quarta-feira, 27 de julho de 2022

Donzela Teodora, entre a beleza e a inteligência (3)



História da donzela Teodora não conclui sem que o rei queira ainda conversar com a jovem, prolongamento do deleite de estar na sua presença, argumentando que, “já que tanto sabia, lhe declarasse certas dúvidas que tinha, pois nisso teria grande gosto”. As perguntas, de conteúdo religioso - sobre a penitência, o valor da missa, o “dia do Juízo”, a utilidade dos sacramentos -, motivam argumentação, exemplos e lições nas respostas de Teodora.
No final, o rei manifesta o pesar de não a poder manter em sua companhia, assumindo a decisão tomada de contribuir para um final feliz: “ordenou ao seu mordomo lhe desse mais dez mil dobras de ouro e lhe desse mais um vestido de brocado e enviou a ela e a seu senhor com grande honra para a sua terra.” O narrador finaliza a história com uma garantia - “esta discreta donzela tirou a seu senhor de tanta miséria” e “outras muitas coisas fez, e mostro por experiência, as quais se não referem aqui.” E o leitor acredita neste muito conhecer de que o narrador se reveste...

O folheto História da donzela Teodora, traduzido por Carlos Ferreira Lisbonense, terá tido a sua primeira edição portuguesa, a partir do castelhano, por 1712. Não há certezas sobre a quantidade de edições (e de versões) desta história - em 2019, Sophie Coussemacker admitiu que, “desde 1498, pelo menos, a história de Teodora conheceu um tal sucesso editorial que se podem contar 59 versões”. E compreendem-se as motivações para as “versões” - as religiosas, entre o cristianismo e o islamismo; as de censura, mesmo que devida aos costumes; as da criatividade dos diversos redactores. Como exemplo, refiram-se duas edições espanholas desta obra: em 1628, em Jaén, saía uma edição que pode ter servido a tradução portuguesa, quer pela estrutura narrativa e frásica, quer pela similitude dos acontecimentos; em 1865, em Carmona, na Andaluzia, era publicada uma edição com alterações substantivas - a proposta de Teodora ao terceiro sábio, nesta edição, não tem nada a ver com o despir e a perda das roupas do vencido: “se me vencerdes, ficarei como vossa escrava enquanto viverdes e, se for eu a vencedora, havereis de me dar dez mil dobras de ouro”.

As origens desta história, que assenta sobre pares antitéticos como o saber e a ignorância, a honra e a desonra, a ostentação e a simplicidade, afirmando verdades universais, perdem-se nos tempos. Não lhes serão estranhos os contos orais (vários capítulos se iniciam com a frase “diz a história que...”) ou a “História da douta Simpatia”, inserta em As Mil e Uma Noites, em que a escrava Tawaddud (Simpatia) vence todos os sábios que a inquiriram.

A popularidade da História da donzela Teodora chegou ao Brasil, adaptada em verso, em data desconhecida,por Leandro Gomes de Barros (1865-1918), de Paraíba, em 142 sextilhas, sempre com idêntico esquema rimático (abcbdb), seguindo a versão portuguesa e concluindo com a referência ao trabalho do poeta: “Caro leitor, escrevi / Tudo que no livro achei / Só fiz rimar a história / Nada aqui acrescentei / Na história grande dela / Muitas coisas consultei.”

Teodora tornou-se assim o símbolo feminino de inteligência e beleza que o garrettiano Frei Jorge usou para classificar a jovem Maria. Mas também houve quem preferisse outra perfeição numa donzela - António Manuel Couto Viana, em 1948, na revista Atlântico, versejou sobre uma Teodora, “menina tristonha / com livros na mão”, dizendo, quase no final: “Menina que pensa / Não sabe brincar / A maior doença / Na vida: é pensar.” Teodora foi, assim, uma questão de modelos e de paradigmas...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 898, 2022-07-27, p. 10


quinta-feira, 21 de julho de 2022

Donzela Teodora, entre a beleza e a inteligência (2)



Na História da donzela Teodora, a arrogância apresentada pelo terceiro sábio para abrir a discussão contrasta com o aspecto da jovem, cujos movimentos e gestos o leitor acompanha pela voz do narrador - “levantou-se a donzela e lhe respondeu humildemente com muita vergonha”. Esta serenidade evidenciará o conteúdo do desafio que Teodora pensara, percebendo o leitor que a parada elevada implicará que o jogo das emoções tome conta da situação ou que o novo desafio intensifique a curiosidade do leitor.

Perante o auditório das testemunhas, a donzela respondeu ao sábio Abraão: “Pois já que vós dizeis serdes tão sábio, peço-vos que me façais o que vos quero dizer e é que assentemos em uma conveniência entre nós ambos, em presença de el Rei meu Senhor e de todos os cavaleiros (...) e será desta sorte: Que se vós me vencerdes a mim, logo no mesmo instante me desvestirei e despojarei de todas as minhas roupas, até a camisa, de maneira que fique nua como a hora em que nasci e será tudo para vós; e se porventura eu vos vencer também haveis de fazer o mesmo e me haveis de dar todos os vossos vestidos e haveis de ficar também nu como na hora em que nascestes.” O sábio concordou, porque “cuidava a havia de aniquilar e envergonhar” e ali foi autorizado o acordo e registado. A aposta era forte, pois, além da exposição da nudez absoluta do vencido, este também tinha de entregar as suas vestes ao vencedor.

As perguntas e as respostas surgem em ritmo rápido, em discurso directo entre as duas personagens, quase sem que o narrador se faça ouvir, se exceptuarmos as pequenas frases em torno dos verbos declarativos, para que o leitor não se perca. Questões sobre costumes sociais, valores morais, ciência, religião, pormenores e generalidades, em jeito de adivinhas ou de máximas, sucedem-se por várias páginas, sempre com resposta pronta, mesmo em momentos que parecem rasteiras intencionais à inquirida, como quando é questionado “que faz o sol de noite”, explicando Teodora que “o sol não tem noite, antes sempre alumia, ora em umas partes ora em outras do mundo”.

Após as cerca de sessenta perguntas e respectivas respostas, o terceiro sábio rende-se, aconselhando o rei a fazer “grandes mercês e honras” à jovem. Contudo, Teodora queria mais do que isso e, assim, cumprimentou o rei e disse-lhe: “Sirva-se V. Alteza de mandar a este sábio que logo sem mais demora em vossa presença e de todos estes senhores e discretos varões tire os seus panos e mos entregue.” O sábio despe-se até ficar coberto apenas “os panos interiores, para não ficar descomposto”, reclamando Teodora o cumprimento do acordado. Sem outra solução, o sábio “pôs-se de joelhos diante dela e, pegando-lhe nas mãos, lhas beijou, deitou-se a seus pés, querendo beijar-lhos, pedindo encarecidamente que não lhe fizesse passar tão grande vergonha diante de El-Rei e tão nobres cavaleiros”, prometendo-lhe “duas mil dobras” de compensação, solução aceite pela jovem.

Resolvido o desafio que Teodora comandara, faltava ainda fechar o negócio com o rei. Impressionado, Almansor “disse à donzela que pedisse, que lhe faria toda a mercê que quisesse”. Adivinha-se um final feliz para duas personagens: “Ela lhe beijou as mãos e pediu-lhe por mercê que a deixasse tornar com o seu mercador”, que considerasse a venda proposta sem efeito, pois tudo o que era devia-o ao seu protector. O rei ficou pesaroso, mas “não se pôde desdizer”. Era o acentuar do valor da palavra dada, forma de ser exemplo para os súbditos.

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 893, 2022-07-20, p. 9


quinta-feira, 14 de julho de 2022

Donzela Teodora, entre a beleza e a inteligência (1)



Na cena V do primeiro acto de Frei Luís de Sousa, a peça com que Almeida Garrett quis renovar o teatro português (1843), a adolescente Maria discursa sobre o dever de os governantes atenderem aos mais necessitados em tempo de miséria, sendo interrompida pelo tio, Frei Jorge: “A minha donzela Teodora! Assim é, filha; mas o mundo é doutro modo: que lhe havemos de fazer?” Garrett não relata a história de Teodora, mas bem podia contá-la, mesmo que transferindo esse conhecimento para o saber de Jorge; conhecia-a, por certo, ele que era dado aos romances e lendas populares, como sabemos pela publicação de Adozinda (1828) e de Romanceiro (1843 e 1853).

Poucos anos antes de ser publicado Frei Luís de Sousa, tinha havido uma edição do folheto História da donzela Teodora em que se trata da sua grande formosura e sabedoria (1827), obra “traduzida do castelhano em português” por Carlos Ferreira Lisbonense. Antes desta edição, já outras tinham existido, pelo menos nos anos de 1712, 1735, 1741 e 1749, e outras ainda apareceriam na segunda metade do século XIX (conforme registos da Biblioteca Nacional de Portugal).

Começa a história com informação sobre o espaço e a principal personagem: em Tunes, rico mercador da Hungria, visitando o mercado, vê à venda “formosa donzela cristã”, espanhola, não hesitando em comprá-la ao negociante mouro. Acordado o negócio, “mandou-a ensinar a ler e a escrever e aprender todas as artes que pudesse, a qual se inclinou tanto à virtude e estudo que excedeu a todos os homens e mulheres que naquele tempo havia, tanto em Filosofia, com em Música e outras muitas artes.”

Tempos passados, “como todas as coisas neste mundo sejam mudáveis e inconstantes”, o húngaro perdeu a fortuna, disponibilizando-se a donzela para se enfeitar adequadamente a fim de que o mercador a levasse à presença do rei Miramolim Almançor para ser por este comprada por “dez mil dobras de bom ouro vermelho”. O rei, que “estimava muito ver perfeitas e formosas donzelas”, estranhou o valor pedido, argumentando o negociante que a donzela não seria vencida por nenhum sábio em qualquer ciência e acrescentando Teodora que aprendera “as sete artes liberais, a arte de astrologia e as propriedades das pedras, águas e ervas e das qualidades que tem toda a casta de animais e aves que Deus criou no mundo” e que sabia “também cantar música e tocar instrumentos melhor que pessoa alguma.”

Criado este ambiente na narrativa, fica o leitor com curiosidade quanto ao desfecho e à sorte das personagens. Apesar da auto-confiança da jovem, o rei carecia da prova do saber, pois que a da beleza lhe estava perante os olhos. Foram assim convocados três sábios para testarem Teodora - um especialista em Leis e Mandamentos de Deus; outro, “muito letrado em toda a Ciência, Lógica, Medicina, Cirurgia e também grande Astrólogo e Filósofo e em todas as Artes muito entendido”; o terceiro, “muito sábio em Filosofia, Gramática e em todas as sete Artes Liberais”.

Os dois primeiros, questionando sobre os signos e as suas características, as qualidades do homem e da mulher, a religião e a influência dos signos na medicina, atestaram a superioridade da “muito sábia” Teodora pelas suas respostas prontas e abrangentes.

O terceiro sábio, o judeu Abraão Trovador, considerando os seus antecessores “de pouco saber”, desafiou: “não sou tão simples como os outros sábios que tão vilmente tens vencido”. A provocação foi um bom ponto de partida para a história ganhar um novo impulso e despertar ânimo no leitor, intensificado pela resposta com que Teodora vai comprometer a discussão.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 888, 2022-07-13, p. 9.


quarta-feira, 6 de julho de 2022

Setúbal em entrevistas e representação “à flor das águas”

 


Neste livro, há personagens que vão à procura de um espaço, categoria necessária para que a história exista. E assim se vai forjando a acção, que advém do caminhar pela cidade, da paragem em pontos mais ou menos estratégicos (ou simbólicos), encontro entre as pessoas e as memórias que têm para contar. É, assim, um livro de geografias, de gentes, de reconstruções a partir do passado e do vivido, teia assente sobre conversas e escritas, dando razão ao título do projecto, poeticamente chamado “Conversas Fiadeiras”.

À flor das águas - Diário de bordo é esse livro, coordenado por Patrícia Pereira Paixão e Vanessa Iglésias Amorim, recentemente surgido (Teatro Estúdio Fontenova, 2022), estruturado em duas partes: a primeira, com o resultado dessas peregrinações por Setúbal (Praias do Sado, Casal das Figueiras, “Baixa” da cidade, Parque Urbano de Albarquel, Bela Vista e miradouro de S. Sebastião), encontros com data marcada e registada (realizados entre 5 de Março e 23 de Abril), participados por várias vozes e sentires, em jeito de reportagem do visto e do ouvido, reproduzindo discursos directos, descrições, lembranças e afectos; a segunda, construção ficcional e dramatúrgica, surgida como síntese do ouvido e do partilhado, recriação dos tempos e das personagens, evidência dos ritmos que marcaram vidas, questionamento das ligações que cada um faz à cidade, roteiro para representação que o Teatro Fontenova levou a cena na primeira quinzena de Maio (o livro é acompanhado por um cd com composições de João Mota, que constituíram suporte musical da representação).

O título surge justificado por esse trabalho em progressão, contínuo, em forma de “diário de bordo”, testemunho da descoberta e da preparação, e por essa selecção operada pela memória ou pelo passar dos tempos que traz à superfície o que ficou do importante que a vida foi, camada fina e translúcida “à flor das águas”. O conjunto dos textos é uma boa motivação para um olhar sobre a cidade e o que a faz, sobre as nossas ligações a este espaço, aqui incluindo a geografia que vai até às periferias, sejam elas anteriores à cidade ou consequência do que a cidade se fez. No texto prefacial, as coordenadoras, recorrendo à sequência da linguagem náutica (“zarpar - navegar - acostar - ancorar - levantar ferro”) reconstroem metaforicamente o processo que originou este livro: “toda esta navegação tornou evidente que é necessário levantar ferro, ou seja, desancorar e voltar a zarpar para voltar a explorar estes e outros lugares”, explicação que volve desafio, pois “pensar a cidade requer mais caminhadas, mais conversas, mais observações, mais partilha de espaços, mais criação artística em espaço público, mais tempo e mais colectivo”.

As linhas entre as pessoas e os espaços cruzam-se com ideias como a identidade dos bairros (seu movimento associativo, suas fronteiras, ou os regressos que podem sugerir imagens da necessária maior proximidade entre as pessoas), a ligação da cidade ao Sado e a Tróia, a indefinição de um território que oscila entre a industrialização e o turismo (com os riscos do consumismo do “típico”), a necessidade de se pensar a cultura quando se pensam os espaços, o relacionamento entre as pessoas e o território (a vida na rua, os benefícios da vizinhança).

Há um passo do texto dramático que resume todo o processo: “Decidimos ouvir pessoas de diferentes bairros, visitar diferentes espaços e experienciá-los no corpo. Cruzámos leituras e reflexões. Fizemos performances num largo da cidade e numa ribeira dentro de um parque natural. Cada uma experienciou estes espaços de forma diferente.” Boa conclusão, em que se nota a conjugação do afecto com a reflexão!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 883, 2022-07-06, p. 9.