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domingo, 9 de dezembro de 2018

Sebastião da Gama e o Natal


Fragmento do manuscrito do poema "Presépio", de Sebastião da Gama

Nas férias escolares de Natal de 1949, Sebastião da Gama (com 25 anos, exercendo funções docentes nesse ano lectivo na Escola Veiga Beirão, em Lisboa) registava no seu “Diário”: “O maior calor do meu Natal vem-me das Boas-Festas dos meus rapazes. Não foram os seus cartões — alguns tão belos!, todos, para o meu coração, tão belos! — quase não sentia o Natal; ou sentia mas era uma dor, um vazio, um sonho a desfazer-se.” Razões apontadas para este desconforto ultrapassado pelas mensagens chegadas dos seus alunos eram várias: a vida dos pais muito ocupada nessa altura (o trabalho que tinham na Estalagem de Santa Maria da Arrábida, no Portinho da Arrábida, muito movimentada nesta quadra do ano), a dedicação do irmão Sérgio à sua nova família e o facto de Joana Luísa, sua namorada, ainda não estar com ele. E comenta Sebastião: “tudo isto dispersa as brasas da lareira que eu neste dia queria ver todas unidas, todas uma”. Um pouco adiante, há ainda lugar para uma referência à quantidade de missivas chegadas: “tive, em todos os correios de férias, os cartões das raparigas e dos rapazes. E a alegria é maior quando, como agora, se lembram de mim os que eu menos contava que se lembrassem — e quando são os alunos que o já foram os mais presentes. De alunos velhos, tive até hoje 21 cartões; de alunos de agora três apenas. Com que amor os guardo! — são as minhas comendas, as minhas grã-cruzes.”
O Natal foi para Sebastião da Gama uma quadra com tudo o que de mais espiritual, fraterno, familiar e partilhável se possa imaginar, a acreditarmos nos registos que deixou. É de 13 de Dezembro de 1941 um poema de três quadras, ainda inédito, que intitulou “Carta de Boas Festas”, por onde perpassa o ambiente histórico, económico e social que se vivia (estávamos em tempo da Segunda Grande Guerra), ao mesmo tempo que nos deixamos deslumbrar com o sentido de humor e de oportunidade que animava o jovem Sebastião, então com 17 anos: “Natal à porta. E eu, minhas amigas, / doces espigas deste meu trigal, / qu’ria dar-vos, sim, ofertar-vos broas, / que são tão boas cá em Portugal. // Mas, como sabeis, a maldita Guerra / lavra na terra, tudo leva após. / Açúcar levou, levou a canela... / Broa qu’é dela? Qu’é dela a filhós? // No Porto busquei, busquei em Lisboa; / não vi ‘ma broa, sequer rasto destas. / Desculpai-me pois se eu dou, neste dia, / não que devia, mas só boas festas.”
Uns dias depois, em 24 de Dezembro, o Natal voltava a ser motivo de poema, que, dedicado a Júlia de Carvalho, assim dizia, em jeito de quem conta uma história: “Falta só um dia, meninos, ouvi, / para fazer anos que, na Nazaré, / a doce ovelhinha fazia mé-mé, / Jesus, nas palhinhas, fazia chi-chi, / sorria, encantado, o bom S. José. // Jesus foi crescendo: no chão foi dispor / um’árvore bela chamada Verdade, / que tinha por frutos a santa Bondade, / rosados quais peros, de estranho dulçor, / que sempre comê-los só dava vontade. // À sombra tão larga se vinham sentar / os bons caminheiros da estrada da Vida. / E, debaixo de si, a paz tão pedida, / os frutos gostosos, os vinha encontrar / quem perto passava e a via florida. // Vieram as chuvas, vieram os ventos / que, feros, quiseram abaixo deitá-la. / Nem ventos nem chuvas, não vinham quebrá-la / que, sempre aprumada no meio dos rebentos, / só vinham movê-la, mui pouco vergá-la. // E os frutos gostosos são cada vez mais; / e as folhas de esp’rança voando mais vão; / e alguma pernada queimada ao fogão / produz luz tão forte, produz chamas tais / que são claro dia nesta escuridão. // Falta só um dia: Jesus, nas palhinhas, / sorria aos reis magos, sorria a José. / A doce ovelhinha fazia mé-mé / e Deus, a Maria, maior das rainhas, / olhava e sorria lá na Nazaré.”
Três anos passariam para, em carta a Joana Luísa (ainda sua namorada), escrever: “Hoje é dia de Natal! Hoje é dia de Natal! Nas capelas todas, os sinos todos toquem! Cantem a minha Alegria por ser dia de Natal! Porque será que a minha Alegria é assim suavezinha como uma saudade, como um cair de Tarde?” Um pouco adiante, na mesma carta, transcrevia um poema feito nesse dia: “Eu não tenho razão pra estar triste... / Eu hoje sou a Estrela e os Reis Magos / e sou a ovelhinha do Presépio... // Mas vou triste, Menino de Belém. / Não me lembra que faltam / trinta e três longos anos pra que eu seja / a dor que há de matar a Tua Mãe.” A concluir a carta, despedia-se: “Pois adeus, Luísa. Eu não venho desejar-te, como toda a gente, um Natal muito feliz e um ano novo cheio de prosperidades. Venho desejar-te um Natal igual ao meu: um Natal que é uma brasa na lareira; que é uma espécie de perdão.” Haverá melhor mensagem natalícia a transmitir?
O mais conhecido poema de Sebastião da Gama sobre o Natal será, porventura, “Presépio”, datado de 24 de Dezembro de 1950, inserido no livro póstumo Pelo Sonho é que Vamos. Escrito na “véspera de Natal de 1950”, nesse mesmo dia integrou um postal que de Azeitão foi endereçado ao seu amigo, também poeta, Cristovam Pavia. Além de indicar quando partiria para Estremoz e de transcrever o poema, o importante da mensagem era: “Hoje quero só mandar-lhe um grande abraço de Ano Bom”. O poema, conterá, talvez, o mais franciscano retrato do que é o Natal, em busca de uma autenticidade que era apanágio do jovem azeitonense: “Nuzinho sobre as palhas, / nuzinho - e em Dezembro! / Que pintores tão cruéis, / Menino, te pintaram? // O calor do seu corpo, / pra que o quer tua Mãe? / Tão cruéis os pintores! / (Tão injustos contigo,  / Senhora!) // Só a vaca e a mula / com seu bafo te aquecem... // - Quem as pôs na pintura?”
Este poema, além de ter sido gravado por Victor de Sousa no cd “Pelo sonho é que Vamos” (Setúbal: Ruquisom, 2000), consta em três antologias, duas delas sendo referência literária sobre a época natalícia: em O Natal na Poesia Portuguesa, organizada por Luís Forjaz Trigueiros (Lisboa: Dinalivro, 1987); em Anunciação e Natal na Poesia Portuguesa, organizada por António Salvado (Lisboa: Polis, 1969); em Antologia de la Nueva Poesia Portuguesa, devida a Angel Crespo (Col. “Adonais”. Madrid: Ediciones Rialp, 1961), onde recebeu o título “Nacimiento”.
in Jornal de Azeitão: nº 267, 2018-12, pg. 15

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Sebastião da Gama, a Arrábida e a criação da Liga para a Protecção da Natureza (LPN)


Sebastião da Gama tinha 23 anos quando tomou uma atitude de defesa do património da serra da Arrábida, tentando conquistar parceiros para a causa. A protecção desse património natural não foi imediata, mas a LPN (Liga para a Protecção da Natureza), criada um ano depois, foi a primeira consequência do "grito" deste jovem em defesa da "sua" serra.  Vale relembrar aspectos da história; por isso, aqui reproduzo texto que foi publicado no mensário Jornal de Azeitão, em Setembro (n.º 264, 2018-09, pg. 15).
A acompanhar o texto, uma fotografia de Sebastião da Gama na praia de Galapos, em 1940.criar site


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Prémio Literário Bocage entregue pela LASA, em Setúbal

Os três contemplados com o Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage deste ano, promovido pela Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão (LASA), estiveram, na tarde de ontem (feriado municipal em Setúbal, em honra de Bocage), numa cerimónia que teve lugar no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal. Aqui reproduzo a apresentação dos trabalhos vencedores, lida em nome do júri, de que fiz parte.

É esta a décima terceira edição do concurso literário Manuel Maria Barbosa du Bocage, que a LASA mantém, numa periodicidade anual e em várias modalidades, para honrar e alimentar a memória do poeta que foi embalado em Setúbal e que, um dia, deixou o seu “pátrio Sado” rumo à glória.
222 trabalhos foram apreciados pelo júri, constituído pela Dra. Adriana Simões, pelo Dr. Alexandre Castanheira e por mim próprio. Se o trabalho de leitura foi árduo na passagem pelos vários milhares de páginas, conseguiu-se algum grau de facilidade na decisão dos jurados, uma vez que, sem termos acertado critérios prévios, fizemos coincidir as nossas opções, resultantes dos nossos gostos e adesões, escolhendo por unanimidade os trabalhos que aqui se apresentam como vencedores, ainda que na modalidade da poesia outros trabalhos existissem que poderiam ser merecedores do prémio.
O que, desde logo, nos chamou a atenção foi a presença de Bocage nestes três trabalhos, não de uma forma redundante ou imitadora, mas através de criações originais, de leituras convidativas, em que se cruza a pertinência de Bocage com o presente, assim como a veia bocagiana com a revelação conseguida pela escrita. A este propósito, convém lembrar um outro poeta da nossa região, Sebastião da Gama, que, num poema ainda não publicado, redigido quando tinha os seus 16 anos, clamava: “Quem me dera – ai, quem me dera! – / ter o estro de Bocage / p’ra esta paixão sincera, / em verso, cantar e a laje / do teu coração quebrar / cessando, assim, meu penar.”
O “estro de Bocage” animava o nosso poeta da Arrábida – estávamos em 1940 – como hoje inflama muitos apreciadores de poesia, designadamente os três autores das obras que motivaram este nosso encontro.
Comecemos pela categoria Revelação, texto intitulado Epílogo, assinado por Eva Corte-Real, pseudónimo que corresponde a Catarina Alexandra Duarte Almeida, de 16 anos. O seu título não nos engana, remetendo-nos para um final – o dos derradeiros momentos de lucidez de Bocage. Peça de ficção, em prosa, alterna o sentir de um “eu” bocagiano com as lembranças do passado da personagem. Temos Bocage num quase exame de consciência, folheando o álbum das suas recordações mais intensas, aguarela por onde passam Pina Manique, o hospício, os frades, o quotidiano a bordo no trajecto da Índia, a vida de marujo, a mãe, o irmão, a boémia, as mulheres. O narrador que é Bocage demanda, em páginas que se assemelham às do memorialismo, “o sentido desta triste vida”, que resume, repentina e exageradamente, no seguinte: “É quase sempre o mesmo: vestígios de vinho barato, duas ou três moças por mês, uns versos e umas cantatas. Nada mais.” Guião possível para o que poderia ser o último quadro da vida de Bocage, esta memória forjada levá-lo-á a estabelecer a diferença entre a tristeza do fim e do abandono e a alegria resultante do prazer de viver, terminando a sua página com um auto-retrato que não desconhecemos: “Aqui estou eu, Bocage. Encharcado e quase morto, delirando sem ser entre um par de pernas.”
Este suposto desabafo de Bocage encontra-se novamente com o poeta Sebastião da Gama que mencionei há pouco – é que foi ele quem, há 61 anos, neste mesmo espaço, palestrou sobre Bocage e a sua poesia de amor, dizendo a dado passo: “No quadro da nossa poesia de amor, em que há lugar para o recato e para o discreto atrevimento, Bocage é aquele poeta que diz de frente o que tem a dizer. Nos outros, nos que se disfarçam e nos que congeminam, seria um amante como Bocage o que encontraríamos, a descermos à essência de cada um.”
A história que Catarina Almeida criou, em torno dos últimos momentos de lucidez de Bocage, revela uma personagem humanamente tratada, com um recurso à descrição equilibrada, mostrando uma faceta do homem que pode ter sido poeta, sentida, determinada pelo auto-retrato que Bocage de si mesmo traçou.
As marcas autobiográficas acentuam o trabalho vencedor na modalidade de ensaio, intitulado Espaço autobiográfico em Apólogos ou Fábulas Morais de Manuel Maria Barbosa du Bocage, assinado por José Vitalício, pseudónimo correspondente a Manuel Branco de Matos. Trata-se de um trabalho documentado, quer sobre o conceito e a história do género fábula, quer sobre a teorização da escrita autobiográfica, com um propósito assinalado: “Detectar, registar, analisar e interpretar indícios de cariz autobiográfico convergentes com a biografia do poeta Bocage, naquela diminuta parte da sua obra, exígua mas não despicienda, que vem na tradição dos três marcos miliários da rota da fábula, os mais conhecidos fabulistas de sucessivos períodos da cultura europeia e ocidental de quem Bocage se mostra epígono de mérito e fabulista original”.
Contendo a fábula um juízo crítico, fácil se nos torna aceitar que, na sua redacção, seja possível encontrar os tais indícios de cunho autobiográfico que o autor persegue. O corpus bocagiano apresentado por Branco de Matos é constituído por 28 fábulas, onde se podem ver valores que se impunham ao poeta setubalense: a liberdade, a revolta com a prisão e com o exercício da justiça, o ensimesmamento, o ciúme, o amor não correspondido, entre outros, com a voz do poeta a manifestar-se num discurso valorativo, cimentado por adjectivação adequada, indo além dos textos que lhe serviram de pretexto. Para o autor, Bocage passou por variados géneros “sem outros intuitos que não fossem a exorcização, catarse do seu sofrimento, ou como resposta necessária, e conscientemente prolongada no tempo, à altura das adversidades e das ofensas de que se sentiu vítima”. Assim, ter escolhido para veículo de princípios e de desabafos personagens animais, é a garantia de que “pela voz do grande poeta, os animais continuam a falar”.
É uma abordagem interessante esta que Branco de Matos nos propõe, chamando a atenção para um género literário muitas vezes relegado para o esquecimento e para uma parte da obra de Bocage de que se fala pouco, apesar de construída sobre fortes raízes da cultura universal e que tem ecos inesquecíveis na obra lírica bocagiana.
Na modalidade de poesia, a escolha encaminhou-se para o título Dois poemas esquecidos, subscritos pelo pseudónimo José Santiago, criado pelo autor João Baptista Coelho, obra composta por dois longos poemas, “Guerra e Paz” e “Cântico do Ser e do Não-Ser”, ambos construídos por sonetos, que surgem ligados porque o último verso de cada soneto constitui o primeiro verso do soneto seguinte.
A escolha da forma – o soneto – é já uma homenagem a Bocage, que foi um dos mais brilhantes sonetistas da nossa literatura. Mas os temas, pela reflexão que constituem sobre a vida e a morte, têm também a sua matriz bocagiana. No primeiro poema, temos o homem como construtor da paz e da guerra, enaltecendo-se a coragem e a sede de ir mais longe, mas reprovando-se as consequências de desmedidas ambições, materializadas na guerra, no sofrimento, na destruição, na morte, com evocações de Hiroshima, do Vietname, de Hitler ou de Nero. Pelos interstícios, passam Antero ou Florbela, numa afirmação de que a poesia brilha apesar de tudo: “E, frente a tais desvarios, tão supremos, / pasmados nos quedamos quando vemos / que ainda se cultiva a Poesia!”
Tempo de paradoxos é este em que o poeta afirma que “a própria guerra / faz parte do pão nosso de cada dia”, conciliando o inconciliável – a guerra e a conquista e partilha do pão –, assim intensificando o absurdo. Grito pela paz, o poema conclui com um convite: “Daí que eu aqui deixe o meu apelo: / Acabem neste mundo o pesadelo / da Vida não passar duma batalha! // Que os Homens compreendam que uma flor / abrolha para a vida e faz-se amor, / bastando-lhe do ar uma migalha!”
O segundo poema constitui uma peregrinação pelo “eu” que se confessa e se revê como ficando muito aquém do que parece, num caminho para o sem sentido, para a nostalgia. Um percurso também bocagiano, afinal, em torno de um herói que vê a deflagração dos ideais e a poeira em que, prestes, se transformará!... Também aqui, Baptista Coelho propõe a salvação através da palavra poética – depois de uma confissão (fórmula querida dos românticos e também seguida por Bocage), o poeta conclui: “Mas há no que vos digo, todavia, / um triste ser não-ser da Poesia / que a Musa quis depor à minha beira: // A mágoa que me dói, um fogo que arde, / de só me vir beijar… tarde, tão tarde… / agora que estou quase a ser poeira.”
Acreditou o júri estar perante três bons trabalhos, com leitura para ser apreciada, sobretudo porque, além de bem construídos, por todos eles perpassa o tal “estro de Bocage” de que lhes falei no início. Por outro lado, a diversidade de géneros e de olhares, um quase poliedro, permite-nos enaltecer Bocage, que, como Luís Forjaz Trigueiros neste mesmo espaço disse em 1947, é “um bloco estriado de mil filamentos”. Daí a sua riqueza!

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Bocage visto por Luís Forjaz Trigueiros - "bloco estriado de mil filamentos"

Em 27 de Setembro de 1947, a convite do então presidente da Câmara Municipal de Setúbal, Miguel Bastos, o escritor e jornalista Luís Forjaz Trigueiros evocou, nos paços do concelho, a figura de Bocage, numa conferência que intitulou “Bocage – O Homem e a Obra”. O texto dessa conferência foi depois incluído pelo autor no livro Sombra do Tempo (Lisboa: Livraria Bertrand, 1950?, pp. 143-164) e republicado na obra Homenagem Nacional a Bocage no II Centenário do seu Nascimento (Setúbal: Junta Distrital de Setúbal, 1965, pp. 37-48) sob o título de “Numeroso Elmano”. São dessa palestra os excertos que seguem, numa evocação de Bocage no dia em que se assinala o seu nascimento.

«(…) Bocage tinha em si, por vocação e temperamento, todas as características do lirismo trovadoresco – vestido, evidentemente, à forma do tempo –: a métrica cinzelada, num aprumo hierático que não conhece semelhante na contextura do soneto, uma riqueza de léxico, em que a dignidade do conceito se casa à fácil e espontânea harmonia das rimas, nos princípios arcaicos do neoclassicismo setecentista. Este, o técnico de poesia, sempre poeta no entanto, num século que parecia essencialmente antipoético, e em que a moda era a imitação serviçal dos clássicos, a estrangeirização e o racionalismo.
Há também, é certo, a tradição de um Manuel Maria Barbosa du Bocage apenas panfletário ou satírico, em que predomina a vis irónica ou sarcástica, quando não arruaceira, popular, anedótica. Evidentemente que o que nessa tradição existe de real, deformado, embora, pertence ao exacto perfil do poeta e não há que ignorá-lo ou esquecê-lo. Mas a sua obra literária não precisa, para permanecer, da memória do que não a diminuiu, por ser verdadeiro, mas também não a exalta. (…)
Qualquer estudante cábula de Letras sabe, efectivamente, que, à tona dessa água revolta, que foi o génio poético de Bocage, vêm sempre todos os elementos que o esclarecem, precisam e definem. Não tanto a euforia de uma vida entregue às breves recompensas dos prazeres efémeros, como a ânsia inquieta, de ordem interior, que a justificava, afinal, deve ter influído no drama estético que é a inevitável moldura da obra que nos deixou. Manuel Maria Barbosa du Bocage só pode ser compreendido e interpretado inteiro, isto é, bloco estriado de mil filamentos, que constituem, afinal, o conjunto e a riqueza da sua personalidade – tão grande na sátira e no epigrama, como no mais apaixonado e lírico dos seus sonetos, tão forte no arroubo do ciúme, como na descrição paisagística, rica de cor, de uma noite tempestuosa. (…)
No final do século XVIII, a moda era ver pelos olhos alheios. Desse pecado ficaram isentos alguns dos poetas da Arcádia – e o próprio Bocage, que até nas suas sátiras mais mordentes mantinha uma tradição nacional. (…)
O gosto da confidência íntima, que o atira, de desabafo em desabafo, atrás de Marília, Elisa, Filena, Gertrúria, Anarda, num dolorido cortejo sentimental, é o mesmo, ainda, que o faz chorar, em verso, a morte de um amigo ou de um vizinho, o boato da morte de Nelson, ou cantar as aspirações do liberalismo, o dia de anos de um amigo, ou qualquer outro tema destes, alheio em absoluto à obra de arte… (…)
Poeta, como Olavo Bilac o exaltou; ser convivente, como Beckford o viu; eis Bocage, em quem luz, não algum talento, como ele disse, mas uma das mais pletóricas inspirações poéticas do século XVIII. (…)»
[foto: Bocage, no Museu do Traje, no Portugal dos Pequenitos, em Coimbra]