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quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (3)

 


Para a bibliografia setubalense, o contributo de Daniel Pires tem sido eloquente também quando se fala do ambiente social e cultural do século XVIII, tempo que fez Bocage. É assim que se valoriza uma obra como Setúbal, Palmela e Azeitão Vistas por Estrangeiros, de 2012, recolhendo testemunhos de oito autores que olharam Setúbal entre 1766 e 1800, destacando nesta antologia o olhar da diversidade e o cosmopolitismo e não escondendo o preconceito ou a isenção presentes nas várias abordagens. Outros dois títulos relacionados com a época são Padre Gabriel Malagrida: O Último Condenado ao Fogo da Inquisição, de 2012, e O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida, de 2013, duas peças importantes pela quantidade de documentos que são postos a descoberto ou relembrados, numa transcrição encaixada na narrativa resultante da pesquisa, fundamentais para se perceber o ambiente cultural da época, a acção dos jesuítas em Setúbal, as rivalidades entre a política e a religião, o papel desempenhado pela liberdade de opinião ou pela sua falta, o retrato que de Setúbal ficou após o terramoto.

Outras duas figuras sadinas mereceram a atenção de Daniel Pires num trabalho que não pode ser esquecido: Paulino de Oliveira e António Maria Eusébio, o poeta popular “Calafate”. Do primeiro, fez Daniel Pires ressurgir o livro autobiográfico Em Ferros d’El-Rei (2012), com um prefácio que valoriza a prática da cidadania e destaca a acção do autor como jornalista, poeta, pedagogo, republicano e divulgador da cultura portuguesa, considerando ser esta “uma das obras mais emblemáticas de Paulino de Oliveira, não obstante ser uma das menos conhecidas”. Quanto ao segundo, o poeta popular setubalense, Daniel Pires foi responsável, com Ana Margarida Chora, em 2020, pela edição da obra António Maria Eusébio, o Calafate - Uma Evocação, título que reúne textos da homenagem que Setúbal lhe fez em 1902 (em cuja organização estiveram Ana de Castro Osório, Paulino de Oliveira e Henrique das Neves), parte significativa dos testemunhos que Henrique das Neves coligiu numa obra antológica publicada em 1908 e alguns contributos mais recentes para o conhecimento da importância da obra deste poeta.

A história do jornalismo setubalense passa também pelo trabalho de Daniel Pires, facto interessante porquanto o jornalismo tem constituído para si fonte de informação e objecto de estudo. Se, em 1986, na sua obra Dicionário das Revistas Literárias Portuguesas do Século XX, na longa lista de entradas aparecem três títulos setubalenses, já no Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX, editado entre 1996 e 2000, o número de entradas sobe para 26, num trabalho repleto de dificuldades por não existirem colecções completas dos títulos, mas que prova a importância da imprensa periódica nos domínios da polémica, da afirmação de movimentos culturais, da liberdade de opinião e da ligação à sociedade e dá a conhecer as figuras agentes da intervenção nestas áreas ao nível local e nacional.

As obras com que Daniel Pires nos tem presenteado ou que nos tem revelado, “remos para guiar a jangada” (lembrando Tolentino Mendonça) ou testemunhos que provam “a aventura do homem” (recorrendo a Serafim Ferreira), possuem também marcas de uma forma de estar e de olhar o mundo, conseguindo-se perceber a indignação perante as atitudes despóticas, o desrespeito relativamente à memória, a crueldade na recusa dos direitos inalienáveis, os jogos de poder que juntam intenções ardilosas, como se entende a simpatia por uma forma de estar próxima da intervenção em benefício da sociedade e das manifestações culturais, pelo ideal republicano, pelos princípios éticos e pelos direitos humanos. Naturalmente, são contributos importantes para uma bibliografia setubalense, ainda mais relevantes quando o leitor se confronta, no final de cada uma delas, com referências bibliográficas exaustivas e rigorosas e, muitas vezes, com indicação dos locais onde as obras podem ser encontradas, num trabalho que é importante para o presente, mas que também garante que a jangada do conhecimento e da identidade possa vogar no futuro...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1427, 2024-12-04, pg. 8.


quinta-feira, 27 de junho de 2024

Visitar Setúbal pela fotografia de Antero Frederico de Seabra (2)

 


Do destino e paradeiro das fotografias feitas por Antero Frederico de Seabra em Setúbal pouco se sabia: conhecia-se uma colecção de 12 fotografias encontrada no sótão de uma residência em Lisboa quando se procedia a obras, série que tem a particularidade de ter pertencido a outro militar que prestou serviço em Setúbal, Henrique das Neves (1841-1915), o homem que catapultou o nome do poeta popular setubalense António Maria Eusébio, o “Calafate”, para vasta divulgação, publicando-o e chamando a atenção de figuras eminentes para a sua obra, colecção que, em 2015, foi considerada “bem de interesse nacional” e “tesouro nacional” pelo Decreto 2/2015, de 14 de Janeiro, da Presidência do Conselho de Ministros; sabia-se existir, no acervo do Museu de Setúbal, um conjunto de 10 destas fotografias, sendo que uma delas (a que mostra o Convento de Brancanes) surge repetida.

A obra Álbum Fotográfico, agora publicada pela LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão), revela-nos mais duas existências: um lote de oito fotografias pertencente a um particular setubalense e a série de 17 fotografias que integram o “Álbum”, peça existente nos fundos da Biblioteca Pública Municipal de Setúbal, que, em 2020, caiu sob o olhar atento do investigador local Diogo Ferreira, dando origem a esta edição.

O livro, primorosa edição fac-similada do acervo constituído pelas 17 vistas da cidade e dos monumentos de Setúbal, contém ainda a colaboração de três autores conhecidos pela sua ligação à história e à cultura local — Francisco Borba, que destaca a técnica usada por Antero Frederico de Seabra, valoriza o contributo da fotografia para a história do mundo e justifica a iniciativa da LASA; Diogo Ferreira, o “descobridor” desta memorável colecção fotográfica, que discorre sobre o contexto vivido em Setúbal na segunda metade do século XIX nos planos político, económico, social e cultural, assim enquadrando o ambiente em que as fotografias foram conseguidas; e António Cunha Bento, que biografa o fotógrafo temporariamente residente em Setúbal, resultado de aturada busca nos arquivos, relata a génese desta colecção e dá conta das existências conhecidas das fotografias de Antero de Seabra sobre Setúbal.

Se é desconhecida a história do trajecto deste “Álbum” até à sua entrada nos fundos da Biblioteca Pública Municipal, há, porém, a certeza da data em que o bibliotecário Arronches Junqueiro o registou, pois deixou exarada na última folha a seguinte menção: “Contém este Álbum 17 (dezassete) fotografias de Setúbal e arredores. — Setúbal, Biblioteca Municipal, em 4 de Outubro de 1930.”

Olhar estas fotografias implica demorar a vista, a tentar descobrir o que se mantém de toda aquela fisionomia da cidade e a construir as pontes necessárias para espaços que, hoje, apresentam outras configurações. Olhar estas fotografias constitui um desafio para a descoberta de pormenores, tão nítidos nos aparecem os espaços mostrados, absolutamente a descoberto, sem obstáculos à atenção do detalhe, quadros quase integralmente limpos do que possa afectar a nossa absorção do mundo fotografado. Olhar estas fotografias é também ver que a preocupação foi mostrar o património monumental e paisagístico da cidade, não insistindo sobre as figuras humanas, que aparecem em restrita quantidade - ainda assim, sempre há lugar para os aguadeiros e para figuras ligadas à pesca e à agricultura, ao mesmo tempo que diversos espaços são povoados por pessoas que parecem posar, em quantidade diminuta, sejam elas burgueses de cartola, agentes de polícia ou curiosos contemplativos do quase de certeza impressionante equipamento do fotógrafo...

Nesta imersão num passado que já tem quase 160 anos, descobrimos a Praça de Bocage em três fotografias, uma insistindo sobre o edifício dos Paços do Concelho, outra sobre a Igreja de S. Julião e a última sobre um grande espaço da praça — aqui, olhamos aguadeiros a encher as barricas na fonte do Sapal, enquanto os burros aguardam a carga ali mesmo ao lado; vemos o edifício camarário com linhas semelhantes às actuais, mas com menos arcos e menos janelas e uma escada lateral que conduz a um primeiro piso de janelas gradeadas onde funcionava a prisão; contemplamos a decoração manuelina da entrada principal da igreja (hoje, difícil de ver ao longe) e verificamos que a Praça de Bocage mantém a sua configuração, ainda que com a substituição de alguns edifícios entretanto ocorrida.

João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1328, 2024-06-26, pg. 15.


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Os versos de Miguel Caleiro (1)



No primeiro número do jornal O Azeitonense, de 3 de Agosto de 1919, a terceira página abre com o título “Poetas humildes”, informando, logo no primeiro parágrafo: “os versos que abaixo reproduzimos, sendo, como são, de uma alma inculta, revelam um temperamento poético, de que muito haveria a esperar se fosse cultivado.” Depois, é explicada a razão para nada ter sido alterado no texto poético: não haveria, assim, adulteração do “temperamento afectivo e bom”.

Formalmente, o texto é uma cantiga, em que uma quadra (mote) anuncia o tema a desenvolver: “Eu gosto imenso de ouvir / pela fresca madrugada / o clarim do rouxinol / dar o toque de alvorada!” Seguem quatro décimas (glosas), retomando cada uma delas no final um verso do mote, desenvolvendo o tema do prazer da vida campestre - passeios no prado, canto da pastora e sons de flauta do pastor, trabalho agrícola das ceifeiras, cantar do rouxinol, moças na escamisada ou a transportar água da fonte.

O autor de tal poema é Miguel Fernandes Caleiro (1876-1935), de Aldeia de Irmãos, figura que o padre Manuel Frango de Sousa (1919-2000) divulgou na sua folha paroquial Azeitão - A Nossa Terra, em Fevereiro de 1989, dele dizendo ser “uma figura típica”, em quem “a espontaneidade era característica” e considerando a casa que ele animou e onde se cantava fado “um monumento de Azeitão”. Na última página do referido número de “O Azeitonense”, inteiramente dedicada a anúncios, consta o “Retiro Vila Jacinta de Miguel Fernandes Caleiro”, situado “nos Brejos, Casal de Bolinhos, Estrada de Coina”, espaço de “mercearia e belo retiro com bons petiscos e deliciosos vinhos”, condições que favoreceram os encontros de fado.

A sobrevivência dos textos de Miguel Caleiro deve-se, em grande parte, à sua sobrinha Maria da Saúde (1903-1995), que os transcrevia. Ligado às Festas da Arrábida, o poeta viu, no início da década de 1920, algumas das suas rimas publicadas sob o título Versos em honra das Antigas Festas d’Arrábida que pomposamente costumam realizar-se na pitoresca Vila de Azeitão, opúsculo de 16 páginas impresso na Tipografia Simões (com “oficinas movidas a força motriz”, em Setúbal), apresentado em “duas palavras”: “os versos que vão ler-se são simples e ingénuos como a sua alma de trabalhador do campo. Miguel Caleiro não sabe ler. As inúmeras canções populares de que é autor brotam-lhe espontâneas e é sua afilhada Maria da Saúde, uma engraçada pequena de 17 anos, que Caleiro estremece como se fora sua filha”, quem as escreve. É curioso que a nota sublinhe uma ideia que já tinha sido aflorada no recorte de O Azeitonense: “Dos versos de Caleiro diria de certo o nosso genial Guerra Junqueiro, se os lesse, que são como certas rosas que florescem nos matagais incultos.” Mas esta nota torna-se também interessante por recuperar o empenho que Guerra Junqueiro (1850-1923) pôs na divulgação da poesia popular, tal como fez no caso do poeta popular setubalense António Maria Eusébio (1819-1911), conhecido como “Calafate”, ao prefaciar a recolha dos seus Versos feita por Henrique das Neves em 1916, dizendo: “Não sabendo ler nem escrever, és um grande poeta (...). A tua bondade, meu velho, exala-se das tuas cantigas sem arte, como um aroma delicioso de um matagal inculto, que nasceu entre pedras (...) Ganhaste com o suor da fronte o pão de cada dia.” As palavras de Junqueiro sobre o Calafate poderiam ser aplicadas também a Caleiro, por certo...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1245, 2024-02-22, pg. 10.


quarta-feira, 6 de abril de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (4)



O terceiro folheto de temática bocagiana composto por António Maria Eusébio, o “Calafate”, intitula-se Cantigas para Guitarra dedicadas ao aniversário do grande poeta Elmano, o Bocage, publicação de quatro páginas, surgida em 1911, ligada ao primeiro aniversário bocagiano celebrado no regime republicano.

Em 9 de Agosto desse ano, a Câmara de Setúbal decidira instituir o dia 15 de Setembro, data de aniversário de Bocage, como feriado municipal, tendo a primeira celebração ocorrido durante três dias, entre 15 e 17 de Setembro.

As décimas do “Calafate” relatam o entusiasmo vivido na cidade - “Muita gente madrugou / P’ra ver nascer esse dia, / Até alguém cuidaria / Que não vinha, mas chegou. / N’Avenida se juntou / Nobre, rico e pobre artista, / Todos empregavam a vista / Para as bandas do Oriente, / P’ra ver, em aurora luzente, / O dia quinze setembrista.” A adesão popular, a quantidade de visitantes e o ambiente festivo merecem pinceladas fortes do poeta repórter - “Todo o Povo está contente, / Tem muita razão p’ra estar, / Muitos vivas há de dar / Aos autores desta festa, / Porque outra igual a esta / Só Setembro a pode dar.”

A apologia de Bocage, a sua fama, a necessidade de testemunhar e de dar continuidade à memória são acentuadas neste folheto, constando também algum espírito crítico e adesão à decisão republicana de celebração do nascimento de Bocage, pois os grandes eventos bocagianos anteriores tinham ocorrido sempre na data do falecimento - “Foi festa de luzimento / Que se fez pelo centenário, / Só o seu aniversário / Estava no esquecimento. / No dia do seu nascimento / ‘Stava a praça despovoada, / Estando a memória guardada / Por galegos andarilhos; / Setúbal, p’rós seus filhos, / Tinha uma dívida atrasada.” No meio de tal entusiasmo, António Maria Eusébio tem ainda uma palavra para um dos setubalenses que mais pugnaram pela memória bocagiana, Manuel Maria Portela, falecido em 1906 - “Que glória não teria / Portela, se fosse vivo, / Ele que era tão activo / Nos dotes da poesia.”

Se as outras celebrações bocagianas (inauguração da estátua em 1871 e festa do centenário do falecimento em 1905) tinham sido pontuais, ao ter sido feita a opção pela festa do aniversário estava garantida a continuidade da memória bocagiana e a sua celebração anual, aspectos que o “Calafate” antecipa - “Esta festa tão vistosa / Far-se-á para o futuro, / Para não ficar no escuro / Uma data gloriosa. / Bocage é que já não goza / Do seu alto monumento, / Nem vê o acompanhamento, / Melhor que o seu centenário. / Pobre, rico e operário / Festejam o seu nascimento.”

O folheto conclui com uma ideia que o “Calafate” já expusera nos versos de 1905 - a memória bocagiana ficará incompleta sem que se saiba dos restos mortais do poeta: “Tem aqui sua memória, / Seu corpo onde estará?”

Numa associação feliz, o nome de Bocage seria ainda usado em décimas de cunho publicitário que o “Calafate” redigiu para alguns dos seus patrocinadores, como o Mendes Chapeleiro - “Bocage é bom que apareça / (...) / No dia do seu aniversário, / com algum chapéu na cabeça. / (...) / Vão até ao chapeleiro Duarte, / Que tem lá para escolher.”

Não conhecendo a obra bocagiana pela leitura, António Maria Eusébio conseguiu ser um divulgador da memória bocagiana pela história que lhe foi contada, pelo respeito pela memória e pelo empenho nas coisas e nos acontecimentos da terra que o viu nascer.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 822, 2022-04-06, p. 8.


quinta-feira, 31 de março de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (3)



O centenário bocagiano de 1905 foi intensamente vivido em Setúbal, com o jornal O Elmano a envolver a população. Houve hino a propósito; conferenciou-se, recebendo Setúbal palestrantes como Manuel de Arriaga (1840-1917) ou Teófilo Braga (1843-1924); foi cunhada moeda de prata; o artista João Vaz esculpiu a lira que passou a adornar o monumento a Bocage; o cortejo de 21 de Dezembro foi apoteótico, com carros alegóricos, iluminações e filarmónicas; os participantes setubalenses nesse dia de festa rondaram os quinze mil, além de seis mil “forasteiros”, vindos sobretudo da capital.
António Maria Eusébio, no folheto Cantigas para Guitarra, de quatro páginas, publicado ainda em 1905 ou em 1906, reportou o evento em quatro poemas, como anuncia logo na primeira quadra, mote para o primeiro conjunto de décimas - “Parabéns irmão Bocage / Para ti nada faltou / Do teu primeiro centenário / Segunda memória ficou.” -, evidenciando o sucesso das realizações e a comparação, na grandiosidade simbólica, com o que acontecera 34 anos antes, na inauguração do monumento a Bocage. A impressão que ficou no “Calafate” foi tão intensa que a primeira décima se inicia pela hiperbolização - “Não é no século actual / Nem outro que há de vir / Que algum povo há de assistir / A um centenário igual.” No seguimento da narração, depois de considerar que “foi festejo extraordinário” (com “quatro arraiais”, “três sociedades”, “duas bandas regimentais”, “quatro oradores”), aconselha o poeta: “Se no teu itinerário, / Encontrares Camões, / Conta-lhe as manifestações / Do teu primeiro centenário.”

O segundo poema toma como assunto a limpeza que foi feita à estátua por um “peneireiro” habilidoso, fala de alguma desolação pelo final da festa (“Agora tudo tornou / Ao seu primeiro estado / Está o festejo acabado / Sem haver perdas nem danos / Para daqui a cem anos / Ficou tudo preparado.”) e denuncia o facto de não ter sido permitido ao “velho cantador” aproximar-se do centro do evento - “Também quis acompanhar / Esse teu rico festejo, / Mataram-me o meu desejo, / Não me deixaram passar. / Antes eu queria levar / Um bofetão no meu rosto, / Mas sofrendo esse desgosto / tornei p’ra trás, vim-me embora.”

A adesão de António Maria Eusébio a Bocage decorria das informações que lhe chegaram através de uma conhecida figura setubalense, que teve o condão de divulgar a história, as ideias e a importância do poeta, como reconhece: “Quando eu ignorava / Quem Bocage tinha sido, / Tive um velho conhecido / Que dele muito falava. / Valia ninguém lha dava, / Seu saber estava oculto, / Depois que houve o tumulto / Da sua inauguração, / Muitos dizem, e com razão, / Bocage foi grande vulto.” Consegue-se inferir a referência a Manuel Maria Portela (1833-1906), um dos maiores promotores da figura de Bocage em Setúbal.

No último poema do folheto, o tom é algo mais brejeiro. Referindo a conservação da escultura bocagiana, anota: “Tu estavas tão mascarrado / Dos pés até ao pescoço, / Agora és um rapaz moço, / Barba feita e cu lavado.” E, quanto à lira deposta na base do monumento, ri o “Cantador” - “Tens uma lira afinada / Que custou tanto dinheiro, / Sendo tu tão bom gaiteiro / Já não dás uma gaitada.” A finalizar, o “Calafate” exagera, dizendo ao poeta maior: “Ainda hás de ser aclamado / Por D. Bocage primeiro” e “Também hás de ser c’roado.”

À sua maneira, António Maria Eusébio contribuía para a promoção de Bocage, prolongando o inebriamento da festa que honrara o poeta...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 817, 2022-03-30, pg. 5.


quinta-feira, 24 de março de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (2)


Reconhecendo a distância cultural e social entre si e Bocage, o “Calafate” dialoga com a memória de Elmano Sadino, tendo-lhe dedicado três dos seus folhetos e algumas décimas avulsas.

O primeiro, Cantigas dedicadas ao Centenário do grande poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, de 1905, antecedeu a celebração do centenário do falecimento do poeta, ocorrido em 21 de Dezembro. Na primeira quadra, é assinalada a coincidência biográfica quanto a Dezembro (falecimento de Bocage, em 1805, e nascimento de António Maria Eusébio, em 1819) - “Bocage dá-me licença / Que eu quero falar de ti, / No mês do teu centenário / Tu morreste e eu nasci.” -, proximidade logo contrariada pela diferença cultural (“Bocage tinhas nascido / Para ser astro brilhante / E eu nasci para ignorante / E nada ter aprendido.”) e pela distância social (“Sou um velho sem valor, / Ao pé de ti sou um pobre; / Tu filho d’um homem nobre / E eu filho d’um pescador.”) O poema termina a lamentar a forma de se afirmar a memória - “Só uma falta conheço, / E talvez haja outras mais, / São os teus restos mortais / Não estarem ao pé de teu berço.”

Nas décimas seguintes, o elogio bocagiano sublinha a vida difícil que levou, oposta à glória de que se revestia passados cem anos - “Este é o senhor da festa, / O poeta setubalense, / Tudo isto lhe pertence, / Mas para ele já não presta. / (...) / Foram precisos cem anos / Para ser tão festejado”. Bocage é ainda comparado com Camões, pela miséria em que ambos acabaram - “Se mais tivesse vivido / Sofreria privações, / Seria o que foi Camões, / Que foi na vida esquecido.” Neste preâmbulo aos festejos do centenário, é relembrado que também “em Dezembro a sua imagem / Teve a inauguração” (referência à festa de 1871, aquando da inauguração da estátua) e regista-se o envolvimento social e as influências - “O lojista e o proprietário, / O poeta e o camarista, / todos estes fazem vista / Na festa do centenário. / Não lhes falta o numerário, / Nem falta a boa vontade; / Nenhum tem necessidade / De certos expedientes, / De homens tão influentes / Grande é a sociedade.”

Seguem décimas sobre diversos assuntos elmanistas: biografia bocagiana (valorização da sua arte, alistamento no Regimento de Infantaria de Setúbal, relação de Bocage com o dinheiro e com a vida nocturna, passagem pela prisão, morte em Lisboa); familiares de Bocage que o “Cantador” ainda conheceu - o padre Francisco Barbosa du Bocage (“Este padre espiritual / Chorava pela sua cela: / No convento de Palmela / Foi freire e conventual.”) e Maria Luísa du Bocage, casada com João Lima (“Pois dos Bocages viventes / Só um ramo está em cima, / É o ramo Bocage Lima, / Um dos últimos parentes.”); comparação da “obra rica” do homenageado com a “obra pobre” do “Cantador”; reconhecimento de Bocage em Portugal e no Brasil e necessidade de haver sempre um monumento em sua honra em Setúbal.

Quase no final do folheto, duas décimas reflectem sobre o talento e a fortuna, aproximando-se o “Calafate” de Bocage quanto à sorte, pois sente-se “ora farto, ora faminto, / como Bocage viveu.” A conclusão acontece em quatro décimas, diálogo entre Bocage e o autor, gesto de proximidade social, em que, após agradecimento ao patrono, o “Cantador” se despede - “Seja eu bom ou ruim, / Minhas cartas estão dadas; / Já tenho as contas fechadas / Brevemente darei Fim.”

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 812, 2022-03-23, pg. 9.


quarta-feira, 16 de março de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (1)


 

António Maria Eusébio (1819-1911), poeta popular setubalense, ficou conhecido por “Calafate”, devido à profissão por que optou (contrariando a ideia da mãe), e por “Cantador de Setúbal”, por cantar fado (acompanhado à viola por Josué Ferreira, seu compadre, e à guitarra por Francisco de Jesus, conhecido como “Carga d’Ossos”) e pela prodigiosa imaginação para versejar. Não sabendo escrever, as décimas que produzia eram memorizadas e, depois, ditadas a uma neta ou a amigos, que as transcreviam.

Os seus primeiros versos foram publicados no Jornal de Setúbal, em 9 e 16 de Fevereiro de 1868, por iniciativa de Henrique das Neves (1841-1915). No entanto, só em 1901 voltaria a haver publicação, ainda por ideia de Henrique das Neves, quando surgiu o livro Versos do Cantador de Setúbal. E, ainda nesse mesmo ano, sairia o folheto Tudo e Nada (Reflexões entre um sábio e duas caveiras), conjunto de três poemas construídos sobre décimas, em oito páginas. Provavelmente, foi este o primeiro folheto de Calafate, expediente encontrado para suportar as dificuldades económicas e ajudar na sua autonomia, sem estar dependente dos filhos.

Ignora-se a quantidade de folhetos publicados na última década de vida de António Maria Eusébio - mais de 70, maioritariamente intitulados Cantigas para Guitarra, variando entre as quatro e as oito páginas (vendidos a 10 e a 20 réis, respectivamente), com periodicidade indeterminada, além de mais sete, de cunho autobiográfico, intitulados Recordações da Minha Vida, publicados entre 1904 e 1910, retrospectiva que ficou incompleta, pois as 422 décimas que os compõem apenas relatam a vida do poeta até cerca de 1846. Em toda esta produção, a fórmula mais habitual é a do poema constituído por quatro décimas, que seguem o mote dado por uma quadra, repetindo-se cada verso da quadra no final de cada décima, indo a engenharia dos poemas ao pormenor de repetir o esquema rimático em todas as construções. Os textos destes folhetos foram reunidos por Rogério Peres Claro (1921-2015), seu bisneto, na obra Versos do Cantador de Setúbal (dois volumes em 1985 e terceiro volume em 2008), seguindo o critério da arrumação temática dos textos e desprestigiando o ritmo e o contexto da publicação em folhetos.

O encontro de António Maria Eusébio com a poesia deu-se pelos seus vinte anos, cerca de 1840, e manteve-se pela vida fora, conforme canta numa décima do quinto folheto das Recordações, publicado em 1907, quando tinha 88 anos: “Já ia tomando amor / À musa da poesia / Já cantava e quem ouvia / Já me dava algum valor. / Chamavam-me o Cantador / Foi nome que me ficou / E ainda não se acabou / O nome que vale tanto. / Agora que já não canto / Ainda o Cantador sou.”

Senhor de uma memória prodigiosa e de uma curiosidade incontrolável, ao “Calafate”, os poemas saíam dominados pelo ritmo do fado e povoados pela experiência acumulada numa vida de dificuldades, que tanto lhe servia como fonte para testemunhar e relatar acontecimentos como motivação para reflectir sobre a existência. As temáticas que perpassam pelas suas décimas são diversificadas, um pouco ao ritmo dos acontecimentos vividos e presenciados - factos da vida pessoal, comemorações e festas religiosas, notícias do mundo (sobretudo conflitos internacionais), histórias brejeiras, episódios da vida local (as tramas políticas, as querelas, os costumes, o património), o sentir de classe e o mundo do trabalho, a vida social, reflexões sobre a vida e os valores.

Conterrâneo de Bocage, António Maria Eusébio presenciou vários momentos de homenagem ao vate sadino, razão por que o poeta setecentista não poderia escapar aos versos do “Cantador”.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 807, 2022-03-16, pg. 5.


domingo, 11 de outubro de 2020

Memória de António Maria Eusébio, o Calafate e Cantador de Setúbal

 


Em 1908, Henrique das Neves (1841-1915) publicava em Lisboa a obra O Cantador de Setúbal António Eusébio (Calafate) - Apreciações críticas da sua personalidade coligidas da imprensa e de cartas particulares, título indispensável para o conhecimento do poeta evocado, pela quantidade de testemunhos recolhidos, pela diversidade de abordagens, pelo facto de a maior parte dos contributos advirem de publicações periódicas, correspondência ou momentos circunstanciais, que correriam o risco de se perder se esta iniciativa não tivesse existido.

Henrique das Neves, que se reformou como general, esteve no exército em Setúbal, aqui tendo feito amizade com António Maria Eusébio (1819-1911), graças à qual o nome do poeta “Calafate” pôde ficar registado em adequada bibliografia. A mais antiga referência escrita ao “Cantador de Setúbal” é assinada por Henrique das Neves no periódico Jornal de Setúbal, em Fevereiro de 1868, aí se descrevendo as suas qualidades e reproduzindo um conjunto de sete décimas. Três décadas passariam e, em 1901, o mesmo signatário avançou com a publicação Versos do Cantador de Setúbal, que mereceu prefácio de Guerra Junqueiro. A partir daí, a obra do Calafate passou a ser publicada em folhetos para venda na rua e nas feiras, assim constituindo um contributo para a subsistência do poeta octogenário e de sua mulher até ao falecimento de ambos no mesmo ano.

Para assinalar o bicentenário do nascimento do poeta, Daniel Pires e Ana Margarida Chora organizaram a obra António Maria Eusébio, o Calafate - Uma evocação, recentemente dada à estampa pelo Centro de Estudos Bocageanos, trazendo para o leitor de hoje grande parte dos textos que Henrique das Neves coligiu em 1908 e acrescentando outros publicados após essa data, com passagem por diversos arquivos. A abrir esta recolha, Daniel Pires considera que a poesia do Calafate “reflecte valores éticos elevados, pugna pela justiça social, por direitos humanos inalienáveis, tantas vezes postergados, então, no país”, enquanto Ana Chora estabelece as diferenças entre a poesia tradicional e os poetas populares, sendo que a estes, na época de António Eusébio, “as elites prestaram particular atenção”, haja em vista “a espontaneidade, a filosofia popular e a ironia” ou, “na forma, uma musicalidade imperativa e um ritmo que se precipita em função da própria lógica do conteúdo” que os caracterizam.

Classificado como “herói do improviso” (Manuel Envia), um dos “Homeros da viola” (Afonso Lopes Vieira), próximo de Nicolau Tolentino (Henrique das Neves), o “último troveiro” (Augusto da Costa), o detentor da “beleza única, a beleza moral” (Guerra Junqueiro), um “repentista e improvisador extraordinário” (Fernando Cardoso), “um caso de inteligência poética” (Fialho de Almeida), o poeta António Maria Eusébio foi longe, com uma recepção transversal a toda a sociedade. Leite de Vasconcelos, que palmilhou o país na busca da cultura popular, leu-o e registou: “tem grande poder de observação - pinta tudo o que vê em volta de si, discute os assuntos que no momento preocupam a opinião pública, verbera, com mordaz ironia, o que na vida ou na sociedade lhe não agrada.” E estas são, de facto, algumas das marcas que a sua poesia revela notavelmente.

Esta obra organizada por Daniel Pires e Ana Margarida Chora colige cerca de oitenta contributos sobre o Calafate, da prosa à poesia, da memória à notícia, do ensaio à biografia, tornando-se (apesar de alguns descuidos nas referências bibliográficas apresentadas) um elemento indispensável para o conhecimento da importância do Cantador de Setúbal. Uma bela forma de o evocar, dando-o a conhecer!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 481, 2020-10-08, pg. 10.