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domingo, 25 de junho de 2017

Memória: Isidoro Fortuna (1932-2017)



Conheci Isidoro Fortuna há não sei quantos anos. Quase trinta, talvez. Terá sido através do seu irmão António Matos Fortuna? Terá sido por via do seu amigo António Rodrigues Correia? Não sei, mas qualquer um deles poderia ter sido o amigo que nos aproximou...
Conversei com ele muitas vezes. Sobretudo para saber e para resolver coisas da minha ignorância e das minhas possíveis descobertas. E nunca Isidoro Fortuna se recusou a atender-me.
Ouvi-o para fazer reportagens, para aprender, para perceber o que é “ser montanhão” (nesta Quinta do Anjo, no concelho de Palmela, isso é importante e é causa de identidade), para saber o que é a raça da ovelha saloia, para aprender como se fazia o queijo de Azeitão e o queijo fresco, para conversar sobre a história e as histórias de Quinta do Anjo. E o que aprendi foi muito mais do que aquilo que eu alguma vez lhe poderia dar ou, pelo menos, agradecer.
Um dia, meus pais, vindos do Minho, estiveram por aqui num fim de semana. Tendo feito a sua vida na agricultura, achei sensato levá-los a conhecer Isidoro Fortuna. Vieram entusiasmados. E, sempre que eu os visito lá no Minho vianense, ainda perguntam por “aquele senhor que falou das ovelhas com o coração chamado Isidoro”... Lá lhes terei de dar a notícia, claro.
No sábado, dia em que Isidoro Fortuna foi levado para o cemitério da aldeia, fiz-lhe a derradeira visita. E não pude deixar de falar com a esposa, Maria Amália. Quando lhe apresentei os sentimentos, logo ela me respondeu: “Que são de paz!”. Exactamente como foi Isidoro Fortuna, que nunca vi zangado, mas sempre disponível, mesmo naquilo que poderia ser mais crítico. Que me contou da sua acção em prol da paróquia; em defesa da raça, do apuramento e da preservação das ovelhas; em afecto pelas coisas da Quinta do Anjo... sempre numa linguagem próxima, prática e pragmática, boa! Sobretudo boa. Porque a imagem que dele guardo é a de um “bom” homem, daqueles que são capazes de iluminar as vidas, daqueles que achamos que são umas bibliotecas de saber e de sentimentos. Ficar-lhe-ei sempre grato por isso!

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Ovelhas da Quinta do Anjo e de Palmela



Quando, hoje, circulava de Quinta do Anjo para Palmela, eis que o rebanho ocupava a estradazinha... e foi a oportunidade para a foto imediata.
Lembrei-me do afecto que prendia António Matos Fortuna a estas terras, do que sobre elas escreveu e investigou, do destaque que lhes deu em páginas de ouro. E... por causa das ovelhas e dos pastores, não se esqueceu o historiador Fortuna de chamar à sua terra de Quinta do Anjo a "capital da ovelharia de Entre Tejo e Sado". Lembranças... e saudades!...

sábado, 3 de julho de 2010

Cabral Adão, o centenário

A Biblioteca Municipal de Setúbal mostra uma exposição bibliográfica alusiva a Luís Cabral Adão quando passa o centenário do seu nascimento, gesto importante para a memória que Setúbal deve guardar deste escritor e médico. Aqui reproduzo um texto que, há uns anos, escrevi para o Jornal da Região, evocando Cabral Adão e a "sua" pedra na Arrábida...

Pelas 21 horas do último dia de Abril de 1938, noite chuvosa e de vento, desembarcava na Praça do Bocage, em Setúbal, onde era então o terminal rodoviário de autocarros, um transmontano que vinha tentar a vida na cidade do Sado. Deixara Vila Flor (a sua terra, no nordeste brigantino), estava quase a fazer vinte e oito anos (nascera a 24 de Junho de 1910), trazia um curso de Medicina (1933) e a especialidade de estomatologia (1938), conseguira alugar casa na Rua Ocidental do Mercado. Chamava-se Luís Manuel Cabral Adão e viria a ter consultório na Travessa da Alfândega, virado para o Largo da Misericórdia.
Meio século mais tarde (o período necessário para as comemorações designadas por "bodas de ouro"), este homem era alvo de uma homenagem em Setúbal, a assinalar os seus 50 anos na cidade, tempo passado como médico, como cidadão e como escritor. Vários amigos juntaram-se em 30 de Abril de 1988, tendo vindo a Setúbal uma delegação de Vila Flor (que integrava o respectivo Presidente da Câmara, Alfredo Travessa Ramalho). Nessa tarde, dirigiram-se para a Arrábida e, na descida do Outão para a Figueirinha, na zona conhecida por Praia das Pedras, foi descerrada uma lápide, colocada sobre rocha que da estrada se despenha sobre a praia, contendo os seguintes dizeres: "Lá numa rocha, um dia, sem festança, / Alguém inscreverá esta lembrança: / Aqui viveu e amou Cabral Adão", versos que constituem o último terceto do soneto número XV do livro Panorâmica - Poemas a Setúbal, que teve primeira edição em 1963. A lápide contém ainda as referências "30-4-1938 / Bodas de Ouro / 30-4-1988".
Na ocasião em que foi inaugurada a inscrição, o homenageado relembrou: "Este é um ponto do litoral de Setúbal que eu comecei a escalar antes que poucos o fizessem. Há quantos anos? Nem sei". Depois, contou a história: "Quando o primeiro lanço da estrada da Secil para estas arribas chegava apenas ali ao alto, nas traseiras do farolim do Outão, trepei uma escada de travessas de madeira velha para descobrir o que havia para além da trincheira. Pé aqui, pé além, evitando pedras, desviando arbustos espinhentos, atento a qualquer resvalamento perigoso, desci ao areal estreito, mas mimoso, que separava umas fortes rochas do mar... O lugar era recatado, a beleza das ondas selvagens, dos alcantis, da insondável distância. Enamorei-me da prainha. Vim aqui mais e mais vezes". A frequência com que Cabral Adão começou a acorrer àquela nesga de praia, depois acompanhado pelos filhos (Luís Guilherme, Maria de Fátima, António Viriato, Maria Manuela, João Pedro e Aida Maria), levou a que as trabalhadoras da Secil fossem designando o local por "Praia do Dr. Adão", numa referência ao frequentador quase único daquele espaço na altura.
Quando Cabral Adão chegou a Setúbal, encontrou uma série de pessoas amigas de família, tal como recordou no discurso que fez no jantar desse dia de homenagem - o padre Cassiano Cabral, seu conterrâneo e prior de Santa Maria; o major Alfredo Perestrelo da Conceição, que fora amigo de seu avô em Bragança; António Gamito, que tinha sido colega de liceu do seu tio. Começando a conhecer a cidade e as pessoas, Cabral Adão poderia dizer, em 1988, referindo-se a Setúbal, que estava na sua "segunda terra-natal", onde a família crescera.
Fascinado pela paisagem, este médico e escritor seria o autor do conhecido epíteto "rio azul" atribuído ao Sado, que hoje está generalizado na promoção da região, inspiração que não será estranha ao facto de Cabral Adão ter vivido na rua Ocidental do Mercado, que permitia o contacto diário com o rio. O seu primeiro livro, repleto de crónicas sobre a região, foi publicado em 1953 sob o título de Flores do Rio Azul. Mas o mesmo fascínio pela cor do Sado o acompanhava em 1988, quando, no mesmo discurso, evocava o que sentira ao ver, cinquenta anos antes, "a coruscante seda do rio, este rio bonzão que roubou o azul ao céu pela calada duma noite de luar e ficou sem julgamento por falta de prova".
O território ligado ao Sado foi ainda o motivo da sua última crónica publicada no semanário O Distrito de Setúbal, em 31 de Março de 1992, intitulada "O Ribassado - Uma Utopia? Um Palpite?" (o jornal publicaria ainda, em 28 de Abril do mesmo ano, um outro texto de Cabral Adão sob o título de "Efeméride", que continha a mensagem que lera no descerramento da lápide quatro anos antes). A sugestão encaminhava-se no sentido de ser constituída uma província designada por "Ribassado", que Cabral Adão pincelava nas suas vertentes geográfica, etnográfica e humana, constituída pelos concelhos de Sesimbra, Setúbal, Palmela, Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines. Na conclusão, dizia o cronista: "Utopia? Palpite? Confio na minha inspiração e estou a ver os habitantes da nova província responderem, ufanos, se perguntados nesse sentido: Eu sou do Ribassado! E, nas entradas de Setúbal, além da legenda Rio Azul, a que já nos habituámos, esta outra, bem vincada: Capital do Ribassado!".
Desde sempre ligado à imprensa, Cabral Adão deixou crónicas, poemas e contos dispersos por jornais como O Setubalense, Jornal de Notícias, Gazeta do Sul e A Voz de Palmela, entre outros. Além dos títulos já referidos, Cabral Adão foi ainda autor de Meu Liceu, Minha Saudade (1948), Paisagens do Norte (1954), As Flores do Arrozal e Médicos da Seiva (ambos de 1955), Gineceu (1958), Vila Flor (1966), Plectro a Jesus (1971, que o filho António conseguiu publicar no dia do aniversário do pai, em 24 de Junho) e O Homem da Terra (1986).
O pendor para a poesia que caracterizava Luís Cabral Adão levou-o a ser um dos fundadores da Arcádia da Fonte do Anjo, tertúlia de poetas locais do início da década de 50 em que também participou António Matos Fortuna, com quem Cabral Adão calcorreou a zona de Palmela (a cuja vila chamou "ninho de casas brancas à sombra dum castelo roqueiro", em Flores do Rio Azul) e Quinta do Anjo.
Matos Fortuna recordava ainda o carácter repentista e humorístico de Cabral Adão. Um dia, quando estavam na casa de seus pais, na Serra do Louro, Cabral Adão e outra visita, António Henriques, resolveram, por sugestão do médico, fazer quadras a despique, tendo começado António Henriques com estrofe alusiva à família anfitriã: "Lar português e cristão / De virtudes rico centro / Tem aspecto pobretão / Mas onze Fortunas lá dentro". A resposta de Cabral Adão foi imediata: "Palácio nobre da serra / Sem torreões nem colunas / Colmeia viva que encerra / A família dos Fortunas". Numa outra altura, passeando pela Serra do Louro, os dois amigos viram escrito a lápis num marco geodésico: "Eu chamo-me Sales Parente / E tenho uma dor num dente". Logo o médico puxou de lápis e redigiu resposta pronta: "Eu chamo-me Cabral Adão / E dava-te já solução".
Os registos literários do médico transmontano resultavam, na maior parte das vezes, das visitas a pé que fazia na região e dos contactos com as pessoas no seu ambiente de trabalho, não conseguindo dissociar as pessoas das paisagens. Sintomático é o texto sobre as mondinas, a quem chamou "flores do arrozal", que assim as valoriza: "São as mondinas. No esmalte verde das folhas quadriculadas, engastam-se os coloridos vivos dos seus trajos como as policromias dum mosaico mourisco. São papoilas, são malvas, são hortênsias que se vão mexendo lentamente, sempre vergadas para o chão, na faina útil de livrar a cultura das ervas parasitas que a podem debilitar. O trabalho das mondinas, visto de dentro, será muito natural, uma tarefa vulgar, como qualquer outro trabalho de campo. Mas visto de fora, visto com olhos de interessada análise, que espinhoso e duro é o trabalho das flores do arrozal!".
Os contactos com estas terras e com estas gentes deixou-os Cabral Adão em 6 de Agosto de 1992, quando faleceu na sua casa de Almada, vitimado por paragem cardíaca, dali partindo, no dia seguinte, para Vila Flor, para jazigo de família. O seu último acto cultural foi ainda para Setúbal, sua terra de adopção. Juntamente com outras figuras sadinas, colaborara num volume que recolhia fotografias de Américo Ribeiro, intitulado Um Tesouro Guardado - Setúbal d'Outros Tempos. A vida trocara as voltas ao fotógrafo Américo, falecido umas semanas antes da apresentação do livro. E, ironia das ironias, trocou-as também a Cabral Adão, que faleceu na véspera da apresentação do livro que pretendia ser uma homenagem à obra do amigo, sobre quem escreveu, em Março de 1981: "Nada vaidoso, um homem simples, uma sombra viva que perpassa aqui e ali, quase sem se dar por ele, célere, ágil, procurando ângulos, sorrisos, focando objectivas, dando ao gatilho: clic!". Um outro "clic" não permitiu a um nem a outro verem a obra...

A pedra de Cabral Adão, na Arrábida

quinta-feira, 25 de março de 2010

António Matos Fortuna na toponímia

António Matos Fortuna já tem o seu nome registado na toponímia da terra que o viu nascer e que ele estudou como ninguém, dando a conhecer muitos dos seus segredos que a História tem albergado. O descerramento da placa toponímica ocorreu ao fim da tarde de ontem, numa cerimónia em que estiveram presentes familiares - o filho, Carlos Durão, o irmão, Isidoro Fortuna, a cunhada, Amália Fortuna -, amigos - vários, com destaque para o "Robim", aliás, Fernando Xavier Ferreira, um dos últimos tanoeiros da aldeia - e autarcas - a Presidente da Câmara de Palmela, Ana Teresa Vicente, os vereadores Álvaro Amaro, Adília Candeias e Adilo Lopes, o Presidente da Junta de Freguesia, Valentim Pinto. Foi um gesto simpático para a memória, claro! Ali mesmo, a olhar a serra que alberga "montanhões", a fitar o monumento ao ovelheiro. Ali mesmo, um nome que muitos outros nomes fez viver na memória das gentes!

terça-feira, 16 de março de 2010

António Matos Fortuna na memória da Quinta do Anjo

Passaram há poucos dias (9 de Março) dois anos sobre o falecimento de António Matos Fortuna, historiador da região de Palmela. Acho que, apesar de haver já o seu busto no centro da aldeia que o viu nascer e onde viveu - Quinta do Anjo -, Matos Fortuna não teve ainda uma homenagem à altura daquilo que valeu enquanto investigador e enquanto pessoa, nem à altura do que vale a obra que nos legou, se é que as homenagens alguma vez pagam esses valores! Será vulgar dizer-se que a melhor homenagem se vai construindo no dia-a-dia, pela memória e pela leitura dos seus escritos. Será. Mas é preciso que vá havendo algo mais do que isso.
Foi por essa razão que, ao abrir os mails de hoje, fiquei satisfeito com o anúncio que me faziam da parte da Junta de Freguesia de Quinta do Anjo: é que, em 24 de Março, pelas 17h30, o nome de António Matos Fortuna vai entrar na toponímia da sua aldeia, ali mesmo juntinho ao monumento ao ovelheiro, personagem que Fortuna estudou e sobre a qual escreveu.
Um nome numa rua poderá ser apenas isso mesmo, porque as ruas têm de ter uma identificação. Mas cabe-nos a todos pugnar por que a toponímia seja um reflexo de identidade em vez de um espelho de vaidade ou de moda. Matos Fortuna merece ter o seu nome escrito sobre a Quinta do Anjo!

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Rostos (131)

Monumento ao Ovelheiro, de Camarro, em Quinta do Anjo, inaugurado hoje

Há pouco mais de 20 anos, o historiador palmelense, natural de Quinta do Anjo, António Matos Fortuna, escreveu um pequeno livro deveras significativo para a identidade da sua aldeia - Quinta do Anjo - Capital da ovelharia entre Tejo e Sado (Palmela: Câmara Municipal de Palmela, 1988). O título é curioso, pois terá sido a primeira homenagem aos pastores, aos tosquiadores, aos queijeiros, aos ovelheiros (a quem, de resto, chamou "semeadores de rebanhos em terras à volta"). Quase no final desse livro, lembrava António Matos Fortuna: "Mais ou menos, em todas as zonas do país existem pastores. Há, porém, algumas tipicamente consagradas nesse aspecto etnográfico. Em tal número ninguém pensará inscrever a freguesia de Quinta do Anjo, que sempre foi terra de ovelheiros." Duas décadas depois deste escrito, publicado em mês outonal, eis que o ovelheiro quintajense, de novo em mês de Outono, fica inscrito na memória e na identidade da aldeia.

domingo, 9 de novembro de 2008

Palmela - Quando o concelho foi restaurado

(publicação dedicada aos alunos que
me pediram informações sobre este assunto)
No primeiro dia de Novembro de 1928, quando passavam dois anos sobre a decisão de ser lavrado o decreto que criaria o concelho de Palmela, surgiu na vila o jornal O Palmelense, título sem periodicidade certa que foi publicado ao longo de vários anos, devido a duas figuras por demais conhecidas na vida política e social de Palmela: Joaquim José de Carvalho, nome que preencheu o lugar de director, editor e proprietário e que era ao tempo o Presidente da Câmara Municipal de Palmela, e o Padre Moisés da Silva, anunciado como redactor principal, pároco local entre 1926 e 1933.
Ambos os nomes estavam ligados à restauração do concelho de Palmela, que tinha acontecido dois anos antes, e o aparecimento do jornal exactamente na data em que passava esse segundo aniversário não pode ser visto sem a vontade de afirmação existente na elite política de Palmela da época. Aliás, o texto que abre a primeira página do jornal é sintomático, enaltecendo e agradecendo publicamente aos homens que, dentro do poder, possibilitaram a restauração do concelho: "Palmela, terra gloriosa de tradições, que há 300 anos antes de Cristo foi fundada pelo pretor Alio Cornélio Palma, veste hoje as suas melhores galas: comemora o 2º aniversário da restauração concelhia. Deve-se ao sr. contra-almirante Jaime Afreixo, antigo Ministro da Marinha, pela sugestão do sr. general Amílcar Mota, também antigo Ministro da Guerra, figura notável do Exército Português, a restauração do concelho. Ao grande marinheiro e ao brioso militar Jaime Afreixo e Amílcar Mota apresenta o PALMELENSE, em nome do seu povo, os protestos da sua inquebrantável amizade e inolvidável gratidão". Os nomes de Jaime Afreixo e de Amílcar Mota constavam já na toponímia palmelense, localizando-se a sede do jornal na rua com o nome desta última personagem.
À maneira de editorial, surgia ainda na mesma primeira página um texto intitulado "A Que Vimos", cujo primeiro parágrafo se revela esclarecedor quanto aos propósitos do jornal: "Nesta hora de efervescência municipalista e de intensificação de progresso que se nota por todo o País, não podíamos nós deixar a fidalga vila de Palmela, que hoje goza a honrosa condição de povo livre e que procura em bases sólidas e sãos príncipios efectivar o seu ressentimento, desprovida desse agente propulsor do progresso que é a imprensa". Notórias são as marcas da festa pelo facto de Palmela ter voltado a ser concelho, da necessidade de colocar a vila ao nível do progresso, da noção de liberdade alcançada através da restauração concelhia e do papel que se sabia ter a comunicação social na afirmação dos problemas e das necessidades locais.
um concelho que deixou de o ser
Palmela, com foral desde 1185 atribuído por D.Afonso Henriques, constitui um dos mais antigos concelhos do sul do país e, mercê de circunstâncias várias, acabou por estar na origem da criação de variados concelhos das redondezas, entre os quais o de Setúbal que, em 1343, se estendeu para fora da vila através da atribuição que lhe foi feita de terrenos pertencentes a Alcácer e a Palmela.
Ao longo do século XIX, os municípios portugueses foram alvo de diversas reformas, tal como pode ser visto por alguns números: em 1774, havia 886 concelhos; em 1801, o número descia para 841; em 1878, eram 266. Na reforma havida em Outubro de 1855, vários municípios do então distrito de Lisboa (que abrangia grande parte do que é hoje o distrito de Setúbal), entre os quais os de Palmela e de Azeitão, foram extintos, tendo ambos passado a pertencer ao concelho de Setúbal.
O pedido da extinção do concelho de Palmela já andava a ser feito desde o início da década anterior. No primeiro trimestre de 1842, um grupo de setubalenses propôs às Cortes o fim do município de Palmela, devendo o seu território passar para o concelho de Setúbal. Tal pretensão mereceu resposta de Palmela, datada de Abril de 1843 e com 130 subscritores, dirigida aos "Senhores Deputados da Nação Portuguesa", que era iniciada com um lamento: "A Câmara Municipal e os habitantes de Palmela, vêm queixar-se da injusta e ainda mais ingrata perseguição que lhes fazem alguns moradores do concelho de Setúbal, pretendendo estes que o concelho de Palmela seja inteiramente suprimido".
O processo das pressões a partir de Setúbal para o fim do concelho de Palmela continuaram. Em final de Janeiro de 1855, uma exposição da Câmara palmelense dirigida aos Deputados dizia: "A Câmara Municipal e os povos de Palmela estão ameaçados e gemendo debaixo de um peso enorme das cruéis vinganças de alguns orgulhosos e ambiciosos de Setúbal, que a todo o custo pretendem a total ruína e inteira desgraça dos povos de Palmela pela anexação de ambos os concelhos". Depois, era o rol das acusações sobre os setubalenses: eles não queriam pagar décimas pelos bens que tinham em Palmela, não queriam respeitar as posturas municipais quanto a coimas a pagar, possuíam nos terrenos de Palmela enxames que davam cabo das uvas, etc.
um concelho que o quer voltar a ser
A partir do momento em que Palmela perdeu a sua autonomia concelhia, um longo processo de insistência começou por parte dos palmelenses, iniciado logo em Março de 1856 através de exposição às Cortes, onde era referido "o desprezo e abandono que a Câmara de Setúbal tem desgraçadamente votado" ao povo de Palmela, "já em três meses de cativeiro e premeditada opressão".
As várias insistências por parte de Palmela para reaver o seu estatuto de concelho surgem documentadas na obra Monografia de Palmela - Extinção e Restauração do Concelho, de António Matos Fortuna, datada de 1995, um processo que o autor considera em subtítulo do seu trabalho "um combate singularmente duro".
Ao longo dos tempos que se seguiram, várias alterações ao quadro dos municípios existiram, sem que Palmela tivesse sido contemplada. Só em 1914, através do deputado Joaquim Brandão (que também tem o nome registado na toponímia da vila), um projecto de lei foi apresentado no sentido de ser restaurado o concelho, aí se argumentando que a sua autonomia e progresso não seriam afectados, porquanto havia todos os "elementos de vida independente". Apesar de este projecto ter tido os pareceres favoráveis das várias comissões envolvidas na criação concelhia, certo foi que a restauração do concelho saiu mais uma vez embargada.
o concelho, de novo
No verão de 1921, um referendo realizado entre os eleitores de Palmela por voto secreto deu a unanimidade quanto à vontade na criação do concelho. Uma comissão integrada, entre outros, por Joaquim José de Carvalho e pelo padre Moisés da Silva teve, em 1926, papel importante nos contactos havidos com Amílcar Mota e Jaime Afreixo para a restauração municipal, de tal forma que, no primeiro de Novembro desse ano, era dada ordem para a redacção do decreto que reporia Palmela como cabeça de concelho (constituído pelas freguesias de Palmela e de Marateca), data que chegou a assinalar o feriado local. Só uma semana depois, em 8 de Novembro, esse decreto, com o nº 12615, foi publicado. Ao fim de 71 anos, Palmela voltava a ser concelho, uma situação só possível por uma conjuntura que foi sendo alterada ao longo do tempo devido a factores como "o aumento populacional, o vinho e a tradição" que surgiram, "durante as duas primeiras décadas do século XX, como fortes atributos de poder na luta pela restauração do concelho", como em 1998 notaram Ernesto e Odília Castro Leal em ensaio publicado na obra Da Supressão à Restauração do Concelho de Palmela - Conjunturas e Símbolos (1855-1926).
A restauração do concelho de Palmela não colheu opiniões agradáveis entre os políticos de Setúbal nem na imprensa local. Na edição de 6 de Novembro de 1926 d'O Setubalense, o editorial comentava: "Setúbal não protesta, Setúbal nunca protestou contra o concelho de Palmela. Achamos aos palmelenses toda a razão para quererem a sua autonomia - uma autonomia de que muito se arrependerão, porques lhes custará os olhos da cara. O que Setúbal apenas quer é que lhe seja dada uma compensação pelo facto de assim lhe ser roubada uma grande parte da sua área territorial".
O que estava em causa era a possibilidade de Setúbal vir a ser distrito, situação que ganhava adeptos. Em 4 de Novembro, uma comissão de setubalenses partira para Lisboa a fim de estabelecer contactos para a criação do distrito de Setúbal, tendo-lhe o então Governador Civil de Lisboa, João Luís de Moura, dado a entender que haveria condições favoráveis porque o distrito de Lisboa era muito grande.
João Reis Ribeiro, in Histórias e cantinhos da região de Palmela.
Palmela: Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, 2002, pp. 94-98

sábado, 8 de novembro de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima (89)
Magazine Reportagem – Em Sesimbra, apareceu no Verão a Magazine Reportagem, revista de uma dúzia de páginas, consagrada à reportagem fotográfica e escrita, com o lema “o mundo à frente das objectivas”. Acaba de sair o quarto número da publicação, com reportagem sobre o peixe-espada preto, depois de, nos números anteriores, terem aparecido rostos de profissões que quase estão em extinção. Os textos têm sido assinados por Vanessa Pereira e as fotografias são de Rui Cunha, que também assume a direcção da publicação. Para lá do poder da imagem – e algumas surgem bem poderosas –, vale o saber com que as personagens entrevistadas falam, numa linguagem acessível, revelando também a humanidade presente em cada figura. É caso a acompanhar, uma vez que nesta publicação fala o cidadão comum, com saber feito de experiência, que nos vai contando a sua história… ao mesmo tempo que vai fazendo história.
António Matos Fortuna – A freguesia de Quinta do Anjo tem um busto erigido em memória de António Matos Fortuna, historiador local e regional, que teve cerimónia de inauguração no dia 1 de Novembro. É um gesto para a memória (que se faz de gestos e de memórias, claro!). Mas, em torno da importância de António Matos Fortuna, mais acções vão surgir. Quase em simultâneo com a inauguração do busto, foi constituída uma comissão que patrocinará um programa de actividades tendentes à preservação da memória desta figura, que passa pela integração do seu nome na toponímia local, pela edição de um “In Memoriam” e pela criação de um fundo documental, entre outras iniciativas. António Matos Fortuna, falecido em Março deste ano, bem merece que a memória o estime, seja pelo carácter íntegro que possuía, seja pelo que de si deu enquanto cidadão (à comunidade e à paróquia de Quinta do Anjo, como dador de sangue, como professor, como promotor de iniciativas ou como defensor de causas), seja pelo que de si empenhou na investigação sobre a história local (com contributos deixados para a identidade de todas as freguesias do concelho e mesmo para a região de Setúbal).
Escola – Anda triste e preocupada a escola. Há muito tempo gasto em acções que nada têm que ver com os alunos. Há muito ruído e muito silêncio – um e outro comprometedores – em torno do ambiente que tem sido vivido nas escolas. A burocracia arrasta-se cada vez mais, com a construção de grelhas, grelhas e mais grelhas, com as reuniões que pesam no tempo das discussões e que não surgem como indispensáveis para a melhoria dos processos. Sente-se a escola como nunca se sentiu: baixo índice de motivação, muitas preocupações laterais, aparecimento de uma outra ideia do que é ser professor… Anda macambúzia a escola e é pena!
Barreiro – No ano em que passam os cem anos sobre a criação da CUF, tem havido bibliografia qb sobre o assunto. Gostaria de referir um título: Rua do Ácido Sulfúrico, de Jorge Morais (Lisboa: Editorial Bizâncio). É uma forma de contar a história do império a que Alfredo da Silva deu origem: a vida dos operários e dos patrões dentro da CUF, aquilo a que poderíamos chamar a história da cultura CUF, passando pela importância social, pela dinamização cultural, pelo poder económico, pela ideia de família que ao longo de décadas foi emergindo. Lê-se como um romance ou como uma memória. Parte-se do silêncio e da desolação e chega-se a um filme animado por rostos de heróis vários, onde se cruzam a política, a economia, a poesia, a afirmação, o poder e a vida. Jorge Morais, com vários títulos já publicados no campo da história, recebeu o Prémio Bocage em 2006 por um texto de ensaio sobre a ligação do poeta sadino ao movimento maçónico.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Rostos (96)

Busto de António Matos Fortuna, em Quinta do Anjo (Palmela), por M. José Brito

«Se [António Matos Fortuna] aqui estivesse de viva voz, na simplicidade do seu talhe, diria certamente 'que esta homenagem não era necessária', como disse em Novembro de 1995, quando o seu Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela entendeu prestar-lhe merecida homenagem, juntando uma 'maré' de amigos que encheram o Cine Teatro São João [em Palmela]. E como voltou a dizer, as palavras embargadas de emoção, na ocasião em que a Sociedade de Instrução Musical deste seu torrão natal, em Junho de 2006, na passagem de mais um aniversário da sua já longa existência, igualmente decidiu reconhecer e homenagear a sua dedicação e o seu empenho sem fim. (...)
Escute-se o som que vem da serra. E, na evocação do seu exemplo nobre e sublime, sejamos capazes de honrar o legado e a memória de António Antunes de Matos Fortuna. (...)»
José António Cabrita
(em alocução na cerimónia de inauguração do busto de António Matos Fortuna, na tarde de 1 de Novembro)

sábado, 11 de outubro de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 87
Dia Mundial do Professor – No dia 5 de Outubro passou o Dia Mundial do Professor com o lema, proposto pela UNESCO, de “eles contam”. Da mensagem desta organização destaco dois princípios: 1) “Ao longo do processo de elaboração das políticas, é essencial garantir o diálogo social entre as partes, nomeadamente entre os decisores, os professores e as suas organizações. O diálogo social contribuirá para criar um consenso e um sentimento de apropriação a nível nacional, tendo em vista uma maior eficácia na adopção de políticas relativas aos professores”; 2) “É necessário que o papel dos professores na promoção de uma educação de qualidade para todos seja claramente definido e expresso em políticas encorajadoras da constituição de um corpo docente motivado, estimado e eficaz”. A gente lê e pensa que esta é uma mensagem vinda de algum paraíso… aliás, tão distante e inacessível que por cá quase não se falou do Dia Mundial do Professor. Bem sei que temos o nosso feriado nesse dia, mas esse não pode ser motivo para ofuscação, mesmo porque sabemos qual tem sido a preocupação republicana com a educação, pelo menos no ideário… A propósito, poderia ser visto se o ambiente que se vive entre professores nas escolas neste momento é tão propício a esta apropriação defendida pela UNESCO, a esta partilha de responsabilidades na causa educativa…
Matemática e Língua Materna – Afinal, não é só por cá que a língua materna e a matemática constituem o calcanhar frágil da educação. Em Inglaterra, por exemplo, passa-se o mesmo e, que se saiba, a língua materna de lá não é o português e também consta que a gramática inglesa é mais fácil do que as gramáticas das línguas latinas… Quem falou sobre esta dificuldade em Inglaterra foi o Secretário de Estado da Educação Jim Knight, há dias, em Lisboa: “A Matemática e o Inglês são as disciplinas onde os alunos têm maiores dificuldades. Aos 11 anos, há muitos alunos com dificuldades na leitura e na escrita, o que não pode ser.” Também aqui valeria a pena haver algum estudo para se detectar até que ponto as facilidades têm contribuído para as dificuldades de duas áreas que são essenciais ao ser humano – o raciocínio e a língua.
Pluralismos – Curiosa, muito curiosa, a noção de pluralismo que grassa no Partido Socialista. Há dias, Alberto Martins dizia que tinha sido decidida a disciplina de voto na bancada do seu partido quanto ao casamento entre indivíduos do mesmo sexo. Mas, para que não se ficasse a pensar que o pluralismo não existia, foi também explicado que um deputado que já liderara a respectiva juventude partidária tinha liberdade de voto, em virtude de já ter sido o rosto da questão. E, para que não houvesse dúvidas, esta excepção foi explicada como sendo uma prova do pluralismo dentro do partido. Ficam-me sempre dúvidas: quem impõe a disciplina de voto? até que ponto se disciplinam por igual as diferentes consciências? porque é que para decidir coisas das vidas privadas tem que haver disciplina de voto?
António Matos Fortuna – Já há tempos disse ser António Matos Fortuna uma das personalidades regionais que mais admiro. A caminho dos 78 anos, Matos Fortuna deixou o nosso convívio em Março passado. Ficou a memória do historiador local, do curioso inexcedível, do amigo sincero, do lutador incansável. Ficou a memória da genuinidade feita pessoa, da disponibilidade e partilha feitas momento, da simplicidade e do saber feitos caminho. Foi, por isso, com muita alegria que soube que o Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela está a promover, com outras associações, a construção de um busto que lembre António Matos Fortuna, a ser erigido na sua terra, Quinta do Anjo, com data marcada para 1 de Novembro, também dia de festa na aldeia. Este gesto está aberto à colaboração de quem queira, pois existe subscrição pública para o efeito. António Matos Fortuna, que me honrou sendo meu amigo e deixando que fosse seu amigo, bem merece esta distinção!

domingo, 1 de junho de 2008

O feriado de Palmela tem 30 anos

Em 24 de Maio de 1978, o semanário A Voz de Palmela publicava o edital assinado no dia 16 por Edgar Costa, presidente da Câmara Municipal, fazendo saber que a autarquia deliberara, "na sua reunião ordinária realizada em 5/5/1978, e no uso da competência que lhe confere o disposto no nº 13º do artigo nº 48º do Código Administrativo, fixar o feriado municipal do concelho no dia 1 de Junho, data em que o rei de Portugal D.Manuel I concedeu foral à vila de Palmela no ano de 1512".
A primeira reacção a esta escolha não se fez esperar muito tempo. Uma semana depois, em 31 de Maio, véspera do primeiro feriado, o mesmo jornal relatava o almoço do Grupo dos Amigos de Palmela entretanto acontecido, evento em que interveio o historiador local António Matos Fortuna para dizer que o dia escolhido pela Câmara não teve "muito senso", pois se tratava de uma "data artificial", devendo ser considerada como a de "um feriado feito a martelo". As razões apresentadas por Matos Fortuna eram históricas e relacionavam-se com o espírito que presidiu aos designados "forais novos", atribuídos por D.Manuel I.
Palmela teve o primeiro foral em 1185, atribuído por D.Afonso Henriques, em Março, em dia que se desconhece, por não constar a sua menção no documento. Cerca de três séculos mais tarde, em 1495, ascendeu ao trono D.Manuel I, que seguiu uma política de consolidação do absolutismo régio, tendo ordenado, logo no ano seguinte, a conversão dos mouros e diminuindo, ao longo dos tempos, a convocação das cortes. Entretanto, em 1497, criou uma comissão com vista à revisão dos forais, que concluiu a sua tarefa em 1520. O primeiro foral a entrar nesta revisão foi o de Lisboa, logo outorgado em 1502. O de Palmela surgiria uma década depois.
Nestes forais manuelinos, como escreveu José Mattoso, "não se tratava de garantir a autonomia municipal ou de melhorar a administração local, mas de permitir uma cobrança actualizada do fisco". Na verdade, a actualização manifestou-se quer ao nível de taxas a pagar, quer ao nível de criação de outras que os antigos forais não previam.
O parágrafo introdutório do foral assinado por D.Manuel não deixava, de resto, margem para dúvidas quanto às intenções fiscais: "Dom Manuel, por graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves, (...) fazemos saber que, por bem das diligências, exames e inquirições, que em nossos reinos e senhorios mandámos fazer, (...) as rendas da dita vila e direitos reais se devem arrecadar na forma seguinte". Depois, artigo a artigo, era estipulado o princípio que regulava o pagamento ou a isenção dos impostos das terras foreiras, dos lagares, das pensões dos freires, das sesmarias, dos montados, das estalagens, do "gado de vento", da "pena de arma", das portagens (por produtos como pão, vinho, sal, cal, cera, azeite, mel e linhaça, por "casa movida", por passagem, por "panos finos", por compras de gado, por mercearia, por caça, por artigos em metal, por louça, etc.). No final, surgiam as prescrições relativamente aos desrespeitadores: "E qualquer pessoa que for contra este nosso foral, levando mais direitos dos aqui nomeados ou levando destes maiores quantias das aqui declaradas, o havemos por degredado por um ano fora da vila e termo e mais pague da cadeia trinta reais".
Uma semana depois do assinalar do primeiro feriado de Palmela em 1 de Junho, a edição de A Voz de Palmela, surgida em 7, não dava relevo à celebração do feriado, apesar de reproduzir na sua primeira página um artigo assinado por Amílcar Machado, que o mesmo jornal já publicara vinte anos antes, em 28 de Fevereiro de 1958, abordando a questão do feriado palmelense. Era opinião de Machado que Palmela deveria assinalar o seu dia em 22 de Fevereiro, data do ano de 1148 em "que D.Afonso Henriques tomou Palmela aos Mouros". O jornal relatava ainda o que fora o dia 1 de Junho de Palmela, não enquanto feriado mas enquanto Dia da Criança.
Duas semanas depois, em 21 de Junho, Matos Fortuna era contundente, em artigo de primeira página intitulado: "Para que não seja tão desenxabida, é preciso escolher outra data para o Feriado do Concelho". Em texto extenso, expressava a sua discordância relativamente à decisão camarária, argumentando sentir-se "no direito e até na obrigação de reprovar a edilidade por ter escolhido para feriado do concelho uma data que não se lhe ajusta com suficiente naturalidade" e concluindo que seria, pois, "um feriado legal, mas despido de convincente significado histórico". Em causa estava a fragilidade da importância do documento comemorado, no que tocava ao desejado envolvimento da população em torno de uma data que fosse suficientemente identitária.
Um ano depois, em 1979, A Voz de Palmela, na edição de 6 de Junho, dava conta da existência de "um cada vez maior afastamento entre o Grupo dos Amigos de Palmela e o seu município" em consequência das divergências quanto à data do feriado. Joaquim Barrocas assinava um artigo intitulado "Dois Comunicados sem Data a propósito duma data", em que referia o comunicado autárquico a divulgar o programa do dia do concelho e um comunicado dos Amigos de Palmela a contestar a escolha da data e a propor à Câmara a "humildade" para "reconhecer que errou na escolha", sugerindo-lhe que a decisão fosse alterada. Ironia das ironias, numa das páginas do jornal aparecia o título "Feriado Municipal confirmado pela Câmara" e, numa curta notícia local, em página diferente, surgiam duas perguntas: "Gostaríamos de compreender a razão por que, sendo feriado em Palmela no dia 1 de Junho, muito boa gente ignorou o facto e trabalhou. E, sendo feriado municipal, quem explica por que razão o mercado municipal esteve a funcionar?"
Dois anos depois, em 5 de Junho de 1981, o Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela promoveu uma reunião na sede dos Loureiros para a discussão da melhor data para o feriado, presidida por José Hermano Saraiva. Mais uma vez, a data de 1 de Junho foi contestada e foram apresentadas alternativas: a 2ª feira de Pascoela (porque marcava, na vida ligada ao campo, o início do período da sesta e a data tinha muito significado para os rurais), o 31 de Agosto (por ser o dia de 1384 em que Nuno Álvares Pereira acendeu as almenaras no castelo de Palmela, a avisar os sitiados de Lisboa do seu socorro), o 8 de Novembro (por ser o dia de 1926 em que foi publicado o decreto da restauração do concelho de Palmela), a 2ª feira da Festa das Vindimas (para valorizar os festejos que têm lugar em Palmela no início de Setembro). Sem consenso, a organização entregou um documento à Câmara com as propostas da assembleia.
Em 30 de Janeiro de 1993, o assunto voltou à discussão, numa reunião com a população, organizada conjuntamente pela Câmara Municipal e pelo Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela. Além das datas surgidas em 1981, mais duas propostas apareceram: 14 de Fevereiro (data em que nasceu em Palmela, no ano de 1841, Hermenegildo Capelo) e 25 de Julho (dia de São Tiago, patrono da ordem que teve convento em Palmela). A diversidade continuou a dominar e, três anos mais tarde, a Câmara Municipal promoveu consulta pública à população do concelho, através de sessões em todas as freguesias e de distribuição de 18 mil postais com taxa paga para resposta e sugestão. Chegaram à autarquia apenas sete centenas de respostas e... a diversidade continuava.
Palmela tem então continuado a comemorar o dia do concelho em 1 de Junho. E, no topo do salão nobre da Câmara Municipal de Palmela, mantém-se o medalhão pintado com a figura do rei D.Manuel I, personagem que ficou ligada à vila pela atribuição do foral datado de 1 de Junho de 1512, em honra do qual Palmela estipulou a data do seu feriado municipal, assinalado desde 1978, a coincidir com as actividades do Dia da Criança.
João Reis Ribeiro. Histórias e cantinhos da região de Palmela.
Palmela: Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, 2002, pp. 140-144 (adpat.)

sábado, 29 de março de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 78
António Fortuna I – Quando, em 9 de Março, recebi telefonicamente a notícia da morte de António Matos Fortuna, fiquei triste. Acabava de perder a possibilidade de voltar a conversar com um amigo que sempre me abriu as suas portas de saber, de humanismo, de solidariedade, de amizade. A partir desse momento, António Fortuna passou para a memória, lugar onde estão todos os marcos importantes de uma vida, e a conversa com ele passou a ser apenas metafórica, através da leitura dos seus textos, uma boa vintena de títulos em livro e uma quantidade de artigos, sempre sob a batuta da região que palmilhou e cuja história esgaravatou.
António Fortuna II – Sinto-me privilegiado por me ter cruzado com António Matos Fortuna. Sobretudo pelo que com ele aprendi. E quero que essas imagens se mantenham na minha memória. Conheci-o há uns 20 anos, cruzámo-nos em várias situações, ou porque eu o procurava para saber mais e, às vezes, para conversar, ou porque ele me fazia o favor de se lembrar de mim para alguns dos seus projectos. Foi uma das pessoas que mais me impressionou pela simplicidade que punha em cima do seu saber e do seu conhecimento, ele que foi um recurso para muita gente que quis saber a história de Palmela e muitas histórias da região sadina, que abriu caminhos para que muitos enveredassem pelo passeio da história local.
António Fortuna III – Um dos seus últimos sonhos era preparar uma edição com os escritos de Almeida Carvalho sobre Palmela, misto de recolha e de antologia, com algumas anotações. Muitas vezes o vi às voltas com a caligrafia e com as minúcias desse setubalense do século XIX! No entanto, de há uns meses a esta parte, esse entusiasmo parecia esmorecer, num decréscimo que era proporcional ao seu agastamento – “sabe, sinto-me cada vez com menos forças, eu que sempre tive a presunção de ser um tipo de acção, de fazer, de antes quebrar que torcer, não pensava que isto pudesse acontecer comigo”, desabafava. E era este um dos seus maiores desgostos, um dos seus maiores inconformismos.
António Fortuna IV – Em cada livro de Matos Fortuna, o texto vai correndo e relatando, assim à maneira de quem conta uma historieta, recheado de apartes, com muitas ironias (por vezes subtis, outras vezes plenamente assumidas, sobretudo quando resultam da comparação entre as formas de viver no passado e no presente), com muitos ensinamentos a propósito, num jeito próprio de quem conversa, de quem reporta, mais parecendo anunciar um qualquer Fernão Lopes dos tempos de hoje, pondo alma no que conta, não perdendo o fito de que uma história não é apenas ela mas também é o conjunto de todas as outras que se podem – e devem – meter lá dentro.
António Fortuna V – Com a sua obra e com o seu testemunho, António Fortuna foi, talvez, uma das pessoas que mais fixou a identidade da região de Palmela, pelo menos naquilo que é descobrir os traços dessa mesma identidade, assumi-los e mantê-los, num jeito de inscrição e de memória. Valorizou o “palmelão” e o “montanhão”, pugnou pela genuinidade das suas raízes e do meio em que sempre viveu. Desenterrou documentos, reconstruiu o “puzzle” da história, estudou o falar, valorizou as personagens no seu quotidiano, pesquisou as lendas, actualizou grafias, estudou o património, num trabalho incessante em prol da afirmação do local e do regional, associado a uma vontade de ferro de partilhar, de levar as pessoas a conhecerem as suas origens, a entreterem-se com as suas próprias histórias, no fundo, de as levar a … conhecerem-se!

domingo, 9 de março de 2008

Memória: António Matos Fortuna (1930-2008) - 3

Para uma bibliografia de António Matos Fortuna
  • Memórias Paroquiais de 1758. Col. "Monografia de Palmela" (1). Palmela: Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, 1982.

  • "O Castelo de Palmela - Charneira dos Sete Castelos da Região dos Três Castelos" e "A Exploração Didáctica de Velhos Monumentos - Um Exemplo Concreto: O Castelo de Palmela". Livro do Congresso - Primeiro Congresso Sobre Monumentos Militares Portugueses - 1982. Lisboa: Património XXI - Associação Portuguesa para a Protecção e Desenvolvimento da Cultura, 1982, pp. 34-38 e 39-43.

  • Alguém que "Agarrou" o Evangelho - Evocando Carmita Fortuna. Quinta do Anjo: Comunidade Cristã de Quinta do Anjo, 1983.

  • Reflexões sobre a História Social de Palmela. Palmela: ed. policopiada, 1984.

  • Aspectos da Linguagem Popular de Palmela. Palmela: Direcção-Geral de Apoio e Extensão Educativa / Coordenação Concelhia de Palmela, 1987.

  • "Digressões à Volta do Nome de Palmela". História de Palmela ou Palmela na História - Jornadas de Divulgação e Análise do Passado de Palmela – 1987. Col. "Estudos Locais" (1). Palmela: Câmara Municipal de Palmela, 1988, pp. 37-49.

  • "Recordando Três Páginas da História Esquecida do Castelo de Palmela". O Castelo de Palmela - Emissão de Selos. Lisboa: Correios e Telecomunicações de Portugal, 1988, pp. 5-8.

  • Quinta do Anjo - Capital da "Ovelharia" Entre Tejo e Sado. Palmela: Câmara Municipal de Palmela, 1988.

  • Contava-se em Terras de Palmela... - As Lendas Perdidas do Concelho de Palmela. Col. "Estudos Locais" (2). Palmela: Câmara Municipal de Palmela, 1989.

  • "O Castelo de Palmela". A Ordem de Sant'Iago - História e Arte - Catálogo da Exposição. Palmela: Câmara Municipal de Palmela, 1990, pp. 41-46.

  • Da Uva Por Nascer ao Vinho Pronto a Beber - Catálogo da Exposição - Vindimas 90. Palmela: Câmara Municipal de Palmela, 1990.

  • Misericórdia de Palmela - Vida e Factos. Palmela: Santa Casa da Misericórdia de Palmela, 1990.

  • "Um Inventário da Ordem de Sant'Iago ou Caderno de Problemas de Múltiplas Incógnitas". As Ordens Militares em Portugal - Actas do 1º Encontro sobre Ordens Militares – 1989. Col. "Estudos Locais" (3). Palmela: Câmara Municipal de Palmela, 1991, pp. 131-139.

  • A Igreja de S.Pedro de Palmela. Palmela: Igreja Paroquial de S.Pedro, 1991.

  • "História Vitivinícola da Península de Setúbal - Breves Apontamentos". Vinhos da Costa Azul. Setúbal: Região de Turismo da Costa Azul, 1992.

  • Chafariz D.Maria I - Bicentenário - 1792 / 1992. Palmela: ed. policopiada, 1992.

  • Priores-Mores do Real Convento Provedores da Santa Casa da Misericórdia de Palmela. Palmela: Santa Casa da Misericórdia de Palmela, 1994.

  • Roteiro do Cortejo Evocativo "Portugal e o Vinho". Palmela: Festa das Vindimas, 1994.

  • Quando se Levantou o Chafariz - Reinado de D.Maria I. Col. "Monografia de Palmela" (2). Palmela: Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, 1994.

  • Extinção e Restauração do Concelho - Um Combate Singularmente Duro. Col. "Monografia de Palmela" (3). Palmela: Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, 1995.

  • Ordem Enófila de Sant'Iago - Primeiras Parras - Volume-Arquivo de Documentos Iniciais. Palmela: Ordem Enófila de Sant'Iago, 1996.

  • "A Riqueza Fundiária da Ordem de Sant'Iago no Distrito de Setúbal em 1834". As Ordens Militares em Portugal e no Sul da Europa - Actas do II Encontro sobre Ordens Militares – 1992. Col. "Actas & Colóquios" (10). Lisboa: Edições Colibri / Câmara Municipal de Palmela, 1997, pp. 231-268.

  • Memórias da Agricultura e Ruralidade do Concelho de Palmela. Palmela: Câmara Municipal de Palmela, 1997.
  • "A Ordem de Sant'Iago - Perspectivas Vitivinícolas Ontem e Hoje". Ordens Militares - Guerra, Religião, Poder e Cultura - Actas do III Encontro Sobre Ordens Militares – 1998 (vol. 1). Col. "Actas & Colóquios" (17). Lisboa: Edições Colibri / Câmara Municipal de Palmela, 1999, pp. 185-192.
  • "Jogo do Pau". Actas da 1ª Eira Folclórica da Região Caramela – 1999. Pinhal Novo: Rancho Folclórico da Casa do Povo de Pinhal Novo, 2000, pp. 27-32.

  • 8º Centenário do Foral de Palmela – Memorial das Comemorações. Palmela: Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, 2001.

  • Palmela – Sobre Todas, Mais Alta e Formosa. Lisboa: Elo, 2001.

  • Os Vinhos da Península de Setúbal. Col. “Enciclopédia dos Vinhos de Portugal” (7). Lisboa: Chaves Ferreira, 2001 (em co-autoria com Vasco Penha Garcia e António Homem-Cardoso).

  • Marateca Que Já Foi. Col. “Estudos Locais” (5). Palmela: Câmara Municipal de Palmela, 2002.

  • “Um Castelo em Sucessiva Destruição e Reconstrução”. Actas do III Congresso “Monumentos Militares Portugueses” – Junho de 1985. Lisboa: Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelos, 2002, pp. 69-77.

  • Roteiro do Cortejo Evocativo “Portugal Vinícola” – Festa das Vindimas – 2002. Palmela: Festa das Vindimas, 2002.

  • Um Distrito sob o Signo do Futebol. Setúbal: Associação de Futebol de Setúbal, 2002.

  • Outros Tempos. Col. “Monografia de Palmela” (4).Palmela: Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, 2002 (com desenhos de Duarte Fortuna).

  • Quinta do Anjo – Terra singular. Col. “Estudos Locais” (6). Palmela: Câmara Municipal de Palmela, 2005.

Memória: António Matos Fortuna (1930-2008) - 2

O HISTORIADOR LOCAL
ANTÓNIO MATOS FORTUNA
A casa mostra a legenda "Casal dos Cantos" e a personagem que a habita honra a inscrição, tal é o acervo de estórias pessoais que se confundem com as histórias de Palmela, a mostrarem a sua presença constante pelos cantos da casa e da conversa. À entrada da freguesia de Quinta do Anjo, para quem vá do lado de Palmela, sobre o lado esquerdo, em casa térrea, vive António Matos Fortuna, o mais conhecido historiador local da região, "em serviço permanente, nas 24 horas do dia".
O mês de Dezembro de 1930 começou com o desaparecimento, no seu quinto dia, de Raúl Brandão, nome maior das letras portuguesas deste século, e findou com o nascimento de António Matos Fortuna, numa casa situada na actual Rua Afonso de Albuquerque, em Quinta do Anjo, hoje já recuperada. Os dois anos do início da década de 30 disputaram-lhe o nascimento, mas foi na invernosa tarde do dia 31 que o pequeno António fez ecoar o seu primeiro choro. Iniciava-se assim o percurso de "uma vida banalíssima, igual à de toda a gente", confessa a tentar esconder a notoriedade.
Com estudos na Escola João Vaz, em Setúbal, feitos à custa de um trajecto a pé entre a sua freguesia e a cidade sadina (cerca de dezena e meia de quilómetros para cada lado), aos 22 anos era fiscal de impostos na Câmara de Setúbal, trabalhando depois no Sanatório do Outão, na editora lisboeta “Logos” como revisor, na Casa de Pessoal da “Sacor” e leccionando na Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos de Palmela, a partir de 1977 até à aposentação como docente, ocorrida em Setembro de 2000.
Entretanto, a escrita e o gosto pela História foram companhia constante. Na década de 50, por volta de 1953, foi um dos componentes da "Arcádia da Fonte do Anjo", tertúlia constituída à maneira das academias literárias setecentistas onde teve o pseudónimo de Louro da Serra, acompanhado por nomes conhecidos na região de Setúbal e de Palmela como o médico e escritor Cabral Adão, a poetisa Maria Helena Soares Horta e a mestre de música Maria Adelaide Rosado Pinto. Tal associação, integrada no espírito da época, teve página regular no jornal O Setubalense e fez apresentações de poesia no sul do país e em Setúbal e pretendia o ressurgimento da poesia lírica, tal como se podia perceber pela sua declaração de intenções: "Nós não temos estatutos nem regulamentos, apenas temos uma missão: combater a poesia moderna, a poesia-disparate, que pode ser muito interessante no preenchimento da ficha clínica do manicómio, mas que não é suficiente para entreter um espírito medianamente culto".
O jornalismo foi outra das áreas de intervenção de Matos Fortuna, tal como comprova a vasta colaboração em periódicos regionais e nacionais que tem mantido e mesmo a frequência do primeiro Curso de Jornalismo, da responsabilidade do Sindicato Nacional de Jornalistas, ocorrido no ano lectivo de 1968/69, onde teve como professores Francisco Pinto Balsemão e José Júlio Gonçalves, figuras bem conhecidas.
Mas a História, com um exercício profundo de investigação e de descoberta, à maneira de "trabalho de galinha, porque se trata de esgravatar para trás, recuando no tempo", tem constituído a paixão de António Fortuna. Em 1970, com 40 anos, matriculou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para cursar História, tempo de que relembra professores como o jesuíta Manuel Antunes e os historiadores Veríssimo Serrão e Borges de Macedo. O termo do curso ocorreu em 1975, tendo depois iniciado a sua carreira de professor e a escrita da história local. Para lá de muitas colaborações avulsas e de comunicações dispersas, a sua obra abrange mais de dezena e meia de volumes, obras publicadas pela Câmara Municipal, pelo Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, pela Misericórida e pela Paróquia palmelenses, maioritariamente.
"Escrever a história de Palmela é aliciante porque é tudo original", desabafa. "Não tenho antecedentes em que me apoiar". Na verdade, grande parte da documentação histórica sobre Palmela perdeu-se em dois incêndios, um no século XVII, nos Paços de Concelho locais, e outro na noite de 4 para 5 de Outubro de 1910, no edifício da Câmara de Setúbal, concelho em que Palmela estava integrada na época. Estas duas ocorrências têm constituído o desafio permanente de Matos Fortuna, aliado a um grande afecto pela sua terra e ao sacrifício familiar que ele mesmo exige a si próprio, pormenor que deixou registado na dedicatória do último livro, ao escrever: "à Maria Jorge, minha mulher, a maior, ou única vítima do amor que consagro às terras de Palmela".
A actividade de Matos Fortuna tem sido ramificada ainda pela organização de passeios eminentemente culturais, em visita a sítios por onde as agências de viagens não passam, que rapidamente esgotam a lotação entre os associados do Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela (de que é sócio-fundador), entre os irmãos da Misericórdia palmelense ou entre os paroquianos de Quinta do Anjo, tal é a dose de seriedade e de interesse postos na sua organização. "Uma outra forma de mostrar a história às pessoas", diz, ao mesmo tempo que sublinha o seu grande apreço pelo contacto, pela conversa com as gentes, consequências de uma experiência muito sentida ao longo dos quinze anos em que esteve ligado à Acção Católica Rural, onde encontrou "a melhor gente".
Considera que o seu “grande trabalho foram os 800 anos do foral”, celebrados em 1985, quando preparou a rigor um torneio medieval “que teve honras de televisão e de que toda a gente falou”. Depois, “os torneios medievais entraram na moda e começaram a andar por aí…” A romagem de todos os concelhos a que Afonso Henriques deu foral ao túmulo do primeiro rei português, em Santa Cruz de Coimbra, na passagem dos 800 anos sobre a sua morte, com discurso de Henrique Barrilaro Ruas, foi outra das iniciativas promovidas por Fortuna, em 1985, através do Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela. “Nunca Afonso Henriques teve tanta flor…”, recorda com satisfação.
No seu gesto largo e rápido de falar e de contar as muitas histórias que sabe, encadeia narrativas num fio que nunca mais acaba. "Sabe que o primeiro acidente de automóvel em Portugal ocorreu em Palmela? E que o primeiro barco a vapor no nosso país se chamou Palmela? E sabe que a maior vinha do mundo pertencente a um só indivíduo existiu no concelho de Palmela?" São perguntas de outras tantas histórias que vai divulgando. Uma curiosidade sem limites orienta este homem que tem sido chamado para todas as actividades culturais locais, incluindo a de assessor cultural da autarquia, consequência reconhecida das mais de duas mil páginas publicadas em livro sobre a história de Palmela e seu termo.
João Reis Ribeiro. Histórias e cantinhos da região de Palmela. Col. "Cadernos Locais" (3).
Palmela: Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, 2002, pp. 99-104.

Memória: António Matos Fortuna (1930-2008) - 1

Quando, há cerca de três semanas, parei o carro fora da casa de António Matos Fortuna e o visitei de surpresa, estava longe de pensar que aquele seria o nosso último encontro. Coisas da vida, eu sei. Mas, apesar de notar que, ao longo do último ano e meio, em cada vez que o via o achava mais decaído, mantive sempre a expectativa de um encontro a seguir. Combinámos mesmo um encontro para um almoço e conversa… Ficou pela combinação, assim brutalmente, com o telefonema recebido hoje, de um amigo comum, a comunicar o falecimento, na manhã de hoje, de António Matos Fortuna.
De repente, passou-me pela memória um conjunto de vivências que ele me proporcionou, para lá de, claro está, ter consentido na nossa amizade. A curiosidade pela história local, a boa disposição para falar das gentes da região, a cultura longa quando se entrava pelos domínios da história e da literatura clássica, o apego à terra que o viu nascer e que sempre distinguiu, o prazer de se dizer “montanhão” (natural da Quinta do Anjo, da encosta da serra), a labuta incansável em prol da descoberta de elementos para a história de Palmela (sobretudo numa altura em que nada ou quase nada existia a descoberto), o prazer que me deu ao convidar-me para prefaciar dois dos seus livros e para apresentar publicamente dois outros, as longas horas de conversa que mantivemos, os votos de “boas festas” arranjados de maneira original (com garrafa de vinho regional e rótulo pessoal, este da lavra de Matos Fortuna), o tom crítico perante os acontecimentos e relativamente aos textos, a desconfiança relativamente aos “cágados” (nisso me fazendo lembrar a mesma desconfiança que Luiz Pacheco tinha quanto aos “urubus”), os telefonemas súbitos por causa de dúvidas… enfim, difícil me é, de imediato, fazer um retrato de todas as vivências com Matos Fortuna, uma personagem a quem a história de Palmela sempre ficará a dever muito, a quem as ideias corriam mais depressa do que a vida e do que as palavras, para quem a amizade e uma formação humanista eram essenciais.
No último encontro que tivemos, ainda o ajudei a pôr em ordem os cadernos de um texto que publicara há anos, intitulado O drama da Quinta da Torre, saído no jornal O Distrito de Setúbal e, depois, preparado para livro que nunca terá chegado a circular encadernado. Mas, também nesse último encontro, fiquei com pena de já não o ver entusiasmado com um projecto que tivera em mãos (ainda uns meses antes com ele andava), que era o de reunir os textos de João Carlos Almeida Carvalho sobre Palmela, publicando-os em livro anotado.
Sinto-me privilegiado por me ter cruzado com António Matos Fortuna. Sobretudo pelo que com ele aprendi. E quero que essas imagens se mantenham na minha memória.