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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Maria Adelaide Rosado Pinto: Sons de Setúbal



O nome de Maria Adelaide Rosado Pinto (1913-1997) está ligado a Setúbal, não só porque aqui nasceu, mas sobretudo pela obra ímpar que, na área da música, promoveu como estudiosa, professora, autora, fundadora de instituições, divulgadora da arte. O seu trajecto veio, aliás, dar continuidade ao de seu pai, Celestino Rosado Pinto (1872-1963), também ele setubalense, com uma carreira invulgar de regente, intérprete e compositor.
A continuidade da obra de um na obra do outro torna-se visível no livro Toadas, cantares e danças de Setúbal e sua região - Factos e tradições, assinado por Maria Adelaide Rosado Pinto (Setúbal: Junta Distrital de Setúbal, 1971), que se apoiou, em grande parte, na recolha musical e etnográfica levada a cabo por seu pai, obra que continua a ser hoje um elemento importante, aliando a arte musical a marcas identitárias da região sadina em várias manifestações da cultura local.
O primeiro grupo da recolha incide sobre as canções ligadas ao rio, ambiente de pescadores e de salineiros que, com “os seus ritmos de puxar redes e mover remos, as suas frases típicas, as suas toadas, cantilenas e danças mais ou menos alegres ou nostálgicas, características da beira-mar, davam a estas margens um pitoresco e caprichoso colorido”. Dos pescadores de Troino, ouvidos “mar fora, entoando os seus cantares durante a agitada labuta marítima”, conhece o leitor composições como “Barca velha” (1885), “Toada da beira-mar” (1889) e “Cantilena do mar” (1894), esta com a nota de ter sido “recolhida numa noite passada num barco de pesca fora da barra de Setúbal”. Do lado das Fontainhas, zona mais festiva, pode-se encontrar “Trova do mar” (1905), “Vira vira” e “Vira do Sul” (1918) e “Descante” (1919). Passa por este conjunto de cantigas a vida do mar, o amor, a festa, o galanteio, o ritmo da vida.
Um outro conjunto regista cantares de cunho religioso, como as loas do Círio de Setúbal da festa de Nossa Senhora da Arrábida na versão de 1853, um cântico dedicado à Senhora do Cabo (1865), os cantares à Nossa Senhora do Cais (1927 e 1928) e prece e agradecimento ao Senhor do Bonfim (1836), manifestações dominadas pelo pedido de auxílio nas mais variadas situações e pelo agradecimento.
O terceiro tema assenta sobre festas tradicionais da região, ligadas aos santos populares ou a momentos peculiares do ano (desfolhadas, Natal), composições muitas vezes construídas para envolverem a dança, retratando trabalhos, momentos de festa, relações entre as pessoas, formas de viver.
Os textos poéticos, sempre acompanhados da respectiva partitura musical, surgem agrupados tematicamente, depois de curto texto introdutório de contextualização, muitas vezes expandindo um sentido de deslumbramento perante os quadros populares. Ao longo do livro, vai o leitor sendo contemplado com algumas fotografias locais devidas a Américo Ribeiro, havendo ainda espaço para a descrição de trajos regionais por onde passam o descarregador de peixe, o marítimo, a peixeira, o pescador, a varina, a rapariga das ostras, a vendedeira de melancias, o leiteiro, a saloia, figuras desenhadas pelo traço de Inês Guerreiro.
Tão notório é o propósito pedagógico que acompanha esta obra, manifestado na intenção de dar a conhecer aos leitores a origem das danças e cantares que enfeitam as manifestações religiosas, festivas e de trabalho, que a sua leitura se torna fácil, esclarecedora e apetecível.
* "500 Palavras".  O Setubalense: nº 403, 2020-05-27, pg. 8.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Um retrato escrito do Vale do Neiva

Memórias do nosso povo – Para uma etnografia do Vale do Neiva (Barroselas: Junta de Freguesia, 2007) é obra de Manuel Delfim Pereira (1944-2002), natural de Barroselas, que reúne textos publicados em vida do autor no jornal regional que ele próprio fundou, O Vale do Neiva. Em forma de apresentação, escreve Rogério Barreto (Presidente da Junta de Freguesia de Barroselas, responsável pela edição) que não se está perante “um trabalho de investigação sobre a etnologia do Vale do Neiva”, mas em vista de “um registo de informações, conhecimentos e vivências de uma comunidade”, eivado de “uma linguagem simples, literariamente menos aparada e circunscrita ao essencial”.
Por este livro é dada ao leitor a oportunidade de ser viajante no tempo, recuando a histórias, práticas e costumes entranhados e vividos desde um tempo de que ninguém se lembra até ao tempo que corre, numa permanente visita à memória. O apego à região em que cresci e o cruzamento com relatos de que guardo retratos na memória determinaram a minha adesão a este itinerário em que o Vale do Neiva surge autêntico.
Alguns textos configuram mais a prática do conjunto de apontamentos; muitos outros vivem sobre as memórias de entrevistados, com o seu vocabulário próprio, com as marcas de linguagem regional (por vezes, local). Há notícias sobre o quotidiano, sobre as vidas – da actividade económica à vida familiar, da linguagem à religião, da festa à alimentação, da matança do porco à consoada, das brincadeiras infantis à alternativa da medicina popular, do cancioneiro às memórias, das rezas ao folclore e às crenças.
Um exemplo (entre muitos possíveis) em que a língua respira vivacidade e originalidade é no testemunho prestado por Beatriz da Silva (com 74 anos em 1984, ano do depoimento), ao descrever como era feita a “fornada”, misto de técnica, de crença, de necessidade, de saber, de arte e de engenho: “Primeiro peneira-se a farinha para dentro da masseira, deita-se nela água morna, sal e o fermento, que ficou da última fornada. Imberbe-se tudo com a rapadeira, com as mãos apezunha-se, dá-se-lhe três voltas, alivia-se a seguir a massa, para ficar estufadinha. A seguir, junta-se a massa, onde se faz uma cruz com o dedo, a um canto da masseira, é tapada com um pano e aí fica a levedar. Estando levedada a massa e o forno bem quente, limpa-se o forno com uma férrea, tiram-se as brasas com um varredoiro, limpa-se de todas as brasas e borralha. À porta do forno deixam-se ficar algumas brasas para evitar que o forno arrefeça. Estando limpo o forno, põem-se primeiro os bolos – pão baixo, que é geralmente recheado de sardinhas, chouriço ou toucinho – que se comem na primeira refeição. Para cozer os bolos não se tapa a boca do forno. Retirados os bolos cozidos, segue o pão de broa. Com a ajuda da gamela apadeja-se e sobre a pá coloca-se a broa, introduzindo-a no forno. Cada broa pesa 4 a 5 quilos. Geralmente o forno leva cerca de seis broas. Estando cheio, antes de pôr a tampa, faz-se com a pá uma cruz à boca do forno e diz-se ‘Deus te acrescente, dentro do forno e fora do forno e que deias pão para os pobres todos, ámen Jesus’. Põe-se a porta de madeira e tapa-se as frestas para que o calor não se perca (utilizava-se bosta de gado, que secava com o calor, ou, nos tempos mais recentes, massa de farinha, quando deixou de ser uso andar a apanhar a bosta para cozer a broa). A fornada leva cerca de duas horas a cozer. Depois, retira-se a porta e com o cabo da vassoira dá-se um toque em cada broa, que é para acordar o pão.” Depois, havia pão para duas semanas…
Felizmente, sobre a região do Vale do Neiva tem havido divulgação bibliográfica – por as ter à mão, refiro obras como a organizada por Cândido Maciel (Vale do Neiva – Subsídios monográficos. Durrães: 1982) e a de Manuel Moreira do Rego (Crenças, tradições e a sua evolução no Vale do Neiva. Neves: Centro Recreativo e Cultural das Neves, 2005) – a que vem agora juntar-se este livro, que, de acordo com as palavras do editor, é o primeiro volume de “um projecto de publicação de trabalhos de cariz cultural”.