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domingo, 10 de julho de 2011

André Brun e o "Sumário de Várias Crónicas"


Dedicado a João Chagas, Sumário de Várias Crónicas (Lisboa: Guimarães & Cª Editores, 1923), de André Brun, é constituído por quatro partes, todas reunindo uma centena de crónicas publicadas nos jornais entre Setembro de 1907 e Março de 1922 – “A Menina dos Meus Olhos”, com 15 textos, dedicada “a minha filha, Dona Aninhas”; “Factos e Momentos”, consagrada “à memória de Paulo Barreto”, coligindo 31 crónicas; “Homens de Letras e Aves de Pena”, dirigido a Gualdino Gomes, reunindo 25 memórias; “Alfaciadas”, oferecido a Alfredo Mesquita, juntando 30 composições.
O que levou André Brun a reunir estes textos em livro di-lo ele no texto introdutório: “pareceu-me curioso ressuscitá-las do natural olvido em que estavam sepultadas, por isso que, à míngua de um valor literário que as recomende à posteridade, me interessam particularmente, ou pelo momento em que foram escritas, ou pelo que nelas pus do meu coração ou do meu espírito ou, ainda, porque fixam uma atitude da minha vida e contribuem assim para desenhar a minha fisionomia moral”. O tempo, os afectos e as atitudes constituem, assim, as três motivações fortes que levaram Brun a esta antologia, três ingredientes que têm muito de pessoal, de tal maneira que, umas linhas adiante, escreverá que as crónicas aqui reunidas constituirão “o primeiro volume das [suas] Memórias”.
Na primeira parte, os textos acompanham a evolução e crescimento de Dona Aninhas, a filha, desde o nascimento, dando conta de cada nova manifestação – quando se sentou, o nascimento do primeiro dente, o reconhecimento da imagem no espelho, a ida ao teatro, a ida ao colégio. Surpreendido pelas diversas manifestações, alguns dos momentos constituem ocasião para uma missiva destinada à herdeira, quase em jeito de ensinamento a legar para a posteridade, como sucede no texto “O Relógio”, de Janeiro de 1916, motivado pelo facto de a criança ter encostado o ouvido ao mostrador: “À medida que fores crescendo, verás que te não pertences. Pertences ao relógio. Ele te dirá a que horas te deves levantar, quando te deves deitar, o momento em que deves comer, o instante em que chegarão as tuas alegrias e aquele em que despontarão as tuas amarguras. (…) Acabarás por te acostumar e deixar-te-ás conduzir, na impossibilidade de te resgatares dessa prisão, dessa galera. Vai-te entretendo com ela agora. Outros dias chegarão em que deixarás parar o teu relógio na doce intenção de o não ouvir, para afinal lhe dares corda, poucos momentos volvidos, ao reconheceres a tua insignificância perante o Tempo, que a todos nós governa.” São crónicas de ternura paternal e de descoberta, onde nem falta uma “Carta das Trincheiras” a explicar à filha o porquê da sua ausência, a participar na Grande Guerra – “Bem vês, ó meu bem, ó minha Aninhas linda, que, sendo eu um soldado, entre os soldados tinha obrigação de estar e na primeira linha”. A explicação poderá não ser suficiente para a criança destinatária, mas fica a promessa de mais coisas serem contadas “um dia, no regresso”.
A Primeira Grande Guerra constitui, de resto, o eixo central das crónicas da segunda parte, seja para elogiar combatentes de Naulila, seja para ir comentando os acontecimentos na Europa – enaltecimento da coragem belga e do rei Alberto, a batalha de Verdun (em que “a fera quebrou os seus melhores dentes contra a mole de aço da resistência francesa”), o sentimento de solidariedade devida pelos portugueses (“Nenhum português tem o direito, seja qual for a latitude política em que se encontra, de se manifestar insensível ao momento que vivemos. (…) Estamos em guerra e estamos todos em guerra. Daqui não há que sair.”), a impressão causada pelo relato de um marinheiro francês participante na defesa de França, tristeza pelo abandono a que o Corpo Expedicionário Português foi votado pelo governo português, sofrimento perante a destruição da catedral de Reims, a alegria perante o desfile dos vencedores em Paris, o sacrifício dos soldados mortos e a sua entrada na memória. Ainda que algumas crónicas tenham data anterior à partida de Brun para a Flandres (em Abril de 1917), elas demonstram o espírito que animou muitos adeptos da participação de Portugal no conflito, designadamente André Brun, apelando para uma consciência do que nessa região europeia acontecia.
A sua obra maior, em termos de memorialismo da sua participação na guerra, publicara-a André Brun em 1918, A Malta das Trincheiras (que já ia na 3ª edição em 1923). Além desta obrigação de partir para a Flandres por ser militar, Brun cumprira também uma promessa feita a seu pai, André Regis Brun, combatente francês em 1870, quando a França perdeu território a favor da Alemanha – se voltasse a guerra, o filho entraria para dar continuidade à desforra desejada pelo progenitor…
A terceira parte do livro contém capítulos memorialísticos e notas de leitura sobre Mercedes Blasco, Teófilo Braga, Bulhão Pato, António Bandeira, D. João da Câmara, Augusto Gil, Fialho de Almeida, Olavo Bilac, Rafael Pinheiro, Henrique Trindade Coelho, Gabriel d’Annunzio, Júlia Lopes de Almeida, Camões, Manuel de Arriaga, Coelho Neto, Paulo Barreto (João do Rio), José Queirós, Mário Pederneiras, João Chagas, Campos Monteiro, Eduardo Schwalbach, José Duro, Augusto de Castro, Eugénio Vieira, Chagas Franco (a propósito de um romance relacionado com a Grande Guerra) e Henri Bataille. Por estas crónicas passa a leitura atenta e sensível, a apreciação fundada, o testemunho de momentos únicos e o cruzamento da cultura portuguesa com o Brasil.
Na quarta parte, surgem as crónicas sobre costumes, sobre a Lisboa de bairro, de onde não estão ausentes as festas, os dizeres, a graça, a ironia, podendo o leitor de hoje encontrar ali motivo de boa gargalhada, quer pela forma de dizer, quer pela parecença com situações que ainda hoje vivemos.
Esta obra de André Brun faz jus àquela verdade que sobre si mesmo escreveu quando, um dia, alguém lhe observou que ele andava sempre sorridente e bem disposto: “A vida não me poupa e o meu quinhão de aborrecimentos não é menor que o dos outros. Porém, em vez de o contar ou comentar de lágrima na voz e rancor na boca, relato-o ou analiso-o com o sorriso nos lábios e a serenidade no coração.” (in Os Meus Domingos). Além desta razão, a visita a este livro justifica-se pela qualidade dos textos, pela abertura com o leitor, pelo estilo praticado, pelo tom de mestre que Brun reflecte na estrutura das crónicas.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

La Lys, em 9 de Abril de há 90 anos… (2)

As perdas portuguesas em La Lys rondaram os 7 mil homens, tanto como cerca de um terço da força combatente portuguesa nessa data: 398 mortos e 6585 prisioneiros. A acrescer, mais ou menos um milhar e meio de feridos. Entre os prisioneiros, 233 viriam a morrer durante o cativeiro. Portugal mobilizara cerca de 100 mil homens para participar na Primeira Grande Guerra, deixando no local do confronto cerca de 8 mil. Ao longo dos 51 meses que a guerra durou (a contrariar as expectativas iniciais de que o conflito seria rapidamente resolvido), houve 65 milhões de mobilizados, 8 milhões e meio de mortos, 20 milhões de feridos e milhares de prisioneiros e desaparecidos. Números que impressionam nesse tempo entre o início de Agosto de 1914 e 11 de Novembro de 1918, data da assinatura do armistício.
Com a batalha de La Lys, o sector português foi aniquilado. Às perdas somava-se o cansaço pela longa permanência na frente, o abatimento moral, o abandono a que Lisboa votara o Corpo Expedicionário Português (CEP) e a falta de pessoal, essencialmente de oficiais.
De todas as figuras participantes em La Lys bem poderíamos falar de um herói colectivo, mas a história encarregou-se de encontrar um símbolo no soldado “Milhões”, de seu nome Aníbal Augusto Milhais, originário da Infantaria de Chaves. Em 9 de Abril, com uma metralhadora, em Huit Maisons, esquecendo o fogo inimigo, protegeu a retirada de muitos militares portugueses e escoceses.
Em Portugal, já não há combatentes da Primeira Grande Guerra vivos, mas muitos dos seus nomes são lembrados em placas toponímicas, em listagens locais, em pequenos memoriais, nas sempre procuradas avenidas “dos Combatentes” e nos monumentos aos “Mortos da Grande Guerra”. São marcas que vão ficando e bom seria que não passassem. Estamos, obviamente, longe do que aconteceu em França, onde não houve família que não tivesse um parente na linha de combate. Talvez por isso a memória seja lá mais viva e constantemente estejam a ser produzidos estudos sobre a Primeira Guerra Mundial. Lá mesmo, num inquérito a 1015 pessoas realizado no início de Novembro de 1998 para o jornal Le Monde e para France 3, a fim de serem indicados os acontecimentos marcantes do século XX, foram obtidos os seguintes resultados: 2ª Guerra Mundial – 62%; movimentos estudantis do Maio de 68 – 43%; queda do regime soviético – 38%; 1ª Grande Guerra – 35%, seguindo-se a construção europeia, a descolonização, o choque petrolífero dos anos 70, a crise de 1929, a revolução russa de 1917 e a revolução islâmica iraniana – dados que se tornam importantes uma vez que foram os inquiridos mais jovens a colocar a 1ª Guerra nos lugares cimeiros (a classe dos 15-19 anos atribuiu-lhe o 2º lugar).
A literatura memorialística e militar deu destaque ao 9 de Abril. Mas também a ficção não lhe foi alheia, tendo a data servido, por exemplo, para título de uma narrativa assinada por José Rosado e pelo capitão Silva Neves (Lisboa: João Romano Torres & Cª – Livraria Editora, s/d) e de uma peça de teatro assinada por António Botto (Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, s/d). E ainda recentemente, em 2004, José Rodrigues dos Santos procedeu à recriação do sucedido em La Lys no seu romance A filha do capitão (Lisboa: Gradiva, 2004).
Muito embora a presença de Portugal nos campos da Flandres tenha ocorrido apenas a partir de Janeiro de 1917, certo é que o nosso país teve de combater também nas frentes de África, em Angola e em Moçambique. Das três participações ficaram relatos interessantes e sentidos, numa prática da literatura do vivido, do testemunhado, da memória, intensa, ainda que, hoje, quase só sejam lembrados os escritos memorialísticos de autores como Pina de Morais - Ao parapeito (Porto: Renascença Portuguesa, 1919) e O soldado-saudade na Grande Guerra (Porto: Renascença Portuguesa, 1921) -, André Brun - A malta das trincheiras (Lisboa: Guimarães & Cª, 1919) -, Augusto Casimiro - Nas trincheiras da Flandres (Porto: Renascença Portuguesa, 1919) e Calvários da Flandres (Porto: Renascença Portuguesa, 1920) - e Jaime Cortesão - Memórias da Grande Guerra (Porto: Renascença Portuguesa, 1919) -, apesar de muitos outros terem deixado o seu testemunho.