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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Albérico Costa e os dias de Setúbal (2)



O estudo de Albérico Costa sobre a década sadina de 1960, em Setúbal sob o Estado Novo - A Resistência a Salazar e a Caetano - 1950-1974, permite ao leitor o destaque de cinco aspectos - as manifestações ocorridas em 28 de Maio de 1962, o trabalho ideológico feito na clandestinidade, a intervenção social e política dos católicos, o condicionamento da oposição nas eleições para a Assembleia Nacional de Outubro de 1969 e a perseguição da polícia política.

Nenhum destes temas surge isolado do contexto nacional desta década, iniciada por acontecimentos tão fortes do ponto de vista simbólico e social como a fuga de presos políticos de Peniche (Janeiro de 1960), o assalto ao “Santa Maria” e o início da guerra colonial (em 1961) ou o assalto ao quartel de Beja (cerca de um terço dos implicados pertencia à área de intervenção da PIDE de Setúbal) e as manifestações estudantis (em 1962), e concluída com a queda que vitimaria Oliveira Salazar (Agosto de 1968), uma anunciada liberalização de Marcelo Caetano e um ambiente persecutório à Oposição nas eleições de 1969.

As palavras de ordem pintadas na Avenida Luísa Todi em 1 de Maio de 1962, exigindo a libertação dos presos políticos e contestando a política salazarista, abriram a porta para o que seria a manifestação de 28 do mesmo mês (data escolhida por coincidir com dia importante para a criação do Estado Novo), fortemente anunciada e vivida, em confrontos com as forças de segurança, com apedrejamento do edifício da Caixa Geral de Depósitos (instituição a que as pessoas recorriam para pôr “no prego” os escassos bens que tinham), sem que a polícia política tivesse descoberto os verdadeiros responsáveis, ainda que tenha responsabilizado e tentado incriminar os membros afectos ao Partido Comunista Português.

Se este partido esteve envolvido em todo o processo de Resistência ao Estado Novo, a verdade é que essa acção teve de ser desenvolvida quase totalmente na clandestinidade - Albérico Costa regista as instalações secretas na região de Setúbal (56 casas no distrito, entre 1941 e 1974, sendo 18 no concelho de Setúbal), destacando duas: a morada que serviu o casal de militantes comunistas Dinis Miranda e Aura Silva, na Praceta de Macau, até à prisão de ambos em 1967 e apreensão de documentos ligados ao partido, e a tipografia clandestina do jornal “Avante!” localizada na Rua Frei António das Chagas, desmantelada em 1967, quando foram presos Manuel Gonçalves e Joaquina Galante, ali residentes e responsáveis pela gráfica.

Sector também importante na crítica e contestação ao regime político foi o da Igreja setubalense (que viveu nesta década também os primeiros passos para a criação da diocese, sendo o cónego João Alves o vigário da Zona Pastoral de Setúbal), com a acção de vários membros do clero e de muitos leigos, numa perspectiva de compromisso com a liberdade, de contestação da guerra colonial, de apelo à participação nas eleições, de apoio social e de realização de sessões culturais e informativas. Capítulo indispensável para a história dos católicos de Setúbal, passa pelas histórias de muitos que estiveram na primeira linha da crítica ao poder (com prisões pela PIDE, como foram os casos dos padres Carlos Alves, de Alhos Vedros, e António Correia, de Palmela), pelo movimento do Secretariado Cristão de Acção Social, pela Fraternidade Operária das Praias do Sado, pelo jornal “Notícias de Setúbal” (periódico diocesano em que assumiu particular destaque a intervenção do médico Mário Moura), pela criação do espaço Culdex (que, depois, originaria a livraria Culsete).

A década de 1960 acaba no processo eleitoral para a Assembleia Nacional em 1969, com uma Oposição a quem foi tolerado concorrer, mas sob fortes condicionalismos e pressões que foram até à falsificação e manipulação do processo eleitoral por membros afectos à União Nacional visando a distorção dos resultados e, mais uma vez (como sucedera no final da década anterior), sem um entendimento sólido entre as várias frentes que constituíam os movimentos oposicionistas.

Aspecto importante realçado ao longo desta obra é o das prisões e da recolha de informações sobre opositores, chegando muitas das observações à indignação, por um lado, e ao ridículo, por outro, pelas inferências apresentadas, como se vê num registo sobre Mário Moura pelo chefe do posto de polícia: “É um indivíduo muito esperto e manhoso, ausenta-se frequentemente do País, levando uma roulotte atrelada ao seu carro, possivelmente para estabelecer contactos no estrangeiro com maior segurança.”

A cronologia da década informa sobre eventos importantes para a cidade em diversos planos: a inauguração do Museu de Setúbal (1961) e do Estádio do Bonfim (1962), o litígio entre a Soltróia e os proprietários em Tróia em torno da desocupação do terreno (1963), os problemas ambientais trazidos pela Socel (1964), a inauguração do Parque das Merendas da Comenda (1967) e a fundação do Círculo Cultural de Setúbal (1969), entre outros.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1205, 2023-12-13, pg. 10. 


segunda-feira, 18 de março de 2013

Francisco, o Papa, e Francisco, o Santo

Francisco, o Papa, tem sido motivo de variadíssimos comentários, não fosse a importância da Igreja Católica hoje, não fosse tudo aquilo que tem acontecido de menos bom e de mau nessa mesma Igreja. Obviamente, os exageros nos comentários são muitos, com os fundamentalismos da praxe, mesmo que disfarçados de coisas que vestem roupagens das mais variadas.
Li duas crónicas sobre o Papa Francisco no Expresso de ontem que carregam muito daquilo que senti com esta escolha - deste Papa e deste nome. A primeira é devida a José Tolentino Mendonça, que, sob o título "O nome é um programa?", dá a resposta para a pergunta que lança. Depois de biografar a acção de Jorge Bergoglio, Tolentino Mendonça afirma: "O poverello de Assis foi o grande reformador da radicalidade evangélica, que impôs à Igreja uma cura de pobreza, de humanidade e de confiança vibrante em Deus. Sabe-se que na conversão de Inácio de Loiola, fundador dos Jesuítas, teve enorme importância a descoberta do seu exemplo. Inácio ter-se-á perguntado: 'E se eu fizesse o mesmo que Francisco?' Será isso que o Papa Bergoglio se pergunta?"
Na mesma linha se situa Fernando Madrinha, ao assinar a crónica "A importância de se chamar Francisco", dizendo que "o facto de terem passado oito séculos antes de um eleito escolher o seu nome, e com isso o apresentar como guia espiritual, diz alguma coisa sobre as referências dos Papas, sobre o modo como interpretam a função da Igreja e como encaram o luxuoso trono em que se sentam."
O que ressalta desta escolha, intensificado pelo que tem sido o discurso do novo Papa, é a vez da esperança, que corresponderá à vontade que existe no mundo católico de que a Igreja seja a proximidade, a fraternidade, a esperança ela mesma. A simpatia por este Papa advém daí: marca de esperança, pois.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

A visita de Bento XVI vista por Marcelo Rebelo de Sousa

Não valerão a pena mais comentários sobre a visita papal que, dentro de dias, vai ocorrer no nosso país. O que mais tem impressionado têm sido os fundamentalismos, que se têm colado a toda a situação por que a Igreja tem estado a passar. A questão da tolerância de ponto veio enaltecer mais as críticas, quando todos sabemos que qualquer que fosse a composição política do governo a decisão iria no mesmo sentido... Entretanto, vai havendo umas histórias, como a da Ministra da Educação dizer que o encerramento das escolas no dia 13 dependerá de decisão das direcções das Escolas... Nenhuma novidade, porque, teoricamente, o mesmo é válido para todos os outros serviços do Estado; só que era escusado transferir as despesas dessa decisão para as direcções das Escolas quando todos sabemos o que, na prática, significa uma tolerância de ponto, independentemente de concordarmos ou não com ela.

Só hoje li a edição de sábado do Jornal i, que publicou uma entrevista com Marcelo Rebelo de Sousa, assinada por Maria João Avillez. Naturalmente, a vida política e as tensões do momento entraram na conversa, mas quero aqui destacar o que o entrevistado disse e considerou sobre Bento XVI, por me parecer oportuno. A entrevista pode ser lida na íntegra aqui, mas transcrevo essa última parte, que respeita à visita papal e a algumas vias de transição que se abrem à Igreja.

«(...) Vem aí o Papa, o que não o deixa indiferente. Que reflexão lhe suscita esta visita? É uma grande oportunidade para uma palavra de esperança numa Europa sem norte e desesperançada e num país com pouco norte e muitos desesperançados. Em segundo lugar, é importante que o Papa dê uma palavra de solidariedade à igreja portuguesa. Tem tido um papel de que se não fala, mas sem o qual não seria possível em muitos aspectos aguentar a crise social do país. É a Igreja que ampara muitas das IPSS no domínio da educação, da saúde, da solidariedade social. Quem faz esse trabalho, das crianças aos mais velhos, é uma rede de instituições de inspiração cristã. O comum das pessoas dá esse amparo como adquirido, confundindo-o com o Estado, mas justamente como nem sempre o Estado o pode fazer - e vai poder cada vez menos - quem está presente é a Igreja. Há ainda o facto de a visita ocorrer num momento em que o Papa e a Igreja são objecto de um conjunto de críticas - aqui e no mundo. Umas devido ao estilo de Bento XVI, outras ao caso da pedofilia.

Quer parar numas e noutras? A comunicação social, que gostava particularmente de João Paulo II, gostou sempre menos de Bento XVI. Sucede porém que o Papa é atacado por ter cão e por não ter e insuspeitamente o digo: como católico acho que o Papa é escolhido pelo Espírito Santo e que vale a sua escolha e não a minha. Isto dito, teria preferido que o Espírito Santo tivesse escolhido outro. Mas antes mesmo da questão da pedofilia já se dizia que era um homem primitivo, reaccionário. Queria recorrer ao catolicismo irracional - quando é a racionalidade em pessoa. Por outro lado acusam-no de ser demasiado frio, racional, sem capacidade para entender as pessoas e sem criar empatia com elas. Atacava-se por ele ser anticonciliar quando foi determinante a sua acção no Concílio Vaticano II; atacava-se por ser "direitista" porque terminou com alguns movimentos omitindo que acabou com outros, com essa conotação mas que mereciam ser extintos. Sendo conservador em questões de princípio e da disciplina interna da Igreja, é geralmente omitido que numa das últimas encíclicas atacou o capitalismo internacional, a crise financeira, sublinhando nela a culpa dos banqueiros, defendeu a reforma das Nações Unidas, uma nova ordem económica internacional, manteve as posições em relação à Palestina. E então, de repente, ai que afinal era progressista...

E no outro caso? O santo padre pediu desculpa na sua carta às vítimas irlandesas, recebeu outras vítimas em Malta. Já várias vezes pediu desculpa, aceitou a culpa, aceitou que há uma responsabilidade que não é só religiosa... Mas de cada vez que diz qualquer coisa que devia ser "lida" como um reconhecimento do que é inaceitável no comportamento da Igreja, caem-lhe em cima dizendo " é preciso muito mais"!

Falou de João Paulo II. Os seus desafios não são os mesmos de hoje... Não. O Papa anterior enfrentou um grande desafio - que venceu. Eram os marxismos, que estavam na moda quando ele chegou ao Vaticano, nos anos 70, podendo assistir à implosão da União Soviética e dos marxismos. O desafio deste Papa é muito mais difícil: o ressurgir dos racionalismos iluministas de há mais de um século, para os quais a razão explica tudo. Mas ao mesmo tempo que explica tudo, porque a razão é individual, também é relativista: não há valores absolutos. O Papa assumiu o combate a esses racionalismos relativistas, o que é lógico na óptica de quem entende que há valores absolutos, mas isso tornou-o "incompreensível", por um lado, e "inaceitável" por outro. Repare que até a comparação com João Paulo II é injusta: João Paulo II era relativamente novo quando foi eleito, o que não ocorreu com o seu sucessor. A minha leitura é que este Papa é obviamente de transição: a transição entre João Paulo II e o primeiro Papa não europeu.

América Latina? ... e se Deus quiser Brasil. E mais: vou dizer-lhe uma coisa que por enquanto, poucos sabem: o actual Papa trabalhou para não ser Papa. Ele mais o arcebispo de Paris e um cardeal muito próximo, o austríaco Schönborn. Trabalharam muito para que fosse eleito um Papa não europeu. Justamente não houve eco dos cardeais europeus, particularmente dos italianos, para quem isso seria uma ruptura demasiado brutal. O que é inevitável é que depois de Bento XVI surja um Papa da nova cristandade.»