segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Minudências (21)

O espectáculo
O ano a acabar e a polémica em torno da futura presidência de um banco a atingir as raias do insustentável! Tudo o que se tem passado à volta da “crise” BCP parece ter marcas de telenovela associadas. Agora, foram os partidos e o curioso é que tanto o PS como o PSD, que dizem que o outro está a querer ocupar politicamente o banco, não conseguem conter-se num olhar guloso para esta intriga (oiçam-se as declarações de parte a parte e veja-se o artifício de argumentos e o esforçado “politicamente correcto” para uma boa imagem própria…). E, depois, Berardo, que não teve pejo em atirar o rótulo de “reformados” para cima de uns candidatos ao lugar, como se ser “reformado” fosse ser “inválido” ou fosse castigo ou fosse crime (tanto mais grave quanto o Comendador tem a mesma idade da figura que ele quis como alvo, Miguel Cadilhe)! De facto, ou a imprensa dá importância demasiada a isto (e não quero culpá-la) ou tudo isto é argumento telenoveleiro do pior, pondo um país no nível do caricato. A acabar, em caricatura, um ano que também proporcionou essa arte! O espectáculo tem que continuar, pois.

Bom ano!

Votos de boas entradas em 2008 e de bom ano!

[desenho de Sandrina Espiridião]

A impunidade dos ilícitos na escola

O Correio da Manhã publicou ontem entrevista com o Procurador-Geral da República, Pinto Monteiro. À liça, numa conversa de retrospectiva e de previsão, veio a questão dos pequenos ilícitos nas escolas, tendo o entrevistado referido, por várias vezes, a questão: a primeira, ao efectuar um balanço de 2007, quando inseriu entre as bolsas de impunidade em Portugal os “ilícitos nas escolas”; a segunda, ao referir, a propósito das prioridades para a justiça, que nunca vira “ligar muito ou nada ao pequeno ilícito”, apontando como um dos exemplos a “violência nas escolas”; a terceira, para referir a necessidade da “tolerância zero” nas práticas de alguns jovens nas escolas (insultos a professores, danos nos carros) que os estimulam “a partir para coisas mais graves”. O Procurador-Geral da República vem pôr o dedo em coisas que todos sabem, mas que têm passado como se pouco ou nada acontecesse…

domingo, 30 de dezembro de 2007

J. J. Sobral nos caminhos da sexualidade

O que têm em comum nomes como Bocage, António Maria Eusébio (o poeta “Calafate”, de Setúbal), António Aleixo, Natália Correia e Luiz Pacheco? O que pode unir os nomes cujos atributos são, respectivamente, “especialista do tema erótico, pornográfico”, “poeta pobre, analfabeto e cantador de improviso”, autor que “com a quadra popular supera muito erudito”, “mulher ousada e adulta” e “mestre da libertinagem do jocoso e do grotesco da vida de vadiagem”? Aos cinco é dedicado o livro Erótica Pornográfica, de J. J. Sobral (pseudónimo), saído em Setúbal por finais de Novembro.
O livro divide-se em seis partes, construídas sobre quadras, trazendo para os textos os temas habitualmente tratados nos designados livros sobre a vida sexual (o corpo, as práticas, as técnicas, os sentidos, o desejo).
O título do livro assentou nos dois qualificativos, deixando ao leitor a hipótese de escolha para classificar a temática que por ele perpassa. No entanto, ao longo das perto de mil estrofes, a tendência é para o segundo adjectivo, num esforço de uma acentuada descrição dos prazeres, fortemente marcada pela visão a partir do género masculino, com escassa margem para o que poderia ser uma metáfora da sexualidade.
O primeiro conjunto de quadras, em jeito de prefácio, intitulado “Advertência”, não deixa dúvidas quanto à linguagem usada e aos assuntos tratados, lembrando ao leitor ser este um livro que não vai atrás das experiências ou das efusões líricas, porque “é de sexo que se fala” e porque “nele não são encontradas / imagens, ilustrações / mas apenas as palavras / que fazem as descrições”.
A capa anterior usa o círculo vermelho no canto superior direito, em forma de aviso ou de sátira; a capa posterior reproduz uma quadra da “Advertência” inicial para os leitores menos avisados: “A quem for mais vulnerável / Pode o livro causar danos / Sendo desaconselhável / Antes dos dezoito anos.”

sábado, 29 de dezembro de 2007

Rostos (18)

Estátua de Viana, Viana do Castelo

A escola não está de férias (3)

Em nome da economia, da competitividade e da globalização...
(a ordem é indiferente)
No início de Setembro, num encontro da Université d’Été “Sauver les Lettres”, em Paris, o sociólogo Christian Laval reflectiu sobre “Política europeia e problemática das competências” (texto que só agora li), traçando a história das preocupações (?) da União Europeia com a educação.
A primeira pista: a política de educação é hoje influenciada pelos grandes organismos financeiros. A segunda pista: a Europa tem uma política de educação integrada numa lógica económica. A terceira pista: a educação não constou no Tratado de Roma senão sob a designação de “formação profissional” e só nos anos 90 entraria para os textos de referência europeus. A quarta pista: a Europa estabeleceu como objectivo edificar uma economia assente nas competências dos seus trabalhadores, tendo como vectores fortes o conhecimento e a comunicação, que conduzirão para o crescimento e o emprego.
A conclusão: “la politique d’éducation ne trouve plus ses fondements et ses justifications dans la morale, la politique, la culture, l’histoire, c’est-à-dire dans l’univers des valeurs, mais dans le seul horizon qui importe désormais dans les rouages de l’Union, celle de la " valeur économique ", de l’efficacité, de la compétitivité. C’est en réalité toute une conception de l’homme qui est ici en question. Avec l’idée que l’humain est d’abord un capital, une ressource productive, une main d’œuvre, c’est la question du destin de l’humanisme européen qui est évidemment posée. Le risque est grand d’une crise majeure de la tradition démocratique pour laquelle la formation de l’homme est la condition de la souveraineté des citoyens. D’une crise de la culture européenne aussi, qui a justement forgé cet idéal de souveraineté du citoyen sur le socle de la dignité de l’homme.
Não se fique admirado, pois, do que vai acontecendo no sector da educação. Tornou-se fortemente politizado e com uma política abençoada pela globalização, pela economia e pela competitividade, afinal umas e outras tão queridas do discurso político que assim pinta o universo.

Hoje, deveria ter saído no "Correio de Setúbal"

DIÁRIO DA AUTO-ESTIMA – 73
29 de Dezembro de 1915 – “O acaso fez-me descobrir hoje um livro escolar onde encontrei enfim aquelas regras de redacção, de criação e de elocução que há tanto tempo buscava e que são o segredo da escrita e da dicção tão precisas e tão claras dos franceses. Os portugueses escrevem pouco e com dificuldade. Não respondem, ou só tardiamente respondem a cartas, o que eles explicam pela preguiça. Nesse livro encontro esta frase: ‘On est toujours paresseux pour une chose qu’on fait mal’. Talvez me dedique a fazer um livro como esse, destinado às nossas escolas, e talvez seja esse o último serviço que preste ao meu país.” (João Chagas, Diário II).
29 de Dezembro de 1942 (Coimbra) – “Uma grande discussão sobre liberdade e justiça com um amigo magistrado, que há dois ou três anos vestiu a toga cheio de inquietações e que me apareceu agora relativamente sereno na sua função de julgar. (…) Dantes, quer ele a aceitar teoricamente um pragmatismo judicativo, quer eu a negá-lo, púnhamos ambos sobre a mesa dois corações igualmente ciosos da intangibilidade humana, só abertos à transcendência de cada destino, fossem quais fossem as razões da cabeça. Mas os anos passaram, a função fez o órgão, e hoje encontrei-me diante dum funcionário calmo e objectivo, apenas interessado em desempenhar proficientemente o seu papel de parafuso sem fim na complicada engrenagem social. E muito embora seguro da honradez profissional do meu interlocutor de agora, passei o tempo a ter saudades do outro, que ficava branco só de pensar que alguém pudesse erigir-se em juiz absoluto e condenar um semelhante à morte viva de trinta anos de cadeia.” (Miguel Torga, Diário – II).
29 de Dezembro de 1943 – “Ontem à noite estive muito triste. Tive a visão da avozinha e da Lies! Avozinha, querida avozinha! Não compreendemos bem quanto ela sofria. Só pensava em nós, mostrando-se sempre muito compreensiva em face dos nossos problemas. Sofria de uma grave doença. (…) Sou egoísta e cobarde! Não sei porque é que os meus sonhos e pensamentos só giram à volta das coisas tristes, até quase me apetecer gritar. Decerto não tenho bastante confiança em Deus! Afinal Ele deu-me tanta coisa que não mereço e só faço asneiras. Quando pensamos no próximo, devíamos chorar. A dizer a verdade, não devíamos fazer mais nada do que chorar. Resta-nos pedir a Deus que faça um milagre e que salve aquela pobre gente! E eu rezo do fundo do meu coração.” (Anne Frank, Diário).
1987, Ainda Dezembro, Matosinhos – “O tempo arrefece. Mas há sol e na linha do horizonte uns flocos de nuvens levemente rosadas como borlas de pó-de-arroz, 1920. Sobre as águas um jogo de velas. Os brancos fendidos oscilam, bailam sobre o azul – rodinha de borboletas, entre o leque aberto da rama dos pinheiros. De manhã, dava logo de rosto com o mar, porquê então aquela melancolia? Olhava aquela beleza balética, oscilante, grácil, como se olhasse um campo lavrado de lágrimas. Era dela, dentro dela, que a melancolia morava.” (Luísa Dacosta, Na água do tempo).
Com Dezembro quase no fim – Ano a caminho do termo. Mais um cabo de tormentas prestes a ser passado. E também a sensação de que as desigualdades se têm acentuado. E ainda: a dureza do quotidiano está muito longe da festa europeia com que Portugal pretendeu fazer História.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Minudências (20)

Os "habitués"
A crónica de opinião de Vasco Pulido Valente que saiu no Público de hoje é um bom, caricato e sintético retrato dos (gastos) políticos que nos representam, logo a começar pelo título – “Homens do ano e de anteontem”. A gente lê e não pode deixar de concordar com os flashes, ainda que lamentando que a situação seja esta:
José Sócrates – “Nunca ninguém como ele acumulou, em democracia, tanto poder: no partido, no Estado, no país”;
Marques Mendes – “Perdeu o partido, por causa de uma intriga menor”;
Filipe Menezes – “Desorientado, aflito, extravagante, avança, recua, guina para a esquerda ou para a direita, ou simplesmente para uma ideia de momento, absurda e supérflua”;
Santana Lopes – “mete medo ao português mais morno”;
Paulo Portas – “juntou nele toda a perversidade indígena”;
Francisco Louçã – “Sem ideologia, sem doutrina, sem causas”;
Jerónimo de Sousa – “O PC continua, como sempre, a ser o PC. Jerónimo também”;
António Costa – “saiu limpamente da alçada de Sócrates. A Câmara de Lisboa é um bom lugar para um exílio provisório”.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Sobre o meio rural

Desde o dia 24 que o Público tem vindo a editar um trabalho de reportagem sobre o meio rural português, com fotos de Nelson Garrido e texto de Alexandra Lucas Coelho. Trás-os-Montes (Terras de Barroso), Douro (próximo de Carrazeda de Ansiães) e Minho (nos arredores de Fafe) foram sítios já visitados. Personagens são muitas, entre homens, mulheres e crianças. A vida é só uma: de trabalho, duro, frio, desgastante, longe. E com muita solidariedade vicinal.
Estas reportagens, com uma escrita bem urdida, gizadas com as palavras das pessoas visitadas, são belas de ler. Falam-nos de um mundo que não tem nada a ver com a vida urbana (reveladores são pormenores de forma de viver, de medidas, de vocabulário, de produtos agrícolas, que a jornalista não esconde só passar a conhecer depois deste contacto), de um mundo onde a desconfiança perante o estranho existe (ainda que depois se apazigúe), de um mundo em que as tonalidades não são suaves como a política quer fazer crer (a título de exemplo, registo a frase do podador José, algures entre Carrazeda e Foz Tua: “Se os que lá estão ganhassem tanto como nós não cantavam tanto o fado.”).
São retratos fortes, de um Portugal que, normalmente, não vem nos jornais, de uma Europa outra que não viaja (a não ser por trabalho duro). São também a possibilidade do reencontro com as raízes de muitos dos que, hoje, vivem na cidade (como, aliás, se percebe pela conversa em torno da matança do porco presenciada em Trás-os-Montes).
A ler e a seguir: publicados estão três trabalhos; faltam mais três.
[Foto: de Nelson Garrido, no Público de hoje, a propósito da reportagem sobre o Minho]

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Minudências (19)

Natal em rosa
Não ouvi a mensagem de Natal do Primeiro-Ministro pela televisão; limitei-me a lê-la na versão disponível no Portal do Governo. O discurso começou com um apelo ao sentimento familiar. É óbvio que o que jogou foi a colagem à quadra para associar a ideia vertiginosamente rápida que logo se grudou à da família: todos conseguiram fazer “do ano de 2007 um ano de recuperação e um ano de resultados positivos para o País”. E, assim, estava escancarada a porta para o trabalho que a governação levou a cabo: contas públicas “finalmente controladas”, economia “consistente” e “bem preparada” para o global, fim do “alto risco na segurança social”, ultrapassagem do problema do “défice das qualificações”, reforçado prestígio internacional (para que foram gastos dois parágrafos de loas à presidência europeia de Portugal, equivalendo a quase 20% do texto da mensagem), a “nova geração de políticas sociais” (apoio aos idosos, aos jovens casais, à natalidade). Para o futuro ficou anunciada a competitividade e uma dose de solidariedade, assim como ficou em aberto o problema do desemprego, “problema social que mais preocupa” o Primeiro-Ministro, cuja taxa não se reduziu mas que se conteve.
O Primeiro-Ministro já fez discursos de campanha melhores. Este foi pobre, talhado para cumprir o hábito, com as ideias que foram repetidas ao longo do ano, um ano que foi difícil para todos, ao mesmo tempo que a festa europeia brilhava. E, sobretudo, pintou o País e a vida dos portugueses com os tons róseos da maioria que governa, um pouco em jeito de quem quer ver no espelho a imagem que quer talhar. No entanto, a vida não foi assim tão cor-de-rosa ao longo deste ano, como se sabe! É que vemos, ouvimos e lemos… conhecemos e sentimos!

Uma boa história...

Rui Tinoco conta hoje, em O Primeiro de Janeiro, uma boa história que bem poderia ser... "de proveito e exemplo". O protagonista é um amigo bretão, aprendiz de pintura no ateliê do pai. As duas criaturas acabam por dar o título à crónica: "O mestre e o aprendiz".
Em tempos em que toda a gente discute o que se aprende e sobre quem ensina, valerá a pena um debruçar-se sobre quem e como se aprende. E há frases que nos são apresentadas como se máximas (necessárias) fossem, como esta: "Interpretamos o acto de aprender no seu sentido mais profundo: a inscrição de um conhecimento na alma". E, depois, temos ainda outras, elementos de um mesmo pensar, de uma forma humanista de encarar o aprender, de uma relação pedagógica: "A primeira lição não se ensina: a primeira lição tem que ver, precisamente, com a motivação", "Só a vontade do aprendiz pode potenciar o acto de ensinar" e "O ensino só tem sentido se houver vontade de aprender. Se o aluno quiser ser aprendiz."
Custará muito perceber-se que todos passámos por isto e que é isto que se deve manter?

Rostos (17)

Em Coimbra, no "Portugal dos Pequenitos"

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Natal por outros (7)

Com votos de Boas Festas...

Natal

Ó Menino Jesus,
vem para nosso colo
a ser a nossa luz
e o nosso consolo.

Mesmo com o mundo agreste
que nos ronda, feroz,
não faltaste – vieste
com teu sorriso a nós.

E aqui, como em criança,
– quantos anos lá vão! –
fica-nos a esperança
em nosso coração.
Alberto de Serpa, in Fonte (1943), com fotografia do presépio feito pela Diana R.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Natal por outros (6)

Natal

Menino dormindo…
Silêncio profundo.
Bem-vindo, bem-vindo,
Salvador do Mundo!

Noite. Noite fria.
Mas que linda que é!
De um lado Maria.
Do outro José.

Um anjo descerra
A ponta do véu…
E cai sobre a Terra
A imagem do Céu!
Pedro Homem de Mello (1904-1984) [foto a partir de www.capuchinhos.org]

Natal por outros (5)

Dezembro

Está fosca,
como uma lente embaciada,
a rua roída de frio.
Passe quem passe,
tem sempre a melancolia tosca
e enrodilhada
dum balão vazio.
Nos postais: ‘Merry Christmas’,
com neve a fugir pelos telhados…
Os meninos
desenham bonecos
com seus dedos finos
nos vidros molhados.
Há consoadas, brinquedos…
Ao serão,
joga-se o pinhão
com os parentes,
com os amigos.
E todos estão contentes
na amizade que os iguala.

(Os cinco graus negativos
ardem no fogo da sala…)

Fernanda Botelho (1926-2007), com desenho de Miguel Ângelo

Natal por outros (4)

Aludindo à profecia de Isaías

Queimando o véu dos séculos futuros
O vate, aceso em divinais luzeiros,
Assim cantou (e aos ecos pregoeiros
Exultaram, Sião, teus sacros muros):

"O Justo descerá dos astros puros
Em deleitosos, cândidos chuveiros;
As feras dormirão com os cordeiros,
Suarão doce mel carvalhos duros;

A Virgem será mãe; vós dareis flores,
Brenhas intonsas, em remotos dias;
Porás fim, torva guerra, a teus horrores..."

Não, não sonho o altíssimo Isaías;
Ó reis, ajoelhai, correi, pastores!
Eis a prole do Eterno, eis o Messias!

Bocage (séc. XVIII), com foto do presépio da Igreja do Monte da Virgem (Gaia), em 2006

Natal por outros (3)

Ao Menino-Deus nascido

Não choreis, belo Menino,
Se de amante vos prezais,
Porque amor que chora mais
É sempre amor menos fino:
Limpai o rosto divino,
A quem a minha alma adora,
Que se vossa Mãe vos chora,
Meu Deus, com tantos rigores,
É porque ao nascer das flores,
Costuma chegar a Aurora.


Jerónimo Baía (séc. XVII) [foto a partir de www.capuchinhos.org]

Natal por outros (2)

Era noite de Inverno, longa e fria

Era noite de Inverno, longa e fria,
Cobria-se de neve o verde prado,
O rio se detinha congelado,
Mudava a folha a cor que ter soía,

Quando nas palhas de uma estrebaria,
Entre dois animais brutos lançado,
Sem ter outro lugar no povoado,
O menino Jesus pobre jazia.

-Meu filho, meu amor, porque quereis
(Dizia sua Mãe) nesta aspereza
acrescentar-me as dores que passais?

Aqui nestes meus braços estareis,
Que se vos força amor sofrer crueza,
O meu não pode agora sofrer mais.

Fr. Agostinho da Cruz (séc. XVI) [foto a partir de www.colegiogloria.com.br]

Natal por outros (1)

Natal chique

Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado...
Só esse pobre me pareceu Cristo.


Vitorino Nemésio, O pão e a culpa (1955) [foto a partir de www.plenarinho.gov.br]

Rostos (16)

Grávida, de Michel Lamoureux (2003), no Museu do Mármore (Vila Viçosa)

sábado, 22 de dezembro de 2007

Máximas em mínimas (13)

A Escola
"A escola deve ser num local agradável, apresentando, no exterior como no interior, um aspecto atraente. No interior, deve ser um edifício fechado, bem iluminado, limpo, todo ornado de pinturas, quer sejam retratos de homens ilustres, quer sejam cartas geográficas, ou recordações históricas, ou quaisquer baixos-relevos. No exterior, adjacentes à escola, deve haver, não só um pedaço de terreno destinado a passeios e a jogos, mas também um jardim aonde, em certos momentos, os alunos deverão ser conduzidos para recrearem os olhos com a vista das árvores, das flores e das plantas. Se se tiver isto em consideração na construção das escolas, é provável que as crianças vão à escola não menos gostosamente que quando vão a qualquer feira ou espectáculo, onde esperam ver e ouvir sempre qualquer coisa de novo. (...)"
Coménio, Didáctica Magna (1627-1657)

Que bandeira?

Há poucos anos, o futebol trouxe para a rua, para os carros e para as casas a bandeira portuguesa, num gesto de solidariedade com a Selecção Nacional, num gesto de afirmação de valores que a todos uniam. É claro que houve muito folclore à conta disso, mas também foi evidente que surgiu uma "redescoberta" geral da união, de uma dada forma de identidade, talvez uma afirmação de povo e de país...
Todos sabemos qual é a força que se solta da simbologia em torno da bandeira e, por isso mesmo, a Constituição da República Portuguesa a colocou como símbolo da soberania da República.
Vem isto a propósito de, ontem, ao fim da tarde, ter passado na avenida do topo do Parque Eduardo VII e, surpreendido, ter visto a pavonear-se a bandeira da União Europeia, estrelas vogando sobre fundo azul. "Ó pai, mas não era a bandeira nacional que estava ali?", perguntou-me o filho, na mira de uma explicação para a troca... Sim, com efeito, era!
Recordamos a imagem do hastear da bandeira portuguesa ao cimo do Parque Eduardo VII, ocorrida ainda não há muito, cores do país a vogarem sobre Lisboa, sobre a capital. Qual a razão para que a bandeira portuguesa cedesse lugar à da União Europeia? Ah, é claro, podemos explicar a mudança com esta fúria de "ter sido feita história" nos últimos tempos, com esta alegria de se estar a marcar a História, de se entrar para a História. É uma possibilidade de explicação, é certo! Mas não teria sido mais sensato haver outro mastro para outra bandeira e as duas coabitarem, assim respeitando a verdade da História? É por esta e por outras que, muitas vezes, se duvida do que pode ser todo este acordo entre os homens, sobretudo porque, paulatinamente, os símbolos vão dando lugar a outros símbolos... e se a bandeira da União Europeia merecia ser hasteada no topo do Parque Eduardo VII, também a bandeira portuguesa lá merece(ria) estar, sem ter que haver nenhuma a ceder a sua posição. Ironia para um futuro que não se quer real!...

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

A Escola não está de férias (2)

Do "Comunicado do Conselho de Ministros", de 20.Dezembro.2007:
"5. Decreto-Lei que aprova o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário
Este Decreto-Lei, hoje aprovado na generalidade para consultas, vem completar o quadro de mudanças introduzidas na organização e na autonomia das escolas, dando, assim, sequência às propostas apresentadas pelo Primeiro-Ministro à Assembleia da República, no passado dia onze do corrente mês.
Estabelece-se um novo regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, visando (i) reforçar a participação das famílias e comunidades na direcção estratégica dos estabelecimentos de ensino; (ii) favorecer a constituição de lideranças fortes e (iii) reforçar a autonomia das escolas.
Deste modo, procura-se promover a abertura das escolas ao exterior e a sua integração nas comunidades locais, através da instituição de um órgão de direcção estratégica em que têm representação o pessoal docente e não docente, os pais e encarregados de educação (e também os alunos, no caso dos adultos e do ensino secundário), as autarquias e a comunidade local, nomeadamente as instituições, organizações e actividades económicas, sociais, culturais e científicas.
A este órgão colegial de direcção – designado Conselho Geral – caberá a aprovação das regras fundamentais de funcionamento da escola (regulamento interno), as decisões estratégicas e de planeamento (projecto educativo, plano de actividades) e o acompanhamento e fiscalização da sua concretização (relatório anual de actividades).
Além disso, confia-se a este órgão a capacidade de eleger o director que, em consequência, lhe terá de prestar contas.
Simultaneamente, procura-se reforçar a liderança das escolas o que constitui, reconhecidamente, uma das mais necessárias medidas de reorganização do regime de administração escolar, criando-se o cargo de director, coadjuvado por um pequeno número de adjuntos, mas constituindo um órgão unipessoal e não um órgão colegial.
Ao director será confiada a gestão administrativa, financeira e pedagógica, assumindo também, para o efeito, a presidência do Conselho Pedagógico, devendo o director ser recrutado de entre docentes do ensino público ou particular e cooperativo qualificados para o exercício das funções, seja pela formação ou pela experiência na administração e gestão escolar.
No sentido de reforçar a liderança da escola e de conferir maior eficácia, mas também mais responsabilidade ao director, é-lhe atribuído o poder de designar os responsáveis pelas estruturas de coordenação e supervisão pedagógica.
No tocante ao reforço da autonomia das escolas, estabelece-se um enquadramento legal mínimo, determinando apenas a criação de algumas estruturas de coordenação de primeiro nível (departamentos curriculares) com assento no Conselho Pedagógico e de acompanhamento dos alunos (conselhos e directores de turma). No mais, é dada às escolas a faculdade de se organizarem, de criar estruturas e de as fazer representar no Conselho Pedagógico
."

Morreu Bocage

21 de Dezembro de 1805
Aos 21 de Dezembro de 1805, na casa onde vivia com sua irmã, na Travessa de André Valente, em Lisboa, faleceu Manuel Maria Barbosa du Bocage, um dos maiores poetas portugueses, que nascera em Setúbal em 15 de Setembro de 1765. Crítico mordaz, amador de boas e experimentadas coisas, apaixonado por deidades mil, teve o seu percurso ligado à boémia e à irreverência. Foi perseguido e encarcerado, teve ligações maçónicas, discutiu arte e política, deixou-se arrebatar pelo génio camoniano, foi conviva de cafés, cantou a liberdade e a vida, poetou, poetou, poetou. A memória não o esquecerá, seja pela obra, seja pelo protagonismo atrevido das anedotas que o futuro irá produzindo.

Gravura inserida na obra Poesias Selectas de Manuel Maria Barbosa du Bocage, coligidas e anotadas por J. S. da Silva Ferraz, de 1864.Nela se pode observar a imagética criada em torno de Bocage na segunda metade do século XIX, não faltando um retrato de Camões colocado numa parede dos aposentos do poeta.



Meus olhos, atentai no meu jazigo,
Que o momento da morte está chegado;
Lá soa o corvo, intérprete do fado;
Bem o entendo, bem sei, fala comigo:

Triunfa, Amor, gloria-te, inimigo;
E tu, que vês com dor meu duro estado,
Volve à terra o cadáver macerado,
O despojo mortal do triste amigo:

Na campa que o cobrir, piedoso Albano,
Ministra aos corações, que Amor flagela,
Terror, piedade, aviso, e desengano:

Abre em meu nome este epitáfio nela:
“Eu fui, ternos mortais, o terno Elmano;
Morri de ingratidões, matou-me Isbela."


21 de Dezembro de 2007
Hoje, passa o 202º aniversário da morte de Bocage. Pelas 18h00, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, vai ser apresentado publicamente o livro do "IX CONCURSO LITERÁRIO MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE", que dá capa aos trabalhos Livro das Alegrias, de Fernando Paulino, e Nas entranhas do mar, de Sara Ferreira Costa, ambos de poesia. A primeira edição deste concurso aconteceu em 1999 e a Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão (LASA), entidade promotora do certame, começou a publicar os textos vencedores a partir da quarta edição do concurso, em 2002. A entrada é livre.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Prémio Bocage - é já amanhã...

Amanhã, passa o 202º aniversário da morte de Bocage. De há uns anos a esta parte, a Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão (LASA) tem aproveitado esta data para fazer a apresentação do livro que reúne os textos premiados no Concurso Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage desse ano. A entrega do galardão aos contemplados tem ocorrido noutra data bocagiana, 15 de Setembro, Dia do Município e data em que Bocage nasceu no ano de 1765.
Amanhã, pois, pelas 18h00, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, vai ser apresentado publicamente o livro do "IX CONCURSO LITERÁRIO MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE", que dá capa aos trabalhos Livro das Alegrias, de Fernando Paulino, e Nas entranhas do mar, de Sara Ferreira Costa, ambos de poesia.
A primeira edição deste concurso aconteceu em 1999 e a LASA começou a publicar os textos vencedores a partir da quarta edição do concurso, em 2002.
A entrada é livre.

Rostos (15)

O que estuda, Cernache (Colégio Apostólico da Imaculada Conceição)

A Escola não está de férias (1)

Os alunos estão a começar as férias, ao mesmo tempo que aguardam que as avaliações sejam divulgadas, mas os olhares sobre a Escola não param. O portuense O Primeiro de Janeiro divulga dois textos de opinião sobre educação.
No primeiro, Filinto Lima, defendendo a criação da imagem do "Provedor do aluno", insiste num problema que é de todos e de todos os dias, que mexe com a organização lectiva, que tem ecos (e muitos) naquilo que se faz na escola - o plano curricular dos alunos do 3º Ciclo, sobrecarregado. E diz, a dado passo, sobre o número de disciplinas que os estudantes nesse escalão etário enfrentam: "Por exemplo, no 7º ano de escolaridade os nossos jovens têm 12 disciplinas (2 são semestrais) e 3 áreas curriculares não disciplinares (ACND), num total de 15! O número pode ascender a 16 se o encarregado de educação inscreveu o seu educando em Educação Moral e Religião Católica ou outra confissão religiosa. No 8º e 9º anos o panorama é igual. O número elevado de disciplinas, em conjunto com as áreas curriculares não disciplinares, trazem uma falsa polivalência ao aluno que só o lança na confusão. As ACND (Área de Projecto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica), criadas em 2001, não estão atingir os objectivos a que as propuseram. Não são verdadeiras disciplinas, pois não tratam de nenhuma área específica do saber, sendo até aproveitadas para a leccionação de algumas disciplinas, como por exemplo a Matemática, no âmbito do Plano de Matemática. A sua utilidade deve ser repensada e transformada num aproveitamento efectivo e útil para os nossos alunos e professores que devem ver nas políticas educativas algo perceptível e exequível. Caso este facto fosse tido em conta pelos nossos políticos, estou certo de que ajudaria a resolver dois problemas com que as escolas se debatem actualmente, o insucesso e o abandono escolares. São verdadeiros problemas que merecem ser (re)pensados para que se encontrem boas soluções. Seguramente as escolas ajudarão também a encontrá-las."
O segundo artigo, de Rui Baptista, entra por aquilo que poderia ser o papel da Escola no contributo para uma prática de cidadania: "já é tempo de interiorizar na população portuguesa que a escola deve criar e desenvolver no aluno qualidades profissionais, humanas e cívicas que o tornem útil a uma sociedade que investiu dinheiros públicos na sua formação. Ora, isto não está ao alcance de uma escola permissiva que alberga em seus muros quem não quer estudar, em permanente cumplicidade com a cabulice, a violência, a indisciplina, a simples falta de boa educação."

Minudências (19)

Endeusamento
Vimos na televisão e os jornais deram cobertura ao facto de o Primeiro-Ministro ter feito um balanço elogioso da Presidência portuguesa da União Europeia perante o Parlamento Europeu na 3ª feira. O papel desta Presidência já correu mundo e um pouco de modéstia não ficaria mal. Mas o caricato desta sessão surgiu em dois outros momentos: um, com o beneplácito social-democrata; outro, com a bênção socialista.
O primeiro deveu-se ao eurodeputado social-democrata Carlos Coelho a comentar a acção do governo português em política doméstica, sabendo-se que há um espaço próprio para isso, levando-nos a pensar que a oposição já não se consegue fazer aqui, no país, e tem que haver a ajuda da Europa. Obviamente, José Sócrates respondeu com um trunfo dos melhores, que nem seria necessário para demonstrar o excesso ou a inoportunidade, socorrendo-se de Winston Churchill: "nunca criticamos no estrangeiro o nosso Governo, guardamos para quando voltamos para casa e quando o Governo está em condições de se defender".
O segundo momento deveu-se à eurodeputada Edite Estrela, que, para ajudar na defesa do Primeiro-Ministro português, usou uma retórica entre o deslumbramento e o paradoxo: "Como foi possível alcançar os resultados que alcançou enquanto presidente do Conselho [da UE] e, simultaneamente, os resultados a nível interno? Quase parece que tem o dom da ubiquidade"...
É caso para dizer: valha-nos Deus, que, segundo os escritos, Esse tem o dom da ubiquidade e também o da imortalidade!

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Imperfeições do mundo perfeito ou... a caminho da Finlândia

As linhas do que poderá vir a ser o novo modelo de gestão nas escolas, anunciadas pelo Primeiro-Ministro no mais recente debate parlamentar em que esteve presente, são motivo de comentário de Santana Castilho no Público de hoje, que alinha a sua opinião sobre dois princípios:
a) o da sucessão de remendos, com um ambiente deprimido - " (...) O nosso sistema de ensino é um somatório sem nexo de sucessivas reformas casuísticas, desgarradas, que o tornaram uma fraude. As escolas, genericamente desconfortáveis 'por fora', frias no Inverno, quentes no Verão, degradadas, com poucos recursos, tornaram-se insustentáveis 'por dentro': professores amargurados, revoltados, com medos vários (de perderem o emprego, dos alunos, dos pais dos alunos e dos próprios colegas); alunos que não podem ser ensinados porque não querem aprender; iniciativas pedagógicas inúteis e redundantes (em vez de tornar actuantes as estruturas que não funcionam, mantêm-se as originais e sobrepõem-se-lhes outras, rotuladas com designações "modernas", que mobilizam os mesmos actores que geraram o problema a resolver). (...) "
b) o da dificuldade de participação de muitos encarregados de educação na gestão das escolas - "(...) Se a generalidade das famílias portuguesas não sabe nem pode prestar assistência aos filhos (uma forte causa do insucesso escolar), espera-se que funcione esse modelo de gestão das escolas? Se os pais não vão à escola para tratar das questões correntes da vida escolar dos filhos e reclamam que a mesma guarde as crianças 37 horas por semana (mais tempo do que os operários passam na fábrica) porque é essa a única forma de tornearem a desregulação actual dos horários de trabalho, acham que são esses pais que vão ter tempo e disponibilidade para participarem na gestão dos estabelecimentos de ensino? (...)"
Ainda no mesmo jornal, uma "Carta ao Director", escrita a partir de Trás-os-Montes, ironiza com os comentários publicados nas peças jornalísticas do passado fim-de-semana sobre a quantidade de reprovações, para zurzir nas constantes comparações com o sistema finlandês (que, supostamente, deveríamos igualar - e, haja optimismo qb, porque não ultrapassar?) e dizer que se esquece o 2º Ciclo "das turmas com 28 alunos de 10 e 11 anos, das salas inconcebíveis, do espantoso tecido curricular (...) que impinge bloco e meio de Educação Física (meio bloco quer dizer 45 minutos a esta disciplina), 225 minutos por semana a disciplinas tão redutoras como Estudo Acompanhado (90 minutos), Área de Projecto (90 minutos) e Formação Cívica (45 minutos), e não dedica um minuto a uma segunda língua estrangeira, às novas tecnologias (deixa isso para o 3.º ciclo) ou a um reforço da carga horária da língua materna."
O que nos vale é que, como é contado noutra notícia do Público, o fosso digital português é grande, mas os estudantes do Secundário salvam a situação - é que, "ao nível da penetração da Internet, é com os números dos estudantes do ensino secundário e do ensino superior que Portugal obtém melhores classificações" e "os 81 por cento de estudantes do ensino secundário que estão ligados à rede colocam Portugal muito acima dos 66 por cento da média europeia e próximo de países como a Suécia, França e Dinamarca". Mais um passito e estamos lá... na Finlândia, claro!

Hoje, no "Correio de Setúbal"

DIÁRIO DA AUTO-ESTIMA – 72
Educação – A área da educação continua na mó de cima, ora por razões políticas, ora por razões corporativas, mas dando a impressão de que muito pouco por aquilo que realmente interessa, que é: a melhoria do sistema educativo com vista à valorização do saber, do trabalho e da cidadania. O Presidente da República tem feito intervenções a propósito, num papel de tentativa de conciliação; Daniel Sampaio chamou a atenção para a necessidade de a educação ser tratada com respeito por todos os actores envolvidos; as escolas sentem alguma desmoralização com o que todos os dias é noticiado, não se perspectivando as desejadas melhorias… No domingo, o Público editou uma peça jornalística sobre as reprovações e lá vinha o dedo acusador para os professores por serem responsáveis pelos “chumbos”. A educação conheceu, ao longo do ano, discussões em torno da avaliação dos professores (cada vez mais desvalorizados profissionalmente, apesar de as aguarelas “titulares” serem justificadas com o contrário…), dos “rankings”, das avaliações dos alunos, do estatuto do aluno… e aproveitamentos para aprofundar o fosso entre os sistemas público e privado. O ano termina bem, pois, com a ideia propalada por responsáveis ministeriais de que as reprovações terão de deixar de ser aprovadas, assim se salvando a estatística. O problema do saber e das competências, esse continua.
Títulos – Livros é o que não tem faltado em Setúbal nos últimos tempos, a fazer lembrar que a cultura local está de vento em popa. Alguns títulos: Comércio, cidade e projectos de urbanismo comercial, de João Barreta; Medo de ser mais feliz ainda, de Maria Luísa de Barros; Erótica Pornográfica, de J. J. Sobral (pseudónimo). Para 21 de Dezembro, dia da morte de Bocage, está anunciado o volume que reúne as duas obras vencedoras do Prémio Literário Bocage, patrocinado pela LASA, intituladas Livro das alegrias, de Fernando Paulino, e Nas entranhas do mar, de Sara Costa, ambos de poesia.
2008 – O novo ano está à porta. E valerá a pena lembrar algumas possíveis efemérides, a celebrar pelas suas datas “redondas”: 450 anos da morte de Sá de Miranda; 400 anos do nascimento do padre António Vieira e de D. Francisco Manuel de Melo; 250 anos do nascimento do Morgado de Mateus; 150 anos do nascimento de José Leite de Vasconcelos e de Ernesto Condeixa; 100 anos do nascimento de Manoel de Oliveira, de Joaquim Paço d’Arcos, de Avelino de Jesus da Costa, de Mário Martins, de Adolfo Casais Monteiro, de António Lopes Ribeiro, de Francisco Marto e de Vieira da Silva, da morte de Trindade Coelho e sobre o regicídio na pessoa de D. Carlos; 90 anos do nascimento de Max e da morte de Amadeo de Sousa-Cardozo, da batalha de La Lys, do fim da Primeira Grande Guerra e do assassinato de Sidónio Pais; 50 anos da candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República e da morte de Afonso Duarte, de Irene Lisboa e de Vasco Santana; 40 anos do francês “Maio de 68” e da saída de Oliveira Salazar do governo; 30 anos da morte de Jorge de Sena, Vitorino Nemésio e Cabral do Nascimento; 20 anos do incêndio do Chiado; 10 anos da “Expo”, da Ponte Vasco da Gama, das mortes de Lima de Freitas e de José Cardoso Pires e da atribuição do Prémio Nobel a José Saramago. Relacionado com Setúbal, temos ainda o centenário da morte de Aníbal Álvares da Silva, autarca em Setúbal e deputado, a quem a cidade ficou a dever vários melhoramentos, e o centenário da inauguração do Casino Setubalense.
Boas Festas – Obviamente. Porque a quadra convida e porque todos precisamos que sejam com coisas boas, sobretudo com sentimentos do melhor.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

O mundo perfeito

Depois de, ontem, o Público ter feito longa peça sobre os "chumbos" e de se ter lido que o Secretário de Estado Valter Lemos disse ser "um facto real que os países que não têm repetência, ou que têm taxas baixas, apresentam também melhores resultados escolares medidos em termos de aprendizagem", quando poderia ter dito o contrário, ou seja, que "os países que apresentam melhores resultados escolares medidos em termos de aprendizagem não têm repetência ou têm-na em taxas baixas"; depois de se ter entendido que há uma corrente que pretende impedir as reprovações como forma de as estatísticas pró-sucesso serem mais benevolentes (convindo lembrar que, se os governantes quiserem, podem acabar com o insucesso escolar, bastando não permitir os "chumbos", ainda que não acabem - porque isso não podem fazer! - com o insucesso no plano dos conhecimentos); depois de se ter percebido que os professores voltam a ser responsabilizados pela grande quantidade de reprovações; depois de sabermos que o Presidente da República voltou a chamar a atenção para a necessidade de bom relacionamento entre o Ministério da Educação e quem trabalha nessa área, especialmente os professores, e também para o facto de que a Matemática (como outra qualquer disciplina, acrescento) não se aprende brincando... vale a pena ler o artigo "O mundo perfeito" que Francisco José Viegas assina no Jornal de Notícias de hoje e de onde extraio o seguinte passo:
"Os pais sabem, às vezes tardiamente, os bons professores sabem, por muitos anos de experiência, que 'facilitar as coisas' pode mostrar um mundo perfeito. Mas o mundo perfeito não existe. Eu entendo bem os pedagogos visionários e utópicos, que prevêem que com divertimento e tolerância tudo se arranja e o mundo ficará melhor. Mas não fica. Não vai ser. Pensamos que basta dar o exemplo, ler, ouvir música, usarmos computadores, sermos tolerantes - e generosos, educados, prestáveis, interessados. Com isso o mundo seria melhor. Mas não basta, infelizmente não basta. Com isso, os adolescentes das escolas seriam pessoas melhores, não usariam aquela gramática de grunhos, não faltariam às aulas, não desdenhariam dos professores que se esforçam e lhes ensinam a diferença entre o culto e o inculto, o cru e o cozido, o bem e o mal. O mundo seria perfeito. As famílias seriam honradas, pacíficas, passeariam ao domingo, fariam piqueniques, todos ajudariam a arrumar a cozinha e dormiriam a horas. Os nossos filhos leriam Dickens e Eça - ou, na pior das hipóteses, arrumariam os livros nas estantes. Interessar-se-iam por ciência e por política. Eu bem os entendo - mas não basta. É muitas vezes necessário ser cruel, usar a autoridade quando não se quer, dizer 'não'quando até poderíamos dizer 'sim', pensar no que significa, de facto, a palavra exigência. A vida não é fácil. Não nos basta sermos o que somos. É preciso pensarmos nisso - que a vida não é fácil e que aprender exige esforço. A democracia, que transformou as escolas em 'estabelecimentos de ensino', como se fossem 'lojas do cidadão', tem de resolver esse problema. Para ver se a escola volta a ser escola."

Rostos (14)

Monumento às Mães, em Lisboa (em frente da Maternidade Alfredo da Costa)

sábado, 15 de dezembro de 2007

Minudências (18)

Gerir a Escola
No Diário de Notícias de hoje, João Miranda escreve sobre a “autogestão escolar”, num arrazoado que se baseia nestas ideias:
1) “As escolas secundárias recebem dinheiro dos impostos para prestar um serviço ao público em geral.” – É a pura das verdades. Isto acontece com as escolas públicas como com milhentos outros serviços públicos, como se sabe.
2) “Um contribuinte que queira influenciar directamente uma escola, por exemplo, aquela que o seu filho frequenta, não tem meios para o fazer.” – Alguma luz parece fazer-se: a questão é “influenciar”.
3) “Em vez de serem os contribuintes a dizer como é que o serviço deve ser prestado, são os professores que através dos sindicatos conseguem influenciar as políticas do ministério e que através das eleições internas decidem quem deve mandar nas escolas.” – Uma falácia, porque os professores não conseguem influenciar (imagino que nem querem fazê-lo) as políticas do Ministério, como se sabe.
4) “Os contribuintes não estarão representados.” – De facto, os contribuintes não estão representados nas escolas.
Se o primeiro e o quarto pontos são pacíficos, já os outros o não são. Porque os cidadãos, a sociedade, os pais devem estar com a escola, ajudar a que ela seja e não a tentar influenciá-la. A escola não pode ser uma questão de poderes; tem que ser um espaço de aprendizagens, de educação, de saber, de formação, universo para que todos devemos contribuir e onde podemos estar, assim o queiramos sem ser a troco de poder.
Os contribuintes (serão os que pagam impostos?) não vão dizer a todos os outros serviços públicos o que ou como devem fazer. Provavelmente sugerem. Falar assim em nome dos contribuintes é uma forma de demagogia, porque quem trabalha nas escolas também é contribuinte e, como se sabe, não há contribuintes de primeira ou de segunda. Por outro lado, quantos pais há que não são contribuintes (pagadores de impostos) porque não têm rendimentos para tal? Imagina-se que estes não poderiam ter uma palavra a dizer…
Não sei se devem ser professores ou outros a ter o cargo de dirigir a escola pública. Sei que a gestão de uma escola passa também pela parte pedagógica, nisso se diferenciando de outras gestões. Sei também que as questões do compromisso e da responsabilidade deveriam ser tónicas na gestão e não são.
Quanto às participações na escola, de repente, parece já não serem as estruturas onde os pais e a sociedade estão representados que interessam; é o mandar na escola, “influenciá-la”, assim se fazendo tábua rasa de todas as Associações de Pais, dos Conselhos Municipais de Educação e de outras estruturas que com a escola trabalham.
Continua-se, pois, a discutir o domínio das influências, não se elas devem ou não existir, mas quem é que deve influenciar. É gestão isto?

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Fazer história, outra vez

Ontem, foi a assinatura do "Tratado de Lisboa", evento badalado, noticiado, comentado, que... "fez História". Agora, é altura de o Primeiro-Ministro revelar o tal segredo da ratificação, que vinha adiando para depois da assinatura. Já ontem houve muitos adeptos da ratificação por via parlamentar. Legítima, é certo. Mas que deixa dúvidas, pois é sempre utilizada para se opor à via referendária. Mesmo Mário Soares, que, no fim-de-semana passado, disse em Coimbra que este Tratado era confuso, defendeu ontem a ratificação pelo Parlamento, sem referendo. Será pela confusão que pode ser explicar tudo isto? Não duvido nem ponho marcas nas intenções. Mas para quem fica ou entre quem fica a divulgação do Tratado? A Europa tem que ser discutida (e conhecida) apenas pelos políticos? A Europa é a festa dos políticos? E o resto? Sim, e o resto, que é incrivelmente maior e mais populoso do que os políticos que fazem a Europa? Será que a Europa vai continuar afastada do cidadão comum europeu? Porque é a Europa apenas uma discussão (e um saber, mesmo que confuso) de uma pequena parte? A verdade é que fica sempre aquela sensação de que a Europa não tem chegado aos cidadãos europeus, nomeadamente aos portugueses... e dizerem que as auto-estradas, os subsídios e não-sei-que-mais existiram por causa da Europa é uma explicação que não diz os direitos nem os deveres dos cidadãos, que não permite a concordância ou a discordância relativamente a princípios, que não dá voz.

Associação Cultural Sebastião da Gama - Boletim nº 4

A Associação Cultural Sebastião da Gama, com sede em Azeitão, criada no início de 2006, acabou de publicar o seu Boletim Informativo nº 4. São 20 páginas de notícias sobre o poeta seu patrono e sobre a vida da Associação, conjunto que integra os textos: "Sebastião da Gama já tem monumento" e "9 de Junho – Da ideia até ao dia em que Sebastião da Gama teve monumento"(com reportagem fotográfica da inauguração que ocorreu em 9 de Junho), "Sebastião da Gama entre alunos" (divulgação do poeta nas escolas do 1º Ciclo de S. Simão), "Lygia Fagundes Telles lembra Sebastião da Gama", "Uma carta de José Régio sobre Sebastião da Gama" (datada de 15 de Junho de 1953), "Sebastião da Gama em antologias", "Estudos sobre Sebastião da Gama apresentados em 1 de Junho" (com as intervenções do Presidente da Direcção e de Viriato Soromenho-Marques), "Associação nas Festas de Azeitão e Arrábida", "Sinais de Vida, por Jorge Freixial (e amigos)", "Sebastião da Gama no futebol", "Sebastião da Gama em cd", "Ler Sebastião da Gama nas acções da ACSG", "A Associação nas escolas" (notícia de sessões de divulgação da obra do poeta na EB 2, 3 Vieira da Silva, em Carnaxide, na Escola da Quinta das Flores, em Coimbra, e na Escola Secundária de Tondela), "Memória da casa de Estremoz" (retratos da casa do tempo em que o poeta viveu em Estremoz, em 1951), "A doença do Sebastião" (por Pedro Eurico Lisboa, médico e amigo do poeta), "Rotary de Palmela distingue Nicolau da Claudina" (uma homenagem a um aluno de Sebastião da Gama), "Associação dos Antigos Alunos do ISCAL lembrou Sebastião da Gama na Arrábida" e poemas de Alexandrina Pereira, de António Chitas e de Pedro Jorge. A finalizar, há ainda um poema inédito de Sebastião da Gama, intitulado "Natal", datado de 24 de Dezembro de 1941 (tinha o poeta 17 anos).
Os associados receberão o Boletim por correio, juntamente com a oferta do opúsculo Sebastião da Gama - Meu caminho é por mim fora... (pequena antologia de divulgação da obra do poeta, que contém um poema inédito sobre a escola, também datado de 1941).
O Boletim vai estar em distribuição gratuita em alguns pontos de Setúbal e de Azeitão, mas também pode ser disponibilizado a quem o peça, podendo os interessados utilizar o "e-mail" do autor deste blog (consta no cabeçalho) ou solicitando-o para a Associação (Rua José Augusto Coelho, 105 - 1º Dto - 2925-542 Azeitão).

Intervalo (3)

A Beatriz, com a recomendação "professor, penso que vai gostar...", enviou-me esta lista de... "pérolas". Aqui a partilho.

PORQUE O SABER NÃO OCUPA LUGAR...
Alevantar - O acto de levantar com convicção, com o ar de 'a mim ninguém me come por parvo!... alevantei-me e fui-me embora!'.
Aspergic - Medicamento português que mistura Aspegic com Aspirina.
Assentar - O acto de sentar, só que com muita força, como fosse um tijolo a cair no cimento.
Capom - Porta de motor de carros que quando se fecha faz POM!
Destrocar - Trocar várias vezes uma nota até ficarmos com a mesma.
Disvorciada - Mulher que se diz por aí que se vai divorciar.
É assim… - Talvez a maior evolução da língua portuguesa. Termo que não quer dizer nada e não serve para nada. Deve ser colocado no início de qualquer frase. Muito utilizado por jornalistas e intelectuais.
Entropeçar - Tropeçar duas vezes seguidas.
Eros - Moeda alternativa ao Euro, adoptada por alguns portugueses.
Falastes, dissestes… - Articulação na 4ª pessoa do singular. Ex.: eu falei, tu falaste, ele falou, TU FALASTES.
Vêjamos, fáçamos - Caso atípico de palavras esdrúxulas a que se acrescentou o acento tónico...
Fracturação - O resultado da soma do consumo de clientes em qualquer casa comercial. Casa que não fractura... não "predura ".
Inclusiver - Forma de expressar que percebemos de um assunto. E digo mais: eu inclusiver acho esta palavra muita gira. Também existe a variante "Inclusivel".
- A forma mais prática de articular a palavra MEU e dar um ar afro à língua portuguesa, como 'bué' ou 'maning'. Ex.: Atão mô, tudo bem?
Nha - Assim como Mô, é a forma mais prática de articular a palavra MINHA. Para quê perder tempo, não é? Fica sempre bem dizer 'Nha Mãe' e é uma poupança extraordinária.
Númaro - Já está na Assembleia da República uma proposta de lei para se deixar de utilizar a palavra NÚMERO, a qual está em claro desuso. Por mim, acho um bom númaro!
Parteleira - Local ideal para guardar os livros de Protuguês do tempo da escola.
Perssunal - O contrário de amador. Muito utilizado por jogadores de futebol. Ex.: 'Sou perssunal de futebol'. Dica: deve ser articulada de forma rápida.
Pitaxio - Aperitivo da classe do 'mindoím'.
Prontus - Usar o mais possível. É só dar vontade e podemos sempre soltar um 'prontus'! Fica sempre bem.
Prutugal - País ao lado da Espanha. Não é a Francia.
Quaise - Também é uma palavra muito apreciada pelos nosso pseudo-intelectuais. Ainda não percebi muito bem o quer dizer, mas o problema deve ser meu.
Stander - Local de venda . A forma mais famosa é, sem dúvida, o 'stander' de automóveis. O "stander" é um dos grandes clássicos do "português da cromagem"…
Tipo - Juntamente com o 'É assim', faz parte das grandes evoluções da língua portuguesa. Também sem querer dizer nada, e não servindo para nada, pode ser usado quando se quiser, porque nunca está errado, nem certo. É assim... tipo, tás a ver?
Treuze - Palavras para quê? Todos nós conhecemos o númaro treuze.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Porque não vai valer este modelo para todos os outros serviços do Estado que têm directores?

O Público de hoje dá a notícia, a partir do debate feito ontem na Assembleia da República:
Directores das escolas vão ser escolhidos por concurso
(...) O órgão máximo das escolas deixará de ser eleito e a selecção do director passará a ser feita por concurso, mediante "critérios transparentes e em função do mérito dos candidatos", anunciou ontem José Sócrates, durante o debate mensal no Parlamento, que teve a Educação como tema central. A esse concurso só poderão candidatar-se professores dos quadros - e não outros profissionais, como defendem há algum tempo os partidos da direita -, mas que podem ser de outras escolas. Desde que estejam "qualificados para o exercício das funções, pela sua formação ou pela experiência já adquirida".
Compete a um novo órgão, o "conselho geral", escolher. Nele estarão representados professores, pais, autarquias e actividades locais. Segundo apurou o PÚBLICO junto de fonte do Ministério da Educação, os docentes não deverão estar em maioria no conselho geral.

Memória: Fernanda Botelho (1926-2007)

Fernanda Botelho, falecida ontem, começou o seu percurso poético na revista Távola Redonda, em 1950, em cujo primeiro número (de Janeiro desse ano) publicou seis poemas. Dirigida por António Manuel Couto Viana e por David Mourão-Ferreira, a revista durou 20 números, tendo Fernanda Botelho participado com poemas nos números 1, 2, 4, 7, 8, 10, 12, 14 e 19/20, e com notas de leitura nos números 6 e 12. Nesse número inaugural da Távola, colaboraram, além dos directores e de Fernanda Botelho, nomes como Sebastião da Gama, Alberto de Lacerda e Luiz de Macedo. Seria ainda a Távola Redonda que, numa colecção dedicada a obras poéticas, publicaria em 1951, o primeiro livro de Fernanda Botelho, Coordenadas líricas.

"Seis poesias de Fernanda Botelho" no número inaugural de Távola Redonda (Janeiro.1950)

Apesar de o seu primeiro livro ser de poesia, foi como prosadora que esta autora ficou conhecida, depois de publicar títulos como O ângulo raso (1957), Calendário privado (1958), A gata e a fábula (1960), Xerazade e os outros (1964), Terra sem música (1969), Lourenço é nome de jogral (1971), Esta noite sonhei com Brueghel (1987), Festa em casa de flores (1990), Dramaticamente vestida de negro (1994), As contadoras de histórias (1998) e Gritos da minha dança (2003).
[Fotografia de Fernanda Botelho a partir de www.dn.sapo.pt]

Camões pela pena de Alegre

Quando eu era criança, lembro-me de ver na minha casa e nas casas de pessoas de família ou amigas, normalmente na sala de visitas, um livro grande, encadernado, que se destacava de todos os outros. Nem sempre era da mesma cor, mas em todos eles havia o desenho de um homem com uma coroa de louros na cabeça e uma pala num olho. Um dia perguntei que livro era.” Está o leitor mesmo a ver que se tratava de Os Lusíadas. Foi, aliás, isso que, pela voz do pai, o narrador desta história ouviu, início de desvendamento de um mistério e começo de uma relação cultural, identitária e poética.
O texto que assim começa é também o princípio do mais recente livro de Manuel Alegre, intitulado Barbi-Ruivo – O meu primeiro Camões (Lisboa: Dom Quixote, 2007). E pode-se justificar o título: não havendo nenhum retrato de Camões feito a partir do modelo original, foi um registo documental escrito da Casa da Índia, datado de 1550 e divulgado por Faria e Sousa, biógrafo de Camões, que apresentou o poeta como “barbi-ruivo”, termo que Alegre recupera; quanto ao subtítulo, de feição metonímica, ele faz o cruzamento da vida e da obra camonianas com as memórias do narrador, mais precisamente, com as lembranças que o narrador tem do que, ao longo da vida, foi aprendendo e lendo de e sobre Camões.
Constituído por três partes, o livro é dedicado por Manuel Alegre aos netos, numa tentativa de passar a palavra, de transmitir o testemunho, recuando o narrador até à infância para contar os seus primeiros contactos com o tesouro camoniano – primeiro, pela vista (ver os livros); depois, pela audição (o pai lia-lhe Camões, de tal forma que a criança decorou o início da épica e alguns sonetos); mais tarde, pela leitura a expensas próprias.
Para o narrador, pontos marcantes deste percurso camoniano foram: a musicalidade (que o levou a aprender Camões de cor - “eu subia para cima de uma cadeira, dizia os versos e tinha a sensação de que dentro das palavras havia um ritmo, quase se podia assobiar ou entoar baixinho, era uma forma de música”); o ritmo (que, nalguns poemas, “lembrava o das canções e dos fados que se ouviam nas ruas e na rádio”); o amor (manifestação em que o soneto “Amor é um fogo que arde sem se ver” levava a palma nas declarações amorosas da geração do narrador e que também é essencial para a compreensão dos poemas de Camões, pois que “segundo o amor que tiverdes, tereis o entendimento de meus versos”); a diferença (várias mulheres ocupam o cenário da paixão camoniana, todas com traços fisionómicos e de raça diversos, numa pluralidade inebriante, que leva Alegre a considerar que “dois dos maiores poemas de amor da nossa língua – trovas a Bárbara cativa e 'Alma minha, gentil que te partiste', motivado por Dinamene – foram inspirados por mulheres de outra cor”); a procura de uma identidade (capítulo longo é o intitulado “Embarcar n’Os Lusíadas”, que passa sobre a epopeia e sobre os seus mais conhecidos e mais bem conseguidos episódios, numa “viagem pela nossa História” e até pela história da leitura e da recepção desta obra, visível, por exemplo, no testemunho do tempo do liceu – “o canto IX era o mais proibido e censurado e, por isso, o mais apetecido… afinal, um dos mais belos”); as leituras inovadoras (a figura do “Velho do Restelo” é apresentada como materialização da voz do próprio Camões, numa crítica ao processo como se desencadearam os descobrimentos, a descrição dos fenómenos naturais é vista como sendo “dos momentos mais inovadores e mais belos” do poema, o Adamastor é encarado como um “momento essencial” na história porque “decide o sucesso da viagem”); a lenda (em que a própria figura de Camões surgiu envolvida, prestando-se a isso um homem cultíssimo que escreveu o mais genial poema português e viveu na miséria, que deixou a ideia tão agradável e romanticamente definidora do ser português da “vida pelo mundo em pedaços repartida”, e de cujo percurso biográfico pouco se sabe, não existindo mesmo documentos autógrafos).
Ao longo dos tempos, Camões e a sua obra têm servido adaptações várias, com públicos diversificados. Assim, de repente, vêm à memória títulos como Os Lusíadas contados às crianças e lembrados ao povo (1930, de João de Barros), Aventuras do Trinca-Fortes (1946, de Adolfo Simões Müller), Camões poeta mancebo e pobre (1980, de Matilde Rosa Araújo), Camões (1990, texto de Oliveira Cosme e banda desenhada de Carlos Alberto Santos). Barbi-Ruivo junta-se a este rol de visitações da obra camoniana e, parecendo destinar-se aos mais jovens (quer pela dedicatória do autor, quer pelo aspecto gráfico), a verdade é que o seu público será quem queira conhecer a vida e a obra de Camões, em visita guiada por Manuel Alegre, um poeta do século XXI, que, na sua obra, também já tomou o épico para fonte de inspiração.
Diga-se ainda que a obra tem ilustrações de André Letria, conjunto de uma dúzia de desenhos de temática camoniana, em todos constando o livro como elemento comum, assim dando valor ao que de mais importante existe num poeta – a sua obra.
[Fotos: capa do livro e desenho do Adamastor, por André Letria.]

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Fazer história

O Primeiro-Ministro acha que a cimeira entre a África e a União Europeia ficará na História. Daqui a uns dias, quando for a assinatura do "Tratado" pelos dirigentes políticos europeus em Lisboa, esse constituirá, por certo, outro momento para a História. No entanto, a História é feita pelo tempo, ainda que os homens sejam os seus actores. No entanto, Mário Soares, um homem habituado a "tratados" e a questões europeias, disse em Coimbra sobre este "Tratado" que ele "não é muito especial", que é "muito confuso", que "nem é pequeno nem é claro" e que "é o mais confuso possível".
Vai valer a pena esperar para se saber se a História vai dar importância a qualquer uma destas coisas ou se isto não serão apenas encontros de políticos, que, esses sim, podem ficar no rol das "petites histoires" da História...
As dúvidas de Soares podem ser um aviso para o deslumbramento do tal lugar na História. E podem também constituir uma razão para se perceber que a Europa não pode apenas ser uma questão de corredores em Bruxelas, em Estrasburgo ou em qualquer outro lugar do planeta (incluindo Lisboa) pelos quais só andam alguns dos seus (privilegiados) cidadãos. Obviamente, um "Tratado" confuso não contribui para que os europeus se integrem nessa Europa...

Profecias?

O trissemanário O Setubalense de hoje traz o seguinte título na primeira página:

Se não fossem as aspas, poderíamos estar perante um apocalíptico fim do mar (cenário perigoso e temível), talvez metaforizando o final da vida dependente do mar (cenário já desenhado para muitas famílias e provável para mais); com as aspas, fica-se a saber que uma embarcação pesqueira da frota de Setúbal foi adquirida há meia dúzia de anos pela RNES (Reserva Natural do Estuário do Sado) para monitorizar e fiscalizar o estuário sadino. No entanto, a morte foi-lhe anunciada, porquanto nunca o barco desempenhou as tarefas para que foi adquirido, esteve a apodrecer acostado sem manutenção e jaz "ao lado de outras carcaças, a aguardar o pior dos cenários" na Mourisca (Setúbal). O jornal adianta que, na altura, a embarcação terá custado 25 mil euros... de que parece nunca ter havido proveito!

domingo, 9 de dezembro de 2007

Sobre violência nas escolas

Data de 22 de Outubro deste ano uma carta que Domingos Cardoso, professor aposentado de Ílhavo, escreveu, dirigida ao Presidente da República e divulgada através de “mail” e da blogosfera (por exemplo, em quarta república), também já aqui referida e a que o Expresso de sábado deu destaque, não tanto ao conteúdo da missiva, mas sobretudo às razões que levaram o signatário a tal atitude. Conta o jornal que o professor de Ílhavo recebeu entretanto muitas mensagens confirmativas do retrato que traçou na carta ao Presidente. E conta ainda o Expresso: “A carta chegou a Belém e está a ser analisada. A Casa Civil garante que será dada uma resposta, como habitualmente acontece às muitas cartas desta natureza que chegam à Presidência. Em caso de necessidade de informações adicionais, Belém pode mesmo solicitar esclarecimentos aos Ministérios envolvidos para tentar resolver os problemas ou obter mais dados, antes de enviar uma resposta ao queixoso.”
Ora, as situações de que se queixa Domingos Cardoso são um somatório de muitas de que há conhecimento na prática das escolas, só que frequentemente silenciadas, seja porque, nos casos mais felizes, os problemas de desrespeito são resolvidos de imediato (ainda bem!), seja porque a maior parte desse tipo de atitudes de falta de respeito não entra no rol da violência que conta para a estatística e muitos docentes nem as relatam. Aliás, o tom de amenização com que, recentemente, foi divulgado que o número de ocorrências de violência diminuiu no interior das escolas parece confirmar o que disse.
Será interessante ver que tipo de resposta vai ser dada a esta carta do professor ilhavense. Veremos se a divulgação vai ser semelhante… Mas, para já, vale a pena perceber-se que muitas das “exigências” que Domingos Cardoso sugeriu estão relacionadas com a violência que, hoje, Alice Vieira, no Jornal de Notícias , considerou como “perigosa porque mais subtil, mais pela calada, mais insidiosa”, em texto que aqui reproduzo. É que essa pode não ser quantificável, mas não pode ser banalizada nem aceite como normal!

Violência nas escolas, por Alice Vieira
Li num jornal que a senhora ministra da Educação está contente. E, quando os nossos governantes estão contentes, é como se um sol raiasse nas nossas vidas.
E está contente porque, segundo afirmou, a violência nas escolas portuguesas, afinal, não existe.
Ao que parece, andamos todos numa de paz e amor, lá fora é que as coisas tomam proporções assustadoras, os nossos brandos costumes continuam a vingar nos corredores de todas as EB, 2/3, ou como é que as escolas se chamam agora. Tenho muita pena de que os nossos governantes só entrem nas escolas quando previamente se fazem anunciar, com todas as televisões atrás, para que o momento fique na História. É claro que, assim, obrigada, também eu, anda ali tudo alinhado que dá gosto ver, porque o respeitinho pelo Poder é coisa que cai sempre bem no coração de quem nos governa, e que as pessoas gostam de ver em qualquer telejornal.
Mas bastaria a senhora ministra entrar incógnita em qualquer escola deste país para ver como a realidade é bem diferente daquela que lhe pintaram ou que os estudos (adorava saber como se fazem alguns dos estudos com que diariamente se enchem as páginas dos jornais) proclamam. É claro que não falo daquela violência bruta e directa, estilo filme americano, com tiros, naifadas e o mais que houver.
Falo de uma violência muito mais perigosa porque mais subtil, mais pela calada, mais insidiosa.
Uma violência mais "normal".
E não há nada pior do que a normalização, do que a banalização da violência.
Violência é não saberem viver em comunidade, é o safanão, o pontapé e a bofetada como resposta habitual, o palavrão (dos pesados…) como linguagem única, a ameaça constante, o nenhum interesse pelo que se passa dentro da sala, a provocação gratuita ("bata-me, vá lá, não me diga que não é capaz de me bater? Ai que medinho que eu tenho de si…", isto ouvi eu de um aluno quando a pobre da professora apenas lhe perguntou por que tinha chegado tarde…)
Violência é a demissão dos pais do seu papel de educadores - e depois queixam-se nas reuniões de que "os professores não ensinam nada".
Porque, evidentemente, a culpa de tudo é sempre dos professores - que não ensinam, que não trabalham, que não sabem nada, que fazem greves, qualquer dia - querem lá ver? - até fumam…
Os seus filhos são todos uns anjos de asas brancas e uns génios incompreendidos.
Cada vez os pais têm menos tempo para os filhos e, por isso, cada vez mais os filhos são educados pelos colegas e pela televisão (pelos jogos, pelos filmes, etc.). Não têm regras, não conhecem limites, simples palavras como "obrigada", "desculpe", "se faz favor" são-lhes mais estranhas do que um discurso em Chinês - e há quem chame a isto liberdade.
Mas a isto chama-se violência. Aquela que não conta para os estudos "científicos", mas aquela da qual um dia, de repente, rompe a violência a sério.
E então em estilo filme americano.Com tiros, naifadas e o mais que houver.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Rostos (13)

Sissi, no Funchal (Jardim do Casino)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Ary dos Santos, 71 anos

José Carlos Ary dos Santos, conhecido na poesia pelos seus dois últimos apelidos, faria hoje 71 anos (Lisboa, 1936-18.01.1984). Filho de Carlos Ary dos Santos (n. 1905) e de Maria Bárbara de Miranda e Castro Pereira da Silva (1899-1950), foi por parte da mãe que o poeta teve ligações a Vila Nogueira de Azeitão. Aqui, nascera a mãe e estava estabelecida a família já desde longa data: o avô materno, José Barbosa Pereira da Silva (1868-1932), e o bisavô e trisavô, ambos com o nome de José Pereira da Silva e ambos tendo sido provedores da Misericórdia azeitonense. Também a bisavó Maria Joaquina Morais Barbosa de Oliveira era natural de São Lourenço de Azeitão, freguesia de onde era natural seu pai (e trisavô de Ary dos Santos), Joaquim Pedro Gomes de Oliveira.
É este último nome que nos permite contar uma história do cruzamento de amizade de um antepassado de Ary dos Santos com Bocage. Com efeito, Gomes de Oliveira era casado com Carlota Emília Morais Barbosa (1803-1849), senhora que faleceu em Azeitão e cujo pai, tetravô de Ary dos Santos, era Tomé Barbosa de Figueiredo de Almeida Cardoso (1755-1820), nascido na América do Sul, de pai para ali emigrado oriundo do Minho (Paredes de Coura). Foi este Tomé Barbosa, a trabalhar na Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, que se tornou, em dada fase, não só amigo, mas também protector de Bocage, havendo mesmo um soneto que o poeta sadino compôs em sua honra – “Dos tórridos sertões, pejados de ouro…” (cf. Bocage. Obra Completa – Sonetos. Org.: Daniel Pires. Edições Caixotim, 2004, pg. 275).
Ary dos Santos deixaria também na sua obra uma aguarela bocagiana quando considerou o poeta sadino um seu “irmão”, poema já evocado num postal aqui editado.
Desde que publicou A liturgia do sangue, em 1963, Ary dos Santos foi autor de Tempo da lenda das amendoeiras (1964), Adereços, Endereços (1965), Insofrimento in sofrimento (1969), Fotos-grafias (1970), Resumo (1972), As portas que Abril abriu (1975), O sangue das palavras (1978) e VIII sonetos (1984). Poemas seus foram cantados por Amália Rodrigues, Carlos do Carmo, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, Simone de Oliveira e Tonicha, entre outros intérpretes.
Musicado por Paulo de Carvalho e cantado por Carlos do Carmo, aqui se deixa a palavra de “Os Putos”, poema de Ary dos Santos de 1978:

Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
E o céu no olhar, de um puto

Uma fisga que atira, a esperança
Um pardal de calções, astuto
E a força de ser, criança
Contra a força dum “chui”, que é bruto

Parecem bandos de pardais, à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai, vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta

E ouvem-no falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens

As caricas brilhando, na mão
A vontade que salta, ao eixo
E um puto que diz, que não
Se a “porrada” vier, não deixo

Um berlinde abafado, na escola
Um pião na algibeira, sem cor
E um puto que pede, esmola
Porque a fome lhe abafa, a dor
[foto a partir de: Ary dos Santos. As palavras das cantigas. 2ª ed. Lisboa: Edições Avante, 1993]

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Para uma antologia da região de Setúbal (5)

Legendas de Portugal é uma série de catorze volumes, redigidos por Rocha Martins (1879-1952), contendo textos que relatam momentos históricos ligados às terras portuguesas, com primeira edição de finais da década de 20, em tramas eivadas de acção, de modo a cativarem o leitor.
O 12º volume inclui um momento da história passada em Setúbal, em capítulo intitulado “Justiça de D. João II”, evocando factos de 1484 relacionados com a tentativa de assassínio que a nobreza queria perpetrar sobre a figura do rei, que, no entanto, graças a informações de um tal Diogo Tinoco e, depois, de Vasco Coutinho, conseguiu desmantelar a conspiração. A história contada associa a lenda da Casa das Quatro Cabeças, que tem andado sempre ligada a esta tentativa de regicídio, muito embora não haja disso provas.
A figura do rei aparece-nos séria, elegante, decidida, com pose de estado. Em Setúbal, desloca-se entre o Convento de S. Francisco, Tróino e a casa de Nuno da Cunha e a história passa-se no Verão de 1484, entre Julho e finais de Agosto.
Pela escrita de Rocha Martins passa uma fina e detalhada caracterização psicológica das personagens, ainda que o narrador não esconda que está a imaginar o que se passaria na mente das mesmas – por exemplo, quando o Duque de Viseu, instalado em Palmela, é chamado para ir a um encontro com o rei em Setúbal, sem saber qual o assunto, comenta o narrador: “Ignorava o que lhe queria, assim apressadamente (…). Decerto se tratava de caso de gravidade e, ao lembrar-se de ter falhado, na véspera, o golpe do assassínio, deveria ter muito medo de punição.” O narrador tenta assim pôr-se na pele da personagem… a tal ponto que, quando o Duque de Viseu está a chegar a Setúbal, relata: “Bem via, não era para coisa boa que o chamavam; e quando entrou nas ruas ardentes, sobre cujas pedras farulhavam as ferraduras da montada, mais lhe apetecia meter-se para as bandas do Sado, fugir nalgum barco, acolher-se nas vastas sombras da Arrábida, merendar nalgum vergel perfumado pelos laranjais do que escutar a voz furibunda do juiz.” Mal sabia o Duque que caminhava para a morte, friamente cumprida e executada pelo próprio rei, sem delongas, na casa de Nuno da Cunha!...
Depois, foi a prisão e morte dos outros conjurados, nomeadamente o bispo de Évora, que foi enclausurado na cisterna do castelo de Palmela, ali estando, “nas profundezas do poço, onde coaxavam as rãs e ele gemia, na treva, desolado e perdido, sem confortos, passando da prelacia para o cárcere, imundo e bafiento, onde estava com os pés, ora na humidade, ora na lama”. Ali morreria o bispo, já depois de ter sabido da degolação de seu irmão, outro conspirador, e de ter conhecido o destino dos seus comparsas, vítima da peçonha.
Da acção de D. João II fica uma imagem de chefe incontestado e decidido, que tanto punia como concedia favores – “Era assim. Depois da punição as mercês; e tão pingues, e ao mesmo tempo tão justamente talhadas que todos se admiravam de tanta integridade em homem tão terrível.” A narrativa de Rocha Martins surge intensa, com pormenores que evidenciam o sentido justiceiro do monarca e acentuam o sofrimento dos castigados.
Setúbal foi, assim, a terra onde poderia ter acontecido o primeiro regicídio em Portugal, antes sendo marcada pelo sítio onde D. João II aproveitou para vincar o seu poder e demonstrar o seu espírito de decisão. Também aqui ficou deliberado que o rei seguinte não se chamaria Diogo, o conspirador irmão do bispo de Évora, antes seria Manuel, nesse momento feito Duque de Beja e herdeiro de quase todos os bens do Duque de Viseu, seu irmão.
Os outros dois episódios relatados neste número de Legendas de Portugal intitulam-se “A tomada de Chelb e sagração dos Infantes” (relativo a Silves e Tavira) e “O Mestre de Cristo” (alusivo a Tomar).
[foto: capa do 12º vol. de Legendas de Portugal, reproduzindo "D. João II, figura primacial da legenda da cidade de Setúbal"]