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sábado, 22 de março de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (4)

 


A relação entre Joana Luísa e Sebastião da Gama foi construída também sobre as linhas da escrita e da leitura. Na entrevista concedida a Vladimiro Nunes em 2012 (reproduzida, em jeito de posfácio, a fechar o livro Estala de Saudade o Coração), referia a quantidade epistolar entre os dois durante o namoro: “O que nos salvava eram as cartas. Mantínhamos uma correspondência que era uma coisa extraordinária. (...) São mais de 800.” Desse lote, chegou Joana Luísa a publicar um primeiro volume das mensagens que Sebastião da Gama lhe enviou nos anos de 1943 e de 1944 (Cartas - I, de 1994), tendo deixado ainda seleccionadas as cartas que comporiam o segundo volume, datadas de 1945, obra que não chegou a publicar.

Mas as mensagens entre os dois trocavam-se também através dos livros e das leituras que partilhavam. Sendo ambos leitores fervorosos, as prendas que ofereciam um ao outro passavam muito pelos livros, vários deles com dedicatórias expressivas. Do primeiro título de Sebastião da Gama, Serra-Mãe, existem vários exemplares oferecidos a Joana Luísa: num, do dia em que o Poeta foi buscar os primeiros livros à tipografia, uma dedicatória que prova a partilha feita dos poemas, “Para o meu Amor, o livro da nossa Alegria. Sebastião Artur. 2.XII.1945, Lisboa”; noutro, como prenda natalícia, “Para ti, Amor, porque sabes ler os meus versos com uma voz que já se não distingue da minha. Sebastião Artur. Natal 1945”. O opúsculo Loas a Nossa Senhora da Arrábida mereceu também umas palavras para Joana Luísa, numa dedicatória escrita em jeito de quadra: “Isa, diz tu estes versos / que sabes melhor rezar... / pra que a Virgem seja sempre / visita do nosso Lar. Sebastião Artur. Arrábida, 19-VIII-1946” No ano seguinte, era publicado Cabo da Boa Esperança e, numa das páginas iniciais, Sebastião da Gama recebia uma oferta dedicada pela namorada: “Dou-te a minha Alegria que é um Poema teu, e o meu Amor que moldado por ti é também um Cabo da boa Esperança. Joana Luísa. 18-XII-1947”.

Estas declarações de afecto, primeiras memórias que um e outro foram construindo, passaram também por outros títulos que entusiasmaram o casal leitor — num exemplar de Os Lusíadas (edição de 1931): “Lembrança do Natal. Do primeiro Natal. E não é preciso pôr mais nada senão o teu nome, Joana Luísa, e o meu. Nós sabemos sonhar o resto. Sebastião Artur. 1944”; na antologia Poesia de Amor, organizada por José Régio e Alberto de Serpa (1945), no dia de aniversário de Joana Luísa, escrevia Sebastião: “Em 28.2.1945 - Aqui, Amor, só falta um poema: o que não precisamos escrever porque nos basta vivê-lo. E este dia 28 tem de ser feliz, porque o sabe de cor. Sebastião Artur”; na obra Dia Longo, de Ribeiro Couto: “Dedicatória para quê, Amor? Onde se vê o teu nome querido, Sebastião Artur, e o meu, vê-se tanta felicidade. Tua Joana Luísa.”; em A volta do Gato Preto, de Erico Veríssimo: “Este livro é para nós dois abrirmos — e cada um irá pensando mais no outro do que no livro. Sebastião Artur. 1948”; ainda em Música ao Longe, de Erico Veríssimo: “Para o Bastião: que o Menino Jesus ponha no teu sapatinho a companheira que tu mereces. Natal 1949. Joana Luísa”; na obra Palavras e Sangue, de Giovanni Papini: “Não é como nós queremos, Querido; é como Deus quer, faça-se a Sua Vontade. Mas não irás sozinho, está sempre contigo a tua Joana Luísa. 2-Outubro-1950”.

Joana Luísa foi a destinatária de vários poemas de Sebastião da Gama — “À Joana Luísa” (28.Fev.1942), “Caminho” (10.Abr.1944), “Ressurreição” (6.Mai.1944), “Dádiva” (23.Fev.1947) e “Hoje Deus é verdade” (8.Abr.1947) —, constou noutros com o seu nome sob forma anagramática — “A Olisa” (Abr.1941) e “Écloga Tarro” (Fev. e Mar.1942, em que aparece sob o nome de “Sávil”) — e foi a motivação de vários outros, de que se destacam “Madrigal” (7.Out.1946) e “Fé” (8.Dez.1951).

Ao longo dos tempos, Joana Luísa nunca deixou que a memória de Sebastião da Gama se esvaísse — prendas recorrentes suas tinham como objecto livros do Poeta, com dedicatória a propósito, como aconteceu quando, em 1972, ofereceu um exemplar de Pelo Sonho é que Vamos à sobrinha Ana Teresa, chamando a atenção para o poema “A uma rapariga”: “podia ser escrito para ti se o Primo te tivesse conhecido”; noutras circunstâncias, ofertava fotografias, como aconteceu com Acilda Fragoso, que fora aluna de Sebastião em Estremoz, a quem dedicou uma fotografia do professor sorridente: “Como Ele já não pode dizer nada, digo-te eu Acilda: perdeste um grande Amigo e um grande Professor”.

Nesta história que ligou os dois apaixonados, nunca a alegria podia ter faltado. Ou não tivesse ela começado por uma brincadeira com poemas carnavalescos no início da década de 1940: Sebastião da Gama escreveu, em verso, uma carta a uma prima de Joana Luísa, que, aflita por não saber quem era o autor, recorreu a Joana Luísa, que logo descodificou o anonimato e gizou uma resposta também em tom brincalhão. No dia seguinte, apareceu o próprio Sebastião, que, depois de ter sabido quem tinha construído a resposta, lhe disse, como lembrado na entrevista já mencionada: “Eu não sabia que tu fazias versos, que sabias fazê-los tão bem...” A partir dali, começou a troca de poemas entre os dois... e uma cumplicidade que os fez caminhar lado a lado.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1492, 2025.03-19, pg. 10.


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (4)

 


Acilda Fragoso, a aluna, teve no professor-poeta um amigo e também ela foi motivo de apresentação a Joana Luísa através de carta, em 1951 — em 11 de Fevereiro: “Ontem, (...) encontrei a Acilda e a Maria Emília. Tão bonitas ambas, sob a chuva! Comprei-lhes violetas.”; em 7 de Março: “A Acilda faz anos na sexta. Disse-me o Banha. E eu combinei oferecer-lhe três ou quatro dos poemas deste ano dentro de uma capa feita pelo Banha. Na capa: somos assim aos 17.” Cerca de 60 anos depois da morte de Sebastião da Gama, em 13 de Abril de 2013, Acilda Fragoso evocava-o em Azeitão, mantendo viva a imagem, tal como a senhora que indicou ao visitante onde era o Largo do Espírito Santo: “O pedagogo, o professor amigo e poeta, deixou-nos em 7 de Fevereiro de 1952; no entanto, a sua presença persiste indelével na memória de todos os que tiveram o privilégio de com ele conviver, especialmente dos seus alunos. O Poeta-Professor ou Professor-Poeta, único no seu todo, sabia como nos fazer sentir únicos e como buscar o melhor de cada um dos seus alunos, deixando-nos perplexos com a descoberta de nós próprios. (...) Nesta cidade, de gente pacata, todos conheciam aquele homem barulhento, e que até era o novo professor, sempre de boina na cabeça, trazendo às vezes flores nas mãos, além de livros, porque, falando alto com a sua voz rouca, com todos metia conversa.”

Desde que chegou a Estremoz, Sebastião da Gama (a viver inicialmente na então Rua das Areias) insistiu na procura de casa para viver com Joana Luísa após o casamento (que se realizou em 4 de Maio de 1951). É numa carta de meados de Março, que, depois de ter desistido de várias propostas e de ter encontrado uma do seu agrado, escreve para Azeitão: “Estou doido com a casa. Vê-se toda a cidade e metade do Alentejo. A praça é engraçada — em frente de duas torres, de um chafariz, de uma capela. A cozinha, triangular, é grande e engraçada. Da janela vê-se quase tanto como do terraço, que é no terceiro andar (no telhado). É inclinado, não serve para lá comer ou trabalhar. Mas para o banho de sol é excelente.” Poucos dias depois, nova longa carta faz nova descrição da casa, terminando com uma promessa: “Vamos gostar tanto da nossa casa e do repouso que tenho cá que não nos apetecerá sair, pois não?” Estava escolhida a morada futura e os preparativos foram acontecendo com a ajuda de várias pessoas, entre as quais, Acilda Fragoso e Guiomar Ávila. Em vista, estava o segundo andar do número 2 do Largo do Espírito Santo, endereço que daria título a poema em 9 de Junho de 1951, registando como local de escrita “Nossa casa”, oito quadras que a apresentam a partir do sonho de quem a habita, do interior do lar e de um “nós” que alimenta todo o poema, talvez um dos mais belos poemas de amor. Publicado pela primeira vez na revista Árvore, o título suscitou divergências com a direcção, pois havia quem não aceitasse que uma morada figurasse como título de um poema... Foi preciso que Sebastião da Gama se impusesse e escrevesse ao seu amigo Luís Amaro a não deixar alternativas para o título ou, de outra forma, não aceitaria publicar na revista.

As imagens de Estremoz perpassam também na correspondência que Sebastião da Gama vai trocando com amigos como Virgílio Couto (o seu professor metodólogo), Cristovam Pavia e Luís Amaro (ambos alentejanos, ambos poetas), António Manuel Couto Viana (poeta), Matilde Rosa Araújo e Lindley Cintra (colegas da Faculdade e professores), José Régio (escritor), António Sampaio (pintor), Pedro Lisboa (médico) ou Albano Ferreira (que fora seu aluno em Lisboa). Nestas missivas, há frequentemente notas sobre a vida em Estremoz, em pequenos apontamentos que constituem recortes interessantes sobre o quotidiano, como se pode verificar na carta enviada a Matilde Rosa Araújo em 13 de Outubro de 1951, relatando um episódio vivido num sábado: “Hoje, logo pela manhã, uma coisa de nada cheia de ternura: no lugar do mercado onde se vende loiça de barro, um prato (não é bem um prato: é fundo e ondulado na beira) com este nome no fundo: MATILDES ROSA! Ó Matilde: o que nós rimos e nos comovemos ao mesmo tempo! Matildes Rosa! Que lindo vai no ‘seu erro de ortografia’ - diria o António Nobre. Comprámo-lo, está à tua espera. Se aparecer outro ficará entre os que têm (esses encomendados) os nomes dos nossos sobrinhos. Para te lembrarmos e eu te lembrar um pouco mais ainda.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1463, 2025-02-105, pg. 10.

 

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (3)


Dedicatórias autógrafas de Sebastião da Gama para
Joaquim Vermelho, Maria Guiomar Ávila e Acilda Fragoso


Pelas crónicas estremocenses de Sebastião da Gama, vindas a público no Jornal do Barreiro, passa a paisagem, a festa de Carnaval, a cidade, o mercado, a simpatia das gentes, episódios do quotidiano do poeta, um jogo de futebol, os amigos... tudo num xadrez de observação e de contemplação enlaçadas em afecto, patente em exemplos como: a) ao referir a paisagem, diz ainda não a conhecer “senão da janela do quarto ou da Torre de Menagem — o campanário de Estremoz e o seu mirante, de onde os olhos se admiram para os olivais sem fim, para o verde que te quero verde dos trigos, para as searas onduladas”, umas pinceladas que nos remetem para outra vastidão, também ela “ondulada”, também ela podendo ser “verde”, como o mar que marca forte presença na poesia de Sebastião da Gama, assim como nos remetem para García Lorca, intertextualizando com o seu “Romance sonâmbulo”, quando diz “Verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas.” (e sabemos bem quanto Sebastião da Gama conhecia e apreciava a poesia espanhola, como David Mourão-Ferreira testemunhou numa entrevista); b) ao olhar o Rossio estremocense, não duvida de que a cidade pode ser “uma caixinha de surpresas” e proclama, quase em jeito de provocação, que “o Rossio de Estremoz poderia tratar por tu o de Lisboa”; c) para referir a hospitalidade alentejana, inicia uma crónica em torno de uma reflexão tão cheia de simplicidade quanto “só estou bem onde estou”, reforçando não se ver como forasteiro, mas sentir-se “em casa”; d) finalmente, na última “carta”, atesta a sua identificação: “Sou de Estremoz e dos seus arredores — e aqui é verde e alegre. Este é um Alentejo de flores e pássaros, de colinas e fontes, de cantigas gárrulas no ar.” Lemos estas afirmações e mais sentido ganha a ideia de que um poeta como Sebastião da Gama não pode viver preso a uma geografia, ainda que dela se sirva para, como refere Ruy Ventura no ensaio que integra na antologia Por Mim Fora (2024), funcionar como “arquétipo simbólico, símbolo visto, criatura / pintura que torna presente, por meios misteriosos e ainda assim imperfeitos, o supremo Criador ou Pintor”.

A presença de Sebastião da Gama em Estremoz passou muito pelas amizades aqui descobertas, várias registadas em poemas — além de António Bento, já referido, mencionem-se também Maria Guiomar Ávila (1919-1992), Joaquim Vermelho (1927-2002) e Acilda Fragoso (n. 1934). À primeira foram dedicados dois poemas, “Poesia depois da chuva”, de 12 de Fevereiro de 1951, e “Crepuscular”, escrito pelo S. João de 1951, este em torno da figura da Rainha Santa; o nome de Joaquim Vermelho figura na dedicatória de um dos mais icónicos poemas de Sebastião da Gama, “Viesses tu, Poesia”, de 10 de Fevereiro de 1951; finalmente, Acilda Fragoso, que teve o poeta como professor, viu os seus 17 anos coroados com o poema “A uma rapariga”, em 7 de Março de 1951.

Conhecer Maria Guiomar Ávila (que, em 1953, foi uma das responsáveis pela homenagem estremocense ao poeta) significou para Sebastião da Gama uma oportunidade para conviver com quem apreciava poesia. Em várias ocasiões falou dela à ainda noiva Joana Luísa, na correspondência trocada, um registo que funcionou muitas vezes como substituto de um diário para contar à amada as suas vivências no Alentejo — em Fevereiro de 1951: “Hoje, pelo telefone, já conheci a Guiomar Ávila. Encantadora. Encontrar-nos-emos na missa das 9 e trinta, no domingo (ela é muito religiosa, portanto não cobiça o homem do próximo; e não vai à das onze porque, diz ela, é uma parada de elegâncias)”. Guiomar Ávila e Joaquim Vermelho fizeram parte do grupo a quem Sebastião da Gama leu em primeiro lugar o seu Campo Aberto, acabado de sair, uma espécie de tertúlia que se reuniu na tarde de 11 de Fevereiro de 1951. Pertence a Joaquim Vermelho um sentido testemunho sobre o amigo poeta, intitulado “O rapaz da boina”, saído no Jornal de Almada quando passava o nono aniversário da falecimento de Sebastião da Gama, afinal um retrato da sua vivacidade e sentido de humor, da referência que constituiu para quem o conheceu — “O rapaz da boina veio da Serra-Mãe, descendo ao povoado sonolento e fechado como uma fortaleza antiga receosa de inimigo invisível. Olhos brilhando do sol das alturas. A boina tombada garridamente sobre a testa, sombreando os olhos como nuvem brincalhona a querer esconder-nos o brilho intenso e estranho da alegria que deles irradia, não vá ela ferir-nos profundamente no nosso doentio viver de janelas fechadas, de costas viradas para a luz. Como é que a alegria pode vir ter connosco se lhe fecharmos todas as janelas e portas, batendo-as intempestivamente na cara do convívio? O rapaz da boina desceu ao povoado e cantou as janelas fechadas em gargalhadas de rosa encarnada, num riso de criança feliz e despreocupada.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1458, 2025-01-29, pg. 10.