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quarta-feira, 30 de julho de 2025

Teresa Martins Marques e o romance de Miguéis

 


O assunto é a biografia de José Rodrigues Miguéis (1901-1980), escritor nascido em Lisboa, com passagem por Setúbal em 1925 (onde foi delegado do Procurador da República), que, a partir de 1929, viveu no estrangeiro (em Bruxelas, por quatro anos, e em Nova Iorque, desde 1935 até ao falecimento) e que, em Portugal, teve intensa acção na imprensa (Seara NovaDiário de LisboaDiário PopularO Globo, entre outros). No entanto, é uma biografia com marcas inovadoras e surpreendentes esta, que cruza o biografado com uma sua amiga, a cientista Maria de Sousa (1939-2020), e com a própria autora, várias vezes mencionada no seu estatuto de estudante e de investigadora da obra do escritor. O próprio título da obra chama a atenção do leitor para uma forma de biografar distante do convencional — Nos Passos de José Rodrigues Miguéis - Uma Biografia como um Romance, obra devida a Teresa Martins Marques (Âncora Editora, 2025), cuja primeira obra publicada sobre o mesmo autor data de 1994, O Imaginário de Lisboa na Ficção Narrativa de José Rodrigues Miguéis (Editorial Estampa).

Ler uma vida como se o leitor esteja perante um romance, pois. Miguéis e Maria de Sousa foram amigos e tiveram muitas horas de conversa. Este foi o primeiro pretexto para Teresa Martins Marques fazer destes dois nomes as personagens necessárias para a acção desta obra, num diálogo imaginário, em que ele se conta e ela o ouve e inunda com perguntas e observações. Se a longa entrevista é fruto da imaginação da autora (visando interligar os tempos e as acções, problematizar e informar sobre os contextos, aprofundar o pensamento do biografado, enfatizar o percurso utilizando a narração na primeira pessoa), o seu conteúdo é consequência de aturada leitura e investigação, que passou por: conversas com pessoas que foram próximas de Miguéis (Maria de Sousa e Camila Miguéis, sobretudo) e com estudiosos da sua obra  (David Mourão-Ferreira e Onésimo Teotónio de Almeida, por exemplo); conhecimento exaustivo da obra publicada em livro e em periódicos e de materiais não publicados; leitura intensa de documentação alusiva a Miguéis, particularmente na vertente epistolográfica, em que se destacam destinatários como José Saramago (1922-2010), David Ferreira (1897-1989), Jacinto Baptista (1926-1993) ou Taborda de Vasconcelos (1924-2009), entre outros.

Se a palavra “romance” no subtítulo da obra serve para garantir a fluência narrativa, a verdade é que a sua estrutura, fortemente apoiada no género entrevista, vive de tipologias muito diversas de escrita — do monólogo da personagem, ora em tom diarístico ora em exercício de reflexão e de anotação sobre as histórias que fizeram a sua vida; do ensaio, que surge como leitura feita pelo próprio biografado à medida que os trabalhos sobre a sua obra vão chegando ao seu conhecimento; da epistolografia, que suporta muitas das ideias do correspondente e contextualiza as vivências, permitindo uma proximidade maior ao leitor; do resumo de algumas obras, recurso importante pela dimensão autobiográfica que muitas delas apresentam, contendo mesmo chaves de descodificação dessa marca de vivência pessoal.

Nos Passos de José Rodrigues Miguéis é a biografia necessária para o leitor se aproximar de um autor que, sempre preocupado com o que se passava em Portugal, teve de fazer a sua vida distante do país (numa situação entre a emigração e o exílio), não só em termos geográficos, mas também de mentalidade, pois não teve afinidades com o regime político que “Salatzar” ou “Salaczar” marcou, teve a sua acção controlada pela polícia política, recusou o Prémio Nacional de Novelística (apesar de o dinheiro lhe fazer falta) e afirmava o seu tom contestatário “contra gregos e Caetanos”.

Miguéis, que publicou durante 60 anos (no levantamento da bibliografia activa que Teresa Martins Marques apresenta, o primeiro texto publicado sai em Abril de 1921 no jornal O Sol, de Beja, e o último em Agosto de 1980, no Diário Popular, apesar de não ter sido este o seu derradeiro texto), surge vivo na sua argúcia crítica (sobre os outros e sobre si mesmo, com diálogos construídos sobre citações suas), na sua vida complexa e recheada de muitos dissabores e sofrimentos, na sua qualidade de escritor a ser lido e pensado pelo seu olhar sobre Portugal sem tibiezas. Teresa Martins Marques, cuja obra se estende pelo ensaísmo e pelo romance, conseguiu aliar estas duas tónicas em prol de uma biografia necessária, que passará a ser de consulta indispensável para um mais profícuo entendimento da obra de José Rodrigues Miguéis.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1582, 2025-07-30, pg. 10.


quarta-feira, 21 de março de 2018

Dia Mundial da Poesia - A poesia em sete reflexões


“Todo o poema - por mais dramático, áspero, dissonante... - infiltra-nos pelos poros a música, e o silêncio, do rumor de fonte da Harmonia.” (José Fernandes Fafe. Curriculum Vitae. S/L: Editorial Fragmentos, 1993)

“O poema / (…) / são palavras que caem, abatidas pela vida, / e que esperam por nós para se erguerem, / como se a música assim pudesse permanecer.” (Luís Filipe Castro Mendes. “Rater. Rater encore. Rater mieux”. Outro Ulisses regressa a casa. Col. “Poesia Inédita Portuguesa”, 149. Lisboa: Assírio & Alvim, 2016)

“A grande poesia é aquela que, de repente nos oferece um mundo, no qual a vivência deste se altera em cores e dimensões não sonhadas. É a criação de um outro mundo que se acrescenta realmente ao nosso mundo visível. É isso e não os versos que são muito bonitos.” (Eduardo Lourenço, entrevista a Carlos Vaz Marques. Ler. Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 72, Setembro.2008)

“A poesia é a linguagem segundo a qual deus escreveu o mundo.” (Valter Hugo Mãe. A Desumanização. 7ª ed. Porto: Porto Editora, 2016)

“A poesia nasce como os rios / e as pessoas / as avenidas / e o mar // Porque a poesia vive em tudo / e em tudo se confunde / com o sonho.” (Costa Andrade. “A voz da terra”. Terra de acácias rubras. Lisboa: União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa - UCCLA, 2014)

“As pessoas lêem poesia porque fazem parte da raça humana e a raça humana arde de paixão! Medicina, direito, a banca… Estas coisas são necessárias à vida. Mas poesia, romance, amor, beleza? São estas coisas que nos mantêm vivos! (...) Se toda a gente fosse poeta, o planeta morreria à fome! Mas a poesia tem de existir, e nós temos de reparar nela, reconhecê-la na mais ínfima, na mais insignificante das coisas, ou teremos perdido e deixado passar muito do que a vida tem para nos oferecer.” (N. H. Kleinbaum. O Clube dos Poetas Mortos. Col. “Os Livros do Cinema”, 4. Lisboa: “Diário de Notícias”, 2004)

“Toda a verdadeira poesia é um frémito diante do mistério ou da injustiça; um pressentimento do que está ou devia estar para além da apreensão imediata, da complexidade vibrante das coisas e do tempo, de tudo o que a ciência e a filosofia procuram depois de desvendar e resolver.” (José Rodrigues Miguéis. É Proibido Apontar. 2ª ed. Lisboa: Estampa, 1984)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Sublinhados - José Rodrigues Miguéis, "O Espelho Poliédrico"



O Espelho Poliédrico, de José Rodrigues Miguéis (Lisboa: Estúdios Cor, 1972), é um conjunto de textos em que o cronista se assume como “simples narrador de histórias reais e experiências inventadas” (como refere no intitulado “O galo, o estudante e o professor”), embora algumas vezes povoando esses mesmos textos com uma dose de memorialismo, mesmo que tenha registado algo como: “Não escrevo memórias, talvez nunca as escreva: a não ser transpostas em ficção, ou quando um flash de lembrança, como agora, me ilumina.” (em “O Corcundinha”). No final da obra, lá vem a “nota do autor” a explicar que as crónicas são um conjunto vasto e diversificado de “memórias, comentários e ficções” e a indicar a origem - publicadas no Diário de Lisboa, na sua maioria, entre 1968 e 1971, algumas inéditas e outras surgidas em várias publicações periódicas.

Sublinhados
Automóvel - “O automóvel é também um prolongamento mórbido da personalidade e da sensibilidade: ao mais leve contacto, risco ou amolgadela no verniz da carroçaria ou nos niquelados, pior que insultos ou facadas; se alguém se me atravessa no caminho, me obriga a desacelerar a marcha, me ultrapassa ou me rouba o precioso parking - eu pulo fora do carro, espumante e de punhos em riste, pronto a insultar, a agredir, a matar até, como é frequente, o transgressor dos meus sacratíssimos ‘direitos’. O carro fez dos homens autênticos artrópodes metalomecânicos, lavagantes desmiolados, impessoais, isolados entre si pela carapaça de duas toneladas de aço-lata com motor e quatro rodas, capaz de esmigalhar ossos, carnes e nervos, na qual andam metidos e conduzem (ou são conduzidos) sem verem os seus semelhantes: com a mesma anarquia de sentimentos, a mesma fúria, indiferença ou hostilidade com que andariam entre inimigos ou em terra conquistada.” (“Sua Majestade o Automóvel”)
Eternidade - “A Eternidade não é feita da soma dos dias, dos instantes, mas do aprofundamento de cada instante, de cada átomo, de cada ser, em que a própria matéria se dissolve.” (“Enterro de um Poeta”)
Homem - “É nas mínimas circunstâncias do quotidiano que os homens, por vezes, melhor revelam a sua têmpera.” (“O galo, o estudante e o professor”)
Juventude - “O tempo da mocidade é curto, mas denso de afectos e actividades.”  (“Levanta-te e Caminha”)
Mudança - “As coisas, quando mudam, é: a) para melhor; b) para pior; c) para ficarem na mesma. Esta saída é mais frequente do que se imagina.” (“Aforismos e Venenos de Aparício - III”)
Ódio - “Os ódios e rancores não se calam nem à beira do túmulo.” (“Requiem para Junqueiro”)
Palavra - “Vale mais um pensamento lúcido, embora sem palavras, do que a verborreia a mascarar o vácuo ou pobreza das ideias.” (“Aforismos e Venenos de Aparício - III”)
Política - “O a-politismo é quase sempre uma política de sinal contrário (ou resulta nela).” (“Levanta-te e Caminha”)
Vida - “A vida é feita de tanta coisa! E nem toda a sabedoria se aprende nos livros.” (“A garrafa de conhaque”)

domingo, 10 de junho de 2012

Memória: Maria Keil (1914-2012)


Maria Keil morreu. Assim entra na memória uma das ilustradoras de referência da literatura dedicada à infância e juventude. Creio que um dos seus últimos trabalhos foi a ilustração do livro Florinda & o Pai Natal, publicação póstuma de Matilde Rosa Araújo (Lisboa: Calendário, 2010), área a que se dedicou depois de, na década de 1960, ter ilustrado a obra Páscoa feliz, de José Rodrigues Miguéis.
Em 2004, a Biblioteca Nacional organizou uma mostra bibliográfica sobre Maria Keil, com exposição de cerca de 160 referências. No catálogo, um texto de Matilde Rosa Araújo contava uma história que começava assim: “Maria fica sempre fora de todos os discursos. Há algo de imponderável, de não tocável ou que possa ser descrito na pessoa física, na personalidade tão rara de Maria Keil.” A história-testemunho avançava. E concluía desta maneira: “Maria, obrigada de todo o coração. Encontrar seu voo em livros meus foi, para mim, um raro presente da vida que a sua generosidade nunca me recusou. (…) Maria sábia em sua varanda.”
Provavelmente, muitos outros autores poderiam dizer o mesmo. Os desenhos de Maria Keil ficaram a enriquecer ainda obras de nomes como Alexandre Honrado, Alice Vieira, Álvaro Magalhães, Aquilino Ribeiro, Esther de Lemos, Graça Vilhena, Irene Lisboa, Maria Cecília Correia, Maria Isabel César Anjo, Maria Lúcia Namorado, Sophia de Mello Breyner e Teresa Balté, entre outros.
Fica-nos a alegria desses desenhos (bem como as outras múltiplas obras em que se desdobrou, designadamente a azulejaria). E a consciência do que é desenhar para crianças: “Não se deve entreter as criancinhas com as nossas fantasias, pois o trabalho é para elas. Não se deve minimizar, nem fazer coisas que os miúdos não possam entender. Eles percebem tudo, não é preciso estar a deformar uma figura…”, dizia Maria Keil numa entrevista a João Paulo Cotrim, publicada no Expresso em 2004 (“Maria Keil – A linha e o traço”. Expresso – supl. “Actual”: 28.Agosto.2004, pp. 18-19).

domingo, 2 de outubro de 2011

Inês Pedrosa entre a morte da literatura e os direitos de autor

Na revista Ler deste mês (Lisboa: Círculo de Leitores, nº 106), Inês Pedrosa escreve sobre "A morte da literatura", onde diz, a dado passo:
Quando morre um escritor os seus livros têm um pico de vendas – derradeiro e irónico prémio. Depois desaparecem das notícias e, estando impedidos de dar entrevistas provocatórias (embora às vezes apareça uma ou outra inédita, a título póstumo…), vão-se sumindo. Ficam os livros – enquanto houver editores que entendam a edição como um serviço ao futuro.
A protecção dos direitos dos autores mortos é, demasiadas vezes, o seu segundo enterro. Durante 70 anos a publicação fica à mercê dos herdeiros – que muitas vezes se desentendem, ou pretendem fazer do seu antepassado uma potencial mina de ouro. Vinte e cinco anos seria justo – para honrar os filhos ou os mais próximos. José Rodrigues Miguéis, por exemplo, não merecia estar tão morto como está, por falta de edição. Isso, sim, é a morte da literatura.”
Acrescentar alguma coisa? Quanto aos herdeiros, há também os que desvalorizam a obra e contribuem para o esquecimento. E, quanto a Miguéis, bem recordo que, quando há cerca de três anos, pensámos, na minha escola, que os alunos deveriam ler Uma Aventura Inquietante, rapidamente tivemos de desistir porque não era possível encontrá-la no mercado… E de quantos outros autores podemos falar nas mesmas circunstâncias?

domingo, 26 de junho de 2011

"A última entrevista de José Saramago", por José Rodrigues dos Santos

“José Saramago, cidadão do mundo e escritor universal, é nosso; nosso, da lusofonia. A sua casa, a verdadeira identidade que o moldou e fez dele o que ele foi, é, afinal, a língua portuguesa.” É este o parágrafo que remata A Última Entrevista de José Saramago, de José Rodrigues dos Santos (Lisboa: Gradiva / RTP, 2011), agora publicada em edição autónoma, mas que já integrou o livro Conversas de Escritores (Lisboa: Gradiva, 2010) do mesmo autor. O parágrafo vem a propósito da casa Saramago em Lisboa e por causa de um plátano, mas singra por essa afirmação que conjuga identidade e lusofonia…
O pretexto desta edição será o primeiro aniversário da morte de Saramago, momento adequado para que as palavras de Saramago, numa reflexão sobre a sua obra, sejam iluminadas. A entrevista ocorreu oito meses antes da morte do autor de Memorial do Convento na biblioteca do Palácio Galveias, em Lisboa, local escolhido por Saramago, que o próprio justificou: “Foi nesta biblioteca que descobri a literatura. A minha família era muito pobre e não havia livros lá em casa, de maneira que, quando eu tinha os meus dezassete ou dezoito anos, descobri esta biblioteca e vinha para aqui ler sem que ninguém me guiasse na leitura. Descobri a literatura sozinho.”
A entrevista passa pelo conjunto da obra saramaguiana desde Terra do Pecado (de 1947) até Caim (2009), com revelações sobre a importância dos seus títulos, como faz, ao responder à observação de que Memorial do Convento (1982) será a obra do reconhecimento público: “Há um outro livro que, no fundo, é parente directo do Memorial e do Levantado do Chão [1980], mas talvez mais do Memorial, que é a Viagem a Portugal [1981]. Esse livro de viagens, que parece ser só isso, não podia ter sido escrito noutra altura nem ter outros companheiros de viagem que não fossem aqueles.”
Interessante é a resposta de Saramago quando Rodrigues dos Santos lhe fala da actividade de tradutor e das possíveis influências que as obras traduzidas por Saramago (cerca de 60) poderão ter tido na sua obra: “O autor é um tradutor. É alguém que traduz um sistema de sinais: emoções, pensamentos, sonhos, devaneios. Isto é um trabalho de tradução, porque tudo isso constitui uma linguagem que, se não encontrar uma forma comunicável de transmissão, fica cá dentro da cabeça de cada um de nós.” Esta interpretação vai encontrar eco mais adiante, no momento em que Saramago defende o valor da linguagem na construção literária – “Uma história bem construída é indispensável; aquilo tem de estar estruturado, tem de manter-se de pé. Mas eu costumo dizer que, da mesma maneira que o corpo humano tem setenta por cento de água, a literatura é setenta por cento de linguagem.”
Homem de criação e de ideias, Saramago esmera-se na comparação da construção de um romance com o crescimento de uma árvore – um e outra têm um limite que se impõe em certa fase do crescimento. Fiel às convicções, justifica a importância da palavra “não”, pela sua simbologia associada à revolução, ainda que se corra sempre o risco de uma revolução se tornar num novo “statu quo”, “num novo sim”.
A questão da pontuação – uso das vírgulas, transgredindo a norma do registo do discurso directo, ou dos nomes próprios com minúsculas – usada por Saramago nas suas obras tinha de estar presente. E a resposta teria de ser artística: “Há uma razão básica que é uma tentativa, talvez nem sempre lograda, de aproximação do discurso escrito ao discurso oral”, afirmação justificada com o ritmo da linguagem e da vida – “Nós falamos como quem faz música; toda a fala e toda a música se constrói com sons e pausas.”
Merece ainda uma referência a observação de Saramago quanto à oportunidade de, no ensino secundário, ser estudado o Memorial, “que levanta uma infinidade de problemas para os quais os alunos com essa idade não estão nada preparados”. Em alternativa, propõe que seja estudada uma obra como A Escola do Paraíso (1960), de José Rodrigues Miguéis, “onde se fala de coisas mais próximas deles”. O leitor que tenha viajado até ao volume de Correspondência 1959-1971 entre Miguéis e Saramago (organizado por José Albino Pereira e publicado em 2010 – Lisboa: Caminho) poderá ver que a admiração e o reconhecimento de Saramago por Miguéis constituem uma marca genuína.
Este trabalho de José Rodrigues dos Santos é ainda um modelo de construção de entrevista. Nela, o entrevistador vai ao encontro «do» e «com o» entrevistado, sabendo muito sobre ele, conhecendo a sua obra, tentando suscitar explicações, deixando que o entrevistado se manifeste a colaborando numa espécie de leitura da entrevista (ou do entrevistado), tal como acontece no momento em que Saramago explica que, para um romance, tem necessidade de que se lhe apresente uma “ideia provocadora” que reflicta uma preocupação, ainda que, inicialmente, pareça fugir à lógica – nesse momento, intervém Rodrigues dos Santos, observando que, “de um ponto de partida inverosímil, cria uma situação que depois é verosímil nas suas consequências”, exultando Saramago: “Exactamente, exactamente! Você definiu isso muito bem!”

sábado, 25 de outubro de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 88
Cunha – “O nosso povo tem o vício ancestral da cunha. Imaginando de antemão que não poderá, pelas vias legais, alcançar o que pretende, serve-se da cunha. E para tudo a utiliza, mesmo quando desnecessário. Simplesmente porque não acredita na justiça, nas leis e nos regulamentos. Isso, pensa o povo, é para os ricos, os poderosos. O pobre só sobrevive com a cunha.” (José Leon Machado, 2008).
Guerra – “A próxima guerra será silenciosa, esteticamente organizada, não haverá necessidade do ruído desagradável das bombas e da visão traumática e em último caso perfeitamente dispensável das cidades arrasadas, porque as cidades ficarão intactas, só as pessoas e os seres vivos morrerão, mas em silêncio, sem estertores nem gritos, nem nada de excessivo ou patético, tudo será eficiente, limpo, límpido.” (Teolinda Gersão, 1981).
Noite – “Bem sei que a noite não é a mesma coisa que o dia; que todas as coisas são diferentes, que as coisas nocturnas não podem ser explicadas de dia, pois de dia não existem, e que a noite pode ser terrível para os solitários, desde que sintam que o são.” (Ernest Hemingway).
E-mail – “O correio electrónico – Alucinante, o despacho desta correspondência. Não me apaga, porém, saudades do tempo em que se manuscreviam cartas e não só as cartas de amor. Nada mais pessoal que a caligrafia, a letra de cada pessoa é identificação e intimidade. Os próprios prosadores e poetas conquistados pela desenvoltura do computador não deixarão nos espólios o cunho da caligrafia, o testemunho dos retoques e emendas que ilustrem a criação das suas obras.” (Mário Zambujal, 2008)
Economia – “A humanidade nunca foi tão rica e tão pobre ao mesmo tempo. A pergunta que importa fazer tem dois mil anos: o ser humano é para a economia ou a economia para o ser humano?” (Frei Bento Domingues, 28.Setembro.2008).
Poesia – “Toda a verdadeira poesia é um frémito diante do mistério ou da injustiça; um pressentimento do que está ou devia estar para além da apreensão imediata, da complexidade vibrante das coisas e do tempo, de tudo o que a ciência e a filosofia procuram depois de desvendar e resolver.” (José Rodrigues Miguéis).

domingo, 6 de abril de 2008

Máximas em mínimas (18)

Liberdade e autoridade
"Como os povos, as crianças admitem a autoridade; precisam dela, querem-na mesmo, quando sentem que se inspira na necessidade, na utilidade, na justiça, no respeito duma liberdade responsável; e, para acatá-la, são acessíveis às razões do sentimento. Ainda não embotadas pela vida, a sensibilidade é nelas a corda dominante, e quem souber vibrá-la conseguirá resultados muito superiores aos da tirania do Porque-Sim. Não é preciso ter lido Locke, Montesquieu ou Voltaire, nem sequer saber formular belos juízos racionais, para se ter o sentimento da liberdade e o duma justiça sem a qual aquela nada vale. Têm-no as crianças, e por isso odeiam geralmente a opressão que eu, adulto, procuro exercer sobre elas em nome do que eu chamo o seu interesse e felicidade, e que é quase sempre o meu interesse."
José Rodrigues Miguéis. "Da janela do meu quarto" (1934-1935). É proibido apontar (1974)

Em lembrança de José Rodrigues Miguéis

Desde há cinco semanas, o Público tem distribuído aos fins-de-semana uma colecção intitulada “Cadernos Biográficos”, de que já saíram dez números (e de que ainda sairão mais seis), da autoria de Paulo Marques, em edição da Parceria António Maria Pereira. Hoje, foi a vez de José Rodrigues Miguéis, que surgiu acompanhado pelo subtítulo “Estupidamente esquecido”.
Será Miguéis um “esquecido”? Não sei se tem tido a divulgação que merece, mas a sua obra tem sido estudada e divulgada (como, aliás, as referências bibliográficas no final deste “caderno” deixam ver); a sua biobibliografia, ainda há poucos anos, quando passou o centenário do seu nascimento (2001), teve eco nas bibliotecas e na imprensa (em Setúbal, por exemplo, houve mesmo uma conferência intitulada “Algumas mulheres na obra de José Rodrigues Miguéis”, por Teresa Martinho Marques, na Biblioteca Pública Municipal); a sua obra não está esgotada, encontrando-se disponível no circuito comercial e em bibliotecas; e, finalmente, o conto “Arroz do céu”, do livro Gente da terceira classe (1962, mas que surgiu numa primeira publicação na revista Seara Nova, em 1947), costuma integrar os manuais da Língua Portuguesa do 3º ciclo, havendo mesmo edição ilustrada desse conto (recordo o prazer que muitos alunos de 7º ano tiveram no ano lectivo passado quando leram esta narrativa, quer pelas questões sociais, quer pela ironia, quer pela espiritualidade… tendo mesmo havido alunos que quiseram fazer uma dramatização dessa história). Não encontro, assim, justificação para o subtítulo, sobretudo se pensarmos que muitos autores portugueses do século XX há que estão mesmo já esquecidos, com obra quase impossível de encontrar, infelizmente!
Na nota que antecede estes “cadernos” (comum a todos os números), é assim justificada a escolha dos biografados: “Numa época de carência de auto-estima nacional, em que muito se elegem ídolos medíocres e vazios de ideias, é importante relembrar estes 16 exemplos de portugueses, homens e mulheres que ousaram cumprir o potencial com que nasceram.” A razão é mais do que justa, sobretudo se pensarmos no que se passou há tempos, quando se andou à volta de um concurso de “Grandes Portugueses”…
O título da colecção pode justificar a curta extensão dos textos. Mas valeria a pena sentir-se uma orientação mais evidente e a presença de dados mais relevantes. Nas fichas de leitura que os alunos costumam entregar-me, há espaço para uma referência biobibliográfica sobre o autor, justificada com o enriquecimento cultural e a contextualização temporal. Não raras vezes, a meia dúzia de linhas que dedicam ao autor é importada de fontes nem sempre interessantes e, com frequência, não são indicados outros títulos da bibliografia do autor para além do que está a ser apresentado. Costumo anotar que o mais importante no percurso de um escritor é o conjunto da sua obra, pelo que deviam mencionar, pelo menos, alguns títulos, de preferência com data das primeiras edições… Vem isto a propósito do facto de, nas 46 páginas deste “caderno” dedicado à biografia de Miguéis, serem dele indicadas quatro obras – A escola do paraíso, Páscoa feliz, Léah e outras histórias, Um homem sorri à morte – com meia cara, bem como a crónica “Gente da terceira classe” (não havendo referência de que ela integrou livro com título homónimo). Muito pouco para um autor que deixou quase uma vintena de títulos e longa colaboração jornalística, e de quem, ainda em 2004, numa colecção publicada pelo semanário O Independente, saiu uma antologia, A amargura dos contrastes, com colaborações de Miguéis vindas a lume no Diário Popular, no Diário de Lisboa, na Gazeta Musical e de Todas as Artes, na Seara Nova, no Globo, no República, em O Diabo.
O propósito destes “cadernos” será o de impedir o esquecimento, mas também podia ser o de haver mais alguma informação elementar (indispensável e até determinante) sobre os biografados. Mais cumprimento teria o nome da colecção…