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quinta-feira, 31 de março de 2022

Bocage pelo olhar de Calafate (3)



O centenário bocagiano de 1905 foi intensamente vivido em Setúbal, com o jornal O Elmano a envolver a população. Houve hino a propósito; conferenciou-se, recebendo Setúbal palestrantes como Manuel de Arriaga (1840-1917) ou Teófilo Braga (1843-1924); foi cunhada moeda de prata; o artista João Vaz esculpiu a lira que passou a adornar o monumento a Bocage; o cortejo de 21 de Dezembro foi apoteótico, com carros alegóricos, iluminações e filarmónicas; os participantes setubalenses nesse dia de festa rondaram os quinze mil, além de seis mil “forasteiros”, vindos sobretudo da capital.
António Maria Eusébio, no folheto Cantigas para Guitarra, de quatro páginas, publicado ainda em 1905 ou em 1906, reportou o evento em quatro poemas, como anuncia logo na primeira quadra, mote para o primeiro conjunto de décimas - “Parabéns irmão Bocage / Para ti nada faltou / Do teu primeiro centenário / Segunda memória ficou.” -, evidenciando o sucesso das realizações e a comparação, na grandiosidade simbólica, com o que acontecera 34 anos antes, na inauguração do monumento a Bocage. A impressão que ficou no “Calafate” foi tão intensa que a primeira décima se inicia pela hiperbolização - “Não é no século actual / Nem outro que há de vir / Que algum povo há de assistir / A um centenário igual.” No seguimento da narração, depois de considerar que “foi festejo extraordinário” (com “quatro arraiais”, “três sociedades”, “duas bandas regimentais”, “quatro oradores”), aconselha o poeta: “Se no teu itinerário, / Encontrares Camões, / Conta-lhe as manifestações / Do teu primeiro centenário.”

O segundo poema toma como assunto a limpeza que foi feita à estátua por um “peneireiro” habilidoso, fala de alguma desolação pelo final da festa (“Agora tudo tornou / Ao seu primeiro estado / Está o festejo acabado / Sem haver perdas nem danos / Para daqui a cem anos / Ficou tudo preparado.”) e denuncia o facto de não ter sido permitido ao “velho cantador” aproximar-se do centro do evento - “Também quis acompanhar / Esse teu rico festejo, / Mataram-me o meu desejo, / Não me deixaram passar. / Antes eu queria levar / Um bofetão no meu rosto, / Mas sofrendo esse desgosto / tornei p’ra trás, vim-me embora.”

A adesão de António Maria Eusébio a Bocage decorria das informações que lhe chegaram através de uma conhecida figura setubalense, que teve o condão de divulgar a história, as ideias e a importância do poeta, como reconhece: “Quando eu ignorava / Quem Bocage tinha sido, / Tive um velho conhecido / Que dele muito falava. / Valia ninguém lha dava, / Seu saber estava oculto, / Depois que houve o tumulto / Da sua inauguração, / Muitos dizem, e com razão, / Bocage foi grande vulto.” Consegue-se inferir a referência a Manuel Maria Portela (1833-1906), um dos maiores promotores da figura de Bocage em Setúbal.

No último poema do folheto, o tom é algo mais brejeiro. Referindo a conservação da escultura bocagiana, anota: “Tu estavas tão mascarrado / Dos pés até ao pescoço, / Agora és um rapaz moço, / Barba feita e cu lavado.” E, quanto à lira deposta na base do monumento, ri o “Cantador” - “Tens uma lira afinada / Que custou tanto dinheiro, / Sendo tu tão bom gaiteiro / Já não dás uma gaitada.” A finalizar, o “Calafate” exagera, dizendo ao poeta maior: “Ainda hás de ser aclamado / Por D. Bocage primeiro” e “Também hás de ser c’roado.”

À sua maneira, António Maria Eusébio contribuía para a promoção de Bocage, prolongando o inebriamento da festa que honrara o poeta...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 817, 2022-03-30, pg. 5.


domingo, 15 de janeiro de 2017

Fado com histórias de Setúbal (2): Bocage na origem de “fado”?



O segundo título da colecção “Os Livros mais Afamados do Fado”, em distribuição pelo diário Público (editados por A Bela e o Monstro), reproduz em facsímile a obra O Fado - Canção de Vencidos (Lisboa: ed. Autor, 1936), de Luís Moita (1894-1967), contendo o texto de oito palestras radiofónicas que tiveram lugar na Emissora Nacional, entre 28 de Abril e 4 de Agosto de 1936, numa perspectiva, como o subtítulo deixa inferir, algo anti-fadista, desviando-se de uma leitura que encarava o fado como uma “canção nacional”. A diferença do livro relativamente às palestras cifra-se no acrescento das notas, contendo elementos e referências documentais importantes para a história do género.
A segunda palestra, intitulada “O Fado e o Brasil - O Mistério do Nome”, proferida em 12 de Maio de 1936, começa por biografar rapidamente Bocage, chamando a atenção sobretudo para as suas marcas de “ídolo popular” que era nos alvores de 1800, comprovado mesmo por autores estrangeiros como William Beckford, transcrito em nota final, ou Heinrich Link, igualmente referido em nota final, não de forma directa mas através de citação de Teófilo Braga - o leitor de hoje pode encontrar o registo de Beckford na obra A Corte da Rainha D. Maria II - Correspondência de William Beckford (Lisboa: Frenesi, 2003, cap. XXIV) e o de Heinrich Friedrich Link em Notas de uma Viagem a Portugal e através de França e Espanha (Lisboa: Biblioteca Nacional, 2005, apêndice “Sobre a Literatura e a Língua Portuguesas”). De facto, o poeta sadino poderia corresponder ao modelo de alguém propenso para o mundo do fado, como se pode ver pela apresentação sucinta que dele é feita - «figura de vivo destaque na boémia da capital, Bocage, vaidoso, sensual, brincalhão, cheio de espírito, representava, à parte o seu enormíssimo talento, o espelho e a consequência da sociedade de então». No entanto, o destaque nesta referência a Bocage vai para o uso frequente que o poeta fez da palavra “fado”, na senda camoniana, mas talvez com mais propriedade - «Bocage, imitando Camões, não reagiu, ao contrário deste, com a sociedade do seu tempo, não se impôs a ela; deixou-se além disso dominar pelos “prazeres, sócios meus e meus tiranos”, por isso foi desgraçado, por isso os seus versos mais sentidos e espontâneos traduzem a dor que lhe queimou e torturou a curta existência. Por isso Bocage adoptou o termo “Fado” como perfeitamente ajustável à desgraça de que se sentia possuído.» E conclui o autor dizendo que, a partir da viagem bocagiana para a Índia, o termo “fado” passou a ser uma constante na sua obra, adaptando-se «a quase toda a sua espontânea produção».
Passe o facto de Luís Moita registar a morte de Bocage como tendo acontecido em Novembro de 1805 (assim retirando um mês à sua já curta vida), certo é que este autor considera fundamental o uso da palavra “fado” por Bocage, sobretudo pela influência exercida sobre os seus seguidores, os elmanistas - «em toda a obra espontânea de Bocage, principalmente nos sonetos e redondilhas, se encontra disseminado o termo “Fado”, tornado moda, por ele influenciado nos poetas menores do seu tempo, satélites da sua estranha fulguração”, círculo que abrangeu, por exemplo, o brasileiro Caldas Barbosa, o “Lereno” das “modinhas” e “lunduns” de além-Atlântico.
A importância dada a Bocage na designação do género alarga-se mesmo em Portugal, quando, em 1805 (ano da morte do poeta setubalense), Felisberto Inácio Januário Cordeiro, que usou o pseudónimo de Falmeno, publica Poesias de um Lisbonense, conjunto de «versos onde o estilo bocagiano, misturado afoitamente no sabor alambicado da ‘modinha’ e nas dolências do ‘lundum’, toma para si o termo ‘Fado’, ainda na acepção de destino falhado e ruim, mas já como expressão em uso, ou moda, no quadro da inspiração popular».
A teoria de Luís Moita conclui-se com a origem da designação do género: «Inclino-me, portanto, a considerar que os suspiros amorosos da ‘modinha’ e as tristezas do ‘lundum’ se apossaram do termo ‘Fado’, no alvorecer do século XIX, para símbolo popular, da sua compleição impressiva»; logo, supõe Moita «haver encontrado aqui o ‘mistério do nome’ da futura canção lisboeta...»
Esta explicação serve ao palestrante para concluir a conversa com a contestação da crença romântica de que o fado tenha nascido no mar, nas viagens dos Descobrimentos, advogando que o mar pode ter sido apenas o veículo, assim pretendendo chegar mais longe: «o Fado não é uma afirmação do valor português na via marítima dos descobrimentos, antes uma consequência desse mesmo comércio na estrada do Atlântico». Por isso, umas linhas antes, Luís Moita admite que «o fado deve ter sido ‘batido’ em Portugal, pela primeira vez, por boleeiros e fidalgos, por ciganos, arrieiros e marujos da rota do Brasil, depois de Março de 1822, isto é, ao regressar dali a corte portuguesa, e com ela, todos os múltiplos interesses que lhe eram afins.» É peremptoriamente que a palestra encerra, num quase arrumar o assunto com a teoria do nascimento do fado nas viagens marítimas: «Dizer que o ‘Fado’ nasceu no mar, só para mais facilmente solucionar a questão da origem, indeterminando-a, ou ainda por terem sido os marujos da rota do Brasil dos primeiros a ‘batê-lo’ nas tabernas da Madragoa e de Alfama, quando não nas ‘casas de Fado’, como já em 1833 se chamava a certas locandas suspeitas da capital, é fechar romanticamente os olhos para não ver uma verdade porventura incómoda a alguns, mas que deve ser grata à maioria dos portugueses.»
Bocage viria a ser, ainda, tema de “modinhas”, como surge documentado, em nota de final da obra, em texto publicado em 1836 na Colecção de Novas Modinhas para honesto recreio das Madamas e Apaixonadas do Harmonioso Canto, uma quase sequela já tardia do elmanismo, por onde passam também as histórias das mulheres bocagianas: «Meus males, minha desdita / Não podem remédio ter; / Eu deixarei de ser triste / Quando acabar de viver. // Terno, meigo e desvelado / Por Anarda estou chamando; / Mas a cruel ensurdece, / Dos meus ais sempre zombando. // Já nem duvido que Elmano / Com dolo me falte à fé; / Buscar firmeza nos homens / É remar contra a maré. // Quando dou crédito a Jónia / Entro em formal desvario; / Buscar na mulher lisura / É bater em ferro frio. // Sendo infinitos aqueles / Que persegue o fado iroso, / Nenhum há entre os que existem / Tão infeliz, tão desditoso.»

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Rostos (172)

Teófilo Braga, em Ponta Delgada