ser “infinitamente bela”, sendo mesmo a escolha dos momentos crepusculares orientada para um acto tão fundamental quanto o do anúncio da morte – “Quando eu morrer / não anunciem a morte / esperem um instante até que anoiteça”. Estas preferências nocturnas para a visita da poesia completam-se com o necessário “silêncio” ou com a “solidão”, determinantes para os instantes de inquietação que a poesia é.
E voltemos à promessa, aquela que Ilídio Gomes puxa para título, uma promessa de palavras construída. Vive o poeta nas suas negruras e solidões, acariciando o poema, escrevendo pela noite fora, num acto de exaltação de um compromisso com a escrita para “dar luz à palavra”, como refere no poema intitulado “Escrever”. O essencial da promessa é essa transformação do sentir em poesia, da noite na luz das palavras, míticos elementos iluminados. Esse encontro com o verbo é ainda destacado numa nota posfacial que Ilídio Gomes conclui com uma outra máxima: “Entendo que escrever é dar luz ao mundo e a poesia, arte milenar, é ela própria um clarão de luz”.
Assim se executa a promessa, assim se conclui o livro, numa missão que põe a descoberto a essência, o mais íntimo que é permitido. Uma missão de luz, em conclusão.
[Na apresentação da obra, em 27 de Novembro de 2010, na Biblioteca Municipal de Setúbal.]

domingo, 28 de novembro de 2010

"Sobreviver ao cancro", de Florindo Cardoso

Quaisquer que sejam os escritos autobiográficos, eles resultam sempre da singularidade de uma experiência pessoal, seja esta singularidade reconhecida pelos outros, seja reconhecida pelo próprio que a viveu. Em qualquer dos casos, o protagonista dessa singularidade está predisposto a reconhecê-la e a considerá-la de tal forma importante que ela pode virar testemunho escrito. Abundam exemplos desses na literatura, resultados de vivências únicas na política, nos campos de batalha, em missões de solidariedade, na prisão, na doença, na profissão.
O que aqui nos traz Florindo Cardoso, no seu livro Sobreviver ao cancro (Setúbal: ed. Autor, 2010), é uma dessas experiências, é a singularidade do estado de doença por que passou, numa experiência de solidão e de confronto com as potencialidades da vida.
Logo na “Nota de Autor” é feita uma curta apresentação da narrativa: “É uma história de vitórias e derrotas, de alegrias e lágrimas, de sofrimento e dor; de uma certa felicidade por ter sobrevivido e poder contar aos outros a minha batalha.”
Esta necessidade de dar testemunho do vivido, apesar dos seus custos (psicológicos, sobretudo) implica também que se fale de esperança, que pode ser algo tão fácil como não alimentar o pessimismo, como viver o momento oportuno para uma palavra amiga dirigida a quem dela precise, vivência que Florindo Cardoso reconhece nem sempre ter tido, como confessa ao encerrar a nota: “Os portugueses têm um defeito terrível que está bem presente em qualquer situação: nunca simplificam, antes complicam, transmitindo uma energia negativa.” Puxão de orelhas, é certo, a hábitos sociais que, na verdade, nada ajudam em momentos difíceis!
A manhã de 6 de Fevereiro de 2009 foi o início deste testemunho, numa história dramática em que o sangue corre pelas pernas, incontrolável; em que a solidão torna o momento mais trágico; em que a calma do outro lado da linha telefónica mais serve para conduzir ao desespero de uma evidência: a luta desmesurada entre o homem e o mal, a obsessão pela vida, o medo da morte.
A narrativa inicia-se com a violência da revelação – “Tem um cancro maligno e está anémico”, frase que penetra “como uma autêntica facada no coração” e que resulta de um confronto brutal com a descoberta, mais sublinhado pela insensibilidade de quem profere a sentença.
A partir daqui, a experiência narrada vive com todas as pequenas coisas a saberem a passos importantes: é a voz de uma voluntária que acalma e incita à persistência na luta, “uma estrela num céu tão cinzento”, pensa o doente; é o olhar pela sala de espera de um hospital, onde estão “dezenas de pessoas a queixar-se de dores e outras maleitas”, contando “histórias incríveis”; é a estranheza perante o tom algo desportivo que vai sendo posto por alguns técnicos na realização das respectivas tarefas… Enquanto anda de um lado para o outro – aqui incluindo o trajecto entre dois hospitais, entre Lisboa e Setúbal –, o doente confronta-se com o facto de que tudo corre “como se ele não existisse”, comentário forte e incisivo quanto ao que deve ser a atitude de quem trabalha na saúde. Apesar do sofrimento, este doente vai tendo energias para algum sentido de humor e de crítica.
A narrativa que Florindo Cardoso nos traz, sendo uma memória de um seu tempo e do seu sentir, não esconde as vicissitudes do protagonista, os seus momentos de fragilidade, como acontece quando está já na cama do hospital de Setúbal: “As pestanas fecharam-se e o medo venceu a dor e as lágrimas.”
Na semana que passou até à intervenção cirúrgica, o tempo foi de revolta, em “dias de muita infelicidade e lágrimas de sofrimento”, ao mesmo tempo que o corpo técnico estava agora a zelar também pelo equilíbrio emocional do paciente. E o decurso da história vai mostrando como um capítulo que se intitula “Revolta” acaba por dizer respeito ao tempo da esperança e do desejo de sentir o mundo que apela lá de fora, apesar da sombra das ideias suicidas.
O regresso a casa, pouco mais de duas semanas depois da manhã da tragédia, é uma pequena saudação à vida: “Que sensação óptima! Parecia um dia de Verão. (…) Sinto-me vivo! Quando entrei no meu apartamento, senti uma alegria enorme. Deitei-me no sofá e saboreei cada momento até adormecer.”
O capítulo que está sob o signo do “Regresso” vai dando conta do que é o encontro com a vida normal, quotidiana, mais numa perspectiva crítica, não faltando a referência aos hábitos sociais – “Parece que virou moda falar desta doença. Se por um lado é bom desmistificar para ajudar os doentes que se deparam com estes casos, por outro, acaba por afundar ainda mais e adensa-se o medo da morte.”
A verdade é que nada é tão forte como os pequenos sinais de libertação. É com graça e alguma curiosidade que decorre o passo de retirada da algália – “Finalmente, a 30 de Março, foi retirada a algália. O alívio foi tão grande. Pedi à enfermeira para mostrar o tamanho do tubo e pasmei com a sua grandeza. Os primeiros passos livres, sem saco para a urina, foram uma felicidade. Quando vi a enfermeira lançar os restos da algália para o lixo, apetecia-me gritar bem alto: estou livre!”
O humor posto em alguns comentários vai aliviando o peso da narrativa, tal como acontece no momento em que é relatado o retomar dos hábitos quotidianos: “Senti-me uma espécie de ‘morto-vivo’, com a sensação de que alguém esperava que já não viesse. Regressei e não houve funeral! Graças a Deus. Havia caras de espanto de pessoas que encontrava na rua.”
No entanto, uma segunda ameaça se preparava e, em 26 de Julho, acontecia nova entrada no hospital. Se a primeira estadia no quarto hospitalar servira para acalentar a revolta, esta segunda vai permitir o sabor amargo da solidão e do sofrimento, com um narrador a mostrar-se sem receio, a revelar-se na sua intimidade, num tom algo confessional: “Essa noite foi mal dormida e com muitas lágrimas. Pensei que tinha secado com tanto choro há três meses. Só que, na solidão do quarto, voltei a ver o filme todo da minha vida e chorei, chorei e chorei até adormecer em soluços.” Porém, depois da operação, é novamente o sentido de humor a intervir, numa ironia do narrador para consigo mesmo – ao ver-se com um dreno em cada lado das pernas, comenta: “Parecia uma árvore de Natal em fim de carreira”; ao ver a quantidade de pontos, considera: “Um cenário de filme de terror, sentia-me o filho do Frankenstein.”
As duas fases seguintes – da quimioterapia e da radioterapia – foram tempos de sofrimento silencioso, quer pelas consequências dos tratamentos, quer pelas forças necessárias para os aguentar. É a mesma escrita de dor, com os pormenores dos medos e dos isolamentos. É o encarar os outros doentes em situação de igualdade e de cumplicidade. É o olhar sobre outros casos com respeito e sofrendo a angústia do que estariam a sentir esses outros protagonistas.
Os quatro capítulos finais são um grito de esperança: “continuo a lutar pela vida com grande garra”. Isto, apesar de se manter uma certeza: a de que “o medo não vai embora, está sempre presente”.
Várias recomendações guarda Florindo Cardoso para este final: a de que “cada dia que passa [é] um sucesso e uma homenagem à vida” vale por muitos sonhos. Mas há também as recomendações mais simples da alimentação e de hábitos quotidianos. E, sobretudo, a última, que encerra o livro: “Encontrar a harmonia espiritual, dar maior importância às coisas simples da vida e descomplexar tantos problemas que surgem no dia-a-dia. Viver a vida.”
Iniciei esta leitura com a singularidade da história. E mantenho-a. Mas este relato não é apenas uma memória; é também um ensinamento e a prova de que a solidão de cada um se deve amparar, tal como Florindo Cardoso recorda: “Só mesmo o meu optimismo, o incrível apoio da equipa médica e da família permitiram vencer o derrotismo e os maus pensamentos.”
Finalmente, uma palavra sobre os apoios que Florindo Cardoso reconhece terem tido importante papel no seu percurso – a apoio do corpo médico e de enfermagem, é certo, que enaltece e a que agradece pelo seu papel de esclarecimento e de acompanhamento; o apoio espiritual, advindo de uma ligação forte à crença e ao sagrado, objectivado na dimensão religiosa de Nossa Senhora de Fátima, várias vezes referida como intermediária e recurso; o apoio familiar, sobre o qual tão pouco se sabe porque os testemunhos são normalmente dos doentes mas escassas vezes de quem os acompanha, assim nos estando vedado um outro tipo de sofrimento e de angústia. No entanto, este livro insere ainda o testemunho da mãe, numa carta dirigida ao filho, que, simbolicamente, abre o livro, memória de uma dor velada, minada por esse paradoxo que é o de “mostrar força”, por um lado, e refugiar-se nas lágrimas da incerteza, por outro. O livro surge, assim, completo, mostrando-nos o sofrimento dos dois lados, ainda que sendo um deles mais silencioso.
Se o discurso de Florindo Cardoso pode decorrer de uma conversa onde nada aparece como definitivo – mesmo o título é comedido, na medida em que não se fala de vitória –, onde algumas reservas vão aparecendo num percurso que é novo, iniciado e que vai sendo aprendido, o discurso da mãe é o da expectativa, manifestando o apoio mas claramente esperando pela reacção à doença… porque se pode ajudar a superar, mas apenas ao paciente é dada a possibilidade de efectivamente ultrapassar a crise.
Um e outro são testemunhos fortes, é verdade. Valem por isso e são necessários. Este gesto de partilha com os leitores é disso prova evidente!
[Na apresentação do livro, em 27 de Novembro de 2010, no Governo Civil de Setúbal.]