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quinta-feira, 3 de julho de 2025

Mané Gomes: o diário da Presidente da Junta

 

 

Em férias, em “La Serenissima”, uma chamada sobre o que se estaria a passar na Lagoa de Albufeira. “E lá ouvi a história e a preocupação da senhora, as suas opiniões ‘técnicas’ sobre a abertura da Lagoa, como era nos anos 80, etc. (...) Estive a elencar tudo o que foi e está a ser feito, as manifestações, reivindicações, propostas de futuro, etc. (...) O nome deste livro não podia ser mais adequado!” Este é o fim do registo de 4 de Agosto de 2024 do diário que Mané Gomes resolveu partilhar com os leitores, Sei que estás de férias mas... (ed. Autor, 2025). Como subtítulo, explica-se: “diário de uma inexperiente Presidente de Junta de Freguesia”, no caso, da freguesia do Castelo (Sesimbra), percurso de 365 dias, entre 29 de Agosto de 2023 e 27 de Agosto seguinte. No entanto, a “inexperiência” é apenas uma forma de dizer “aprendizagem”, assumindo a autora integrar ao longo do livro “160 conselhos para autarcas”, resultantes da sua experiência e ajustados a situações com que se deparou (e que surgem relatadas).

Quando Mané Gomes inicia o diário, já vai a meio do seu segundo mandato como presidente da Junta, tempo que lhe possibilitou olhar de forma crítica quanto ao que é exigido, quanto ao empenho e quanto ao que também é esperado pela sociedade. Logo na introdução, a justificação para esta partilha parece clara: “Precisava de escrever este livro. ‘Exorcizar’, como costumo dizer, as aventuras e desventuras da vida de autarca. Vida para a qual não me preparei e por que nunca pensei vir a enveredar.” Depois, enuncia três propósitos: o contributo desta escrita para o seu próprio desempenho, a intenção de o livro poder ser um guia “para aqueles que nestas tarefas se poderão sentir sozinhos e abandonados” e o carácter de homenagem a todos os que acompanharam o percurso.

Neste ano de registos, o leitor assiste, sobretudo, à acção decorrente da função que a autora desempenha, ainda que haja espaços para falar, de forma discreta, da família (a perda da mãe, o acompanhamento ao pai, as relações no núcleo familiar), dos gostos pessoais (rádio, teatro, desenvolvimento turístico, artesanato, actividades caseiras), das convicções religiosas e dos amigos (com a preocupação de, relativamente a muitos deles, registar os seus nomes, em jeito de tributo justificado).

Valores como o respeito pela tradição (nas festas e nos costumes), o “marketing territorial” local, a apropriação do espaço público pelos fregueses (com o que isso implica de cuidado e responsabilidade), a construção de pontes no auxílio à resolução de problemas ou à concretização de sonhos (mesmo sabendo que “gerir sonhos é uma matéria sensível”), o trabalho com os outros, a presença do político junto das pessoas ou a solidariedade vão passando, sobretudo nos momentos em que a escrita mais resvala para a reflexão sobre o acontecido.

Assumindo o cargo como uma opção pessoal, sem ignorar o efeito sobre os seus mais próximos, Mané Gomes sente o percurso com oscilações, ora pelo entusiasmo das pessoas quando lhe chamam “presidente do povo” ou estão disponíveis para colaborar, ora pela incompreensão presente em muitas críticas que circulam sobretudo nas redes sociais (por vezes, sob anonimato) ou em atitudes menos correctas que pretendem desvalorizar o trabalho da equipa (por maledicência ou por dificuldade em aceitar um “não” como resposta).

‘Fazer’, ‘realizar’ e ‘acontecer’ são verbos que se adequam aos dias relatados, independentemente de a tarefa ser a solo ou com outros agentes (a equipa da Junta, o movimento associativo, cidadãos isoladamente). Daí também as considerações mais críticas quanto à eficácia de grande parte das reuniões, sobretudo aquelas que vivem do jogo político — depois de uma Assembleia de Freguesia: “Parece tiro ao alvo: a pessoa faz tudo pelo melhor, pela legalidade, com a preocupação de não falhar e ser transparente e depois vêm perguntas que não lembram ao diabo, das situações mais caricatas ou que já explicámos trinta vezes. Faz parte. Segundo me dizem, é política.” Daí também igual dose crítica quanto aos políticos que só se apresentam em tempos de conveniência eleitoral (numa procissão religiosa local, em 2024: “Este ano éramos só quatro autarcas. Para o ano, eleições... Vamos ter de tirar senha! Aparecem os atuais, os candidatos e sei lá mais quem!”), desejosos de serem fotografados e de ocuparem os lugares mais visíveis (“Cada vez importo-me menos se fico à frente para a foto. (...) ESTAR PRESENTE. Está em maiúsculas pois não basta aparecer, tirar uma foto, engolir um pau de vassoura para aparecer e dar uns sorrisos.”).

Publicar um diário como este quando ainda se está a exercer a função que o originou, implicando considerável grau de exposição, vale pelo desprendimento e pela necessidade de haver a voz de quem está do lado de lá, mostrando o esforço, o feito, as reacções, as dificuldades e a continuidade da acção. Assim contadas as coisas, esta partilha pode tornar-se aprendizagem de tolerância e consciência dos processos, muito embora a diarista não ignore os riscos, como confessa, com certo humor, quando o diário ainda vai a pouco mais de meio — “Tenho a leve impressão de que este livro dará origem a um sem-número de crónicas e ‘posts’ para sanguessugas... é só um palpite. Mas, como me considero uma empreendedora, sempre dou trabalho e inspiro outros!!!” Por inspiração... em tempos de eleições, a atenção aos “160 conselhos para autarcas” pode ser uma boa prática formativa, sobretudo se cada conselho for acompanhado da leitura do relato que o motivou...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1562, 2025-07-02, pg. 10.


quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Diário dos dias da pandemia (1)


 

O estado de emergência, por razões de saúde pública ligadas à pandemia, foi decretado em Portugal em 18 de Março de 2020. Situação inusitada, abalou as formas de estar, de viver, de partilhar. No dia seguinte, Arlindo Mota trocava mensagem com os frequentadores da Universidade Sénior de Setúbal retransmitindo uma ideia de Maria Alice Silva: “Estes dias, em que temos de reinventar ocupações, para encher as horas que teimam em ficar presas no relógio do tempo, dão lugar a muita reflexão e descoberta... Estes textos poderiam depois ser lidos e reflectidos nas aulas futuras.”

O desafio foi aceite por duas dezenas de voluntários e começaram os registos diarísticos de pequenos acontecimentos, de quotidianos simples, de olhares através da janela, de medição do mundo e da vida numa escala que era desconhecida. Dessa produção nasceu o livro Dias Entreabertos - Diário Breve dos Primeiros Meses da Pandemia, editado pela UNISETI (2022), reunindo 24 autores, incluindo a poeta brasileira Vânia Lopez (que, do outro lado do Atlântico, quis colaborar no projecto) e a cientista Maria de Sousa (1939-2020), imunologista ceifada pela pandemia, de quem são transcritos três poemas, um deles escrito dez dias antes de falecer.

O tempo de escrita decorre entre 19 de Março e 27 de Julho (correspondendo ao tempo que faltava para finalizar o ano lectivo da UNISETI), sendo o mês de Abril o mais frequentado, com mais de quatro dezenas de participações.

Entrar por estes “dias entreabertos” possibilita uma série de lembranças das pequenas descobertas e aprendizagens, dos aspectos de um dia-a-dia a construir fora da normalidade, que enternecem pelo que avivam relativamente àquele tempo. Um exemplo: o açambarcamento de papel higiénico que sucedeu nos supermercados, tratado num texto repleto de ironia por Arlindo Mota, mais parecendo estar-se numa contemplação do fantástico.

Perante um viver fora do que era a normalidade, os diaristas vão reconstruindo os seus universos e partilhando essas novas combinações - Ana Maria B. entende, logo em 19 de Março, que “estes tempos difíceis são de facto uma prova a todos nós”, retirando uma conclusão: “Se não aproveitarmos isto para um ‘acordar’ e uma mudança de mentalidade e paradigma, se não aprendermos a perceber o que é realmente importante, então todo este esforço, sacrifício e vidas perdidas não servirá para nada.” Entretanto, o ciclo da Natureza não se alterava e, segmentada pela tristeza, Malice Silva dava, no dia seguinte, conta da chegada, “enrolada na chuva, escondida numa máscara que lhe cobria o rosto”, da Primavera. Com o afectar das relações de convivência diária graças ao isolamento, os canais de comunicação alteram-se também e uma volta pelo parque, bem cedinho, permite a Maria do Carmo Branco, num percurso quase solitário, aproximar-se da casa de algumas amigas, “falando elas da janela e eu da rua”.

A invenção de formas alternativas para as rotinas leva Malice Silva a duas descobertas repletas de simplicidade: a primeira, os passeios na varanda - “na minha varanda da frente, posso dar 40 passos, vinte em cada direcção, e outros tantos na varanda das traseiras, o que, somado, dá 80 passos em cada ‘caminhada’. Não é mau!”; a segunda, a atenção da vizinhança - “descobri, nas janelas dos prédios em redor, vizinhos que nunca tinha visto.” Nestas rotinas, emerge também o tempo para os pequenos prazeres, como sucede com José Manuel Fernandes, ao pensar sair para um passeio no jardim e uma passagem pelo café para comer um pastel de nata: “De repente, voltei à realidade: estamos em quarentena. Regressei a casa e aproveitei para ler um livro. Agora tenho tempo de sobra para ler...”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 951, 2022-11-02, p. 10.


quarta-feira, 3 de março de 2021

Paulo Guinote: ser professor e pai num diário da pandemia


    

Baluarte, discute-se a escola porque se está informado e se quer contribuir com ideias ou pela ligação que com ela houve e vem sempre à superfície. Paulo Guinote sublinha: “Mesmo quando em conversas ocasionais ou com maior pretensão reflexiva se criticam as escolas, em particular as da rede pública, a verdade é que se tem como dado adquirido que elas estão lá e funcionam.” Se dúvidas houvesse, a pandemia esclareceu-as - ainda Paulo Guinote: “As escolas fecharam e, em pouco tempo, esse tornou-se um tema de conversa e debate mediático quase permanente (...). Por muito mal que se diga que funcionam, sem as escolas abertas a sociedade perde uma das suas âncoras.” Estas considerações constam no livro Quando as escolas fecharam - Cadernos da pandemia, assinado por Paulo Guinote (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021).

Em 2020, entre 11 de Março (quando começou a intensificar-se a ideia do encerramento das escolas) e 18 de Maio (quando os alunos com exames do secundário regressaram à escola), foram 66 os dias de registo sobre o reflexo pandémico na vida da escola e da família - a escrita só esteve ausente em três dias desse período, havendo ainda um texto de “meados de Junho”, epílogo do livro. A forma de diário que o escrito assume verifica-se na indicação das datas, a que se podem sobrepor os acontecimentos evocados e motivadores das reflexões, entradas determinadas ainda por um título, que, muitas vezes, assume o tom crítico, que é uma das linhas deste diário.

Não se está apenas perante um relato mais ou menos cronológico e factual do que aconteceu no primeiro confinamento, pois as marcas do diarista abundam aqui e ali, conferindo um cunho pessoal às notas do quotidiano - o ambiente familiar, episódios vividos, convicções próprias, pequenas histórias (em torno da gata ou do telemóvel, por exemplo), olhar sobre o meio em que vive, fragilidades sentidas. O texto, sublinhado muitas vezes pelas referências à própria experiência como professor ou pela observação do que a informação privada ou pública trouxe ao diarista, adquire, com essas marcas pessoais e com um olhar de análise sobre o sistema e sobre a educação, um ritmo que o coloca no plano do testemunho sobre esse primeiro confinamento causado pela covid-19, salvaguardando-o como elemento histórico importante.

Perante tudo o que foi a surpresa, a descoberta, a vivência e a construção de uma nova forma de viver, as notas de Paulo Guinote fundem os sentimentos do pai, do professor e do cidadão crítico, numa construção que não esconde a tensão entre essas três dimensões, exacerbada numa sociedade mais habituada ao corporativismo do que à parceria e ao entendimento. Por aqui passam as medidas políticas nem sempre compreensíveis, o ziguezaguear dos discursos, o deslumbramento perante as tecnologias, o estado dos serviços públicos, as escolas entregues a si mesmas, os pequenos poderes, a servidão digital, o abalo sobre o sistema educativo, a fragilidade de conceitos aparentemente modernos mas inconsistentes, a ausência de perspectivas para o que possa ser uma outra normalidade ao nível da escola, o remeter para resolver na escola questões que deveriam ser solucionadas (também) fora dela, a importância que as famílias dão à escola, etc.

À distância de quase um ano sobre os acontecimentos registados, este diário é a revisitação do que solidariamente vivemos e a prova de que, como ensaio, essa experiência foi escassamente aproveitada para melhorar o desempenho do sistema. Obra a ler - para nos revermos e não nos deixarmos abater pela inércia...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 571, 2021-03-03, p. 5.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Sebastião da Gama e o diário de um professor feliz



Em 11 de Janeiro de 1949, na Escola Veiga Beirão, o metodólogo Virgílio Couto (1901-1972) reuniu com os seus professores estagiários durante uma hora, passando-lhes algumas das suas convicções e princípios profissionais, verdadeiros alicerces da pedagogia e da educação: as aulas deviam ser “um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente”; a partir dessa convivência, “como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando”; finalmente, “aceitar os rapazes como rapazes” e “deixá-los ser”, porque “até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé”. A concluir, uma intenção quanto aos alunos: “o que eu quero principalmente é que vivam felizes.”

Um dos presentes na reunião foi Sebastião da Gama (1924-1952), que decidiu registar estes princípios no início do seu diário, nesse mesmo dia, comentando: “vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam”. Estava assim delineado um programa pedagógico bem simples, mas fundamental, que logo conquistou o jovem professor.

Ao longo de cerca de um ano, Sebastião da Gama lidou com os seus 30 alunos, nascidos entre 1933 e 1935, construindo o diário (ideia do metodólogo) como espaço e tempo de reflexão sobre a prática pedagógica, não escamoteando confidências que bem configurariam um quase diário íntimo. Por ali passam princípios que se mantêm válidos e pertinentes nos domínios da pedagogia, da didáctica da literatura, da formação de leitores, da inclusão, da formação cívica, num testemunho “em que se regista o que está bem que se faça e o que está bem que se não torne a fazer”.

Em 28 de Janeiro de 1950, relatava o último dia de aulas com a turma e, ao olhar para o percurso feito, lamentava ter “de deixar os moços” - “os rapazes trabalham, interessam-se, disciplinaram-se, e isto foi-se gradualmente acentuando até chegar hoje a um ponto de afinação que era o grande começo que eu ansiava.” A comoção dominou os alunos e o professor, disso dando conta o diarista.

Em 1958, este documento seria publicado sob o título de Diário (Ática), preparado por Hernâni Cidade, que fora professor de Sebastião da Gama. Contudo, a edição completa e anotada desta obra só surgiu em 2011, através da Editorial Presença (como declaração de interesses, registo que preparei esta edição). Entre 1958 e 2011, o livro teve mais doze edições - pela Ática, até à 11ª, em 1999; pelas Edições Arrábida, em 2003 e 2005. Creio ter sido Maria de Lourdes Belchior quem disse que, se esta obra tivesse a assinatura de um autor do mundo anglófono, seria de leitura quase obrigatória em todo o mundo. Contudo, a única tradução da obra que existe é de alguns excertos, em italiano - Frammenti di 'Diário' - Sebastião da Gama e la lingua portoghese, devida a Maria Antonietta Rossi (Viterbo: Sette Città, 2010).

O acesso dos leitores ao Diário do professor azeitonense fica a dever-se também a Joana Luísa da Gama (1923-2014), esposa do autor - depois do estágio, Sebastião da Gama quis oferecer o manuscrito ao metodólogo, mas Joana Luísa opôs-se e disponibilizou-se para copiar o texto, tendo sido essa cópia a ofertada. Se assim não tivesse acontecido, talvez nunca chegássemos a conhecer esta obra, cuja leitura deveria ser indispensável na formação de professores e por todos aqueles que se dedicam à educação, independentemente do grau em que lidam com ela, tal é a sua actualidade.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 536, 2021-01-13, pg. 14


terça-feira, 6 de outubro de 2020

Os dias de Emília Bravo, aliás, Maria Judite de Carvalho



Entre 13 de Janeiro de 1971 e 19 de Junho de 1974, Emília Bravo foi assídua no suplemento “Mulher” do Diário de Lisboa, colaboração que passou por três fases: a primeira, sob o título “Diário de uma dona de casa”, até 29 de Setembro de 1971, espaço semanal com anotações de cada um dos dias da semana; a segunda, entre 6 de Outubro de 1971 e 6 de Fevereiro de 1972, “Diário”, registos publicados ao ritmo de um por dia; a terceira, a partir 7 de Fevereiro de 1972, que, não abandonando o tom dos textos anteriores, passou, contudo, a atribuir título próprio a cada um deles.

Emília Bravo, pseudónimo criado por Maria Judite de Carvalho (1921-1998),  personifica a autoria destas notas do quotidiano, reunidas desde 2002 no volume Diários de Emília Bravo, organizado por Ruth Navas (com reedição em 2019).

A forma diarística que estas crónicas apresentam desde logo se deixa marcar pelo problema do eu que escreve, um eu ficcional. Por outro lado, a autora não fala de si, mas dos outros, do mundo, o que anula a marca do diarismo que é o relato do eu. Assim, o livro é um miradouro de onde se vê o mundo, particularmente a cidade (Lisboa) e as personagens que a fazem, mulheres e homens inseridos numa vida urbana, onde ganha espaço a “dona de casa”, mulher que luta (pela vida), que caminha na sua solidão, cabendo a Emília Bravo reflectir e questionar o observado.

Os motivos chegam à cronista através de três fontes importantes: o que observa nas suas caminhadas pela cidade, o que recebe via televisão, o que apreende nos jornais e revistas que lê. O discurso gira em torno das situações do quotidiano, aquelas que fazem parte de todas as vidas - a casa, o estatuto da mulher e do homem, a moda, a sobrevivência, os saldos, as prestações, a confusão, o supérfluo, o consumo, o tempo, os piropos, o sonho. Frequentemente, as considerações feitas surgem a partir de vozes de pessoas com quem Emília se cruza (amigas, conhecidas, anónimas), normalmente num tom pessimista, mas também de denúncia de ocorrências menos boas numa sociedade de que ela mesma faz parte.

O leitor assiste a um progressivo construir da imagem da mulher interventiva e autónoma, independentemente das razões que o provocaram: quase no final, em crónica de 23 de Janeiro de 1974 intitulada “Como vai ser?” (pergunta indicadora da alteração), a sociedade confronta-se com a mudança - “é que as senhoras de sua casa, as donas de casa e mais nada têm vindo a desaparecer, e não só por causa da emancipação da mulher, mas também (mas principalmente) devido ao custo de vida.”

Sobre o início da década de 1970, tempo destas crónicas, passou meio século. Contudo, muitas das observações poderiam ser transpostas para hoje, prova de que outras tantas questões não tiveram resolução nestes 50 anos. Um exemplo? Este, de Junho de 1971: “Poluição é uma palavra que está na ordem do dia em todo o mundo. Muito se fala de poluição. Mas dar-nos-emos nós conta do seu valor de ameaça? Não pensaremos para connosco, encolhendo os ombros, que se trata de uma coisa vaga, mais um papão que, decerto, não é no fundo tão mau como o pintam ou talvez nem exista? Alguém há de dar um jeito, pensamos. Há sempre alguém que dá um jeito, não é verdade? Pois esperemos que haja esse alguém, porque ela caminha a passos largos.”

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: 476, 2020-09-30, p. 5.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Sebastião da Gama: Nos 70 anos do "Diário", hoje



“Para começar, falou connosco durante uma hora o Senhor Dr. Virgílio Couto. De acordo com o que disse, vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente. E dentro dessa convivência, como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando. Depois, esta nota importantíssima: lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes; deixá-los ser: ‘porque até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé’. Houve nesta conversa uma palavra para guardar tanto como as outras, mais que todas as outras: ‘O que eu quero principalmente é que vivam felizes.’”
Este início reproduz a abertura do Diário de Sebastião da Gama, escrita em 11 de Janeiro de 1949, quando o poeta e professor azeitonense tinha 24 anos e dois livros de poesia publicados - Serra-Mãe, de 1945, e Cabo da Boa Esperança, de 1947. Estava Sebastião da Gama a iniciar o seu estágio de professor na Escola Comercial de Veiga Beirão, em Lisboa, localizada mesmo ao pé do Convento do Carmo. Tinha como professor orientador Virgílio Couto (1901-1972), docente de larga experiência e autor de numerosas publicações didácticas, incluindo alguns manuais escolares, e, como colega de estágio e amiga, a escritora Matilde Rosa Araújo (1921-2010). A turma com que Sebastião trabalhou e que assume o papel de protagonista neste Diário era constituída por 31 alunos, todos nascidos entre 1933 e 1935, isto é, com uma diferença de idades relativamente ao professor entre os nove e os onze anos.
A anterior experiência docente de Sebastião da Gama fora na Escola Industrial e Comercial João Vaz (actual Escola Secundária Sebastião da Gama), em Setúbal, acontecida no ano lectivo de 1947-1948, e, apesar de o Diário ser respeitante ao ano em que leccionou em Lisboa, de vez em quando por ele passam evocações do tempo das aulas em Setúbal, com referência a alguns professores (Josefina de Noronha Gamito e Alberto Fialho, por exemplo) e a alguns alunos (entre outros, Manuel Valente, conhecido como “Mané Botas”, Rogério Vaz de Carvalho e Joaquim Fernandes de Oliveira, conhecido como “Zé Boneco”).
O tempo de trabalho com a turma do Diário iniciou-se em 11 de Janeiro de 1949 e concluiu-se em final de Janeiro de 1950. A 28 desse último mês, Sebastião da Gama relata o fim da experiência e, depois de referir a despedida que fez aos alunos, lembra a atitude do grupo no final da aula: “Foi então que o Artur se levantou com uma seriedade mil vezes diferente da seriedade de comédia que ele às vezes compõe, se despediu de mim. Que bonitas, que simples, comovidas, que sinceras palavras! Um abraço ao Artur. E depois todos a virem despedir-se de mim como se eu fosse para a guerra, alguns a pedirem autógrafos. Ah! Coração, coração, que não arrebentaste...”
O diário que Sebastião da Gama escreveu ao longo do seu estágio foi sob recomendação do professor orientador, tendo-se desenvolvido entre os dois uma intensa relação de respeito, amizade e admiração: Virgílio Couto foi autor da obra Leituras (1948), em dois volumes, destinada à disciplina de Português no Ensino Técnico, tendo, no segundo volume, inserido o texto de Sebastião da Gama “Pequeno Poema”, dando-lhe o título “Quando eu nasci”; ao longo do diário, que leu aturadamente, Virgílio Couto anotou as  reflexões de Sebastião da Gama, sempre com um ar de encanto e de abertura, sensibilizando-se com as referências que o jovem professor fazia aos alunos e ao ensino. Por sua vez, Sebastião da Gama tanta admiração teve pelo seu professor orientador que, um dia, quis oferecer-lhe o manuscrito do diário; contudo, Joana Luísa da Gama, a mulher do poeta, opôs-se a essa intenção, tendo-se disponibilizado para fazer uma cópia manuscrita do diário para, essa sim, ser oferecida a Virgílio Couto. A disposição foi cumprida e o diário original ficou na posse do seu autor.
Apesar de não ser nítida uma intenção de que este registo visasse a publicação, certo é que o escrito com o testemunho e a reflexão de Sebastião da Gama era um documento humano demasiado importante para ficar esquecido. Percepção desse interesse tiveram-na Joana Luísa e vários amigos, entre os quais Hernâni Cidade (que fora professor de Sebastião da Gama) e, assim, em 1958, o Diário era publicado na casa editorial Ática. Foi a segunda obra póstuma publicada, tendo tido, até hoje, catorze edições, a última das quais, datada de 2011 (Editorial Presença), com a versão integral da obra e anotada.
Nestes 70 anos sobre a escrita original (ou 60 sobre a publicação), o Diário teve apenas uma tradução: para italiano, de uma parte significativa de excertos, devida a Maria Antonietta Rossi (2010). Na introdução a essa edição, refere Rossi que Sebastião da Gama se preocupava com um conceito em particular: “ensinar com amor e afecto”. Essas duas linhas orientadoras são visíveis logo no primeiro texto do diário acima transcritas - as aulas devem ser um espaço de alegria e de sinceridade; ensinar deve ser um tempo de convívio e de acompanhamento da vida; o respeito pelo outro é uma aprendizagem para a felicidade. Ensinamentos cheios de actualidade, acreditamos!

(Texto publicado no Jornal de Azeitão, em Janeiro de 2019)

sábado, 11 de janeiro de 2014

No dia em que o "Diário" de Sebastião da Gama faz 65 anos...


O dia de hoje é um bom pretexto para a leitura da página que, há 65 anos, Sebastião da Gama escreveu, num gesto inaugural do seu Diário. Estava-se em 11 de Janeiro de 1949. A obra, que só foi publicada em 1958, constitui um dos mais interessantes documentos testemunhais sobre a prática pedagógica. É um modelo, é uma obra de arte. Que a leitura do registo do primeiro dia seja o ponto de partida para a entrada na obra!


Janeiro, 11
Para começar, falou connosco durante uma hora o Senhor Dr. Virgílio Couto[1]. De acordo com o que disse, vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente. E dentro dessa convivência, como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando. Depois, esta nota importantíssima: lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes; deixá-los ser: «porque até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé».
Houve nesta conversa uma palavra para guardar tanto como as outras, mais que todas as outras: «O que eu quero principalmente é que vivam felizes».

[1] Virgílio Couto (1901-1972). Professor metodólogo, responsável pelo acompanhamento do estágio de Português de Sebastião da Gama na Escola Veiga Beirão. Nesta altura, era também subdirector da escola (cf. Diário do Governo, de 3 de Novembro de 1948). Foi autor de numerosas publicações de carácter didáctico, desgnadamente: Leituras (1948), Olhai que ledos vão...: a história de Portugal contada na prosa e nos versos dos escritores portugueses (1958) e Mar alto (1961). Alguns dos seus títulos foram adoptados como manuais escolares.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Para a agenda: Sebastião da Gama - um "diário" com 65 anos (e uma conferência a propósito)



O Diário, de Sebastião da Gama, completa amanhã, 11 de Janeiro, 65 anos, isto é, passa esse aniversário sobre o primeiro registo diarístico da obra - em 11 de Janeiro de 1949.
"Para a agenda" deve ficar uma leitura desta obra ou, pelo menos, de um excerto, que pode ser logo o do primeiro dia...
Para assinalar a data, no Museu Sebastião da Gama, em Azeitão, vai haver palestra levada a cabo por Manuela Cerejeira, estudiosa da obra de Sebastião da Gama desde há anos. É pelas 15h00. Aceite o convite.

sábado, 2 de novembro de 2013

Máximas em mínimas - Katherine Mansfield


Partilho algumas máximas, depois de ler o Diário, de Katherine Mansfield, em tradução de Fernanda de Castro (Col. “Contemporâneos”. Porto: Livraria Tavares Martins, 1944).

Criação – “Serei eu capaz de exprimir algum dia o meu amor pelo trabalho, o meu desejo de perfeição, a minha ânsia de um labor mais consciencioso? Serei eu capaz de dizer esta paixão que sinto – esta paixão que substitui a religião, porque é a minha religião… que substitui a companhia dos outros, porque sou eu que crio os meus companheiros… que substitui a vida, porque é a própria vida? Sinto-me às vezes tentada a joelhar diante do meu trabalho, a adorá-lo, a prostrar-me, a ficar um tempo infinito em êxtase ante a ideia da criação. (31 de Maio de 1919)”
Diário – “Tenho de pôr o meu diário em andamento e depois tenho de conservá-lo em dia. Mas serei eu capaz de ser honesta? Se mentir, esse diário não servirá para nada. (Fevereiro.1921)”
Honestidade – “A honestidade (porque será?) é a única coisa que me parece mais preciosa do que a vida, do que o amor e do que a morte. Só ela permanece. Acreditem-me! Feitas as contas, a verdade é a única coisa que merece ser possuída… A verdade é mais comovente, mais alegre e mais ardente do que o próprio amor… Tudo acaba por nos abandonar mas ela não pode trair-nos. (Setembro de 1919)”
Mal – “Quando um mal está diagnosticado, qualquer demora que atrase o esforço para curá-lo causa um enfraquecimento fatal. (…) Quando se é negligente, as más ervas pululam. (18 de Outubro de 1920)”
Mar – “O mar, aqui, é mar verdadeiro. Encapela-se, levanta-se e torna a cair com um barulho estrondoso, seguido de um longo rolar macio; por vezes, dir-se-ia que tenta escalar o céu e vêem-se os barcos empoleirados nas nuvens como querubins voadores. (22 de Maio de 1918, em Looe, Cournouailles)”
Morte – “Como seria intolerável morrer deixando apenas fragmentos, esboços, nada de verdadeiramente acabado! (19 de Fevereiro de 1918)”
Partir – “Cada vez que abandonamos um sítio qualquer deixamos atrás de nós qualquer coisa de precioso que não deveríamos matar mas que morre. (9 de Fevereiro de 1922)” (Katherine Mansfield. Diário. Col. “Contemporâneos”. Porto: Livraria Tavares Martins, 1944, pg. 256)
Representar – “Todos nós começamos por representar um papel e, quanto mais perto estamos do que desejaríamos ser, mais perfeito é o nosso disfarce. Por fim chega o momento em que já não representamos; este momento pode mesmo colher-nos de surpresa. Então, contemplamos, talvez com espanto, a nossa bela plumagem, que já não é de empréstimo. Os dois aspectos confundiram-se: o primitivo e este; representar, agora, é agir. (24 de Novembro de 1921)”
Ser – “Para fazermos seja o que for, para sermos seja o que for, precisamos de ser inteiros, de fortificar a nossa fé. Um ser desunido não pode fazer nada de jeito. (1 de Fevereiro de 1922)”
Sofrimento – “Não há limites para o sofrimento humano. Quando se pensa ‘Agora toquei o fundo do abismo, agora não posso descer mais fundo…’ – eis que descemos mais, ainda mais e assim até ao infinito. (…) O sofrimento não tem limites, é a própria eternidade. (…) O sofrimento pode ser vencido. (…) Temos de nos submeter. De não resistir. De o acolher. De nos deixarmos submergir. De o aceitar plenamente. De fazer da dor uma parte da vida. Tudo o que na existência verdadeiramente aceitamos sofre uma transformação. Assim, o sofrimento deve transformar-se em amor. (14 de Dezembro de 1920)”

sábado, 26 de novembro de 2011

Miguel Real e o "Diário" de Sebastião da Gama

Uma leitura pessoal do Diário de Sebastião da Gama é aquilo que Miguel Real nos propõe aqui, um texto a não perder, pela actualidade, pela frontalidade e pela experiência. Constituiu a comunicação de Miguel Real no encontro "A educação a partir do Diário de Sebastião da Gama", realizado na Biblioteca Municipal de Palmela, em 28 de Outubro, iniciativa integrada na recepção à comunidade educativa, promovida pela Câmara Municipal de Palmela.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Luísa Borges, leitora do Diário de Sebastião da Gama

Num mail hoje recebido, a Luísa Borges, professora e autora de literatura juvenil, deu-me conta da sua leitura do Diário de Sebastião da Gama a partir da edição que preparei e coordenei para abrir a colecção das "Obras Completas" de Sebastião da Gama, em vias de publicação pela Editorial Presença. Partilho um excerto dessa mensagem.

«Estou a gostar muito da nova edição do Diário. Era justamente a edição que faltava. Para já a capa é soberba e amiga do ambiente. A introdução é excelente. Contém imensa informação relevante sobre a época, o autor e a sua vida e círculo de amigos mais próximos. E depois creio que coloca, finalmente, o autor no lugar que merece, não só em termos de literatura, como, o que é fundamental nos tempos de desnorte educativo que correm, no lugar ímpar que deveria ter há muito, no que à reflexão sobre pedagogia da literatura portuguesa respeita. As notas são fundamentais e tornam o livro e a informação acessível e extremamente válida para todos os que o lerem, quer sejam eruditos, quer sejam professores ou alunos. O facto de incluir, finalmente, os textos dos alunos, sem cortes nem censuras confere ao Diário uma frescura renovada. Porque não teriam sido incluídos nas outras edições? Opção editorial relacionada com os custos? Forma de proteger a identidade dos alunos? E isso não poderia ter sido feito recorrendo a siglas, como é de uso em estudos de carácter psicológico? O que interessa é que o Diário aparece agora em toda a sua autenticidade e infinitamente melhor e, eu diria até, comovente, na sua teia de afectividades. Veja-se não só a relação emocional entre o professor e os alunos mas também a relação entre Sebastião da Gama e o seu orientador. Muito mais autêntica do que qualquer coaching, agora tão na berra na mais recente pedagogia norte-americana.
Em vez de andarmos todos tão ocupados com grelhas, taxas, nomenclaturas, avaliações e estatísticas, era o tempo e a hora de lançarmos uma discussão séria sobre pedagogia e formação de professores. Essa reflexão, se algum dia for feita, terá de passar obrigatoriamente por este livro. Mas para isso seria necessário que a educação em Portugal voltasse a ter um rosto e uma voz humanas ou que ambos fossem devolvidos ou tomados - de assalto - pelos seus protagonistas: os professores e os alunos. A opção de publicar os textos dos alunos do poeta devolve a voz a todos os protagonistas do acto educativo. Esse "pequeno passo", aparentemente tão simples, torna esta edição verdadeiramente "revolucionária" e única. Por que obscura razão destratamos tanto os nossos educadores? Que raio andamos a ensinar nas didácticas? Quais são as nossas referências? quando temos aqui, tão à mão, os modelos que devíamos ler, ensinar, seguir... e... seguramente, amar.»

quarta-feira, 30 de março de 2011

Apresentação do "Diário" de Sebastião da Gama


A apresentação pública da nova edição do Diário, de Sebastião da Gama, ocorreu no sábado, 26 de Março, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal. Se quiser ver registos desses momentos, venha por aqui.