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quarta-feira, 18 de outubro de 2023

O aluno Camus e o professor Germain (2)



Se Camus demorou cerca de um mês a contactar o professor Germain depois de lhe ter sido atribuído o Nobel da Literatura, a verdade é que associou definitivamente o nome do seu mestre ao prémio que recebeu: os textos da prelecção que fez, em 10 de Dezembro de 1957, na Câmara Municipal de Estocolmo, e da conferência “O artista e o seu tempo”, que fez na Universidade de Upsala quatro dias depois, foram reunidos sob o título Discursos da Suécia, publicado no ano seguinte, obra dedicada “a M. Louis Germain”, desta forma ficando para o conhecimento do mundo a referência que o professor foi para o premiado.

A mais antiga carta contida no livro Caro Professor Germain - Cartas e Excertos foi escrita por Louis Germain em Paris, em 15 de Outubro de 1945. Camus era conhecido pela sua intervenção jornalística em prol da Resistência e por chamar a atenção para o estado da Argélia. Depois do vocativo “Meu caro rapaz”, Germain apresenta-se e faz-se lembrar, não sem invocar o seu alistamento como voluntário, aos 58 anos, no Corpo Franco-Africano em Argel, onde militou até à Libertação. Que objectivo tinha a carta? “Estou prestes a partir para Argel e ficaria muito feliz se pudesse ver-te antes de viajar. Como penso ter contribuído, ainda que com uma ínfima parte, para o teu destino, gostaria que me confirmasses se não me enganei ao encaminhar-te para o liceu.” Camus terá recebido esta carta tardiamente, por ter saído do jornal onde trabalhava, e só responde por finais de 1945: “Quero, sem qualquer dúvida, voltar a vê-lo. Não saberei dizer até que ponto a recordação que tenho de si permanece comigo - nem como lhe dar conta da minha gratidão. Mas, pelo menos, podemos falar desse passado, que continua a ser o que tenho de mais querido.”

A correspondência entre os dois manter-se-á até final da vida de Camus, manifestando este sempre a importância que Germain teve na sua vida, como se pode ver em carta de 13 de Fevereiro de 1950 - “O aluno permitir-se-á censurar uma frase ao seu querido mestre. Aquela em que me diz que tenho mais que fazer do que ler as suas cartas. Não tenho e nunca terei nada melhor para fazer do que ler as cartas daquele a quem devo o que sou, e que amo e respeito como ao pai que nunca conheci.”

Na última carta conhecida de Germain para Camus, de 30 de Abril de 1959, o professor revela o princípio que praticou nas aulas a que a criança Albert assistiu: “O pedagogo que quer desempenhar conscientemente a sua profissão não despreza nenhum dos momentos que lhe é oferecido para conhecer os seus alunos, as suas crianças, e expõe-se a eles continuamente.” E, mais adiante, na mesma missiva: “Creio ter respeitado, durante toda a minha carreira, o que há de mais sagrado numa criança: o direito de procurar a sua verdade. Amei-vos a todos, e creio ter feito o possível para não manifestar as minhas ideias e influenciar, assim, a vossa inteligência jovem.” A derradeira carta de Camus, de 20 de Outubro seguinte, reafirma a importância daquele mestre: “Sabe bem que nunca poderei reconhecer completamente aquilo que eu, sim, lhe devo. Vivo com essa dívida, contente por saber que ela é impagável.”

Não fora Germain e Camus não teria prosseguido os estudos no Grand Lycée d’Argel, de tal maneira o rapaz estava destinado a um trabalho manual para ajudar na manutenção da casa de família - ao professor coube mostrar à mãe e à avó do pequeno que ele deveria continuar a estudar, que tinha todas as condições para isso. O episódio é romanceado na primeira parte da narrativa O primeiro homem, intitulada “A procura do pai”, no capítulo dedicado à escola (incluído na obra Caro Professor Germain), onde o leitor pode ver que o sentimento do aluno Jacques pelo professor Bernard outra coisa não será senão o de Camus por Germain - depois de a família aceder ao prosseguimento de estudos e depois de feito o exame de acesso ao liceu, o mestre despede-se do discípulo: “Não terás mais necessidade de mim, vais ter mestres mais sábios. Mas sabes onde estou, vem ver-me se precisares da minha ajuda.” 

Na correspondência reunida em Caro Professor Germain, impressiona a história do relacionamento entre estes dois homens, baseado na relação fraternal entre o professor e os alunos, no facto de o professor reconhecer em cada aluno uma pessoa com pensamento e ideias próprias, numa relação de afecto, cultivando a distância, da parte do professor (sem esquecer as penalizações, de que Camus dá conta no romance inacabado e publicado postumamente). Por outro lado, da parte do aluno, socialmente carenciado, vibra o enaltecimento de uma pessoa, aquele professor, que o marcou e de quem se sente devedor. As cartas que testemunham este sentimento são extraordinárias de emoção e não as podemos sentir sem as associarmos àquilo que foi um professor como Sebastião da Gama, com quem os alunos se cartearam, graças ao mesmo sentido de grandeza humana...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1168, 2023-10-18, pg. 13.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

O aluno Camus e o professor Germain (1)

 


Em 17 de Outubro de 1957, o Diário de Lisboa noticiava o nome do Prémio Nobel da Literatura desse ano, que a Academia Sueca revelara no dia anterior: “o escritor francês Albert Camus, pela sua importante obra literária que põe em relevo os problemas que hoje se apresentam à consciência dos homens.” Cerca de um mês depois, em 19 de Novembro, o laureado escrevia uma carta a Louis Germain (1884-1966), que fora seu professor no ensino primário: “Caro Professor Germain, Deixei que acalmasse um pouco todo o ruído que me envolveu nos últimos dias, antes de vir falar-lhe um pouco e de coração aberto. Acabam de me conceder uma grande honra, que não busquei nem pedi. Mas, quando soube da notícia, o meu primeiro pensamento, depois da minha mãe, foi para si. Sem o senhor, sem essa mão afectuosa que estendeu à pequena criança pobre que eu era, sem o seu ensinamento e exemplo, nada disto me teria acontecido.”

Esta é uma das vinte cartas trocadas entre Albert Camus (1913-1960) e o seu mestre, que integram a obra Caro Professor Germain - Cartas e Excertos, acabada de publicar (Livros do Brasil, 2023), pela primeira vez editadas em França no ano passado, embora algumas delas fossem já conhecidas.

Com a publicação desta correspondência, facilmente se percebe o significado do professor para o escritor franco-argelino. Já no seu romance A peste (1947), era feita uma referência ao papel do professor - “Não se felicita um professor por ensinar que dois e dois são quatro. Felicitar-se-á talvez por ter escolhido essa bela profissão.” E talvez não possamos ler esta citação sem saber que, dois anos antes, se dera o reencontro entre o ex-aluno Camus e o professor Germain, adiado desde que se tinham conhecido na Escola Comunal de Belcourt, em Argel, no início da década de 1920. 

Se Camus só contactou o professor cerca de um mês depois de ser conhecida a atribuição do Nobel, a resposta do mestre demorou apenas três dias - em 22 de Novembro, desde Argel, Germain congratulava-se com a honra do discípulo e com o reconhecimento que este expressara e desabafava: “São muitos os alunos que tenho encontrado ao longo da vida e que me dizem conservar de mim uma boa recordação, apesar da minha severidade quando era preciso. A razão é muito simples: amava os meus alunos e, de todos eles, um pouco mais aqueles que a vida desfavorecera.” Esta explicação servia para Albert Camus, cujo pai, combatente na Grande Guerra, falecera na batalha do Marne, em 1914, e servia também para Germain, que combatera na mesma guerra até ao final (embora tenha sido ferido na batalha de Nieuport), se justificar: “Quando me vieste parar às mãos, ainda estava sob o golpe da guerra, da ameaça de morte que, durante cinco anos, ela fez pesar sobre nós. Eu consegui voltar, mas outros, com menos sorte, sucumbiram. Vi-os como camaradas infelizes, tombando e confiando-nos os que cá deixavam. Foi pensando no teu pai, meu caro rapaz, que me interessei por ti, como me interessei por outros órfãos de guerra. Amei-te um pouco por ele, o melhor que pude, não tive outro mérito. Cumpri um dever sagrado a meus olhos.”

Camus nunca esqueceu os ensinamentos do professor Germain. Quando, num acidente de automóvel, faleceu, em 4 de Janeiro de 1960, estava a escrever um romance, que ficou inacabado e só foi publicado em 1994, O primeiro homem, obra repleta de referências autobiográficas em que são intervenientes as personagens Jacques Cormery, um possível alter-ego de Camus, e “Monsieur” Bernard, professor que deixa perpassar a imagem de Germain - aliás, em dado passo do manuscrito, Camus deixa escapar a verdadeira identidade da personagem, escrevendo: “Dans la classe de M. Germain, pour la première fois, ils sentaient qu’ils existaient et qu’ils étaient l’objet de la plus haute considération” (“Na aula do Senhor Germain, pela primeira vez, eles sentiam que existiam e que eram objecto da mais alta consideração”).

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1163, 2023-10-11, p. 8.


quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Imagens do ser professor (a propósito do Dia Mundial do Professor)



Em 1886, Edmundo de Amicis (1846-1908) publicava a narrativa Coração, diário de um jovem estudante, que, num determinado dia, relatava a visita da criança e do seu pai a Crosetti, velho professor de 84 anos. Este encontro advinha do facto de o educador ter sido condecorado pelos seus 60 anos de ensino e da forma viva como o progenitor do jovem, seu ex-aluno, ficara marcado pelas lições recebidas, tal como, durante a viagem foi testemunhando: “Foi o primeiro homem que me estimou e ajudou, depois do meu pai. Nunca esqueci alguns dos conselhos que me deu, nem de certas descomposturas que me faziam voltar para casa com um nó na garganta. Todos os dias chegava à aula com a mesma disposição, sempre muito consciencioso, cheio de boa vontade e atento, como se começasse a ensinar pela primeira vez.”

A recordação de Bottini pode parecer apenas sentimental, mas ganha todo o sentido se pensarmos com Christopher Damien Auretta: “O que é que está em jogo na Escola? Tudo: os destinos dos jovens e o destino da comunidade humana.” (Autobiografia de uma sala de aula, Colibri, 2020). E lembremos Frank McCourt (1930-2009), que, na sua obra autobiográfica O professor (Presença, 2009), relata que chegou a ter de pensar com os alunos o que era o acto de ensinar e o que era a escola: “Descobri uma equação. Vou escrever do lado esquerdo do quadro um M maiúsculo e do lado direito do quadro um L maiúsculo e depois faço uma seta da esquerda para a direita, de MEDO para LIBERDADE. Acho que nunca ninguém é completamente livre, mas o que estou a tentar fazer com vocês é empurrar o medo para um canto.”

Estratégias úteis para a vida, na sua pluralidade de sentidos, era também aquilo que o professor do romance As sombras de uma azinheira, de Álvaro Laborinho Lúcio (Quetzal, 2022), pensava conseguir junto dos seus alunos, pois, “para ele, ser professor não era muito diferente de ser médico. A ambos se exigia estudo e dedicação para compreenderem, para conhecerem bem aqueles com quem lidavam, perceberem as suas origens, comprometerem-se na construção dos seus destinos.”

O objectivo supremo da escola e do ser professor, como pensou Manuel Nunes em A Professora, os Porcos e os Cisnes (Gradiva, 2012), é claro: “A escola existe para educar para o sublime. A sua missão consiste em conduzir para o mais alto do mais alto. Ela tem a obrigação moral de ter como meta e como horizonte a perfeição.” Este é o desafio de sempre para o professor, personagem que, no romance Não matarás, de Teresa Martins Marques (Gradiva, 2022), é assim apresentada: “sorriso e cordialidade, conhecimento seguro das matérias, autoridade sem autoritarismo, fazem o bom professor.”

Para seguir este caminho, Sebastião da Gama (1924-1952), em 1949, anotava no seu Diário (Presença, 2011): “- Tens muito que fazer? - Não. Tenho muito que amar. (Não entendo ser professor de outra maneira.)” E estes princípios não se delapidam no tempo - em 2007, Daniel Pennac manifestava, em Mágoas da escola (Porto Editora, 2009), um sentimento semelhante: “Os professores passam o tempo a refugiar-se nos métodos, quando, no fundo, sabem perfeitamente que o método não basta. Falta-lhe qualquer coisa. (...) Amor!”

Misturam-se, ao longo destes retratos, muitas coisas, mas a essencial permanece - a imagem e o papel do professor. E que bom seria se pudéssemos subscrever aquilo que Albert Camus (1913-1960) disse sobre o professor no seu romance A peste (1947): “Não se felicita um professor por ensinar que dois e dois são quatro. Felicitar-se-á talvez por ter escolhido essa bela profissão.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 937, 2022-10-12, p. 4.


quarta-feira, 27 de maio de 2020

E, de repente... pensar o futuro



E, de repente... ela abateu-se sobre nós. Num tempo em que todos acreditávamos que estaríamos defendidos de pestes, eis que, vinda do lado nascente, sem se anunciar, paulatinamente, ela surgiu, a pandemia, criando desequilíbrios, morte, apreensão, mudanças. Arrastados, transformámos o nosso estar, o nosso olhar, o nosso sentir, a nossa linguagem. E agarrámo-nos ao sonho de que “tudo vai ficar bem”. Mas, no fundo, o medo acompanha-nos. Isso, o medo. É novidade para nós mas não para a Humanidade, que já conhece narrações como a de Boccaccio (em Florença) ou a de Camus (em Oran)...
Há uns anos, noutra crise, essa de cariz económico, Rui Zink escreveu um texto notável sobre o nosso sentir, A instalação do medo (Teodolito, 2012), referindo: “A ‘crise’ é sempre ‘económica’. As ‘reformas’ são sempre ‘estruturais’. O ‘futuro’ é sempre ‘melhor’. Ou ‘para os nossos filhos’. As ‘medidas’ são sempre ‘necessárias’. Se não fossem necessárias não seriam medidas. Não há alternativa. (…) Os outros fazem política. Nós não fazemos política. A nossa política é a virtude. A nossa política é o trabalho. A nossa política é o medo.” É este medo que nos leva a idealizar que, no futuro, “tudo vai ficar bem”. Assim como quem diz que, por agora, não sabemos o que pode acontecer. Assim como quem diz que esse sonho aniquila o presente sofrido, angustiado. Assim como também escreveu Afonso Cruz nesse romance curioso intitulado Jesus Cristo bebia cerveja (2012): “Conhecer o futuro dá cabo do presente.” Contudo, conseguimos equilibrar a dose de angústia e de curiosidade, de realização e de idealização, neste oscilar entre tempos, através de algumas saídas que preenchem o nosso quotidiano, pois, “embora nos pese toda a indefinição ou os maus prognósticos, conservamos em relação ao futuro uma expectativa que nunca é completamente fechada. Quem sabe? – insistimos nós.” Quem isto escreveu foi José Tolentino Mendonça numa crónica depois reunida no livro Que coisa são as nuvens (Expresso, 2015). O “quem sabe?” é a frincha por onde almejamos que o futuro seja a realidade que agora imaginamos, pelo menos um esgar dessa imaginação...
Daí que, verdade lapaliciana, vale a pena acreditar no futuro. Sobretudo porque sabemos que este presente a que nos habituámos e que temos continuamente feito tem tido muito do que o futuro vai ter e tem tido falta de coisas que o futuro vai trazer. As primeiríssimas questões estarão relacionadas com um diferente olhar sobre nós e sobre o outro e sobre a maneira como nos integramos no mundo e o transformamos. E estas serão questões de vida, que permitirão transformar o conflito em coisas positivas. Como pôs Baptista-Bastos, em As bicicletas em Setembro (2007), “todos os dias constituem o abismo quotidiano do futuro.”
O presente, que todos estamos a entender como um tempo de aprendizagem e desafio nunca experimentado (porque nunca passámos por isto, apesar de os nossos antepassados já o terem sofrido), tem de nos dar pistas para o que há a vir. Somos importantes, muito importantes, num espaço partilhado que nos permite sentir, respirar, trabalhar, viver... a nossa “casa comum”, como tão bem o definiu o Papa Francisco. Se há lição para o futuro é a deste questionar que nos temos de fazer quanto ao nosso contributo para o destino desta “casa” que é o espaço da Humanidade, mesmo que isso tenha de passar por uma outra visão do que seja o nosso “bem-estar”, absolutamente necessário, mas diferente, outro. Um futuro consentâneo connosco. E seja-me permitido usar o humor de António Manuel Ribeiro, o músico que, em Todas as faces de um rosto (2002), escreveu, a propósito das intenções para o devir e por causa de uma situação totalmente diversa: “Meu Deus, porque me hão de perguntar, no fim de cada entrevista, quais os meus planos para o futuro? Haverá, porventura, planos para o passado? E se o novo disco saiu agora que me interessa planear já outro futuro? Que cartilha é esta onde todos foram beber a arte de entrevistar? Planos para o futuro? Olhe, continuar a respirar, mudar as cordas da guitarra e brincar com o meu cão. Chega?”
Simples? Não, complexo. Mas o desafio passa por esta selecção sobre o que é essencial para que o humano o seja.
* Magazine Synapsis: nº 14, Primavera.2020, pp. 30-31.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Camus e o homem que contou a peste



“Na manhã do dia 16 de Abril, o doutor Bernard Rieux saiu do seu consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. Nesse momento, afastou o bicho sem lhe prestar atenção e desceu a escada.” Estamos num ano da década de 1940, na cidade argelina de Oran, no arranque da história que Albert Camus conta na obra A peste (Lisboa: Livros do Brasil), de 1947.
Quem relata a acção vive na cidade e é muito próximo do médico Rieux e dos seus amigos, não se envolvendo nos casos apresentados. Percebe o leitor, no final, se o não suspeitou ao longo do romance, que o cronista é o mesmo Rieux, que “quis tomar o tom de testemunha objectiva” ao longo do relato.
Tudo acontece em dez meses, período que levou a cidade, dominada pela peste bubónica, ao isolamento, vidas fortemente condicionadas, um quase estado de sítio - as personagens “experimentavam assim o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e de todos os exilados que vivem com uma memória que não serve para nada”, num espaço confinado que, “se era o exílio, na maior parte dos casos era o exílio em casa.” A Rieux, pela profissão que exercia, não lhe restou “senão conhecer o exílio de toda a gente”: o tempo da diferença - cortejos fúnebres suprimidos, desorganização da “vida económica e número considerável de desempregados”, relações sociais reduzidas ao impensável, derrota das crenças e das súplicas, choros e pesares sem fim, ausência de futuro, a condição humana. Num mundo em desmoronamento, Tarrou, amigo de Rieux (e que com ele agiria na assistência à comunidade), questiona o médico sobre o sentido da sua profissão - a resposta tem a humildade e a simplicidade do tamanho do ser humano: “Não sei o que me espera nem o que há de vir depois de tudo isto. Para já, há doentes e é preciso curá-los. Defendo-os como posso, aí está.”
Bem próximo do final, há personagens que discutem a mudança pós-flagelo, ficando-se pela incógnita: “O mais forte desejo dos nossos concidadãos era e seria fazer como se nada tivesse mudado - nada, em certo sentido, seria mudado, mas, noutro sentido, não se pode esquecer tudo e a peste deixaria vestígios, pelo menos nos corações.”
Camus viveu em Oran (de onde era sua mulher) entre 1941 e 1942. Depois, regressou a França, para território que seria ocupado pelos invasores alemães. “A peste”, relatando uma epidemia que não aconteceu, é uma reflexão sobre o Mal (que ninguém está preparado para receber), uma alegoria sobre o crescimento e efeitos do nazismo. Por isso, Rieux (que acudiu à sua comunidade e perdeu os mais próximos), perante a alegria dos conterrâneos aquando do fim da peste (equivalente ao período da libertação), que podia ser ameaçada, pensa, a fechar o livro: “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada” e poderia vir “talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
"500 Palavras", in O Setubalense: nº 376, 2020-04-17