Mostrar mensagens com a etiqueta Paulino Pereira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Paulino Pereira. Mostrar todas as mensagens

domingo, 25 de maio de 2008

José Paulino Pereira e o bisturi como chave da memória

Bisturi do tempo, de José Paulino Pereira (Setúbal: 2008) é título rico de sugestões, quer pela imagem médica ligada ao seu autor, quer por esse trabalho de precisão a fazer na memória para que não sejamos por ela traídos. E, depois, há ainda aquela possibilidade dupla: um bisturi que age sobre o tempo ou o tempo visto como bisturi?
Este livro recolhe textos que, na sua quase totalidade, foram já publicados e que, como regista o autor, em texto que serve como apresentação da obra, foram “inspirados em situações vividas”. A observação é importante, pois garante o pendor autobiográfico desta escrita, onde se cruzam espaços, pessoas e histórias vividas pelo narrador das evocações.
Podemos referir que este conjunto de textos constitui a geografia de José Paulino Pereira. Paradigmaticamente, a primeira narrativa intitula-se “A minha rua” e constitui a chave que permite a entrada no livro e a viagem até à infância em Torres Vedras – “foi nela que nasci, cresci e brinquei”. E é um desfiar de lembranças de amigos, de familiares, de intimidades.
O grupo de escritos dedicados a Torres Vedras tem ainda espaço para lembrar a história das Termas dos Cucos (narrativa em que descobri uma afinidade com a minha aldeia, pois houve alguém que, de Alvarães, no concelho de Viana do Castelo, pelos idos de 1932, questionou a legitimidade do testamento que fizera passar as termas para as mãos de José António Vieira), a pretensão já sentida de Torres Vedras querer ser a capital de um distrito que chegou a estar pensado para a região do Oeste, a história da medicina torriense, a ligação à Associação de Bombeiros.
Os outros pontos desta cartografia do tempo assentam em Coimbra (com histórias do tempo da formatura universitária e das visitas ali feitas depois, a propósito das reuniões de curso), Peniche (local de férias, com histórias vividas de descoberta) e Setúbal (ponto de fixação profissional nos hospitais – primeiro, da Misericórdia e, depois, de S. Bernardo –, com referências múltiplas à história local e a episódios passados com os respectivos pacientes).
Neste itinerário descontínuo e seleccionado de vida, há também lugar para identificações e preferências, aliando as sensibilidades de outros à descoberta própria, conjugando arte e saber, como surge neste exemplo que relembra uma viagem à Arrábida: “Eu não sou poeta. Não tenho esse dom, mas ninguém me impede de subir ao cimo da imponente Serra da Arrábida, imitando nessa caminhada o príncipe dos poetas setubalenses que se chamou Sebastião da Gama. Ninguém como ele conhecia os seus segredos que o convidavam à meditação.”
Quando Paulino Pereira fala de pessoas, são-lhes enaltecidos os dotes, que podem entrar para o lote de valores a preservar. Assim, surgem referências de apreço a mestres ou a figuras que foram importantes para a formação do próprio narrador por características como o trabalho em equipa, a formação humanista, a competência, a disponibilidade para os outros, a relação próxima e afectiva entre médico e doente. O humor está também presente, seja por alguns momentos relembrados e pelo cómico da situação que constituíram, seja pelo tom com que, à distância, são evocados. As qualidades das personagens e o sentido de humor conjugam-se bem nos quatro contos que constituem a última parte do livro, de tal forma que nem parece que se entra no registo da ficção, antes se continua no da memória…
Ao longo destes textos, o leitor vai ainda convivendo com a coerência do homem e do profissional, que não deixa margem para dúvidas depois de uma crónica como “Decisão na hora certa”, em que, a propósito da facilidade com que se põem em causa as práticas dos profissionais de alguns serviços, nomeadamente da saúde, Paulino Pereira relata a decisão que teve que tomar, ao levar um doente para o hospital, à sua própria custa, contra a vontade da família mas com o acordo do paciente, numa situação que poderia ser decisiva. A intervenção acabou por ter sucesso e a crónica conclui com a seguinte reflexão: “O êxito foi total. Mas, se o desfecho fosse outro, o que me teria acontecido? Os homens que me julgassem. Perante o tribunal da minha consciência ficaria absolvido.”
A escrita de Paulino Pereira neste Bisturi do tempo é simples, acessível e directa, parecendo que se está perante um contador de histórias de vida. Os retratos que ressaltam são os da disponibilidade e do prazer no exercício médico, quase nos surgindo pela frente um João Semana, distante do que Júlio Dinis nos apresentou no séc. XIX pelas mudanças operadas pelo tempo, mas próximo pela sensibilidade e pela humanidade no trato e na vida, marcas que popularizaram e notabilizaram essa personagem como médico.
[A obra, cuja chegada às livrarias (em 12 de Maio) aconteceu cerca de uma semana após o falecimento do seu autor (4 de Maio), vai ser apresentada, numa sessão que também será de homenagem a Paulino Pereira, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, em 31 de Maio, pelas 16h00.]

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Paulino Pereira - a memória entre as memórias

Neste dia, em 1917, nasceu em Torres Vedras José Paulino Pereira, futuro médico formado em Coimbra (1946) e cirurgião em Setúbal, bem conhecido pelo seu envolvimento na medicina e na vida da cidade sadina. Há pouco mais de uma semana, em 4 de Maio, o Dr. Paulino passou a viver apenas na nossa memória, partindo à beira de fazer 91 anos, linda e legítima idade para contar a vida, para passar a experiência, para mostrar o olhar sobre o (seu) mundo. O Dr. Paulino não pôde, por essa decisão das parcas, assistir ao aparecimento do seu livro que, hoje mesmo, dia do seu aniversário, foi posto à venda em Setúbal, na Culsete, livraria que tem a seu cargo a difusão desta obra, em que o livreiro Manuel Medeiros se empenhou.
Aqui há uns anos – cinco, seis? –, o Dr. Paulino dizia-me que gostava de coligir num volume os seus escritos, uns de memórias, outros de histórias. A partir daí, quando o encontrava, perguntava-lhe pelo livro. Só o deixei de fazer agora para o fim, vendo-o a decair, sempre apoiado na garra da esposa, professora aposentada, a Dra. Auzenda.
É claro que já fui comprar o livro. Tinha que ser hoje, em gesto de quase homenagem, admito. Tinha que ser ainda hoje o início da sua leitura, para me reencontrar com aquele espírito humorístico, fino, crítico, requintado, que animava o Dr. Paulino. Quando, no dia 5, soube telefonicamente do falecimento do Dr. Paulino, uma pessoa que estava comigo e se apercebeu do teor da conversa perguntou-me, em jeito de confirmação, se este Dr. Paulino de que eu falara ao telefone era aquele que tivera consultório ali na 22 de Dezembro, que tinha estado a dirigir o Hospital de S. Bernardo e que era cirurgião… Disse-lhe que sim. E a senhora, que conhecera o Dr. Paulino em circunstâncias de recurso médico, não se conteve: “Esse senhor era um doce. Tão fino, tão pronto, tão atencioso, tão humano… Era uma doçura!”
Bisturi do tempo é, assim, o legado escrito que o Dr. Paulino Pereira deixou aos seus amigos e aos curiosos, obra que assenta também numa geografia própria, que é a do mapa das suas permanências, com entradas para Torres Vedras (cidade onde nasceu e que começa por evocar no texto “A minha rua”, numa ida até à rua dos Celeiros de Santa Maria), para Coimbra (onde estudou medicina), para Peniche (onde passou férias muitas vezes) e para Setúbal (cidade onde se fixou e que adoptou como sua ou por ela foi adoptado).
Não resisto sem transcrever o final do prefácio redigido por Jorge Abreu e Silva, médico e amigo do autor: “Esta é uma obra para gente que sente, que pensa, que sonha. É uma obra obrigatória para quem, como eu, o Paulino Pereira e tantos colegas da velha Universidade de Coimbra, aprendemos na Escola da Vida o valor da Amizade, a força da Liberdade, a intensidade do Amor, a magia da Medicina praticada com humanidade. Ler esta obra é sorrir, emocionarmo-nos e deixar à solta a nossa essência humana mais pura.”
A ler, obviamente.