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quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Imagens do ser professor (a propósito do Dia Mundial do Professor)



Em 1886, Edmundo de Amicis (1846-1908) publicava a narrativa Coração, diário de um jovem estudante, que, num determinado dia, relatava a visita da criança e do seu pai a Crosetti, velho professor de 84 anos. Este encontro advinha do facto de o educador ter sido condecorado pelos seus 60 anos de ensino e da forma viva como o progenitor do jovem, seu ex-aluno, ficara marcado pelas lições recebidas, tal como, durante a viagem foi testemunhando: “Foi o primeiro homem que me estimou e ajudou, depois do meu pai. Nunca esqueci alguns dos conselhos que me deu, nem de certas descomposturas que me faziam voltar para casa com um nó na garganta. Todos os dias chegava à aula com a mesma disposição, sempre muito consciencioso, cheio de boa vontade e atento, como se começasse a ensinar pela primeira vez.”

A recordação de Bottini pode parecer apenas sentimental, mas ganha todo o sentido se pensarmos com Christopher Damien Auretta: “O que é que está em jogo na Escola? Tudo: os destinos dos jovens e o destino da comunidade humana.” (Autobiografia de uma sala de aula, Colibri, 2020). E lembremos Frank McCourt (1930-2009), que, na sua obra autobiográfica O professor (Presença, 2009), relata que chegou a ter de pensar com os alunos o que era o acto de ensinar e o que era a escola: “Descobri uma equação. Vou escrever do lado esquerdo do quadro um M maiúsculo e do lado direito do quadro um L maiúsculo e depois faço uma seta da esquerda para a direita, de MEDO para LIBERDADE. Acho que nunca ninguém é completamente livre, mas o que estou a tentar fazer com vocês é empurrar o medo para um canto.”

Estratégias úteis para a vida, na sua pluralidade de sentidos, era também aquilo que o professor do romance As sombras de uma azinheira, de Álvaro Laborinho Lúcio (Quetzal, 2022), pensava conseguir junto dos seus alunos, pois, “para ele, ser professor não era muito diferente de ser médico. A ambos se exigia estudo e dedicação para compreenderem, para conhecerem bem aqueles com quem lidavam, perceberem as suas origens, comprometerem-se na construção dos seus destinos.”

O objectivo supremo da escola e do ser professor, como pensou Manuel Nunes em A Professora, os Porcos e os Cisnes (Gradiva, 2012), é claro: “A escola existe para educar para o sublime. A sua missão consiste em conduzir para o mais alto do mais alto. Ela tem a obrigação moral de ter como meta e como horizonte a perfeição.” Este é o desafio de sempre para o professor, personagem que, no romance Não matarás, de Teresa Martins Marques (Gradiva, 2022), é assim apresentada: “sorriso e cordialidade, conhecimento seguro das matérias, autoridade sem autoritarismo, fazem o bom professor.”

Para seguir este caminho, Sebastião da Gama (1924-1952), em 1949, anotava no seu Diário (Presença, 2011): “- Tens muito que fazer? - Não. Tenho muito que amar. (Não entendo ser professor de outra maneira.)” E estes princípios não se delapidam no tempo - em 2007, Daniel Pennac manifestava, em Mágoas da escola (Porto Editora, 2009), um sentimento semelhante: “Os professores passam o tempo a refugiar-se nos métodos, quando, no fundo, sabem perfeitamente que o método não basta. Falta-lhe qualquer coisa. (...) Amor!”

Misturam-se, ao longo destes retratos, muitas coisas, mas a essencial permanece - a imagem e o papel do professor. E que bom seria se pudéssemos subscrever aquilo que Albert Camus (1913-1960) disse sobre o professor no seu romance A peste (1947): “Não se felicita um professor por ensinar que dois e dois são quatro. Felicitar-se-á talvez por ter escolhido essa bela profissão.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 937, 2022-10-12, p. 4.


quarta-feira, 13 de maio de 2020

A sala de aula: Entre os apeadeiros e a gare central



Uma centena de páginas para vinte cartas entre dois correspondentes, produzidas entre Outubro de um ano e Dezembro do ano seguinte, constroem Autobiografia de uma sala de aula, assinada por Christopher Damien Auretta e João Rodrigo Simões (Lisboa: Edições Colibri, 2020), ambos professores, um no ensino superior, outro no ensino secundário, ambos a trabalhar a sul do Tejo. Como subtítulo, uma indicação compromissiva remete para referências na área da educação e para certa forma de sentir o mundo, vivido entre a totalidade e os diferentes caminhos que nela se percorrem - “Entre Ítaca e Babel com Paulo Freire”.
Começa a primeira carta, subscrita por João: “A manhã, o despertar, o ruído, o autocarro, o metro, o autocarro e o ruído e a rotina e o ruído e o autocarro e o metro e o autocarro e o ruído e a metrópole e o ruído e as Pessoas e os sítios e o ruído e a noite... E Nós? E Eu?” Esta sucessão, cheia de repetições, sintetizando um dia de massificação, só podia terminar por perguntas curtas que vão ao essencial: o lugar do humano para ser, mote para a reflexão sobre a escola no seu quotidiano, na sua dimensão humana entre cidadãos, sujeitos, pessoas.
Estas cartas não são um manifesto, muito embora a palavra por lá passe e o pudessem ser. São a pausa para a revisão e para as consequências desse olhar, necessárias para que o professor se repense e encontre um fio de humanidade no que faz. No limite, seria a reflexão que cada professor deveria fazer, se tivesse (ou quisesse ter) tempo para tal, sem peias, ainda que podendo chegar a diversas conclusões.
Pelas mensagens vai passando o que deveria ser a escola: “motor de curiosidade”, criadora de “laços de solidariedade entre os seres”, tempo para criação nos jovens de uma “relação passional com o conhecimento” e para promover a reflexão e o espírito crítico. Também circulam linhas do que não deve ser a escola: o espaço do “auto-elogio do poder instituído”, o campo de “culpabilização dos alunos”, o território dos “testes contínuos” e da memorização oportunista, o local de “escravização de alunos e docentes”. Para tudo isto, há um argumento de peso, que toca a todos, como refere Christopher, ao concluir uma das missivas: “O que é que está em jogo na Escola? Tudo: os destinos dos jovens e o destino da comunidade humana.”
Saltam para a conversa questões como a pertinência e actualidade dos programas, a ausência de tempos em que “os alunos se deparem com o não-ter-nada-para-fazer”, a “saudável utilização da tecnologia”, o sistema de avaliação (que muitas vezes compromete o futuro e as profissões sonhadas), a relação entre as escolas secundárias e as universidades... numa escola tantas vezes distante da educação “com afectividade e com alegria”.
Defendem os dois autores uma reinvenção da escola, que é “ora um dos apeadeiros na vida dos alunos, ora a gare central na vida dos docentes”. No centro desta visão está a necessidade de se criar e humanizar a sala de aula, porque ela “é também isto: a arte da escuta, a partitura dos afectos, a autobiografia íntima da espécie.” Um livro a ser assumido para que a sala de aula aconteça!
* "500 Palavras". O Setubalense: nº 393, 2020-05-13, pg. 10