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quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (3)


Dedicatórias autógrafas de Sebastião da Gama para
Joaquim Vermelho, Maria Guiomar Ávila e Acilda Fragoso


Pelas crónicas estremocenses de Sebastião da Gama, vindas a público no Jornal do Barreiro, passa a paisagem, a festa de Carnaval, a cidade, o mercado, a simpatia das gentes, episódios do quotidiano do poeta, um jogo de futebol, os amigos... tudo num xadrez de observação e de contemplação enlaçadas em afecto, patente em exemplos como: a) ao referir a paisagem, diz ainda não a conhecer “senão da janela do quarto ou da Torre de Menagem — o campanário de Estremoz e o seu mirante, de onde os olhos se admiram para os olivais sem fim, para o verde que te quero verde dos trigos, para as searas onduladas”, umas pinceladas que nos remetem para outra vastidão, também ela “ondulada”, também ela podendo ser “verde”, como o mar que marca forte presença na poesia de Sebastião da Gama, assim como nos remetem para García Lorca, intertextualizando com o seu “Romance sonâmbulo”, quando diz “Verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas.” (e sabemos bem quanto Sebastião da Gama conhecia e apreciava a poesia espanhola, como David Mourão-Ferreira testemunhou numa entrevista); b) ao olhar o Rossio estremocense, não duvida de que a cidade pode ser “uma caixinha de surpresas” e proclama, quase em jeito de provocação, que “o Rossio de Estremoz poderia tratar por tu o de Lisboa”; c) para referir a hospitalidade alentejana, inicia uma crónica em torno de uma reflexão tão cheia de simplicidade quanto “só estou bem onde estou”, reforçando não se ver como forasteiro, mas sentir-se “em casa”; d) finalmente, na última “carta”, atesta a sua identificação: “Sou de Estremoz e dos seus arredores — e aqui é verde e alegre. Este é um Alentejo de flores e pássaros, de colinas e fontes, de cantigas gárrulas no ar.” Lemos estas afirmações e mais sentido ganha a ideia de que um poeta como Sebastião da Gama não pode viver preso a uma geografia, ainda que dela se sirva para, como refere Ruy Ventura no ensaio que integra na antologia Por Mim Fora (2024), funcionar como “arquétipo simbólico, símbolo visto, criatura / pintura que torna presente, por meios misteriosos e ainda assim imperfeitos, o supremo Criador ou Pintor”.

A presença de Sebastião da Gama em Estremoz passou muito pelas amizades aqui descobertas, várias registadas em poemas — além de António Bento, já referido, mencionem-se também Maria Guiomar Ávila (1919-1992), Joaquim Vermelho (1927-2002) e Acilda Fragoso (n. 1934). À primeira foram dedicados dois poemas, “Poesia depois da chuva”, de 12 de Fevereiro de 1951, e “Crepuscular”, escrito pelo S. João de 1951, este em torno da figura da Rainha Santa; o nome de Joaquim Vermelho figura na dedicatória de um dos mais icónicos poemas de Sebastião da Gama, “Viesses tu, Poesia”, de 10 de Fevereiro de 1951; finalmente, Acilda Fragoso, que teve o poeta como professor, viu os seus 17 anos coroados com o poema “A uma rapariga”, em 7 de Março de 1951.

Conhecer Maria Guiomar Ávila (que, em 1953, foi uma das responsáveis pela homenagem estremocense ao poeta) significou para Sebastião da Gama uma oportunidade para conviver com quem apreciava poesia. Em várias ocasiões falou dela à ainda noiva Joana Luísa, na correspondência trocada, um registo que funcionou muitas vezes como substituto de um diário para contar à amada as suas vivências no Alentejo — em Fevereiro de 1951: “Hoje, pelo telefone, já conheci a Guiomar Ávila. Encantadora. Encontrar-nos-emos na missa das 9 e trinta, no domingo (ela é muito religiosa, portanto não cobiça o homem do próximo; e não vai à das onze porque, diz ela, é uma parada de elegâncias)”. Guiomar Ávila e Joaquim Vermelho fizeram parte do grupo a quem Sebastião da Gama leu em primeiro lugar o seu Campo Aberto, acabado de sair, uma espécie de tertúlia que se reuniu na tarde de 11 de Fevereiro de 1951. Pertence a Joaquim Vermelho um sentido testemunho sobre o amigo poeta, intitulado “O rapaz da boina”, saído no Jornal de Almada quando passava o nono aniversário da falecimento de Sebastião da Gama, afinal um retrato da sua vivacidade e sentido de humor, da referência que constituiu para quem o conheceu — “O rapaz da boina veio da Serra-Mãe, descendo ao povoado sonolento e fechado como uma fortaleza antiga receosa de inimigo invisível. Olhos brilhando do sol das alturas. A boina tombada garridamente sobre a testa, sombreando os olhos como nuvem brincalhona a querer esconder-nos o brilho intenso e estranho da alegria que deles irradia, não vá ela ferir-nos profundamente no nosso doentio viver de janelas fechadas, de costas viradas para a luz. Como é que a alegria pode vir ter connosco se lhe fecharmos todas as janelas e portas, batendo-as intempestivamente na cara do convívio? O rapaz da boina desceu ao povoado e cantou as janelas fechadas em gargalhadas de rosa encarnada, num riso de criança feliz e despreocupada.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1458, 2025-01-29, pg. 10.

 

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (2)

 


A partir do poema “Nocturno”, podemos descobrir como linhas fortes da poesia de Sebastião da Gama a atenção dada ao mar (calmo ou bravo, rumorejando ou espelhando, no ambiente de paisagem ou de trabalho para os pescadores), aos animais que povoam os espaços frequentados pelo poeta, ao céu (que se manifesta pelas estrelas, pelo luar, pelo sol), ao silêncio (que não significa ausência de ruído em absoluto, mas possibilidade de captação dos sons que constituem a orquestra da Natureza, apresentando-se esta como um Outro com quem o poeta se relaciona). Esta junção do silêncio com os sons da Natureza surge bem conciliada no poema “Tempestade”, datado de 4 de Novembro de 1951 (Sebastião da Gama escreveria apenas mais cinco poemas), inserido em Pelo Sonho É que Vamos: “O Vento enchia o Mundo. Mal deixava / lugar para a tremenda voz das ondas. // Mas era o Mar apenas que se ouvia.”

Campo Aberto foi publicado em meados de Fevereiro de 1951, não tendo incluído o poema “Viesses tu, Poesia...”, composto a 10 desse mês, depois inserido na obra póstuma Pelo Sonho É que Vamos (1953). Neste poema, a poesia é associada a uma fada, dotada de vara mágica, que tem o poder de contribuir para a nomeação e para a (re)descoberta — “Bem sei: antes de ti foi a Mulher, / foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água... / Mas tu é que disseste e os apontaste: / — Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto. / E logo foram graça, aparição, presença, / sinal...”. Força (re)criadora, responsável por conferir naturalidade e beleza ao universo, garantia de equilíbrio, regeneradora, numa relação de proximidade e intimidade com o poeta, num tratamento por “tu”, ela é invocada no seu poder: “Ó Poesia!, viesses / na hora desolada / e regressara tudo / à graça do princípio...”

Ruy Belo foi o primeiro prefaciador de Sebastião da Gama que não o conheceu pessoalmente, tendo mesmo dado nota desse pormenor no texto que escreveu em 1970 para abrir a segunda edição de Pelo Sonho É que Vamos, vinda a público no ano seguinte. Considerando ser este “o seu melhor livro”, depois de um percurso de crescente maturidade, afirma sobre esta obra: “bastam os poemas que temos diante para catalogar Sebastião da Gama como aquilo que fundamentalmente ele foi: um cantor da vida, das coisas belas da vida, dos sentimentos nobres, da pureza.”

Não será difícil ver a proximidade entre “Viesses tu, Poesia...”, a apreciação de Ruy Belo e aquilo que Sebastião da Gama pensava da poesia e da forma de a mostrar aos seus alunos, quando registou no Diário, na entrada de 9 de Março de 1949, a justificação para ter organizado uma Semana da Poesia: “O Poeta beija tudo, graças a Deus... E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade... E diz assim: ‘É preciso saber olhar...’ E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos... E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por detrás... E perde tempo (ganha tempo...) a namorar uma ovelha... E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso... E acha que tudo é importante... E pega no braço dos homens que estavam tristes e vai passear com eles para o jardim... E reparou que os homens estavam tristes... E escreveu uns versos que começam desta maneira ‘O segredo é amar’...” Depois, vem a justificação prática deste desvendar o poder transformador da poesia e a necessidade de o incutir nos jovens alunos: “É preciso, subtilmente, deitar-lhes no sangue este veneno — não tanto para que gostem de versos ou saibam versos de cor, como para que olhem o mundo através da janela da Poesia, para que beijem tudo, graças a Deus, para que saibam olhar, para que reparem nas flores e nas ovelhas. Isto é que se quer que eles façam, sem respeito humano, pela vida fora.”

O poeta faz questão de se manter fiel à sua temática, aos seus motivos inspiradores, ao seu cenário de poesia, num trajecto quase linear de convicção — data de 28 de Dezembro de 1948, um pequeno poema, “Arte poética”, divulgado numa das mais recentes obras póstumas, Estevas (2004), em que advoga o fim do seu estado de poeta se existir o desvio na sua motivação: “Quando em meus versos nada houver que lembre um ninho, / então sim! — chorem a minha morte.” Talvez não tenha havido ninguém a melhor definir os conteúdos da poesia de Sebastião da Gama que não ele próprio — se recuarmos no tempo até 1942 (ano em que tinha 18 anos), o poema “Testamento”, datado de 20 de Janeiro, até agora inédito, pretendia garantir as marcas por que o poeta queria ficar alinhado, sugerindo, em tom algo humorístico, que, após a sua morte, fosse enterrado na Arrábida, rodeado de alecrim e de rosmaninho, com um letreiro feito de conchas contendo os seguintes dizeres: “Aqui dorme seu sono derradeiro // (...) um doido que viveu a versejar / a Arrábida, a Mulher, a Lua, o Mar.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1378, 2024-09-25, pg. 10. 

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Sebastião da Gama acompanhado de Rilke e de Sophia - duas histórias...

 


Esta foto foi tirada no dia 19, data em que O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama, foi posto à venda, no escaparate de uma livraria. O conjunto das obras expostas terá sido por acaso. Mas esse acaso lembrou-me duas histórias de Sebastião da Gama a propósito desta fotografia e de dois autores que figuram ao lado do seu O Inquieto Verbo do Mar.

A primeira tem relação com Rilke. Em 10 de Fevereiro de 1948, Sebastião da Gama escrevia uma carta para David Mourão-Ferreira, onde, a dado momento, dizia: “E por ter lido o Rilke. Pega, David, nas Cartas a Um Poeta. Ele sabe muito bem que sem a solidão nada feito. Olha que a mim até me dá para ser cruel e irreverente. Chego a doer-me a mim próprio. Andava doente, por despaísado, por desintegrado da minha solidão e foi um fim-de-semana de convivência a nu com a Serra que me pôs bom. Estas férias, com o folhado aberto, consolidam a cura.”

A segunda relaciona-se com Sophia de Mello Breyner. Em 1949, no dia em que fazia 25 anos, Sebastião da Gama escrevia uma dedicatória para Sophia num exemplar de Campo Aberto, que dizia: “Para a Sofia, que chegou à Gramática Portuguesa e onde estava ‘feminino: poetisa’ escreveu: ‘feminino: Poeta’. Arrábida 10.4.1949”

Neste expositor, Sebastião da Gama está bem acompanhado, pois.


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (1)

 


Quando, em 1952, saiu o número 4 da revista coimbrã Sísifo, dirigida por Manuel Breda Simões, três textos chamavam a atenção sobre Sebastião da Gama: logo na abertura, uma nota da direcção a dar conta do falecimento do poeta, contando que a notícia da sua morte chegara quando a revista estava «em andamento» e já integrava o poema inédito “Anunciação”, que neste número se publicava (o segundo texto); na página seguinte, sob o título “Uma carta do Poeta”, surgiam as respostas de Sebastião da Gama, redigidas aquando do seu regresso do Marão (onde fora em meados de Setembro de 1951), a um conjunto de quatro questões que uma carta de Breda Simões lhe fizera chegar. As três primeiras perguntas debruçavam-se sobre o percurso biobibliográfico do poeta, mas a quarta recaía unicamente sobre a arte poética: «Que pensa da Poesia em geral e da sua própria Poesia?»

A resposta do autor de Campo Aberto, obra publicada em Fevereiro de 1951, foi telegráfica, sem se desviar do assunto: “Minhas ideias acerca da poesia. Vide: ‘Louvor da Poesia’, in ‘Campo Aberto’. Será tudo? Olhe que a resposta ao n.º 4 não é para posar. É que só nos versos sei o que penso da Poesia.” De forma simples e objectiva, Sebastião da Gama separava o poeta da pessoa que era, assumindo a existência de uma biografia literária, responsável pelo acto e pelo percurso poéticos.

No poema, de três estrofes, datado da Arrábida em 7 de Fevereiro de 1950, o “louvor da poesia” é assim justificado: “Dá-se aos que têm sede, / não exige pureza. (...) // Sabe a terra, a montanhas, / caules tenros, raízes, / e no entanto desce / da floresta dos mitos.” A poesia como dádiva a quem se predispõe a recebê-la e a quem a procura, o trabalho do poeta, afinal, numa atitude de adesão ao seu tempo e ao seu espaço, à vida — poucos dias após ter sido publicado Campo Aberto, Sebastião da Gama escrevia ao seu amigo Luís Amaro, a partir de Estremoz (6 de Março de 1951), a dar-lhe conta da recepção que já tivera ao livro e a responder à apreciação que dele recebera: “o que eu quero sobretudo dizer-te é isto: nunca procurei assunto; nunca fiz exercícios literários. É natural que haja no ‘Campo’ poesias que não são poesia autêntica; mas escrevi-as com tanta unção e tanta sinceridade — juro-te — como escrevi os poemas da Serra-Mãe e os do Cabo.”

A ideia expressa no poema “Louvor da Poesia” surge como a amplificação do eco vindo do dístico que abre Campo Aberto: “Tudo frutificou: o campo estava aberto, / deu conchego e raiz a todas as sementes.” Quando Maria de Lourdes Belchior prefaciou a segunda edição desta obra, em 1960, fê-lo traçando a evolução da obra poética de Sebastião da Gama, referindo: “Neste livro, (...) se houve por um lado uma crescente interiorização, houve, por outro, cada vez mais, uma abertura para as circunstâncias exteriores, para os acontecimentos, dos quais partia, carregando-as de intrínseca beleza poética e de uma valorização simbólica.” E, depois de mencionar alguns poemas: “o pendor descritivo-narrativo do poeta ficou intacto mas não saturou os versos.”

Em 12 de Agosto de 1947, em “Nocturno”, poema incluído em Cabo da Boa Esperança, saído nesse mesmo ano, surgia um retrato do ambiente requerido para o tempo poético: “Era um murmúrio longo de ondas mansas... / Um cochichar de Estrelas curiosas... / Um concerto de grilos tresnoitados... / Mais presente que tudo, aquele enorme / silêncio religioso, imagem pura / dos ouvidos atentos do Poeta...” Os elementos vão-se juntando mansamente, num perscrutar dos sons da Natureza — uns, reais, como o som das ondas ou o estridular dos grilos; outros, sugeridos, como o segredar entre estrelas —, favorecedores do encontro com um “silêncio religioso” ouvido pelo poeta. A audição é, de resto, uma das linhas que percorre a poesia de Sebastião da Gama, captada, preferencialmente, a partir da Natureza, cujos sons se transformam em música — num artigo publicado no Jornal de Letras (n.º 188, 2.Out.1986), David Mourão-Ferreira chamou a atenção para “as mais diversificadas alusões à música e as mais reiteradas sugestões de natureza musical” presentes na poesia de Serra-Mãe (marca que se prolongou nas outras obras), concluindo que “o canto e a música se mostraram invariavelmente em conexão muito íntima com momentos privilegiados quer da sua comunhão com a natureza quer da natureza da sua comunhão com a poesia” — não por acaso, o primeiro poema de Serra-Mãe fala-nos de “melodia” e de “som” e o segundo intitula-se “Harpa”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1373, 2024-09-18, pg. 10.

 

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

70 anos do falecimento de Sebastião da Gama: A memória do poeta começou em Fevereiro de 1952



Ao ar frio daquele Fevereiro de 1952 veio juntar-se uma outra frialdade, a da vida que se extinguia, a da saudade que o desaparecimento precoce de Sebastião da Gama deixava. Estava-se no dia 8 de Fevereiro e o jovem Nicolau, então com 18 anos, meteu pés ao caminho, calcorreando a distância que separava Palmela (onde vivia) de Azeitão, percurso que fez sozinho, correndo atrás da necessidade que tinha de se despedir do seu jovem mestre.

Da cabeça não lhe saíam as lições ouvidas nas aulas de Português na Escola Comercial e Industrial João Vaz, em Setúbal, proferidas por um professor que era também seu amigo, lhe abriu horizontes e o levou a ganhar vontade de saber e de estudar, Sebastião da Gama de seu nome. O mínimo que lhe devia era esta despedida para sempre. Assistiu à cerimónia fúnebre e o professor Medeiros, director da Escola, ao saber que o jovem viera a pé por não ter dinheiro para o transporte, no final, deu-lhe as moedas necessárias para que o regresso a Palmela fosse em autocarro.

Esta memória nunca abandonou Nicolau da Claudina (1933-2020) porque também a influência que Sebastião da Gama nele teve foi determinante para a sua vida. O jovem Nicolau fez parte do vasto grupo de admiradores e de saudosos que choraram em Azeitão naquele dia, entre os naturais da vila, os familiares, os amigos, pessoas dali, pessoas vindas de fora, todas num gesto solidário.

Sebastião da Gama, com 27 anos, falecera no dia anterior, pela manhã, no Hospital de S. Luís dos Franceses, em Lisboa, exactamente o mesmo estabelecimento hospitalar em que, dezassete anos antes, se finara um outro poeta que o azeitonense muito admirara, Fernando Pessoa. A meningite minara-o e foi responsável por sucessivas falências até ao encontro com a morte. Nesse fatídico 7 de Fevereiro, David Mourão-Ferreira (1927-1996), amigo grande de Sebastião, estava em Mafra, no quartel onde cumpria o serviço militar e, no final do dia, escrevia no seu diário: “Meia-noite, caserna: Acabam de me entregar um telegrama de meu Pai, com a seguinte notícia: a morte do Sebastião da Gama. Outro! Outro que morre. Depois do Manuel de Almeida Júnior, do Maia de Jesus, do José-Aurélio, e do Manuel Belchior, e da Maria Henriqueta - o Sebastião!” Parece apenas uma enumeração, mas é muito mais do que isso: é a amizade que só pode ser continuada pela memória.

David Mourão-Ferreira foi também uma das presenças na despedida em Azeitão no dia 8 de Fevereiro, pelas 17h00. Provavelmente, ter-se-á cruzado com Nicolau, com a Matilde Rosa Araújo (1921-2010), com os que vieram de Estremoz (onde Sebastião leccionara) e com tantos outros. No dia seguinte, 9, em Lisboa, o diário de David receberia este espantoso desabafo: “Lisboa, 3 horas da tarde, Pastelaria Herculano: Ontem, enterro do Sebastião. Estava um dia lindíssimo: atravessei o rio e fui, de camioneta, até Azeitão; apeei-me precisamente no local onde, há cinco anos e meio, ele me esperara, quando da primeira vez que fui à Arrábida. Desta vez, porém, não subimos a serra. Acompanhei-o ao pequeno cemitério da vila, onde agora repousa no ‘campo aberto’ que ele próprio previra. Era o melhor de todos nós, o Sebastião: o menos literato de todos nós.”

A partir dali, o tempo não foi longo para que as homenagens surgissem. Ainda em 1952, a revista literária Sísifo, de Coimbra, no seu quarto número, abria com a morte do poeta - “Quando este 4º fascículo já estava em andamento, integrando no seu sumário o poema inédito ‘Anunciação’, recebemos, pela notícia singela de um jornal da tarde, o golpe duro da morte de um querido amigo - Sebastião da Gama.” O segundo número da revista Árvore era dedicado “à memória de Sebastião da Gama, ao poeta e ao amigo que perdemos”, e publicava o seu poema inédito ‘Ressurreição’ e a homenagem escrita de Luiz Amaro de Oliveira, António Luís Moita, Albano Martins, José Terra e António Ramos Rosa, além de um retrato de Sebastião da autoria de Bonifácio Lázaro. O número 16 da revista brasileira Sul, publicada em Florianópolis, continha o poema “Crepuscular”, uma carta de Sebastião sobre um livro de Salim Miguel (1924-2016), datada de 30 de Novembro anterior, e a notícia da morte do poeta.

O ano seguinte, 1953, teve, em 8 de Fevereiro, o descerramento da primeira lápide em homenagem ao autor de “Serra Mãe”: foi em Azeitão, na Rua José Augusto Coelho, na casa onde viveu até aos 14 anos, uma cerimónia a que acorreram muitos amigos, tendo depois havido uma conferência evocativa pelo testemunho de David Mourão-Ferreira. Em pedra, ali ficaram gravados versos: “Faltava-lhe a morte para ser completo. / A taça estava cheia / Faltava-lhe a pétala da rosa / Para transbordar”.  Em 15 de Junho, em Estremoz, foi o descerramento da segunda lápide evocativa, na casa onde viveu, no Largo do Espírito Santo, cerimónia com larga participação, em que interveio um dos seus professores e amigo, Hernâni Cidade. A memória de Sebastião da Gama dava-lhe assim a possibilidade que a vida lhe não dera: a da sua presença pela palavra e pelo testemunho, que tem vivido ao longo destes 70 anos.

* J.R.R. O Setubalense: nº 781, 2022-02-07, p. 7.

Foto: Sebastião da Gama, em Maio de 1951 (Arquivo de Joana Luísa e Sebastião da Gama, Centro de Documentação da ACSG)


quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Amália Rodrigues: Palavras e memórias


 

“As árvores têm uma raiz na terra, mas as nossas raízes espalham-se pelas terras dos nossos avós. As raízes de Amália Rodrigues são beirãs.” Assim fideliza Rui Pelejão as origens da mais conhecida fadista portuguesa no seu contributo para o livro Amália - A raiz e a voz, organizado por Arnaldo Saraiva, editado pelo Jornal do Fundão (2020). Essa fidelização surge atestada com cópia do registo de baptismo de Amália, cerimónia realizada na Matriz fundanense em 6 de Julho de 1921, quando a criança rondava o final do primeiro ano de vida - envolto em mistério, o dia rigoroso do seu nascimento derivava de um calendário medido pela agricultura, pois que sua avó dizia ter a neta nascido “no tempo das cerejas”, enigma que, na altura dos exames, Amália desvendou ser 23 de Julho de 1920.

Arnaldo Saraiva, na abertura, lembra que, em Amália, “o seu canto fundo transporta e sublima como nenhum outro as dores ou as fugazes alegrias do povo português e de uma mulher do povo português; mas transporta e sublima também as dores e alegrias de existir, os dramas e os amores da humanidade”, razões intensas para a leitura ir ao encontro de um retrato multifacetado.

Fortemente ilustrada, graficamente apelativa, estamos perante uma bela antologia de memórias, em que a ligação afectuosa de Amália às terras do Fundão e a sua identidade com o fado são grandemente lembradas. Contributo importante advém do arquivo do jornal, recorrendo a notícias sobre as suas actuações ou visitas à região ou a textos ali publicados sobre a cantora - de que se destaca um, assinado por David Mourão-Ferreira em 1994, que, a dado momento, poetiza: “Amália. Um ‘heterónimo’ de Portugal, o ‘heterónimo’ feminino de Portugal. Do que em Portugal existe de profundo e de fluente, de fixado e de erradio, de raiz e de flor, de tronco e de brisa. De rio, de escarpa, de céu límpido ou nublado, de montanha e de vale, de lonjura de planície, de abraço do oceano.”

Uma outra componente surge pelas palavras de entrevistas de Amália - à RTP, em conversa conduzida por Arnaldo Saraiva, emitida em 1987, agora passada a escrito, e ao Jornal do Fundão (em 1991 e em 1992), onde há momentos fortes, pela emoção ou pelo saber - em 1987, sobre os seus poemas: “Eu, como sou um bocado cantigareira, tenho a mania, como canto cantigas, tenho um sentido de ritmo, tenho uma medida das frases para os fados, e ponho-me a escrevinhar”; em 1991, sobre o fado: “Tenho a impressão que o fado me tem dado de comer e me tem comido. Sou o prato-forte do fado. Tenho tudo o que ele quer: desencanto, desilusão, falta de ambição, de interesse (...). O fado quer isto e eu tenho.”; em 1992, sobre o seu canto: “A minha maneira de cantar talvez tenha sido influenciada pela Beira Baixa. (...) Acho que a Beira Baixa é a terra onde há melhor música de folclore. É quase ao nível do Alentejo, está um bocadinho mais para cima. Como o Minho é a única região de Portugal onde se canta e se é alegre. O sul é mais tristonho.”

Parte significativa é ainda a de testemunhos sobre Amália, alguns elaborados para este livro, assinados por nomes muito diversos do mundo da crítica, da história ou da música. De Pedro Abrunhosa, um dos depoentes, fica uma frase que vale uma obra: “Amália, de uma assentada, desconfinou Camões da estatuária do Estado Novo e o Fado da letalidade endogâmica da tradição.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 523, 2020-12-09, pg. 9.


sábado, 9 de março de 2019

Evocar Sebastião da Gama 9 - Sebastião, Miguel Torga e Andrée Crabbé Rocha


Na rubrica que mantenho no Jornal de Azeitão, saiu, no número de Março, o texto que pode ser lido abaixo, relatando encontros entre Sebastião da Gama, Miguel Torga e Andrée Crabbé Rocha.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Evocar Sebastião da Gama 8 - Aquele Fevereiro de 1952


Lápide descerrada em Azeitão, em 8.Fev.1953, homenageando Sebastião da Gama

Ao ar frio daquele Fevereiro de 1952 veio juntar-se uma outra frialdade, a da vida que se extinguia, a da saudade que o desaparecimento precoce de Sebastião da Gama deixava. Estava-se no dia 8 de Fevereiro e o jovem Nicolau, então com 18 anos, meteu pés ao caminho, calcorreando a distância que separava Palmela (onde vivia) de Azeitão, percurso que fez sozinho, correndo atrás da necessidade que tinha de se despedir do seu jovem mestre.
Da cabeça não lhe saíam as lições ouvidas nas aulas de Português na Escola Comercial e Industrial João Vaz, em Setúbal, proferidas por um professor que era também seu amigo, lhe abriu horizontes e o levou a ganhar vontade de saber e de estudar, Sebastião da Gama de seu nome. O mínimo que lhe devia era esta despedida para sempre. Assistiu à cerimónia fúnebre e o professor Medeiros, director da Escola, ao saber que o jovem viera a pé por não ter dinheiro para o transporte, no final, deu-lhe as moedas necessárias para que o regresso a Palmela fosse em autocarro.
Esta memória nunca abandonou Nicolau da Claudina porque também a influência que Sebastião da Gama nele teve foi determinante para a sua vida. O jovem Nicolau fez parte do vasto grupo de admiradores e de saudosos que choraram em Azeitão naquele dia, entre os naturais da vila, os familiares, os amigos, pessoas dali, pessoas vindas de fora, todas num gesto solidário.
Sebastião da Gama, com 27 anos, falecera no dia anterior, pela manhã, no Hospital de S. Luís dos Franceses, em Lisboa, exactamente o mesmo estabelecimento hospitalar em que, dezassete anos antes, se finara um outro poeta que o azeitonense muito admirara, Fernando Pessoa. A meningite minara-o e foi responsável por sucessivas falências até ao encontro com a morte. Nesse fatídico 7 de Fevereiro, David Mourão-Ferreira, amigo grande de Sebastião, estava em Mafra, no quartel onde cumpria o serviço militar e, no final do dia, escrevia no seu diário: “Meia-noite, caserna: Acabam de me entregar um telegrama de meu Pai, com a seguinte notícia: a morte do Sebastião da Gama. Outro! Outro que morre. Depois do Manuel de Almeida Júnior, do Maia de Jesus, do José-Aurélio, e do Manuel Belchior, e da Maria Henriqueta - o Sebastião!” Parece apenas uma enunciação, mas é muito mais do que isso: é a lista dos amigos jovens que já tinham partido, agora aumentada.
David Mourão-Ferreira foi também uma das presenças na despedida em Azeitão no dia 8 de Fevereiro, pelas 17h00. Provavelmente, ter-se-á cruzado com Nicolau, com a Matilde Rosa Araújo, com os que vieram de Estremoz (onde Sebastião leccionara) e com tantos outros. No dia seguinte, 9, em Lisboa, o diário de David receberia este espantoso desabafo: “Lisboa, 3 horas da tarde, Pastelaria Herculano: Ontem, enterro do Sebastião. Estava um dia lindíssimo: atravessei o rio e fui, de camioneta, até Azeitão; apeei-me precisamente no local onde, há cinco anos e meio, ele me esperara, quando da primeira vez que fui à Arrábida. Desta vez, porém, não subimos a serra. Acompanhei-o ao pequeno cemitério da vila, onde agora repousa no ‘campo aberto’ que ele próprio previra. Era o melhor de todos nós, o Sebastião: o menos literato de todos nós.”
A partir dali, o tempo não foi longo para que as homenagens surgissem. Ainda em 1952, a revista literária Sísifo, de Coimbra, no seu quarto número, iniciava uma secção com cartas de poetas e o primeiro era Sebastião da Gama, que respondia a um inquérito sobre a sua obra; contudo, a primeira página dessa mesma revista era ocupada com a notícia da morte do poeta - “Quando este 4º fascículo já estava em andamento, integrando no seu sumário o poema inédito ‘Anunciação’, recebemos, pela notícia singela de um jornal da tarde, o golpe duro da morte de um querido amigo - Sebastião da Gama.” O segundo número da revista Árvore, publicação sazonal do Inverno de 1951-52, era dedicado “à memória de Sebastião da Gama, ao poeta e ao amigo que perdemos”, e publicava o seu poema inédito ‘Ressurreição’ e a homenagem escrita de Luiz Amaro de Oliveira, António Luís Moita, Albano Martins, José Terra e António Ramos Rosa, além de um retrato de Sebastião da autoria de Bonifácio Lázaro em extra-texto. O número 16 da revista brasileira Sul, publicada em Florianópolis, continha o poema “Crepuscular”, uma carta de Sebastião sobre um livro de Salim Miguel (datada de 30 de Novembro anterior) e a notícia da morte do poeta.
O ano seguinte, 1953, teve, em 8 de Fevereiro, o descerramento da primeira lápide em homenagem ao autor de Serra Mãe: foi em Azeitão, na Rua José Augusto Coelho, na casa onde viveu até aos 14 anos, uma cerimónia a que acorreram muitos amigos, tendo depois havido uma conferência evocativa pelo testemunho de David Mourão-Ferreira. Em pedra, ali ficaram gravados versos: “Faltava-lhe a morte para ser completo. / A taça estava cheia / Faltava-lhe a pétala da rosa / Para transbordar”.  Em 15 de Junho, em Estremoz, foi o descerramento da segunda lápide evocativa, na casa onde viveu, no Largo do Espírito Santo, cerimónia com larga participação, em que interveio um dos seus professores e amigo, Hernâni Cidade. A memória de Sebastião da Gama dava-lhe assim a possibilidade que a vida lhe não dera: a da sua presença pela palavra e pelo testemunho.
Jornal de Azeitão: 2019-02

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Sebastião da Gama: "Pelo sonho é que vamos" - Um verso que vale uma obra



"Pelo sonho é que vamos" é um dos mais conhecidos versos do poeta azeitonense Sebastião da Gama. Vale falar sobre a expressividade desse verso e sobre a adesão que tem merecido; por isso, aqui reproduzo texto que foi publicado no mensário Jornal de Azeitão, em Julho (n.º 262, 2018-07, pg. 13).
A acompanhar o texto, uma fotografia da pintura mural que pode ser vista/lida na Rua das Oliveiras, no Bairro de Tróino, em Setúbal.


terça-feira, 21 de março de 2017

Dia da Poesia, com David Mourão-Ferreira



"E por vezes..." A poesia de David Mourão-Ferreira dita como só ele a sabia dizer. Do livro Matura Idade, de 1973.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

David Mourão-Ferreira: 90 anos, hoje



Faria hoje 90 anos David Mourão-Ferreira. Poeta incontornável do século XX português, homem de cultura, professor extraordinário (que recordo).
"Ladainha dos póstumos Natais" é um poema que consta no seu livro Cancioneiro de Natal, aqui dito pelo próprio David Mourão-Ferreira, conforme gravação no cd "Um Monumento de Palavras" (Lisboa: EMI - Valentim de Carvalho, 1995). Vale a pena ouvi-lo: pelo poema, pela voz, pela expressão, pelo poeta.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

terça-feira, 29 de maio de 2012

Memórias de António Manuel Couto Viana em conversa com Ricardo de Saavedra



António Manuel Couto Viana (1923-2010), nome para sempre ligado à poesia portuguesa e ao teatro, foi exímio memorialista dos outros, servindo-se de uma prodigiosa memória para contar sobre poetas e autores, lidos e conhecidos, sobre épocas e personagens que no seu caminho se cruzaram. Pena seria que a sua vida extremamente preenchida não desse origem a um volume de memórias, contando o seu trajecto sempre diversificado, absolutamente dominado por uma dinâmica que nunca lhe permitiu a paragem na escrita, tendo mesmo, na fase final da sua vida (a partir de 2004), encetado o caminho do conto. É assim de saudar o aparecimento da obra assinada por Ricardo de Saavedra, intitulada António Manuel Couto Viana – Memorial do coração (Conversa a quatro mãos), recentemente editada (Lisboa: Quetzal Editores, 2012).
O título informa-nos sobre a organização da obra: é, com efeito, uma entrevista, uma longa entrevista, edificada sobre onze capítulos e cerca de cinco centenas de páginas, resultante de um tempo de conversas de aproximadamente cinco anos (desde Março de 2005), tendo o entrevistado ainda tido a oportunidade de conhecer grande parte da versão escrita.
O que impressiona neste texto é a fidelidade de Ricardo de Saavedra ao tom de conversa de Couto Viana, quase sendo dada a possibilidade ao leitor de “assistir” a este diálogo entre os dois, viajando na memória, por vezes alterando a ordem cronológica, sempre contando histórias da vida ou a propósito dos momentos por que vai passando a revisitação. Bem marcante é o poder descritivo e a ordem narrativa de Couto Viana, conversador e nato contador de histórias, nunca deixando que a sua história ande apenas em redor de si, antes mostrando a sua vida na relação com os outros, na dedicação às artes – da literatura e da representação – e aos prazeres – gastronomia, leitura, viagens – e na luta pela sua independência e pelo seu caminho.
O nível de linguagem é sempre elevado, culto, com observações de uma nobreza de sentimentos e de saberes que impressionam, não só pela forma airosa como todo o seu trajecto é partilhado, como pela meticulosidade posta numa memória que deve ser um contributo para a história. São de ternura evidente as palavras que deixa sobre a sua “cidadezinha”, Viana do Castelo, e sobre o ambiente e experiências ali vividas, ponto de eterno retorno que sempre o chamou; são de realização assumida as entradas pela memória da sua vida dedicada ao teatro, enquanto actor, empresário, autor, cenógrafo, criador de companhias, num périplo que passa pelo Teatro-Estúdio do Salitre, Teatro da Mocidade, Teatro da Campanha Nacional de Educação de Adultos, Teatro do Gerifalto, Oficina de Teatro da Universidade de Coimbra, Grupo Português de Teatro (de Macau), entre outros, percebendo-se que a história do teatro português da segunda metade do século XX não estará completa se o nome de Couto Viana for omitido; são quase fílmicas as lembranças da chegada a Lisboa (em 1946) e os contactos com os escritores que sempre lera e de quem se ia tornando amigo ou com aqueles que, tal como ele, se iniciavam na aventura literária, atingindo especial elevação as referências àqueles que foram amigos de sempre, como David Mourão-Ferreira ou Fernando de Paços, por exemplo; é contributo para a história literária o seu esmiuçar pelas revistas e publicações em que participou ou a associação que faz de muitos momentos da vida a outros tantos instantes de poesia; é prestação para a história do teatro a dinamização a que procedeu no âmbito do teatro infantil, na “descoberta” de actores, no gesto de levar o teatro aos mais diversos recantos do país; é retrato de desolação a lembrança dos momentos menos bons provocados por uma remissão para o esquecimento a partir de 1974, com o consequente abandono por parte de muitos amigos, ou por um jogo de influências movido em Macau que lhe deixou feridas e desgosto, mesmo na apreciação destes casos não se vislumbrando linguagem menos nobre, antes exprimindo-se o lamento, ao mesmo tempo que a literatura se anuncia como contínua tábua de salvação.
António Manuel Couto Viana diz-se na alegria do reencontro com a sua obra, longa viagem que também o transportou ao oriente de Camões, deixando-se o leitor levar por um guia que entra na China e noutras orientais paisagens, vivamente descritas, quase se estando mais perante uma recriação literária do que na presença de algo que se diz de memória, de tal forma a riqueza das cores, das sensações, das emoções pulsa por estas páginas de reconstituição de uma vida, o mesmo se podendo dizer a propósito do pormenor na narração e na descrição do encontro com Savimbi na Jamba. O próprio entrevistador tem momentos em que interrompe a conversa para, apreciativamente, elogiar a memória do entrevistado, registo que se destinará também ao leitor, desta forma desperto – ou lembrado – quanto à realidade deste livro, que não é uma ficção, antes o retrato de uma vida.
Preocupações máximas de Couto Viana são a sua obra, os seus amigos e os seus lugares. Da obra vai falando enquanto mostra o regulador que ela foi da sua vida, com o verso sempre a renovar-se e o lirismo continuamente no seu caminho; dos amigos tem a preocupação de registar os nomes e os traços, às vezes em escassas referências, mas sempre querendo inscrevê-los no seu percurso e por vezes pedindo antecipadamente desculpa de qualquer omissão; os espaços, vai-os revisitando, com uma ternura particular sobre Viana do Castelo, berço da vida e da obra sobre o qual diz: “Viana influencia toda a minha obra! A infância marca, para sempre, a vida de um poeta e a minha foi toda passada em Viana, que continua a ser uma cidade sedutora. A timidez aguçou-me o sentido de observação e toda a minha meninice e juventude foi plena de motivos de interesse, rica de momentos inesquecíveis, vivida num ambiente familiar que muito contribuiu para estimular o meu crescente gosto pelas artes. Muitos dos meus escritos narram tudo isto, decorrem deste acumular de sensações e sentimentos, com raiz nos tempos em que cresci em Viana. E a raiz nasce no coração.”
O final do ciclo de conversas coincide com o termo da vida de Couto Viana, cujas últimas palavras para o entrevistador constituem um pedido para que o livro não esmoreça, para que o livro exista, para que a memória perdure. Um derradeiro capítulo mostra o sentimento de perda de um amigo que se tornará presente pela sua obra, extensa obra, de poeta, que António Manuel Couto Viana se chamava, nome que constitui “um decassílabo perfeito”, como Ricardo de Saavedra faz questão de lembrar logo na primeira frase do volume.
O leitor encontra ainda quarenta páginas, em dois cadernos, a constituírem um álbum fotográfico, disperso por geografias, por tempos e por amizades. E, no final, uma exaustiva lista de bibliografia activa ordenada por modos de escrita e por assuntos (poesia, teatro, contos, ensaios, memórias, gastronomia, traduções e adaptações, antologias, prefácios e apresentações), uma circunstanciada resenha da teatrologia e um índice onomástico (a que ainda poderia ter sido acrescentado um índice de títulos). A fechar, na lista dos “agradecimentos”, Ricardo de Saavedra relembra a construção do livro – desde a primeira reunião dos dois já velhos amigos, em 18 de Março de 2005, com a intenção de se contar esta vida, foi sendo construído “um livro nascido de conversas, registos avulsos e papéis dispersos, que cresce[u] ao sabor dos temas sem cuidar de cronologias, confiado quase exclusivamente na memória elefantina do interlocutor.”
Umas boas memórias de António Manuel Couto Viana. Num memorial também do coração!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Sebastião da Gama, 60 anos depois

Já lá vão 60 anos sobre o 7 de Fevereiro de 1952, data em que, logo pela manhãzinha, a vida abandonava Sebastião da Gama no Hospital de S. Luís, em Lisboa, depois de, na véspera, ter sido transportado desde o seu Estremozinho… A última palavra que terá dito, sabemo-lo pela Joana Luísa, mulher do poeta, foi “poesia”, conforme ainda recentemente recordou na reportagem publicada na revista do jornal Sol. E não deixa de ser curioso, no mínimo, que o percurso poético de Sebastião da Gama se tenha iniciado na infância, com uma quadra engendrada depois de uma visita à Arrábida, para reportar à família uma descoberta – “Fui passear / à serra da Arrábia / e encontrei / uma mulher grávia” –, e se tenha concluído com essa palavra que lhe foi mágica, a “poesia”, já pronunciada com a dificuldade de quem sentia que lhe fugia!...
Sebastião da Gama foi poeta na vida e na escrita. Isto é: Sebastião da Gama foi, sobretudo, poeta e viveu poetando. Em 27 anos que peregrinou, escreveu, escreveu, escreveu. Publicou três livros, de títulos sugestivos, dando a ideia de uma sequência que emergiu de um ponto que lhe foi âncora forte – a Arrábida – para chegar à totalidade de um espaço livre, universo franco à poesia, depois da passagem do cabo. Veja-se essa trilogia: Serra Mãe (1945) – Cabo da boa esperança (1947) – Campo aberto (1951). Que mais completo itinerário se poderia desejar? Bem ele dizia: “meu caminho é por mim fora”…
No dia 8 de Fevereiro de 1952, a Azeitão acorreu um universo de admiradores e amigos, aí se reunindo, não apenas os conterrâneos, mas também os seus colegas (Mourão-Ferreira e Lindley Cintra, por exemplo), os seus professores (Hernâni Cidade, por exemplo), os seus alunos (Nicolau da Claudina, por exemplo, o jovem que não resistiu ao fascínio do mestre e, a pé, fez o caminho entre Palmela e Azeitão para a última despedida devida ao seu professor). A comoção terá sido muita, imagina-se. Os jornais noticiaram. E David Mourão-Ferreira, o amigo que talvez mais tenha escrito sobre Sebastião da Gama – fosse como análise da obra, fosse como testemunho memorialístico –, registou o facto no seu diário, peça ainda inédita, inscrevendo no dia 9: “Lisboa. 3 horas da tarde, Pastelaria Herculano: Ontem, enterro do Sebastião. Estava um dia lindíssimo: atravessei o rio e fui, de camioneta, até Azeitão; apeei-me precisamente no local onde, há cinco anos e meio, ele me esperara, quando da primeira vez que fui à Arrábida. Desta vez, porém, não subimos a serra. Acompanhei-o ao pequeno cemitério da vila, onde agora repousa no ‘campo aberto’ que ele próprio previra. Era o melhor de todos nós, o Sebastião: o menos literato de todos nós.” O registo é curto, mas é comovente.
Nesse 7 de Fevereiro de 1952, passam agora 60 anos, iniciava-se a memória de Sebastião da Gama. Para trás, ficava um percurso feito de alegria e de humor, num desafio permanente à vida; ficava a convicção da aliança com a Natureza, celebrada pela palavra e materializada também na defesa da serra (uma carta sua, de 1947, foi o ponto de partida para a criação da Liga para a Protecção da Natureza, no ano seguinte); ficava uma experiência pedagógica vivida e relatada de forma ímpar, que ainda hoje é uma revelação e uma pista para professor que se preze; ficava uma obra constituída por cerca de novecentos poemas (muitos ainda inéditos), centenas de cartas (a sua epistolografia não foi ainda estudada e só uma pequena parte está publicada), um diário, diversos ensaios; ficava uma vida cimentada de leituras, muitas e variadas, de escritos que lhe foram contemporâneos ou anteriores a si, de latitudes distintas; ficava uma licenciatura e um percurso de professor, a todos os títulos julgado ímpar (pelos alunos, pelos seus orientadores e professores, pelos seus colegas); ficava a passagem de testemunhos para outros (Mourão-Ferreira reconheceu, em diversos momentos, o quanto ficou a dever a Sebastião da Gama nos faróis literários que lhe apontou, mesmo de outras literaturas que não a portuguesa); ficava uma colaboração intensa em jornais e revistas, num percurso por vários pontos do país (desde Braga até Elvas); ficava uma colecção de poemas dispersos por livros de curso, num gesto de dádiva aos amigos... Tudo isto num percurso que não ultrapassou a idade de 27 anos, num trajecto em que as primeiras assinaturas em poemas surgiram em 1939 (um itinerário literário de pouco mais de doze anos), num caminho que foi traçado a par com uma doença de recuperação suspeita e que acabaria por o vitimar – a tuberculose manifestara-se-lhe por 1938.
Uma vida intensa, feita de literatura e de olhares sobre o mundo. De que ficou uma obra que merece ser lida e estudada. Sebastião da Gama sempre quis que os amigos e os leitores dissessem o que pensavam da sua obra. A correspondência e os encontros que teve com Torga, Pascoaes, Régio e muitos outros aconteceram a pretexto da admiração, mas também com o fito de saber o que eles pensavam sobre os seus escritos. Assim, foi extremamente criterioso no que publicou e na forma como o fez. Quando morreu, tinha já ordenado outro livro, que viria a ser dominado pelo verso conhecido “pelo sonho é que vamos”. A publicação da sua obra prosseguiu em edições póstumas, num trabalho que se ficou a dever, sobretudo, a Joana Luísa da Gama, a mulher que teve a sensibilidade suficiente para não deixar que a obra de Sebastião se finasse com esse 7 de Fevereiro… mas que teve também o concurso cuidado de amigos como Lindley Cintra, Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Lourdes Belchior, Hernâni Cidade, Luís Amaro, Couto Viana e António Osório. É graças a esta constelação que, hoje, podemos continuar a conviver com a palavra de Sebastião da Gama, um poeta que não se deixou enredar em escolas e que serviu a taça do lirismo a todos os convivas da mesa literária.
Que melhor forma de concluir esta evocação senão com as palavras de Ruy Belo, também poeta? Ele, que foi o primeiro prefaciador de uma obra de Sebastião da Gama que não fez parte do seu círculo de amigos, que nem o conheceu pessoalmente, escreveu na revista Rumo, em 1957: “Um poeta é o que foi. Está aí. É assim. (…) Sebastião da Gama é um poeta integral (…). O que sai da sua pena aparece transmutado, digerido, obtido através de um conhecimento co-natural em que a distinção entre matéria e forma, se existe, equivale à distinção entre obra e não obra (…). A esta luz se pode apreciar a sua autenticidade. Nem nos impõe a sua própria vontade de homem, que fica lá atrás com a vida, com as suas circunstâncias, com a sua biografia, nem a sua voz se faz ouvir devido a razões extra-literárias. (…) Nem romântico, nem social, portanto. Poeta, simplesmente.”
Sebastião da Gama aí está, pois. Sessenta anos volvidos, merece a nossa leitura. É a melhor forma de construirmos a memória e de o homenagearmos.
[Na foto: lápide colocada na casa onde Sebastião da Gama viveu até aos 14 anos, em Azeitão, em homenagem que ali foi prestada em Fevereiro de 1953]

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Quatro poetas da "Távola Redonda" no Palácio Fronteira

A geração literária ligada à revista Távola Redonda (1950-1954) foi objecto de um ciclo de poesia promovido pela Fundação das Casas de Fronteira e Alorna no mês de Maio, sessões que decorreram no Palácio Fronteira, em Lisboa.
Este ciclo integrou quatro sessões, realizadas em 10, 12, 17 e 19 de Maio, cada uma delas dedicada a um autor que colaborou na revista: Cristovam Pavia (1933-1968), David Mourão-Ferreira (1927-1996), Matilde Rosa Araújo (1921-2010) e Sebastião da Gama (1924-1952), respectivamente. Cada sessão foi composta por uma apresentação do autor em destaque e pela leitura de um leque variado dos seus poemas, alguns deles comentados pelo respectivo apresentador. (...)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Synapsis, em Setúbal

Synapsis é o nome de um novo grupo de “intervenção cultural e cívica” que vai apresentar-se publicamente na noite de hoje, no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal.
Música, poesia e pintura serão as três artes que vão integrar este programa, animado por Nuno David, Salvador Peres, João Completo, Alexandre Murtinheira, Diná Lopes Peres e Carlos Medeiros. Alguns dos temas musicais acompanharão poemas de David Mourão-Ferreira (“A Secreta Viagem”) e de Sebastião da Gama (“Quem me quiser amar” e “Soneto do tempo perdido”).

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Poemas de Natal (3) - David Mourão-Ferreira

O terceiro poema foi-me lembrado pelo amigo José Baía, a partir do frio de Bragança, numa das várias evocações desta quadra que David Mourão-Ferreira assinou.

Litania para o Natal de 67

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos pedir contas do nosso tempo


David Mourão-Ferreira, in Lira de bolso (1970)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Nuno Júdice vai dirigir a "Colóquio-Letras"

«Nuno Júdice é o novo director da revista Colóquio-Letras, na sequência da decisão do Conselho de Administração da Fundação Gulbenkian de nomear uma nova direcção e um conselho editorial para a revista, de modo a garantir a sua publicação regular e os compromissos assumidos perante o público e os assinantes. O conselho editorial da Colóquio-Letras será presidido por Eduardo Lourenço.» A informação foi divulgada hoje em nota da Fundação Calouste Gulbenkian.
A revista Colóquio-Letras, publicação de referência na área da literatura em Portugal, surgida em 1971, teve como directores anteriores Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, David Mourão-Ferreira e Joana Varela.
O último número que saiu (nº duplo 168/169) finalizou a publicação dos textos de "Imagens da Poesia Europeia", de David Mourão-Ferreira. A Colóquio-Letras surgiu em substituição da revista Colóquio (1959-1970) e coexistiu com Colóquio-Artes (também criada em 1971 e já extinta), Colóquio-Ciência (criada em 1988) e Colóquio-Educação e Sociedade (surgida em 1992).
Nuno Júdice é professor universitário, poeta e ensaísta e foi já director da revista Tabacaria, da Casa Fernando Pessoa (números 0 a 8, entre 1996 e 1999).

sábado, 24 de maio de 2008

A "Colóquio-Letras" à distância de um clic

A Colóquio-Letras, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, é, enquanto revista dedicada à causa literária, publicação de consulta indispensável, quer pelo leque de assuntos abordados ao longo da sua história de quase quatro décadas, quer pela lista de colaborações que lá têm deixado a sua assinatura, quer pelo contributo que, sobretudo no meio académico, tem dado à investigação. O mais recente investimento promovido pela instituição editora foi o acesso pela internet à revista (opção importante, sobretudo se pensarmos que grande parte dos números desta publicação estão esgotados), podendo o leitor chegar aos textos por temas, por autores das colaborações ou pelas edições da revista (que está digitalizada até ao número duplo 157/158, correspondente a Julho-Dezembro de 2000) no endereço http://coloquio.gulbenkian.pt/ (que já acrescentei nas "horas úteis" ali ao lado).
Surgida em 1971, após o desmembramento do título Colóquio (1959-1970), que originou, também em 1971, Colóquio-Artes (aparecendo, mais tarde, em 1988, a Colóquio-Ciências e, em 1992, a Colóquio-Educação), foi inicialmente co-dirigida por Hernâni Cidade e Jacinto do Prado Coelho (nº 1, Março de 1971, até ao nº 8, Julho de 1972). Ao longo da sua história, pelo lugar de direcção da revista passaram: Hernâni Cidade (a partir do nº 9, de Novembro de 1972), Jacinto do Prado Coelho (desde o nº 24, de Março de 1975, depois de ter sido seu director-adjunto a partir do nº 9), David Mourão-Ferreira (desde o nº 80, de Julho de 1984) e Joana Morais Varela (desde o nº 142, de Outubro de 1996, depois de ter exercido os cargos de assessora - a partir do nº 108, de Março de 1989 - e de directora-adjunta - a partir do nº 121, de Julho de 1991). Outros dois nomes a destacar são o de Luís Amaro (secretário de redacção desde o primeiro número, director-adjunto desde o nº 94, de Novembro de 1986, e consultor editorial a partir do nº 108, de Março de 1989, até ao nº 142, de Outubro de 1996) e o de Abel Barros Baptista (director-adjunto desde o nº duplo 143/144, de Janeiro de 1997).
Vários números temáticos têm sido editados, de que cito os dedicados a Guerra Junqueiro, a Ferreira de Castro, a Camilo Castelo Branco, a Antero de Quental, a António Nobre, a David Mourão-Ferreira, a Irene Lisboa, a João Cabral de Melo Neto, à literatura galega, a José Saramago, a Almeida Garrett, entre outros. A grande procura desta revista levou a que fossem já publicados dois volumes sob o título de "Cadernos da Colóquio-Letras", coordenados por Luís Amaro, compreendendo uma selecção de textos críticos sobre "Teoria da literatura e da crítica" (1982) e sobre "Modernismo e vanguarda" (1984). Em 1998, por ocasião do "Salon du Livre", foi editado, em francês, um número especial da revista sob o tema "La poésie portugaise de Fernando Pessoa à nos jours".
A última edição da revista foi o número duplo 168/169, respeitante a Julho-Dezembro de 2004, estando anunciado um próximo número dedicado a Sebastião da Gama e à sua correspondência com amigos.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Sebastião da Gama e a Arrábida

A Arrábida desde cedo se revelou a Sebastião da Gama. Nascido em Azeitão, vila mesmo encostada à serra, para lá ele ia passear ainda em criança. A mãe registou e passou o testemunho de uma primeira quadra que o infante terá feito depois de um desses passeios, marcada pela linguagem infantil, mas contendo logo a que seria a principal linha temática do que viria a ser a sua poesia: “Fui passear / à serra da Arrábia / e encontrei / uma mulher grávia”.
A partir dos 14 anos, por razões de saúde, a sua vida teve de se concentrar na zona do Portinho da Arrábida. Ali, entre mar, céu e serra, Sebastião da Gama irá continuar a demandar e a desvendar os segredos da Arrábida, que passará por muitos dos seus poemas, que será calcorreada até à exaustão e que ocupará o título do primeiro dos seus livros, Serra-Mãe, saído em 1945.
Dois anos depois, em finais de Agosto de 1947 (tinha ele 23 anos), perante a provável destruição da Mata do Solitário, escreveu a jornais e a individualidades, clamando contra a degradação da serra e… teve eco. Já antes, em finais de 1942, aquando da construção da estrada pelo alto da serra, trouxera a defesa daquela paisagem para um dos seus poemas, “Tradição”, curiosamente nunca publicado em livro, mas que percorreu já revistas, e programas de divulgação de temática ecológica:

Os engenheiros vieram, mediram, olharam…
Havia árvores velhas…
Mandaram deitar abaixo
e os homens deitaram.

Sem lamentos, sem ais,
as árvores caíram…
Mas os engenheiros não puseram mais;
em seu lugar apenas
três cardos enfezados refloriram.

E os cardos vis são gritos de revolta
das sombras errantes pelo Ar;
das sombras que tinham por abrigos
aqueles freixos antigos
que o machado foi matar.

As sombras gritam, mas os engenheiros
Não põem freixos novos no lugar.


Para a Arrábida convidará muitos dos seus amigos de Lisboa, estudantes universitários como ele – David Mourão-Ferreira e Luís Filipe Lindley Cintra mergulharão também nos segredos e nas belezas da serra, levados pelo sentir de Sebastião da Gama. Ali conhecerá muita gente, a pretexto das suas deambulações pela serra e pelas praias e por causa da frequência da estalagem que a família instalara no forte, no Portinho. Entre outros, citem-se os encontros com Miguel Torga e com o rei Umberto de Itália.
Pela poesia de Sebastião da Gama passam muitas imagens da serra e do mar, como os exemplos demonstram:
tudo fala verdade ao pé do mar…” (in “Canção Inútil”)
rendas de Som o Mar foi levantando…” (in “Nocturno Primeiro”)
eu gosto de te ouvir, ó Vento!...” (in "Baixinho”)
a poesia da Serra adormecida…” (in “Serra-Mãe”)
vi / os poucos metros que vão / da minha Serra às Estrelas…” (in “Vida”)
a Serra é catedral / onde o órgão-Silêncio salmodia” (in “Oração da Tarde”)
Ó Serra (…) aonde a Primavera, quando chega, / já se encontra a si própria a esperar-se!” (in “Versos para eu dizer de joelhos”)
O mato cheira como dantes… Fala / comigo como dantes, reza, escuta…/ E o perfil da Montanha, como dantes, / adoça-se no escuro…” (in “Regresso à Montanha”)
Em 1949, produziu um dos mais lindos textos até hoje publicados sobre as terras em volta da Arrábida, A região dos três castelos, destinado a roteiro turístico por conta da Transportadora Setubalense, em que o leitor faz a viagem saindo de Cacilhas e passando por Sesimbra, Arrábida, Setúbal e Palmela, vivendo o deslumbramento das paisagens. Ainda nesse mesmo ano, a revista Flama publicou um texto seu que revelava aos leitores qual o fascínio que a serra sobre ele exercia: “O mais difícil não é ir à Arrábida (…). Difícil, difícil, é entendê-la: porque boas praias, boas sombras e boas vistas há-as em toda a parte (…); o que não há em toda a parte é a religiosidade que dá à Serra da Arrábida elevação e sentido.” Foi, aliás, esta sacralização que constituiu tema de conversa entre Sebastião da Gama e Teixeira de Pascoaes no encontro que, em Amarante, ambos tiveram em meados de Setembro de 1951 – segundo registo memorialístico do poeta azeitonense, publicado no Jornal do Barreiro nesse mesmo ano, Pascoaes ter-lhe-á dito: “A Arrábida é que é o altar da saudade; eu pu-lo no Marão, porque sou do Norte…” Depois, Sebastião da Gama conclui: “Tive pena que Pascoaes não tivesse nascido na Arrábida.”
[fotos: Glória Dias]