quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Tributo ao sentir de Frei Agostinho da Cruz


 

Nos catorze anos que Frei Agostinho da Cruz (1540-1619) passou na Arrábida, muitos foram os momentos de motivação poética, indo até ao ponto de a eleger como espaço predilecto: “Agora, que de todo despedido / nesta Serra d’Arrábida me vejo, / de tudo quanto mal tinha entendido. // Com mais quietação livre me desejo / nela eu próprio cavar a sepultura, / que não junto do Lima, nem do Tejo. // Aqui, com mais suave compostura, / menos contradição, mais clara vista, / verei o Criador na criatura.” Esta ideia passará ainda por outro poema, em que refere: “Oh Serra das Estrelas tão vizinha, / quem nunca de ti, Serra, se apartara, / ou quando se partira esta alma minha / da terra, nesta tua me enterrara.”

Esta vontade de se entregar à Arrábida para todo o sempre surgiu da ligação que Agostinho da Cruz teceu com a serra, transformando-se o poeta no iniciador da tradição literária que a tem tomado como motivo, apresentada como reduto de silêncio e de encontro, promotora da comunhão com o Criador, via de aproximação às estrelas, de perturbação e de desassossego, num trajecto que tem convocado seguidores até ao presente.

A propósito dos 480 anos do seu nascimento e do quarto centenário do seu passamento, o franciscano que veio do Norte tornou-se um universo de inspiração para a Casa da Poesia de Setúbal, que acabou de publicar a antologia Homenagem a Frei Agostinho da Cruz, reunindo poemas, desenhos e curtos estudos produzidos por vinte e um dos seus membros.

O texto poético é a modalidade que ocupa mais espaço, sendo possível ao leitor encontrar-se com os motivos do silêncio e da oração (Alexandrina Pereira, Carlos Bondoso, Maurícia Teles da Silva), do elogio e respeito pelo exemplo do poeta eremita (António Calado, Arnaldo Ruaz, Elmano Gomes, Inácio Lagarto, Isabel Melo, José-António Chocolate, Luís Pinho), do trajecto pessoal em momento de apreciação (Bento Passinhas, José Raposo), do deslumbramento pela Arrábida e pela palavra que ela sugere (Célia Abreu, Eduarda Gonçalves, Isabel Nunes, Linda Neto) ou da reflexão sobre a humana condição (Fernando Alagoa), por vezes cruzando-se várias linhas num mesmo autor.

A pintura e o desenho estão também presentes nesta antologia através da reprodução de quatro telas de António Galrinho sujeitas ao tema da crucifixão, cuja riqueza simbólica foi tão cara ao poeta franciscano que incorporou a cruz no seu nome religioso, e de sete desenhos de Dália Vale Rego rondando a simplicidade e o despojamento, legendados com versos do homenageado.

O cunho ensaístico está presente em dois textos, a abrir e a encerrar a obra: o primeiro (que assino), abordando a inquietação frutificadora que dominou Frei Agostinho da Cruz nas suas andanças serranas e a chegada da Arrábida à tradição literária, ocupando-se o último, subscrito por Helena Fragôso de Mattos, do legado e recepção da obra agostiniana, particularizando algumas referências ligadas à história local sadina.

A adesão de poetas e artistas contemporâneos à temática trazida pelo “capuchinho da Arrábida” (assim apelidado por Vitorino Nemésio) bem prova a actualidade de muitas das suas considerações e do seu olhar sobre o mundo e sobre o humano - só uma possibilidade de encontro com o silêncio traz a liberdade do supremo saber e do descobrir como se deve o homem (re)compor. Ou, pegando nos versos de Alexandrina Pereira: “É no silêncio que nasce a oração / É na fé que a alma se alimenta / (...) / O olhar do poeta vagueando / (...) / Segue os atalhos em busca do ‘eu’ / Encontra-o ao olhar o céu.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 722, 2021-10-27, p. 5.


quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Buehler-Brockhaus e a arte pública de Setúbal



Na edição do Público de 17 de Outubro, o jornalista Abel Coentrão gasta duas páginas para falar da Fundação Buehler-Brockhaus a propósito das suas acções de mecenato, que têm ocorrido em Portugal e no estrangeiro, assim concluindo o escrito: “Com toda a propriedade, Pierre-Rosenberg, director honorário do Museu do Louvre, chamou-lhes, por alturas da doação de arte impressionista de 2004, ‘generosos doadores, com que todos os museus sonham’. Alguns têm é a sorte de acordar com os Buehler-Brockhaus a seu lado.”

Os dois rostos conhecidos da Fundação (criada em 2008) são os de Hans-Peter Buehler e de Marion Buehler-Brockhaus, casal que, na primeira década deste século, escolheu Setúbal para viver, ambos originários de Leipzig. Ao longo de mais de uma década, Setúbal tem beneficiado do contributo dos Buehler-Brockhaus no apoio e investimento feito em arte pública, partilhada com toda a comunidade.

Florindo Cardoso, na obra Por amor a Setúbal - Esculturas oferecidas à cidade pela Fundação Buehler-Brockhaus, recentemente publicada, dá boa nota do enriquecimento artístico e patrimonial de que Setúbal beneficiou através desta ligação. O livro abre com a gratidão de Maria das Dores Meira, ex-presidente da Câmara de Setúbal, confessando que “a nossa cidade será sempre incapaz de agradecer a paixão que os Buehler-Brockhaus lhe dedicaram.” Depois, é o casal quem justifica a obra: “Este livro é dedicado à escultura portuguesa contemporânea instalada nos principais espaços públicos de Setúbal. Em 2006 mudamos a nossa residência para esta bela cidade, com características tradicionais e modernas, banhada pelo estuário do rio Sado e com o seu convento manuelino e as suas belezas naturais e culturais. Neste ambiente maravilhoso queríamos trabalhar e contribuir com a nossa Fundação.” No resto dessa nota assinada pelos Buehler-Brockhaus poderia haver o tom elogioso sobre o que fizeram, mas a opção foi noutro sentido - agradecimento aos poderes públicos, aos artistas com quem trabalharam, às empresas que contribuíram para a concretização das obras. 

Depois de, no primeiro capítulo, lembrar várias acções levadas a cabo pela Fundação, Florindo Cardoso percorre o itinerário dos artistas e das esculturas públicas que se cruzaram com a identidade da cidade - as quatro peças em barro, de Augusto Cid (“Carregador de peixe”, “Mulher das flores e das frutas”, “Homem do talho” e “Mulher dos ovos e galinhas”), presentes na ala central do Mercado do Livramento desde 2011; a escultura “Sardinhas”, em mármore, da setubalense Luísa Perienes, que anima a Rotunda das Fontainhas desde 2014; as esculturas em aço “Zéfiro”, que se impõe na rotunda do Monte Belo desde 2014, e “Luísa Todi”, que está junto da entrada do Forum Municipal Luísa Todi desde 2012, ambas de Sérgio Vicente; a escultura “Golfinhos”, em mármore, de Carlos Andrade, que finaliza a auto-estrada, à entrada de Setúbal, desde 2017. Há ainda o registo de uma obra a ser mostrada brevemente, “Os amantes”, também de Carlos Andrade, que integrará uma das rotundas da Avenida da Europa.

Na abordagem de cada uma das peças, Florindo Cardoso faz breves alusões histórico-culturais sobre o significado e a importância do que representam, importantes para o enquadramento e justificação dos temas, surgindo todas as obras intensamente fotografadas em diversos momentos - na execução, na implantação e no contexto em que se apresentam.

Não pode o leitor, depois desta obra, deixar de compreender a nota de Abel Coentrão no Público: “Alguns têm é a sorte de acordar com os Buehler-Brockhaus a seu lado.” Setúbal teve-a: as obras aí estão para o provar, o livro aí está para lembrar os patronos. A cidade tem de agradecer essa “sorte”.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 717, 2021-10-20, p. 9.


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Memórias dos Bairros dos Pescadores e do Grito do Povo, em Setúbal



Os Bairros dos Pescadores e do Grito do Povo, na Anunciada, alojando cerca de seis centenas de famílias, alimentam a história da pesca e das conservas em Setúbal. Desde há meia dúzia de anos, uma acção preocupada com a cidadania e a qualidade de vida nestes bairros tem sido levada a cabo sob orientação da Câmara sadina e, desde 2017, têm estado em marcha as Oficinas Colaborativas, método de partilha, de apropriação e de aprofundamento da identidade, em trabalho coordenado pela Divisão de Direitos Sociais da autarquia. O resultado dessa construção identitária foi agora publicado sob o título Caminhos com História - Memórias dos Bairros dos Pescadores e do Grito do Povo, obra coordenada pela socióloga Joana Iglésias Amorim e pela antropóloga Vanessa Iglésias Amorim, setubalenses do Bairro dos Pescadores, em edição da Câmara Municipal de Setúbal.

Em centena e meia de páginas desfiam-se vidas de intervenientes nascidos entre 1933 (Cremilde Dias) e 1999 (Rogério Conceição), num verdadeiro cruzamento inter-geracional, com número de citações quase igualmente repartido entre homens e mulheres, destacando-se na quantidade das intervenções figuras como Conceição Sobral (n. 1949), Nuno Simões “Espuma” (n. 1945) e Rogério Silva “Velhinho” (n. 1955).

Conhece-se o confronto com a dureza, a falta e a dificuldade: a habitação em barracas e depois em casas de tijolo até à construção dos bairros, as lutas pelas melhores condições de trabalho entre a resistência política e a repressão, a guerra colonial e as deserções, o 25 de Abril e as reivindicações, os alojamentos do projecto SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), a vida associativa... rumo a melhores condições de vida, com criação de laços de afecto ao lugar, como desabafa “Espuma”: “Desde que vim para aqui, gostei sempre disto. E vês a malta lá de baixo... está toda a morar aqui em cima. O bairro foi melhorando. Então não ‘tá aquilo que era antigamente. Nem pensar nisso.”

Narra-se também a ocupação das horas: o trabalho a dias, a pesca, a fábrica e o seu apitar, com horários longos e idades nem sempre recomendáveis - “Eles metiam a gente, mas quando sabiam que havia a fiscalização éramos escondidas dentro de um armazém. Não era só eu, era mais pessoas nessa altura a trabalhar assim. A gente só podia trabalhar aos 14 anos, ainda andei um ano escondida.”, relembra Conceição Sobral. E assiste-se à fuga para a alternativa que era a emigração - “O meu filho foi uma vez ou duas comigo à pesca, nunca mais quis ir. Nunca mais lá pôs os pés. ‘Eh, não vou mais ao mar’. Olhe, lá foi para França, está para a França, têm melhor vida. ‘Tão melhores.”, conta “Espuma”.

Evoca-se também a infância e a passagem pela escola (com histórias boas e menos boas), rapazes e raparigas separados e exames na quarta classe. Assiste-se às brincadeiras, muitas vezes improvisadas, e aos passeios para roubar fruta nas quintas, às idas a festas e à praia, aos bailes. E saboreia-se o gosto que o peixe tem, aprendendo a escolha criteriosa e a ementa da caldeirada ou dos pastéis de ovas de sardinha.

Quatro capítulos, fortemente ilustrados pelas fotografias de Américo Ribeiro (maioritariamente), constituem o corpo deste livro, verdadeira reportagem de formas de viver, de estar e de se conhecer, em que os moradores têm voz e contam a(s) sua(s) história(s), em sintaxe genuína, cimentadas pela explicação equilibrada de conjunturas e por referências históricas e sociais, ficando o leitor com a sensação de que circulou por todos aqueles encontros, esteve presente nas conversas e conheceu todos os intervenientes.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 712, 2021-10-13, p. 12.


quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Olhar Creta com José Augusto Seabra



Foi à imagem do palimpsesto que José Augusto Seabra (1937-2004) recorreu, em A Luz de Creta (2000), para estabelecer a relação entre a ilha grega, as referências pessoais acumuladas sobre a ilha ao longo da vida e a escrita diarística que constitui o livro, num tempo de seis anos, correspondentes a outras tantas estadas na ilha, no período entre 1986 e 1997.

Logo à partida, o livro chama a atenção para uma determinada forma de escrita, pois apresenta, abaixo do título, a indicação de “Diário Poético”, formulação que remete para géneros e para modalidades específicas, afigurando-se como encontro de um continuum na descontinuidade da vida. Desta mesma relação dá conta Seabra, ao registar no primeiro texto (“A Ilha”): “De viagem em viagem à ilha, foi-se adrede escrevendo um texto intermitente. Ele ganhou pouco a pouco (...) a forma de uma espécie de diário de mareante, de retorno em retorno a um porto”. 

Nos vários registos, o diaristafaz a colagem da história cultural nas suas múltiplas referências a Creta, num texto de reencontro do autor com o seu percurso e com a sua obra, num desvendar das atracções que de Creta lhe provocavam o fascínio, permanentemente mantido e cultivado desde a adolescência, tempo de leitura e de encontro com Ulisses e com o Minotauro (“o mito fascinara-me e perturbara-me de raiz”), passando pela marca da resistência de que, na Segunda Guerra Mundial, Creta se revestiu, valores fortalecidos pela leitura de Kazantzakis (“intérprete inesquecível da identidade do povo cretense”) e pela música e conhecimento pessoal de Theodorakis (que Seabra conheceu no exílio e com quem participou em manifestação contra a ditadura grega), não esquecendo ainda o eco trazido por Jorge de Sena no poema “Em Creta, com o Minotauro”, evocativo do expatriado em absoluto e de um tempo de paz e de reencontro. 

Nas palavras de Seabra, datadas de 31 de Julho de 1989, este livro será “um tributo pago regularmente a Cronos, que aqui nos devora os dias e as noites”, um conjunto de “instantâneos breves, com a obsessão de sorver o tempo todo, em momentos raros de aproximação da plenitude: fóricos, disfóricos”, um acto que se impõe – “recomeçar este diário intermitente, de Creta em Creta reencontrada”, isto é, afirmando a possibilidade de o tempo ter intermitências sem ser repetitivo.

As referências a autores ocorrem em abundância, sejam eles portugueses (Pessoa, Camões, Almada, António Ferreira), do mundo clássico (Homero, Sófocles, Ésquilo), gregos (Cavafis, Seferis, Kazantzakis) ou contemporâneos (Barthes, Darío, Steiner, Yourcenar, entre muitos outros), ao mesmo tempo que desfila uma galeria de personagens míticas (Zeus, Europa, Ariadna, Dédalo, Minos, Afrodite, Apolo, Diónisos, Édipo, Antígona, Cronos), num percurso que pretende lidar com uma ideia universal de cultura e de pensamento a partir de uma ilha que terá sido a mãe da civilização.

Mesmo refugiado na paz de Creta, o diarista não se ausenta do mundo e segue o seu romance - foi durante estadas na ilha que aconteceram factos como a liderança de Walesa na Polónia, as consequências da queda do Muro de Berlim, os conflitos com os albaneses refugiados, a destituição de Gorbatchov, entre outros. 

As suas interrogações remetem sempre para o futuro, num misto de dúvida, mesmo quando a reflexão paira sobre o que lhe está próximo. No entanto, quanto ao passado, uma certeza é inabalável, resultante de um sentir humanista, que valoriza a relação do homem profundamente ligado à cultura, vector muito acentuado em Seabra: “A civilização é, de facto, o que perdura, através das barbáries”.

* J.R.R. "500 palavras". O Setubalense: nº 707, 2021-10-06, p. 14.