sábado, 29 de novembro de 2014

O cante alentejano, com parabéns e uma memória através dos "Ausentes do Alentejo"

O cante alentejano integra o património imaterial da Humanidade desde anteontem, 27 de Novembro, conforme decisão divulgada pela UNESCO em Paris. Uma homenagem à genuinidade, ao saber, ao património cultural de Portugal, chegado pela toada alentejana. Com regozijo, com parabéns!
Recordo-me de o ter ouvido, quase de repente, quando, em 1986, vivi em Beja e pela região dei umas voltas. Aprendi a gostar do Alentejo (que mal conhecia) e convivi com pessoas extraordinárias. Cinco anos depois, numa colaboração com o diário Público, noticiei sobre a existência do grupo “Ausentes do Alentejo”, constituído em Palmela. Gostei de ter conhecido o grupo e da forma como falaram do “seu” Alentejo. A peça saiu na edição de 30 de Março de 1991, na página 35. Por lá passam as saudades e as marcas da terra, o bulir e o cantar da terra, uma forma própria de ser. Também se falou do cante alentejano.
Em jeito de lembrança – ou será de homenagem? – do que fui aprendendo sobre este património e sobre o Alentejo e em jeito de saudação ao grupo “Ausentes do Alentejo”, reproduzo o texto. Apenas uma errata: o segundo parágrafo da segunda coluna foi amputado por lapso técnico, omitindo o resto do texto e escondendo o sentido – aqui fica a correcção, à maneira de adenda: «Mas a boca acabará por lhe fugir para a verdade. “O grupo vai muitas vezes cantar ao Alentejo e, aí, sinto saudades por não estar mais tempo a cantar lá.”»


Valter Hugo Mãe: a simplicidade dos afectos



“Reparo desde pequena que os adultos vivem muito em casais. Mesmo que não sejam óbvios, porque algumas pessoas têm par mas andam avulsas como as solteiras (…)” Assim se inicia o recente livro de Valter Hugo Mãe, O Paraíso são os outros (Porto: Porto Editora, 2014).
E as observações da menina narradora seguem o caminho da visão do amor, acompanhado pelas ilustrações de Esgar Acelerado. A primeira frase convida-nos para a seguinte, a seguinte, a seguinte. E cada uma delas revela-se pela beleza da simplicidade, mostra-se repleta de sentido, dá um contributo para que o amor se apresente, ondule nos gestos de vida. Um livro bonito sobre os afectos, sobre a simplicidade dos afectos, sobre a vitória dos afectos. Entusiasma!

Sublinhados
Amar – “As pessoas que amam estão sempre com ar de urgência, porque têm saudades quando não estão acompanhadas e sentem uma euforia bonita quando estão juntas.”
Amor – “O amor é um sentimento que não obedece nem se garante. Precisa de sorte e, depois, de empenho. Precisa de respeito. Respeito é saber deixar que todos tenham vez. Ninguém pode ser esquecido.”
Feio – “Ser feio é complexo e pode ser apenas um problema de quem observa.”
Esperança – “A esperança parece inventada pela espera.”
Tristeza – “[A tristeza] é como algo descartável. Precisamos de usar mas não é bom ficar guardada.” 

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Grandes entrevistas da História, com o "Expresso" (3)



Seis políticos, um cientista e três artistas constituem o leque de conversadores no quarto volume de Grandes Entrevistas da História (em publicação pelo semanário Expresso), cujas peças jornalísticas foram publicadas entre 1952 e 1970: António de Oliveira Salazar (Christine Garnier, Férias com Salazar, 1952), Albert Einstein (Bernardo Cohen, Scientific American Magazine, Julho de 1955), Alfred Hitchcock (Pete Martin, The Saturday Evening Post, 27-07-1957), Humberto Delgado (Artur Inez, República, 10-05-1958), Salvador Dalí (Ana Nadal de Sanjúan, La Vanguardia, 19-11-1958), Fidel Castro (Clark Hewitt Galloway, U.S. News & World Report, 1959), Francisco Franco (Luis de Galinsoga, La Vanguardia, 01-10-1959), Norman Mailer (Eve Auchincloss e Nancy Lybch, Mademoiselle, Fevereiro de 1961), Nelson Mandela (Brian Widlake, Independent Television News, Maio de 1961) e John F. Kennedy (Aleksei Adzhubei, Izvestia, 25-11-1961).
Os dois políticos portugueses, rivais, foram entrevistados com seis anos de diferença. A conversa com Salazar teve lugar em Santa Comba Dão e é extraída do final de obra publicada em França e em Portugal, que permitiu a sugestão de um romance entre o político e a jornalista Garnier. Comentando a visitante que de Portugal levava uma imagem de “excessiva calma”, de “entorpecimento”, Salazar responde: “Essa calma que a impressiona é intencional. Aplicamo-nos em protegê-la contra tudo o que a possa ferir, o que não impede o povo português, que não é inconsciente nem indiferente, de estar atento aos acontecimentos mundiais. (…) Considero esta calma como uma das características do povo português na época actual. A outra, é uma forte tendência para o humanismo.” Ao longo da conversa, Salazar vai passando uma imagem rústica e de relativa suavidade do povo português, de tal forma que Christine Garnier é levada a comentar: “Tal como os apresenta, Sr. Presidente, os portugueses parecem bastante maleáveis.” Esta observação servirá ao político para expor a relação dos lusitanos com a autoridade e com a obediência: “Só têm com a autoridade relações baseadas na desconfiança. A obediência é mais receosa que cívica e sempre discutida.” A questão do medo vai estar presente também na entrevista de Humberto Delgado, publicada um mês antes das eleições presidenciais cujos resultados exactos nunca se saberão e em que o general foi vencido. À pergunta, no final da entrevista, se tinha “mais alguma coisa a declarar ao país” o então candidato a presidente respondeu: “Sim. Que o país deixe de ter medo.” Já ao longo da conversa tinha criticado o regime vigente em Portugal, dizendo: “A Nação asfixiada, mutilada no que de mais belo Deus gerou – a alma dos homens – arrasta-se ignominiosamente brincando às eleições de quando em quando, numa soturna apatia, (…) escondendo dos países sob regime democrático o absolutismo em que nós vivemos sob o título jocoso e insultivo de ditadura paternal.” A solução política que defendia era a de uma democracia para Portugal, porque pensava ser ela, “adentro das imperfeições dos homens, o melhor compromisso para viver com dignidade e felicidade”. Nunca o general Delgado iria ver esse seu desejo cumprido no seu país, porquanto, em meados de Fevereiro de 1965, próximo de Badajoz, foi assassinado.
Outros dois entrevistados rivais na política, embora de países diferentes, são Fidel Castro e John Kennedy. A peça que nos traz a mensagem do presidente cubano mostra-nos uma personagem que balança no jogo para impressionar os Estados Unidos, insistindo não ser comunista, bem como outros países de onde possa chegar capital. Por outro lado, vai contornando aquelas que poderiam ser questões mais problemáticas, como a possível oferta de produtos a Cuba por parte de países comunistas ou a base naval americana de Guantánamo… Datada de cerca de dois anos depois da de Castro, a entrevista Kennedy é feita por um jornalista da União Soviética que era mais do que jornalista – a política, a militância partidária, o relacionamento familiar com dirigentes soviéticos, eis os ingredientes que formavam a personalidade de Adzhubei, o entrevistador, que se assume muito mais como um emissário dos pontos de vista do seu país até ao ponto de discordar das opiniões do político americano ou de lhe dizer: “Gostaríamos muito que o Sr. Presidente declarasse que a ingerência nos assuntos de Cuba foi um erro.” Pelo meio, houve as referências ao relacionamento entre as duas potências, à questão da Alemanha e de Berlim, à questão da NATO, com as derradeiras palavras de Kennedy a desejar que a entrevista pudesse contribuir “para melhorar o entendimento e para a paz”, sobretudo no interesse de ambas as frentes.
Em 1959, Franco, em Espanha, tinha como preocupações as dificuldades do povo espanhol e a recuperação que estava a ser feita, a luta contra o comunismo e a união da Europa “contra os perigos” que a ameaçavam. Muito embora a questão da União Soviética ocupe a maior parte da entrevista, é no final que Franco fala do esforço que o seu país está a fazer e dos resultados que estão a ser obtidos no plano do aumento da produção nas áreas da indústria e da agricultura.
O outro político entrevistado neste volume é Mandela, naquela que foi a sua primeira entrevista a um canal de televisão internacional e também a última entrevista que deu antes de ser preso. A conversa é curta e tem como linhas orientadoras a exigência do sufrágio universal, a convivialidade rácica, a possibilidade de organização de campanhas de não-cooperação e termina com uma questão: “Creio que chegou a hora de nos perguntarmos, à luz das nossas experiências (…), se os métodos utilizados até agora são os mais adequados”. Uma dúvida que respondia à pergunta sobre a possibilidade de ocorrerem na África do Sul actos de violência por parte do Congresso Nacional Africano, que, até ali, promovia campanhas de resistência pacífica.
O cinema e os recursos que usa são o tema da conversa com Hitchcock, um realizador cheio de imaginação e de humor. O que diz sobre os seus filmes é uma chave para um novo visionamento, tão calculadas são as situações e os métodos: “O segredo está no modo de articular a história. No meu caso, cada fragmento e cada situação da obra têm de estar planeados e decididos antes de começar a rodagem. Às vezes, planifico mais de seiscentas posições para a câmara antes de começar a filmar. Se tentasse improvisar uma estrutura para o enredo à medida que avançamos, não conseguiria os efeitos nem as reacções que pretendo.” De reacções e efeitos se fala também na entrevista com outro artista, o pintor espanhol Dalí. A jornalista antecipa na apresentação que “em Dalí tudo é pose, excepto o lado temperamental”. O diálogo comprovará a apreciação: “A única coisa que me interessa é que falem de mim”, afirma, considerando-se “o maior génio deste século”. E conta uma situação que comprova até à exaustão essa necessidade de se saber falado: “Tenho agentes em vários pontos de Espanha e do estrangeiro que recolhem tudo o que é publicado sobre mim. Enviam-mo e, quando recebo os envelopes, consigo perceber se as coisas correm bem ou mal. Quanto mais pesados e mais volumosos, mais propaganda contêm. Digo isto porque os atiro para a lareira sem os abrir.” O terceiro artista é escritor, Norman Mailer, que se assume na sua diferença de estilo e de forma de intervir, que se assume como “extremista”, ora falando da sua obra, ora da política. Ao autocaracterizar-se relativamente aos outros homens, diz: “Sou menos forte, mais inquieto, mais decidido, mais inepto, tenho mais sucesso. Não gosto de mim o suficiente para me deixar levar pelos meus instintos como deveria.”
A entrevista de Einstein foi a última que deu, tendo ocorrido duas semanas antes da sua morte, embora só tenha sido publicada posteriomente. Entendendo a dificuldade do jornalista para formular a primeira pergunta, o cientista confessa: “Há tantos problemas para resolver no campo da Física.. Há tantas coisas que não sabemos… As nossas teorias estão muito longe de ser suficientes.” Fala da importância de outros cientistas, como Newton ou Benjamin Franklin, sob o pretexto do conhecimento e do saber do entrevistador, chegando a confessar que “quem pior documenta a forma como se realizam as descobertas é o próprio descobridor”, pois “sempre se tinha considerado a si próprio uma má fonte de informação sobre a génese das suas ideias.” No final da conversa, Einstein ainda vai mostrar a Cohen a experiência para provar o princípio da equivalência a partir de uma oferta que lhe fizera um amigo, Eric Rogers. E o visitante sai comovido desta conversa pela afabilidade e simplicidade que Einstein demonstrara.

Sublinhados
Ciência – “A História é menos objectiva do que a Ciência. Por exemplo, se dois homens tivessem de estudar o mesmo tema histórico, cada um destacaria o aspecto que mais lhe interessa ou chama a atenção.” [Albert Einstein. Entrevista a Bernard Cohen, em Scientific American Magazine (Julho de 1955). Grandes Entrevistas da História 1952-1970. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 30]
Coragem – “A coragem é algo que implica um enorme risco, sem se ter a certeza de que se vai sair vitorioso.” [Norman Mailer. Entrevista a Eve Auchincloss e Nancy Lynch, em Mademoiselle (Fevereiro.1961). Grandes Entrevistas da História 1952-1970. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 106]
Democracia – “Adentro das imperfeições dos homens, penso que a Democracia é o melhor compromisso para viver com dignidade e felicidade.” [Humberto Delgado. Entrevista a Artur Inez, em República (10 de Maio de 1958). Grandes Entrevistas da História 1952-1970. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 58]
Vaidade – “Quem afirma que não é vaidoso demonstra também uma forma de vaidade, ao orgulhar-se da sua declaração.” [Albert Einstein. Entrevista a Bernard Cohen, em Scientific American Magazine (Julho de 1955). Grandes Entrevistas da História 1952-1970. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 32]
Vontade – “A vontade sem ternura é uma das coisas mais perigosas do mundo. A vontade sem a capacidade de reconhecer nada para além da própria vontade é algo que deve ser erradicado.” [Norman Mailer. Entrevista a Eve Auchincloss e Nancy Lynch, em Mademoiselle (Fevereiro.1961). Grandes Entrevistas da História 1952-1970. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 107]
[Com a próxima edição do Expresso sai o volume 5 desta obra]

Para a agenda - Edição em Portugal nos anos de Salazar


"Os livros, os editores e os livreiros nos anos da ditadura de Salazar" é o título da conferência de Nuno Medeiros, estudioso na área da edição em Portugal, com trabalho publicado e premiado. Organização do Centro de Estudos Bocageanos, na Casa da Cultura, em Setúbal, em 29 de Novembro. Para a agenda.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Para a agenda - António Rego, em Setúbal



Mais uma actividade da Culsete, em Setúbal. A apresentação de "Eterno Agora", de António Rego, com a leitura de Artur Goulart. Em 29 de Novembro, pelas 16h00. Para a agenda!

Para a agenda - Fernando Pessoa em Setúbal



Fernando Pessoa em Setúbal, pela mão de Synapsis. No Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, em 28 de Novembro, pelas 21h30. Sessão animada por António Marrachinho, Sara Loureiro e Filipe Faustino. E por Pessoa, claro! Para a agenda!

Para a agenda - Casas religiosas em Setúbal e Azeitão


Um colóquio que promete ser bem interessante! "Casas religiosas de Setúbal e Azeitão" ocorrerá de 26 a 28 de Novembro, numa organização da LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão). Um programa bem diversificado. Para a agenda!

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Para a agenda - Eduardo Paz Ferreira, Soromenho-Marques e Pinto Ribeiro



Mais uma tarde com a chancela da Culsete, em Setúbal. Um livro - Da Europa de Schuman à não Europa de Merkel - e um trio de luxo - Eduardo Paz Ferreira, o autor, Viriato Soromenho-Marques e José António Pinto Ribeiro. No sábado, às 16h00. Para a agenda.

Para a agenda - Natal na Baixa, Natal em Setúbal



A animação na "baixa" de Setúbal por ocasião do Natal. A partir de 22 de Novembro. Um Natal em Setúbal, um Natal na Baixa. Para a agenda.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Para a agenda - Carlos Santana e fotografia


Até 7 de Dezembro, a fotografia de Carlos Santana ainda estará disponível para ser vista. Reexposição. Para a agenda.

Grandes entrevistas da História, com o "Expresso" (2)



Constituem o terceiro volume da obra Grandes Entrevistas da História (Lisboa: “Expresso”, 2014, em publicação) as entrevistas feitas no período 1931-1951 a George Bernard Shaw (Hayden Church, Liberty, 07-02-1931), Al Capone (Cornelius Vanderbilt Jr., Liberty, 17-10-1931), Adolf Hitler (George Sylvester Viereck, Liberty, 07-1932), Josef Estaline (H. G. Wells, The New Statesman and Nation, 27-10-1934), Fernando Pessoa (Artur Portela, Diário de Lisboa, 14-12-1934), Federico García Lorca (Luis Bagaría, El Sol, 10-06-1936), Mao Tsé-Tung (James Munro Bertram, Jiefang Ribao, 23-11-1937), Walt Disney (S. J. Woolf, The New York Times, 10-07-1938), Mahatma Gandhi (H. N. Brailsford, Harijan, 14-04-1946) e Egas Moniz (Armindo Blanco, O Século Ilustrado, 05-11-1949).
Se começarmos pelos entrevistados portugueses, veremos que Egas Moniz, tendo tido a atribuição do Nobel da Medicina em 27 de Outubro, era o homem do momento – só tinham passado nove dias até à publicação da entrevista e, além disso, era o primeiro português nobelizado, ponto cimeiro de um percurso que já tinha levado o nome deste médico a ser proposto para o galardão noutras ocasiões. Nesta fase da sua vida, aos 75 anos, o entrevistador deixa-se entusiasmar com o ritmo de vida do seu interlocutor, entre as consultas públicas e privadas, a escrita, a investigação, a ida ao cinema e a leitura, simultaneidade que conduzirá à questão do tempo e à explicação: “É necessário colocar um pouco de método nos nossos hábitos, para que o excesso de tempo de que dispomos possa dar para tudo.” O outro português da lista é Fernando Pessoa, numa curta conversa que sucedeu à publicação da sua única obra em português editada em vida, Mensagem, que tinha acontecido em 1 de Dezembro de 1934, duas semanas antes da divulgação da entrevista. A rápida conversa de Pessoa com Artur Portela no “Martinho da Arcada” evidencia a capacidade descritiva do jornalista e a enigmática personagem que o poeta é. O texto inicia-se com o retrato do entrevistado: “A calva socrática, os olhos de corvo de Edgar Poe, e um bigode risível, chaplinesco – eis a traços tão fortes como precisos a máscara de Fernando Pessoa.” Tal entrada será porventura o eco das próprias respostas do escritor, com uma dose de mistério apreciável, talvez na linha do “fingimento”: sobre Mensagem, dirá que “é um livro escrito em mim há muito tempo”; sobre a sua escrita, reflectirá que tem “várias maneiras de escrever, nunca uma”. O resultado sobre Portela é uma apresentação de Pessoa como um poeta que fala “como as cavernas, com boca de mistério”, e que, no final, “desaparece à nossa vista, num céu constelado de enigmas e de belas imagens”.
Mais dois escritores povoam este grupo de entrevistados: Shaw e Lorca. Nos seus 75 anos, o escritor irlandês fala sobre a sua obra e as leituras dela feitas e sobre a sociedade, não escondendo a sua veia de crítico social que também foi e o seu tom humorístico, dando, por vezes, a volta às perguntas. Quando inquirido sobre o futuro económico da Inglaterra, interroga-se se “conseguirá a civilização safar-se” e responde: “A lista de civilizações extintas está sempre a aumentar, tal como a lista de estrelas escuras descobertas pelos astrónomos. Qualquer estudioso do tema sabe que a estabilidade de uma civilização depende, em última instância, da sabedoria com que esta partilha a sua riqueza e distribui a carga de trabalho, bem como da veracidade da educação que ministra às crianças.” No final da entrevista, a propósito de pergunta sobre a razão de ser das “recentes derrotas que as mulheres infligem aos homens em todas as frentes”, espanta-se com a surpresa, considera a mulher tão apta e inteligente para lidar com qualquer máquina como o homem e desafia: “Se consultar os jornais de ontem, verá que várias mulheres tiveram filhos sem a ajuda de qualquer máquina. Mostre-me um homem que tenha levado a cabo uma proeza tão assombrosa e árdua e sentar-me-ei a debater consigo com toda a seriedade o significado de tamanho triunfo.” Já a entrevista de García Lorca é sobretudo uma conversa entre dois poetas, ambos tratando-se por “tu”, ambos recorrendo a uma linguagem metafórica, mais do domínio da poesia, chegando-se ao ponto de, a meio da entrevista, o rumo da conversa mudar e passar Lorca a entrevistador e Bagaría a entrevistado. No decurso, fala-se da construção poética, do papel da poesia, do afecto à Espanha, de música e do canto cigano, da literatura espanhola (em que Lorca manifesta admiração por Antonio Machado e por Ramón Jimenez). Cerca de dois meses depois desta publicação, em 18 de Agosto, o poeta granadino terá sido fuzilado.
Ainda no campo das artes, surge a voz de Walt Disney, que, aos 37 anos, era já um nome de sucesso no mundo do cinema (depois de ter distribuído jornais, de ter sido carteiro, de ter conduzido ambulâncias da Cruz Vermelha na Grande Guerra, de ter trabalhado em publicidade), respondendo a uma questão sobre “o que é a arte” de forma quase desconcertante: “O que é a arte? Eu sei lá! Somos apenas produtores cinematográficos. O nosso objectivo é divertir. Se conseguimos, sentimos que cumprimos o nosso objectivo e, se o público gosta do que mostramos, simplesmente erguemos os polegares e consideramo-nos afortunados.” O que estava em causa para Disney era a capacidade de aliar a engenharia e a comoção: “Se o homem o conseguir fazer, será um artista, mas, se não souber desenhar, se não conhecer a gramática da sua arte, não acredito que consiga expressar a sua emoção.”
A figura de Al Capone, chefe de organização criminosa, convive nesta mesa de entrevistados através da entrevista que saiu a público justamente no dia em que foi julgado e condenado a onze anos de prisão. O discurso do entrevistado assume-se como um discurso político, apelando à abertura “dos cordões à bolsa” porque eram necessários “fundos para combater a fome”. E o jornalista vai-se surpreendendo de intervenção em intervenção. “Nos dias que correm, as pessoas não respeitam nada. Antes, púnhamos num pedestal a virtude, a honra, a verdade e a lei. Veja só o caos em que transformámos a nossa vida!”. E mais adiante: “Todas as nossas principais prioridades estão invertidas. Os banqueiros corruptos que aceitam o dinheiro dos clientes, que estes ganham com o suor do rosto, em troca de acções que sabem não ter valor seriam inquilinos muito mais adequados das instituições penitenciárias do que o pobre homem que rouba para alimentar a mulher e os filhos.” Tal candura e tal convicção vão adensando a entrevista ao ponto de o seu remate ser tão solitário quanto isto: “A porta de ferro do gabinete fechou-se. A minha entrevista mais surpreendente de sempre chegou ao fim.” Quase fica Vanderbilt sem palavras…
Os quatro restantes entrevistados são oriundos do mundo da política: Josef Estaline, Mao Tsé-Tung, Adolf Hitler e Mahatma Gandhi. No caso dos dois primeiros, o discurso não deixa que os jornalistas atravessem as muralhas que blindam os entrevistados; na mente dos entrevistadores ficam admirações e uma adesão à figura com quem acabaram de falar. H. G. Wells manifestará mesmo a Estaline um agradecimento no final da entrevista, declarando: “Actualmente, só existem dois homens no mundo cujas opiniões, cujas palavras merecem a atenção de milhões de pessoas: o senhor e Roosevelt.” Mas, logo a seguir, usa alguma cautela, dizendo a Estaline: “Ainda não pude apreciar o que fizeram no seu país, porque acabei de chegar ontem. Mas já tive ocasião de ver rostos felizes de homens e mulheres saudáveis e estou convencido de que aqui está a acontecer algo de proporções consideráveis.” Wells completamente rendido a Estaline! Com a entrevista de Mao acontece um pouco a mesma coisa: estando num menos bom momento político, o chefe chinês não sai do domínio da política e tenta justificar toda a sua acção e contra-atacar os adversários, fortemente apoiado pela explicação do que se passa no seu país e do modo de funcionamento da política e das instituições. Semelhante fascínio exerceu Hitler sobre Viereck, que, regressado aos Estados Unidos, tornou-se militante pró-alemão e chegou a ser activista da Alemanha nazi. Refugiando-se num discurso anti-marxista e profundamente germânico, Hitler defende os seus ideais e chega a encolerizar-se – “As veias da fronte de Hitler incharam ameaçadoramente. A sua voz enchia a divisão” foi o registo final do jornalista. Pelo caminho, muitos apelos, condensados num só: “Queremos uma grande Alemanha que unifique todas as tribos germânicas. (…) É imperativo despertar o espírito alemão. (…) Na minha visão do Estado alemão, não haverá lugar para o estrangeiro, o esbanjador, o agiota ou o especulador, nem para ninguém que seja incapaz de levar a cabo um trabalho produtivo.” Já a entrevista de Gandhi é a procura de consenso, uma busca de entendimento com a Grã-Bretanha para que a Índia seguisse o seu caminho: “Quando a Índia desfrutar do calor da independência, provavelmente aderirá a um acordo [de carácter defensivo], de livre e espontânea vontade. A amizade espontânea entre a Grã-Bretanha e a Índia estender-se-ia então a outras potências e entre todas manteriam o equilíbrio, visto que apenas elas deteriam a força moral para o fazer. Desejaria viver mais vinte e cinco anos para ver esta visão tornar-se realidade.” Infelizmente, assim não aconteceu e, ainda não eram passados dois anos sobre esta entrevista, em Janeiro de 1948, um extremista hindu assassinou Gandhi.
Entrevistas de formas de ser, de análises pessoais, de disfarce, de sonhos, de afirmação perante os outros, de sedução perante os jornalistas, independentemente da sua experiência, de tudo acontece neste lote de dez momentos em que o jornalismo se encontrou com a História e em que o mundo foi sendo construído…

Sublinhados
Audácia – “Quando alguém se propõe ir além do poder, tem de o fazer com audácia.” [Mahatma Gandhi. Entrevista a H. N. Brailsford, em Harijan (14-04-1946). Grandes Entrevistas da História 1931-1951. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 106]

Personagem – “Só a História dirá até que ponto foi importante esta personagem ou aquela.” [Josef Estaline. Entrevista a H. G. Wells, em The New Statesman and Nation (27-10-1934). Grandes Entrevistas da História 1931-1951. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 50]

[com a edição do próximo sábado do Expresso, o nº 4 desta obra]

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Rostos (195)


James Joyce, em Dublin

Anda a gente pelas ruas de Dublin e... eis que encontra Joyce, o de Ulisses ou de Gente de Dublin. Um dos mais importantes escritores universais, um dos grandes escritores irlandeses.

Grandes entrevistas da História, com o "Expresso" (1)



A obra Grandes Entrevistas da História, que o semanário Expresso começou a publicar no início de Novembro e que é constituída por sete volumes, torna-se interessante a vários títulos: pelo período histórico abrangido (desde 1865), pelos testemunhos que traz até ao leitor de hoje, por se poder assistir ao que foi a história do género jornalístico que é a entrevista, por entrarmos na esfera de convivência de diversas personalidades hoje consideradas referências para a Humanidade, por não faltarem alguns nomes representativos portugueses (seja como entrevistados, seja como entrevistadores). Para lá do que cada entrevista possa transmitir como mensagem, o leitor é levado a abordá-las diacronicamente e na sua relação com a História, uma vez que todas são antecedidas de um texto introdutório, que contextualiza o momento da entrevista e os antecedentes relativos ao entrevistado, e de um epílogo, que informa sobre o que foi o futuro dessas mesmas personagens ou sobre as consequências do que foi dito na entrevista.
É assim que, no primeiro volume, apanhando o período entre 1865 e 1899, convivemos com as ideias de Abraham Lincoln (Goldwin Smith, Macmillan’s Magazine, 07-02-1865), Karl Marx (R. Landor, The New York World, 18-07-1871), D. Pedro II (pelo correspondente do The New York Herald, 1871), Louis Pasteur (D’Alberty, em M. Pasteur & la Rage, 1882), Theodore Roosevelt (pelo correspondente do The Pall Mall Gazette, 09-12-1886), Thomas Edison (R. H. Sherard, The Pall Mall Gazette, 19-08-1889), Mark Twain (Rudyard Kipling, From Sea to Sea, 1889), Papa Leão XIII (Séverine, Le Figaro, 03-08-1892) e Nikola Tesla (S. E. Solly, The New York Herald, 12-11-1899).
Parte significativa destas entrevistas impressiona pela imagem que os entrevistados deixam nos entrevistadores, constituindo o corpo dessas entrevistas pouco mais do que isso mesmo – o autor do texto vai partilhando algumas respostas, mais excertos de conversa do que entrevista como a concebemos hoje, e vai construindo o retrato do entrevistado.
Por este palco passam políticos e dirigentes como Lincoln, Marx, D. Pedro II, Roosevelt e o Papa Leão XIII, sempre advindo deles uma imagem forte. É assim que Smith conclui o seu texto sobre o presidente Lincoln dizendo: “Poderá ou não ser um grande homem, mas, pelo menos, é um homem honesto e responsável. A sua reeleição era desejável, não só pelo bem do seu país, mas também pela paz no mundo. Já na entrevista a Marx, assinada por Landor, efectuada quando o filósofo era líder da AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores) e quando estava candente a questão da Comuna de Paris, nos passa a imagem de um chefe em posição confortável que impressiona fortemente o entrevistador, levando-o a deixar uma leitura para o mundo – “Expus aqui, tanto quanto a minha memória mo permitiu, os momentos mais importantes da minha conversa com este homem notável. Deixarei que o leitor tire as suas próprias conclusões. Por muito que se possa dizer a favor ou contra a possibilidade da sua participação no movimento da Comuna, podemos ter a certeza de que a Associação Internacional é um novo poder no seio do mundo civilizado com o qual este muito em breve terá de ajustar contas, para o bem ou para o mal.” Mais parca em ideias sobre o entrevistado é a intervenção do correspondente do The New York Herald quando entrevista D. Pedro II – a conversa é frugal, quase de acaso, e, mesmo assim, o jornalista disponibiliza-se para submeter ao secretário régio o texto a redigir, visando algumas correcções; todavia, o imperador, que estava em passeio pelo Egipto, rejeita a oferta e argumenta: “Toda a minha vida foi uma constante entrevista e, consequentemente, nunca digo nada que não deseje que se torne público.” Roosevelt apresenta-se como um forte ganhador, analisando criteriosamente a política e afirmando: “Nós, os norte-americanos, somos demasiado empreendedores para aceitar restrições”. Leão XIII, o primeiro Papa entrevistado por uma mulher que se deixa deslumbrar pelo Vaticano, marca pela sua análise do que é a igreja e pelo destino que sente, enquanto chefe católico, de conduzir o seu povo para um caminho de “doçura e fraternidade”. A entrevista surge como uma voz em prol da doutrina social da Igreja. Conte-se o tempo decorrido entre 1892 e 2014, ano em que um Papa voltou a ser entrevistado por outra mulher…
Na área da ciência e dos inventos, a presença é a de Pasteur, Edison e Tesla. De Louis Pasteur, então na apoteose da carreira, a ideia que ressalta é a da visita do jornalista ao laboratório onde o investigador pesquisava a vacina para a raiva, momento em que o entrevistador comenta, depois de assemelhar um galo a uma coruja, de confrontar as reacções de uma ovelha com as de um macaco: “Era uma cena impressionante. (…) Se os animais pudessem partilhar o que pensam, como gostaria de compreender a sua linguagem. Que entrevista fascinante não faria aos hóspedes do Sr. Pasteur!” Edison é apresentado como um inventor, de cuja conversa não está ausente a animosidade com Tesla, antevisionando um futuro em que “fábricas enormes funcionam dia e noite”, numa “luta do homem contra o metal”. Nikola Tesla é o centro de uma entrevista que gira em torno de um laboratório, de uma estação experimental; por isso, a primazia dada pelo autor da peça jornalística vai para a descrição do espaço e de toda a maravilha com que se confronta, muito mais do que para a conversa. O que estava em causa no momento era a possibilidade de serem transmitidas mensagens para qualquer parte do mundo.
Finalmente, um homem das artes, o autor de aventuras protagonizadas por Huckleberry Finn e por Tom Sawyer. Mark Twain, escritor entrevistado por outro escritor, Kipling, fala da sua obra, enfatizando o herói Sawyer – “Ele é todos os meninos que conheci ou recordo” – e da presença autobiográfica na literatura, no romance, concluindo a sua entrevista com um discurso sobre a leitura de ciência e sobre uma abordagem dos factos que justificava a própria literatura – “Primeiro pegamos nos factos, e depois podemos distorcê-los à vontade”.
O segundo volume abrange o período temporal entre 1900 e 1930, com entrevistas a Júlio Verne (Gordon Jones, Temple Bar, Junho de 1904), Harry Houdini (Edha Ferber, Appleton Crescent, 23-07-1904), Guglielmo Marconi (Kate Carew, New York Tribune, 14-04-1912), Sacadura Cabral e Gago Coutinho (Thomaz Ribeiro Colaço, O Dia, 07-06-1922), Marie Curie (Marie Mattingly Meloney, no livro Pierre Curie, 1923), Benito Mussolini (António Ferro, A Capital, 02-12-1923), Charles Lindbergh (Carlyle MacDonald, The New York Times, 22-05-1927), Georges Clemenceau (George Sylvester Viereck, Liberty, 07-07-1928), Henry Ford (M. K. Wisehart, Modern Mechanics, Dezembro de 1929) e Sigmund Freud (George Sylvester Viereck, em Glimpses of the Great, 1930).
Lemos a entrevista com Júlio Verne, feita um ano antes da sua morte, e percebe-se o porquê de este continuar a ser um autor de eleição, pelos mundos que imaginou ou que antecipou, chegando mesmo a confessar, em jeito de explicação e sem pretensão de superioridade: “O máximo que posso dizer é que talvez tenha olhado um pouco mais além no futuro do que a maioria daqueles que me criticaram”. Depois, a entrevista é ainda rica pelo respeito e admiração que consagra aos outros, seja quando fala de autores já desaparecidos, como Dickens, seja quando aprecia obras de seus contemporâneos, como H. G. Wells. Ainda no domínio das artes, é-nos dado seguir alguns passos do ilusionista Harry Houdini, que impressiona a entrevistadora pela maneira como não explica os seus truques ou pela forma como se refere à sua família, particularmente aos pais – “nestes dias de vertigem e loucura e frequente falta de respeito para com os mais velhos, é agradável ouvir estas palavras da boca de um filho”, escrevia a jornalista nesse 1904.
No domínio da ciência, Marconi é o primeiro conversador deste volume, desenrolando-se a entrevista com fluência e com o registo caricato da presença intimidatória do secretário do cientista, que desespera por não conseguir controlar a duração da conversa. No ramo da ciência, há ainda lugar para uma entrevista a Marie Curie, que deixa que perpasse o seu papel de investigadora, mas também o do contributo que a ciência tem de dar para uma causa humanitária, veiculando a mensagem de que os recursos de que o mundo dispõe são de todos os que o habitam. A secção da ciência fecha com Freud, à data o patrono da psicologia, que chega a ser comparado com outro grande mestre da ciência: “Freud representa para a psicologia o que Galileu representou para a astronomia.” E Freud fala das correntes, das divergências e da sua paixão do momento: “Felizmente, as plantas não têm temperamento ou complexidades. Adoro as minhas flores. E não me sinto infeliz. Pelo menos, não mais do que os outros."
À política chega o leitor pelas palavras de Mussolini, entrevistado pelo português António Ferro, que se deixa fascinar pelo chefe italiano, inclusive com a oferta que este lhe faz de uma sua fotografia autografada. Surpreende o pendor rigoroso do entrevistado, quase contando ao pormenor o tempo disponível por achar que não tempo a perder: “O deputado, que se limita a repetir o que os jornais já me disseram, só me faz perder tempo”, dirá. Outro nome da esfera da política é o de Georges Clemenceau, em entrevista no ano anterior à sua morte, de 1928. Perguntado sobre o estado geral do mundo e da França, responde, recorrendo ao seu saber e ao que vira até uma década antes: “As condições serão satisfatórias enquanto na Europa continental se mantiver o actual equilíbrio de forças. Se esse equilíbrio for alterado por um renascimento do imperialismo  alemão, a Europa ver-se-á mergulhada noutra contenda generalizada.” Clemenceau não chegou a esse patamar, mas sabia o porquê de o estar a dizer…”.
Noutro grupo está Henry Ford, o homem  que ligou a sua memória ao automóvel e à descoberta de regras para cidades e para práticas do seu tempo. O seu visionarismo torna-se extraordinário, chegando a idealizar: “Provavelmente, no futuro, o aquecimento nas cidades norte-americanas será eléctrico. Ou seja,  as nossas casas terão de ser construídas de uma forma diferente, melhor. Temos de descobrir qual é a melhor forma de as isolar. Desse modo, serão mais frescas no verão e com um aquecimento mais uniforme no inverno.”
Da área da navegação aérea e dos feitos grandiosos são os entrevistados Sacadura Cabral e Gago Coutinho, especialmente o primeiro, já que o segundo, estando presente, só intervém ocasionalmente. Interessante o pormenor de Sacadura Cabral ter lido a entrevista previamente e lhe ter acrescentado, por seu punho, muita informação, sobretudo no respeitante a pormenores da travessia do Atlântico Sul. O registo da conversa não perde em humor, tendo o jornalista comentado, quando Sacadura Cabral lamentou uma menor graça nesta travessia por a viagem não ter usado apenas um avião mas sim três: “Se um globe-trotter desse a volta ao mundo mudando dez vezes de botas, não deixaria por isso de dar a volta ao mundo. E se conservasse sempre o mesmo calçado, metade da admiração iria para as botas…” O outro viajante é Charles Lindbergh, o piloto que fez a primeira viagem sem escalas entre Nova Iorque e Paris, cujos receios quase minimizou: “Na verdade, pilotar um bom avião não exige nem de perto a atenção que é necessária para conduzir um automóvel. Saí de Nova Iorque com quatro sanduíches. Só comi uma e meia durante a travessia e bebi um pouco de água. Não creio que tivesse tido tempo de comer mais nada, porque fiquei surpreendido ao dar-me conta de quão curta é a distância entre Nova Iorque e a Europa.”
O que se nota no leque dos dez entrevistados das três primeiras décadas do século XX é que todos eles acompanham a vertigem do tempo em que se situavam. Homens e mulheres do seu tempo, sem dúvida, todos nos ajudando a perceber esse mesmo tempo.

Sublinhados
Alianças – “As alianças internacionais não acabam com as rivalidades internacionais.” [Georges Clemenceau. Entrevista a George Sylvester Viereck, em Liberty (07.Julho.1928). Grandes Entrevistas da História 1900-1930. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 92]
Autobiografia – “Uma autobiografia [é] a única obra na qual um homem, mesmo contra a sua vontade e apesar de tentar denodadamente fazer o contrário, se revela ao mundo tal como é na realidade. (…) Mas nuna autobiografia autêntica é impossível que um homem conte a verdade sobre si mesmo, assim como é impossível que consiga impedir que o leitor perceba essa verdade.” [Mark Twain. Entrevista a Rudyard Kipling, em From Sea to Sea (1923). Grandes Entrevistas da História 1865-1899. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 86-87]
Citações – “Provavelmente, algumas das melhores frases atribuídas aos grandes homens nunca foram proferidas, pelo menos por eles. A imaginação do mundo inventa a palavra certa quando a imaginação falha ao herói.” [Georges Clemenceau. Entrevista a George Sylvester Viereck, em Liberty (07.Julho.1928). Grandes Entrevistas da História 1900-1930. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 95]
Homem – “O homem jamais será suplantado por algo que seja inferior a ele. E não há nada à face da Terra que seja superior ao ser humano. Partindo do princípio de que a mais alta manifestação da vida no nosso planeta será sempre o ser humano e dado que os humanos parecem ser seres progressivos, deduz-se que a nossa raça continuará indefinidamente, a menos que uma catástrofe de dimensões cósmicas a varra do planeta. O homem superará o seu nível evolutivo actual. Por acaso não é o homem de hoje sobre-humano em comparação com o homem primitivo?” [Georges Clemenceau. Entrevista a George Sylvester Viereck, em Liberty (07.Julho.1928). Grandes Entrevistas da História 1900-1930. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 102]
Igreja – “A tarefa da Igreja é doçura e fraternidade. Deve aproximar-se do que está errado, esforçar-se por erradica-lo, mas qualquer tipo de violência contra as pessoas é contrário à vontade de Deus, aos seus ensinamentos.” [Leão XIII. Entrevista a Séverine, em Le Figaro (03.Agosto.1892). Grandes Entrevistas da História 1865-1899. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 102]
Popular – “A popularização conduz a uma aceitação superficial sem levar a uma investigação séria. As pessoas limitam-se a repetir frases que ouvem no teatro ou na imprensa.” [Sigmund Freud. Entrevista a George Sylvester Viereck, em Glimpses of the Great (1930). Grandes Entrevistas da História 1900-1930. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 129]
Trabalho – “Se eu tivesse um trabalho demasiado pesado para mim, esforçar-me-ia para descobrir uma forma de o tornar mais fácil. Uma tentativa séria de tornar menos pesado um determinado trabalho é o impulso inicial para criar alguma coisa. Quem o fizer, construirá o seu futuro com base numa descoberta de que o mundo necessita.” [Henry Ford. Entrevista a M. K. Wisehart, em Modern Mechanics (Dezembro.1929). Grandes Entrevistas da História 1900-1930. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 112]
Vida – “Quando uma pessoa se detém a pensar, a religião, a formação e a educação não são garantia de nada perante a força das circunstâncias que movem o homem.” [Mark Twain. Entrevista a Rudyard Kipling, em From Sea to Sea (1923). Grandes Entrevistas da História 1865-1899. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 86]

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Para a agenda - Maurício Abreu e a forma de olhar o mundo



É já no dia 21 de Novembro que Maurício Abreu, fotógrafo radicado em Setúbal, vai falar sobre "a fotografia como meio de conhecer e entender o Mundo". Uma realização do grupo Synapsis, na sede do MAEDS, Para a agenda!

domingo, 16 de novembro de 2014

Uma porta cheia de livros



Há livros? Há, há! Uma porta que dá acesso aos livros, uma porta cheia de livros... Será que já leu alguns destes?
A fotografia tem mais de um ano. A dita porta despertou na Rua 26 de Setembro, em Setúbal, ali perto da avenida que tem o nome da cantora lírica, ali perto da Fonte Nova. Uma porta cheia de livros graças à imaginação de Olinda Lima!

sábado, 15 de novembro de 2014

Carlos Vaz Marques: as entrevistas porque "os escritores (também) têm coisas a dizer"



Uma dúzia de escritores de expressão portuguesa alberga-se sob o título de Os escritores (também) têm coisas a dizer (Lisboa: Tinta da China, 2013), conjunto de entrevistas levadas a cabo por Carlos Vaz Marques, selecção de mais vasto conjunto daquelas que o autor publicou na revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores).
As entrevistas conduzidas por Vaz Marques têm a marca da conversa, do encontro cuidadosamente preparado, com o trabalho de casa cumprido e com o ar de desvendamento que deve municiar qualquer entrevistador. Não se vai perguntar porque já se saiba; vai-se às perguntas porque se acha que, para lá do que é conhecido, do que é do domínio comum, há mais coisas para serem ditas, reveladas, desocultadas.
Assim, as entrevistas são guiadas com oportunidade, demonstrando franco conhecimento da obra do entrevistado, levando a que este se exponha para lá do que é a publicação da sua própria obra. E cada uma das páginas é absorvida pelo leitor, levando-o a crer que também esteve presente naquele momento de troca ou de perscrutação de saberes, levando-o a sentir que também participou na história daquele momento que foi a entrevista, onde não faltam contextualizações de espaço, estados de espírito, registos de pormenores ou as justificações para que as conversas tenham acontecido, onde não falta sequer a ilustração do rosto dos entrevistados devida ao traço de Vera Tavares.
É verdade que o leitor já sabe ao que vai, isto é, confia nos dotes do entrevistador, depois de ouvido nas emissões radiofónicas e televisivas, depois de lido em periódicos diversos, depois de lido noutras entrevistas já publicadas em livro, como aconteceu com o título Pessoal e Transmissível (Porto: ASA, 2004), que também recolheu uma dúzia de entrevistas das cerca de quatro centenas que tinham ido para o ar na TSF pela voz de Carlos Vaz Marques.
O que há de interessante no género entrevista é a vontade com que se parte à descoberta. Seja o entrevistador, seja o leitor ou ouvinte ou telespectador. No fundo, confiamos na lista de perguntas, na qualidade da conversa de quem faz as perguntas, acreditando que algumas delas poderiam ser feitas por nós ou são feitas em nosso nome. E o entrevistado entra neste jogo de revelação e de dádiva…
Nesta recolha de entrevistas a escritores, motivadas por livros, realizadas maioritariamente entre 2008 e 2012 (com excepção da de Agustina, datada de 2003), passam, por ordem alfabética, os nomes de Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes, Antonio Tabucchi, Dulce Maria Cardoso, Eduardo Lourenço, Hélia Correia, Gonçalo M. Tavares, José Saramago, Manuel António Pina, Mário de Carvalho, Mia Couto e Valter Hugo Mãe. Todas para serem lidas de fio a pavio, seguidas ou alternadas ou interrompidas, mas lidas. Excelentes testemunhos que proporcionam não menos excelentes aprendizagens ou não menos interessantes aproximações ou não menos entradas nas lógicas dos outros, óptimas conversas que nos levam aos caminhos do desvendamento da vida, da arte, do pensamento e do mundo!

Sublinhados
Abstracto – “Todos os substantivos abstractos são perigosos: honra, glória, coragem, pátria. (…) Podemos torcê-los e fazer deles o que quisermos. É em nome de palavras destas que se têm feito as piores coisas.” (António Lobo Antunes, pg. 47)
Arrogância – “A arrogância nunca tem resultados positivos. Normalmente é uma falsidade. (…) A arrogância habitualmente está cheia de vento. É vaidade.” (Mário de Carvalho, pg. 277)
Biblioteca – “Como é que se faz uma biblioteca ideal? É impossível. A minha biblioteca é feita dos livros que encontrei, dos amigos que fiz, dos livros que me mandaram… É o acaso. Um pouco como a vida. A literatura, no fundo,  segue os mesmos caminhos da vida. É a desordem. Que, depois, curiosamente, esta desordem se possa organizar sozinha é algo que não depende da nossa vontade. Ela depois encontra uma forma qualquer com a qual convivemos.” (Antonio Tabucchi, pg. 168)
Civilização – “A civilização torna as pessoas todas lunáticas. (…) Não é que disfarcem. Uns adaptam-se mais do que outros à rotina. Mas todos, mais ou menos, são lunáticos porque a civilização cria a aberração. O ser civilizado é uma aberração. É perverso.” (Agustina Bessa-Luís, pg. 19)
Criar – “Criar é tão absorvente que Deus não fez mais nada senão a criação.” (Mia Couto, pg. 213)
Cumprimento – “Se alguém me estende a mão, eu aperto-lhe a mão, sempre. Apertar a mão é uma metáfora de coisas mais vastas: de simpatia, de afecto.” (Manuel António Pina, pg. 374)
Data – “As datas são importantes na medida em que representam pontos de passagem mais importantes do que o dia anterior ou o dia seguinte.” (José Saramago, pg. 92)
Destino – “Um grande destino, aquilo para que hoje todos os jovens são criados. (…) Ou, no fim de contas, um grande sofrimento. Porque esse destino, chega a certa altura, tem um tecto e não vão mais além daquilo. Começa, então, o psiquiatra a exercer a sua função.” (Agustina Bessa-Luís, pg. 21)
Deus – “Deus é um comunicador. É a maior invenção da humanidade. Eu espero até que à força de tanto ser inventado exista mesmo. Mas o meu Deus não é o dos caminhos ínvios. É um Deus que permite a espera. Toda a vida é uma espera. A mais evidente é a da morte. A menos evidente é a da felicidade. A existência de Deus torna essa espera menos dolorosa.” (Dulce Maria Cardoso, pg. 343)
Escrever – “A responsabilidade de quem escreve é uma responsabilidade humana: a questão da conservação da memória. A única hipótese de conservarmos o antigo é tornarmos o antigo presente. Isso é uma responsabilidade do escritor: dar a sua atenção ao clássico.” (Gonçalo M. Tavares, pg. 302)
Fazer o melhor – “Olharmos o infinitamente pequeno ou o infinitamente grande dá-nos uma relativização tão grande de tudo. A grande dignidade do jornalismo – e da própria natureza humana – é tentar fazer o jornal o melhor possível sabendo que no dia seguinte ele vai embrulhar peixe. O mínimo que nos é exigível é o máximo que somos capazes de fazer. Nas coisas simples do dia-a-dia. Ser da maior bondade possível no quotidiano. A bondade é a maior de todas as qualidades. Inclui a beleza, a justiça e a verdade. Ser o mais bondoso possível sabendo que isso é inútil.” (Manuel António Pina, pg. 364)
– “A nossa existência é uma prisão num labirinto cuja porta de saída, para alguns, é a fé.” (Manuel António Pina, pg. 361)
Ficção – “O homem é um ser ficcionante. Independentemente do que seja o objecto dessa ficção. Nós estamos sempre ficcionando. A nossa relação com o real é uma relação imaginária.” (Eduardo Lourenço, pg. 135)
Homem – “A natureza do animal humano não mudou muito desde que nós aparecemos como homo sapiens. Portanto, contarmo-nos a nós próprios, contar o Homem com H maiúsculo, a Humanidade, significa também olhar umas vezes para o melhor e outras vezes para o pior. É preciso também olhar para o pior. Custa. Mas é um dever. É uma obrigação.” (Antonio Tabucchi, pp. 174-175)
Homem – “A natureza humana deve tomar algumas precauções e a primeira é vigiar-se um pouco, antes de se lançar em certas declarações.” (José Saramago, pg. 101)
Importante – “O importante é sempre o que não há.” (Dulce Maria Cardoso, pg. 319)
Literatura – “No fundo, a literatura procura umas frinchas naquilo que nós somos. O mistério de que nós somos feitos. Perceber alguma coisa é tentar usar uma lâmpada como a dos mineiros, para se entrar nessas minas desconhecidas que somos nós próprios.” (Antonio Tabucchi, pg. 174)
Livro – “O relacionamento com os livros – que vem de todos os livros que a gente lê quando é jovem – torna-os bocados de nós próprios. São as tábuas privadas das nossas leis. As escritas e as não escritas.” (Eduardo Lourenço, pg. 117)
Magoar – “Não quero magoar ninguém. (…) As pessoas não precisam de mim para se magoarem, já se magoam tanto a elas mesmas. Não precisam da minha ajuda para nada.” (António Lobo Antunes, pg. 67)
Memória – “O processo que leva a escolher, a seleccionar aquilo que sobrevive e aquilo que deve ser apagado é o mesmo. É um processo ficcional. Porque o que se escolhe nunca é exactamente verdade. As coisas nunca se passam exactamente assim. É uma elaboração. Tal e qual como o relato de um sonho é sempre uma elaboração. Ninguém se lembra exactamente do que sonhou porque isso implicava falar a língua dos sonhos e ninguém fala a língua dos sonhos. Quando fazemos esta tradução, temos de colocar aquilo numa outra ordem, numa outra lógica.” (Mia Couto, pp. 188-189)
Riso – “O riso é uma forma de resistência. Não há nenhuma tirania que suporte que se riam dela e das suas imposições. Não há nenhum fanatismo, nenhuma igreja, que ande à volta do riso. O riso tem sempre qualquer coisa de desafiante e de subversivo. (…) O poder habitualmente aposta na solenidade. O riso é um desafio a isso.” (Mário de Carvalho, pg. 259)
Tédio – “As pessoas mais desesperadas são aquelas que estão sempre a fugir do tédio. O tédio é uma coisa central, base. O que é o tédio? É um momento de espera em que aparentemente nada está a acontecer. É uma sensação de inutilidade. Mas a vida tem uma percentagem enorme de momentos em que nós estamos à espera. Se não soubermos lidar com isso, estamos a desperdiçar uma matéria fundamental.” (Gonçalo M. Tavares, pg. 309)
Tempo – “Nós não somos lineares. Nada em nós se comporta como um simples acumular de factos. Por isso, as coisas têm retrocessos.” (Valter Hugo Mãe, pg. 229)
Testemunha – “A diferença entre ser testemunha e espectador é que o espectador é passivo, não age, aceita. A testemunha age.” (Dulce Maria Cardoso, pg. 334)
Texto – “Um grande texto é o que tem uma escrita holográfica. É o que, em vez de fazer a fotografia do real, consegue dar profundidades que eu não alcanço de outra maneira. Que só alcanço por aquela combinação de palavras que aquele escritor conseguiu. Está lá outro universo dentro.” (Hélia Correia, pg. 397)

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Joaquim Gouveia - Três perguntas para um universo de respostas



Desde 2011, Joaquim Gouveia, setubalense ligado ao jornalismo e a outras artes, tem vindo a publicar na blogosfera entrevistas com pessoas ligadas a Setúbal (por nascimento ou por adopção), a um ritmo de periodicidade variável. Escolheu para nome do blogue a designação “Gente gira da região”, sugerindo um misto de admiração, de beleza e de respeito, talvez porque seja isso mesmo que devemos ver em primeiro lugar em todas as pessoas.
Em finais de 2013, no Mercado do Livramento, Joaquim Gouveia expôs uma parte das entrevistas feitas até aí, mas o seu projecto prosseguiu e as conversas continuaram a ter lugar sob o céu de Setúbal, com aromas de Sado.
O modelo da entrevista tem-se mantido: as perguntas não se preocupam com a actividade actual do entrevistado ou com o seu estado, procuram perscrutar-lhe um caminho, encontrar linhas de pensamento, ainda que sem aprofundamento, mesmo porque o espaço para a escrita e para a leitura é o que é.
Dessas entrevistas, Joaquim Gouveia resolveu agora mostrar fragmentos daquilo que estes setubalenses pensam, na obra Como pensam os setubalenses (Setúbal: ed. Autor, 2014), enveredando por três áreas – o mundo, a crise, Deus. Uma centena de respostas é perfilada para cada um dos vértices deste triângulo, todas resultantes de momentos de reflexão súbita, proporcionados pela vertigem de uma entrevista, sem esboço ensaístico, sem análise de “prós” ou de “contras”, sem a medida das consequências do próprio pensamento. Primeiras ideias sobre um pensamento, sobre uma palavra, pois. Passos iniciais sobre algo com que todos nos confrontamos no quotidiano, na vida. Afirmações sem certezas, mas com a emoção de se olhar para o que rodeia este actor e agente que é o homem, que somos nós.
O mundo, o que se pensa do mundo? É sabido que todos olhamos o mundo em função do que somos e do que sentimos. Descobriremos coisas novas, absolutamente novas? Descobrimo-las para nós, mas elas já estavam lá antes da nossa descoberta. Olhamos o mundo pelos nossos prismas e ele é multifacetado. Escreveu algures o poeta José Fanha: “Que o mundo está todo do avesso já sabemos. Às vezes está do avesso para bem e outras para mal. Mas se resolvêssemos aparafusá-lo, deixava de rodar e isso é que não tinha graça nenhuma.” Assim, vamos achando graça ao mundo, isto é, vamos acreditando que podemos contribuir para que ele melhore, mas… o que sentimos depois de todo o esforço nem sempre é feliz! Perpassamos os olhos pelas respostas aqui presentes e elas não se distanciam do essencial da resposta de Fanha – sobrepõe-se, talvez, o tom do cepticismo, em que são valorizados os conflitos, as desigualdades, o (ir)respirável, à mistura com a constante dos recuos e dos regressos aos sonhos, com uma falta de reconhecimento do homem no mundo, com uma Europa que se desmorona (que o mesmo é dizer sobre as mudanças ou alterações de valores). A visão que os entrevistados apresentam do mundo, do planeta Terra em que habitam e com cuja organização convivem, não é feliz; é maioritariamente descrente, com um tom de decepção cuja responsabilidade é remetida para o ser criador que o homem poderia ser. Nostalgia do paraíso? Antes, talvez, a ideia de que o homem é pequeno para tanta coisa, apesar de ser latente a crença de que, como dizia Sebastião da Gama, “pelo sonho é que vamos”…
E entra-se na segunda questão seleccionada: como se ultrapassa a crise? Ambígua, esta ideia de crise! Por isso, alguns entrevistados se questionam quanto ao tipo de crise – portuguesa, mundial, económica, financeira ou de valores? Associadas andarão elas, porque as crises podem ser plurais e universais. Mas é verdade que a tónica dos entrevistados caminha no sentido da humanização, isto é, do respeito pelo homem, ao mesmo tempo que ressalta a ideia de haver um certo artificialismo nesta ideia generalizada de “crise”. Poderíamos ir buscar muitas citações de outros que neste livro não entram, mas bastará a lembrança do momento em que um político afirmou ser a crise uma situação de oportunidade. Perguntaremos: de quê? O balanço que se faz das respostas não é assim tão promissor quanto o dos discursos políticos. Depois, há ainda a ideia de que a crise assenta sempre sobre os mesmos. E, aqui, convém ir pedir emprestada uma citação à escritora Dulce Maria Cardoso, que, numa entrevista, a propósito dos sacrifícios impostos em nome das mudanças, referiu: “Cada um de nós vale a mesma coisa. Nós não somos peças de uma engrenagem em que uns vão para carne picada para salvar outros.” Esta rejeição surge porque o princípio parece real. Isto é: não sobressai das respostas dos entrevistados que a crise seja ultrapassada por meio dos sacrifícios impostos. Pior: não ressalta das respostas dos entrevistados que, no que diz respeito a Portugal, a crise esteja a ser gerida no sentido de ser ultrapassada. E, sem convicções, o homem, mesmo que o mundo pule e avance, não constrói a sua salvação…
Finalmente: Deus. A pergunta joga com ideias, sugere respostas, impõe-se: “Deus criou o homem ou foi o homem quem criou Deus?” Algo entre a fé e o “big bang”, algo entre a religião e a ciência. As respostas valem o que valem, porque as dúvidas também se mostram. Nas respostas apresentadas, há a fé, a crença, a prática religiosa, como há a falta de tudo isto. Um mundo e um tempo em que cada qual pensa a sua relação com o divino ou a falta dela. Permita-se-me que regresse à entrevista de Dulce Maria Cardoso, quando afirma algo de tão sensível e de tão religioso como isto: “Deus é um comunicador. É a maior invenção da humanidade. Eu espero até que à força de tanto ser inventado exista mesmo. Mas o meu Deus não é o dos caminhos ínvios. É um Deus que permite a espera. Toda a vida é uma espera. A mais evidente é a da morte. A menos evidente é a da felicidade. A existência de Deus torna essa espera menos dolorosa.” Pelas respostas dos setubalenses entrevistados passam mesmo as causas pelas quais (des)acreditam. Embora não tenham de resolver a questão, os entrevistados partilham razões, pensamentos, momentos de fé, porque, na verdade… Deus continuará a ser uma interrogação, independentemente do lado em que se esteja. Pensar em Deus implica um encontro do homem consigo, diálogo cujo resultado será inesperado. Confessou-o Jorge de Sena, ainda que pela poesia: “Senhor, não peço mais do que o silêncio do mundo, / o silêncio dos astros, o silêncio das coisas / que outros homens fizeram, e o das coisas / que eu próprio fiz. E o teu silêncio / de senhor que foi. Não peço mais. / Não é nada o que peço. Dá-me / o silêncio. Dá-me o que não fui: / silêncio (porque calei tanto): / o que não sou (pois que calo tanto): / o que hei-de ser (já que falar não adianta): / silêncio. / Senhor: não peço mais.” E, na mesma senda da poesia, a insubstituível Sophia de Mello Breyner retratou: “Deus é no dia uma palavra calma / Um sopro de amplidão e de lisura.” Será, porventura, na resposta a esta pergunta que mais diferenças existem nas respostas que ornamentam este livro. Mas esse é o preço que se paga pela coragem que todos assumiram ao tentar justificar Deus ou ao ensaiar o contrário. Seja como for, Deus e o homem passeiam-se pelas respostas…
Daqui para a frente, fique o leitor com um plural conjunto de argumentos, de opiniões, de pensamentos, de ideias. Com que pode concordar ou de que pode discordar. Mas que lhe hão-de suscitar o diálogo e a sua própria resposta. Depois, é consigo…
[Prefácio à obra]

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Memória: Fernando Mascarenhas, Marquês de Fronteira (1945-2014)




Senti o frio quando, hoje, ouvi a notícia da morte de Fernando Mascarenhas, o Marquês de Fronteira. Assisti a várias realizações que promoveu no Palácio de Fronteira, em Lisboa, todas com considerável nível cultural. A seu convite, participei, de resto, numa delas. Fica dele o desassombro com que intervinha, a pertinência das questões sempre no sentido de se avançar mais nas interpretações das coisas e no saber. Fica-me dele a coragem com que tratou a cultura, partilhando-a, aproximando-a das pessoas, sempre com um pendor crítico notável e demonstrando querer saber mais, agitando as águas mornas, correndo o risco. Gostei de ter tido a oportunidade de o conhecer, de o ouvir, de com ele ter conversado, ainda que numas escassas duas vezes. E fico-lhe grato por esses momentos, sobretudo pelo que aprendi.
[Foto: Público]

terça-feira, 11 de novembro de 2014

"Anel da Memória" assinala o sofrimento da Grande Guerra em Dia do Armistício




“Anel da Memória” é o título da escultura inaugurada em Pas de Calais (França) hoje, obra do arquitecto Philippe Prost, idealizada pelo historiador Yves Le Maner. A sua simbologia não remete para a vitória dos Aliados no conflito mundial de 1914-1918, mas para a evocação do “sofrimento vivido pelos soldados de todos os lados do conflito”.
Assim, em 500 peças de aço dispostas na forma de círculo, numa área de cerca de dois hectares, o nome de 580 mil soldados participantes na Primeira Grande Guerra, entre os quais os de mais de dois milhares de nomes portugueses, perpetuará o respeito pelo sofrimento, independentemente do lado da trincheira ou da geografia em que a Grande Guerra se desenvolveu.
Uma forma memorável de assinalar o Dia do Armistício!
[foto: Pascal Rossignol, Reuters, através de RFI]