quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O prémio dos alunos que concluem o Secundário

O prémio, há poucos anos instituído, no valor de 500 euros, atribuído ao melhor aluno que conclua o ensino secundário de cada escola conheceu hoje um desfecho com alguma surpresa.
Considerando o momento de dificuldades que o país atravessa, as escolas receberam despacho no sentido de os alunos premiados não receberem o valor pecuniário do prémio, apenas o diploma, competindo à escola afectar essa verba a aquisição de materiais ou projectos de apoio social, depois de os alunos premiados escolherem, a partir de uma lista a ser elencada pelos Conselhos Pedagógicos, qual o material ou o projecto a que a verba se destina.
Provavelmente, os tais melhores alunos – e as respectivas famílias – já estariam a contar com esse dinheiro, pelo que não me parece sensato, só a cerca de dois dias da entrega do prémio, ser tornada pública esta decisão. Por outro lado, o significado do prémio desvirtua-se, pois não vai contemplar os alunos que mais se esforçaram no sentido de serem os que apresentaram melhor perfil para o prémio. Por outro lado ainda, convidar os alunos que tinham direito ao prémio a dizerem para onde deve ir a verba que não vão receber…
Que outros cenários poderiam existir?
Primeiro: a situação económica do país não permite e o prémio em dinheiro deve acabar ou, pelo menos, ser suspenso enquanto a conjuntura se mantiver.
Segundo: a situação económica do país não o permite e o valor em dinheiro do prémio é reduzido numa percentagem entendida como adequada.
Terceiro: a situação económica do país não o permite, mas o prémio deve ser mantido e deve haver apelo a uma postura de solidariedade por parte dos alunos contemplados, devendo uma parte do valor do prémio ser atribuída ao aluno e a outra parte ter um destino de solidariedade social na escola, a ser escolhido pelo aluno.
Quarto: a situação económica do país não o permite e a solidariedade social é prioritária, devendo superiormente o valor do prémio ser afecto obrigatoriamente ao fundo destinado à Acção Social Escolar das respectivas Escolas.
Qualquer destas alternativas seria compreensível e fácil de entender e de aceitar. A solução que foi escolhida é uma coisa forçada, algo surpreendente pelo paradoxo de “receber o prémio mas não o receber porque o tem de dar”… Qualquer uma das quatro hipóteses que apresentei teria contribuído mais para uma postura cívica, enquanto a solução legislada parece mais contribuir para a incompreensão e terá efeitos duvidosos no que possa ser a consciência ou o empenho cívicos.

domingo, 25 de setembro de 2011

Face da terra (4)

No trajeto entre Campo do Gerês e Gerês

sábado, 24 de setembro de 2011

Rostos (166)

Memorial a João José da Graça (1836-1893),
introdutor do primeiro jornal no Faial - O Incentivo, datado de 10 de Janeiro de 1857 -,
na Horta (Faial, Açores)

De dedo em riste para o Continente

O caso “Jardim – Madeira” continua a massacrar-nos. Em cada dia que passa, é dito o contrário do que foi dito no dia anterior… Ontem, era independência; hoje, já não era independência que queria dizer. É caricata a figura e tornamo-nos um país caricato a dar ouvidos a este tipo de oratória.
Já todos sabemos desde longa data o que é o discurso de Jardim, sempre de dedo em riste para os outros, para o Continente. Porquê dar-lhe cobertura? É tão inadmissível ter de suportar a telenovela jardinesca, como é inadmissível o silêncio que os governantes têm feito, ao longo dos anos, relativamente aos dislates que todos temos de ouvir deste senhor ou relativamente à dívida madeirense. Não temos de suportar a demagogia no seu estado mais larvar, com insinuações e ameaças de independência, com impropérios e tonalidades de insulto, não temos!
Pode o senhor ganhar eleições a rodos, pode o senhor gritar e apelar às emoções com a sua torrente discursiva… nada disso atesta a sua qualidade, a sua seriedade, o seu compromisso (que até podem existir); apenas fica certificada a falta de tempo para algum discernimento e respeito! Mas em democracia isso também é exigido!

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Rostos (165)

"Vigilante", de Alberto Vieira (1997), em Braga

domingo, 18 de setembro de 2011

Entre as bandeiras e os buracos

Na Ribeira Brava, Alberto João Jardim disse que omitiu 1113 milhões “em legítima defesa da Madeira”. E um buraco mais aí está, agora explicado com princípios de “engenharia”, em que a política põe e dispõe. Entretanto, há dias, lá para as bandas da Europa suprema, um responsável, o comissário Gunther Oettinger, alvitrou a hipótese de os países incumpridores verem a sua bandeira a meia haste, outra questão de “engenharia” da política.
Num e noutro caso, os factores comuns são o dinheiro e a independência. Ou a falta dos dois. E vai parecendo que a Europa, como nós, vai andando a conta-gotas, ao sabor dos dias, dependendo do artificial… Depois, só temos de nos surpreender (ou não) com estas “iniciativas” e… pagar umas e outras!
Que união é esta, afinal?

Para a agenda (2) - João Pinharanda e Rui Serodio

Duas palestras para seguir: uma, em 30 de Setembro, pelas 21h30, com João Pinharanda, intitulada "A Coleção de Arte da Fundação EDP - 11 Anos Depois"; outra, em 14 de Outubro, também às 21h30, com Rui Serodio, versando "O Processo Criativo na Música". Ambas organizadas pela associação Synapsis e a terem lugar no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS).

Para a agenda (1) - Círios de Marítimos

Uma proposta para o próximo fim de semana: os círios de marítimos, no Museu do Trabalho Michel Giacometti, em Setúbal, numa "tarde intercultural". Em 24 de Setembro, sábado, pelas 15h00.

sábado, 17 de setembro de 2011

Rostos (164)

"La Foule", de Raymond Mason (1963-1965), nas Tulherias, em Paris

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Prémio Literário Bocage entregue pela LASA, em Setúbal

Os três contemplados com o Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage deste ano, promovido pela Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão (LASA), estiveram, na tarde de ontem (feriado municipal em Setúbal, em honra de Bocage), numa cerimónia que teve lugar no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal. Aqui reproduzo a apresentação dos trabalhos vencedores, lida em nome do júri, de que fiz parte.

É esta a décima terceira edição do concurso literário Manuel Maria Barbosa du Bocage, que a LASA mantém, numa periodicidade anual e em várias modalidades, para honrar e alimentar a memória do poeta que foi embalado em Setúbal e que, um dia, deixou o seu “pátrio Sado” rumo à glória.
222 trabalhos foram apreciados pelo júri, constituído pela Dra. Adriana Simões, pelo Dr. Alexandre Castanheira e por mim próprio. Se o trabalho de leitura foi árduo na passagem pelos vários milhares de páginas, conseguiu-se algum grau de facilidade na decisão dos jurados, uma vez que, sem termos acertado critérios prévios, fizemos coincidir as nossas opções, resultantes dos nossos gostos e adesões, escolhendo por unanimidade os trabalhos que aqui se apresentam como vencedores, ainda que na modalidade da poesia outros trabalhos existissem que poderiam ser merecedores do prémio.
O que, desde logo, nos chamou a atenção foi a presença de Bocage nestes três trabalhos, não de uma forma redundante ou imitadora, mas através de criações originais, de leituras convidativas, em que se cruza a pertinência de Bocage com o presente, assim como a veia bocagiana com a revelação conseguida pela escrita. A este propósito, convém lembrar um outro poeta da nossa região, Sebastião da Gama, que, num poema ainda não publicado, redigido quando tinha os seus 16 anos, clamava: “Quem me dera – ai, quem me dera! – / ter o estro de Bocage / p’ra esta paixão sincera, / em verso, cantar e a laje / do teu coração quebrar / cessando, assim, meu penar.”
O “estro de Bocage” animava o nosso poeta da Arrábida – estávamos em 1940 – como hoje inflama muitos apreciadores de poesia, designadamente os três autores das obras que motivaram este nosso encontro.
Comecemos pela categoria Revelação, texto intitulado Epílogo, assinado por Eva Corte-Real, pseudónimo que corresponde a Catarina Alexandra Duarte Almeida, de 16 anos. O seu título não nos engana, remetendo-nos para um final – o dos derradeiros momentos de lucidez de Bocage. Peça de ficção, em prosa, alterna o sentir de um “eu” bocagiano com as lembranças do passado da personagem. Temos Bocage num quase exame de consciência, folheando o álbum das suas recordações mais intensas, aguarela por onde passam Pina Manique, o hospício, os frades, o quotidiano a bordo no trajecto da Índia, a vida de marujo, a mãe, o irmão, a boémia, as mulheres. O narrador que é Bocage demanda, em páginas que se assemelham às do memorialismo, “o sentido desta triste vida”, que resume, repentina e exageradamente, no seguinte: “É quase sempre o mesmo: vestígios de vinho barato, duas ou três moças por mês, uns versos e umas cantatas. Nada mais.” Guião possível para o que poderia ser o último quadro da vida de Bocage, esta memória forjada levá-lo-á a estabelecer a diferença entre a tristeza do fim e do abandono e a alegria resultante do prazer de viver, terminando a sua página com um auto-retrato que não desconhecemos: “Aqui estou eu, Bocage. Encharcado e quase morto, delirando sem ser entre um par de pernas.”
Este suposto desabafo de Bocage encontra-se novamente com o poeta Sebastião da Gama que mencionei há pouco – é que foi ele quem, há 61 anos, neste mesmo espaço, palestrou sobre Bocage e a sua poesia de amor, dizendo a dado passo: “No quadro da nossa poesia de amor, em que há lugar para o recato e para o discreto atrevimento, Bocage é aquele poeta que diz de frente o que tem a dizer. Nos outros, nos que se disfarçam e nos que congeminam, seria um amante como Bocage o que encontraríamos, a descermos à essência de cada um.”
A história que Catarina Almeida criou, em torno dos últimos momentos de lucidez de Bocage, revela uma personagem humanamente tratada, com um recurso à descrição equilibrada, mostrando uma faceta do homem que pode ter sido poeta, sentida, determinada pelo auto-retrato que Bocage de si mesmo traçou.
As marcas autobiográficas acentuam o trabalho vencedor na modalidade de ensaio, intitulado Espaço autobiográfico em Apólogos ou Fábulas Morais de Manuel Maria Barbosa du Bocage, assinado por José Vitalício, pseudónimo correspondente a Manuel Branco de Matos. Trata-se de um trabalho documentado, quer sobre o conceito e a história do género fábula, quer sobre a teorização da escrita autobiográfica, com um propósito assinalado: “Detectar, registar, analisar e interpretar indícios de cariz autobiográfico convergentes com a biografia do poeta Bocage, naquela diminuta parte da sua obra, exígua mas não despicienda, que vem na tradição dos três marcos miliários da rota da fábula, os mais conhecidos fabulistas de sucessivos períodos da cultura europeia e ocidental de quem Bocage se mostra epígono de mérito e fabulista original”.
Contendo a fábula um juízo crítico, fácil se nos torna aceitar que, na sua redacção, seja possível encontrar os tais indícios de cunho autobiográfico que o autor persegue. O corpus bocagiano apresentado por Branco de Matos é constituído por 28 fábulas, onde se podem ver valores que se impunham ao poeta setubalense: a liberdade, a revolta com a prisão e com o exercício da justiça, o ensimesmamento, o ciúme, o amor não correspondido, entre outros, com a voz do poeta a manifestar-se num discurso valorativo, cimentado por adjectivação adequada, indo além dos textos que lhe serviram de pretexto. Para o autor, Bocage passou por variados géneros “sem outros intuitos que não fossem a exorcização, catarse do seu sofrimento, ou como resposta necessária, e conscientemente prolongada no tempo, à altura das adversidades e das ofensas de que se sentiu vítima”. Assim, ter escolhido para veículo de princípios e de desabafos personagens animais, é a garantia de que “pela voz do grande poeta, os animais continuam a falar”.
É uma abordagem interessante esta que Branco de Matos nos propõe, chamando a atenção para um género literário muitas vezes relegado para o esquecimento e para uma parte da obra de Bocage de que se fala pouco, apesar de construída sobre fortes raízes da cultura universal e que tem ecos inesquecíveis na obra lírica bocagiana.
Na modalidade de poesia, a escolha encaminhou-se para o título Dois poemas esquecidos, subscritos pelo pseudónimo José Santiago, criado pelo autor João Baptista Coelho, obra composta por dois longos poemas, “Guerra e Paz” e “Cântico do Ser e do Não-Ser”, ambos construídos por sonetos, que surgem ligados porque o último verso de cada soneto constitui o primeiro verso do soneto seguinte.
A escolha da forma – o soneto – é já uma homenagem a Bocage, que foi um dos mais brilhantes sonetistas da nossa literatura. Mas os temas, pela reflexão que constituem sobre a vida e a morte, têm também a sua matriz bocagiana. No primeiro poema, temos o homem como construtor da paz e da guerra, enaltecendo-se a coragem e a sede de ir mais longe, mas reprovando-se as consequências de desmedidas ambições, materializadas na guerra, no sofrimento, na destruição, na morte, com evocações de Hiroshima, do Vietname, de Hitler ou de Nero. Pelos interstícios, passam Antero ou Florbela, numa afirmação de que a poesia brilha apesar de tudo: “E, frente a tais desvarios, tão supremos, / pasmados nos quedamos quando vemos / que ainda se cultiva a Poesia!”
Tempo de paradoxos é este em que o poeta afirma que “a própria guerra / faz parte do pão nosso de cada dia”, conciliando o inconciliável – a guerra e a conquista e partilha do pão –, assim intensificando o absurdo. Grito pela paz, o poema conclui com um convite: “Daí que eu aqui deixe o meu apelo: / Acabem neste mundo o pesadelo / da Vida não passar duma batalha! // Que os Homens compreendam que uma flor / abrolha para a vida e faz-se amor, / bastando-lhe do ar uma migalha!”
O segundo poema constitui uma peregrinação pelo “eu” que se confessa e se revê como ficando muito aquém do que parece, num caminho para o sem sentido, para a nostalgia. Um percurso também bocagiano, afinal, em torno de um herói que vê a deflagração dos ideais e a poeira em que, prestes, se transformará!... Também aqui, Baptista Coelho propõe a salvação através da palavra poética – depois de uma confissão (fórmula querida dos românticos e também seguida por Bocage), o poeta conclui: “Mas há no que vos digo, todavia, / um triste ser não-ser da Poesia / que a Musa quis depor à minha beira: // A mágoa que me dói, um fogo que arde, / de só me vir beijar… tarde, tão tarde… / agora que estou quase a ser poeira.”
Acreditou o júri estar perante três bons trabalhos, com leitura para ser apreciada, sobretudo porque, além de bem construídos, por todos eles perpassa o tal “estro de Bocage” de que lhes falei no início. Por outro lado, a diversidade de géneros e de olhares, um quase poliedro, permite-nos enaltecer Bocage, que, como Luís Forjaz Trigueiros neste mesmo espaço disse em 1947, é “um bloco estriado de mil filamentos”. Daí a sua riqueza!

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Bocage visto por Luís Forjaz Trigueiros - "bloco estriado de mil filamentos"

Em 27 de Setembro de 1947, a convite do então presidente da Câmara Municipal de Setúbal, Miguel Bastos, o escritor e jornalista Luís Forjaz Trigueiros evocou, nos paços do concelho, a figura de Bocage, numa conferência que intitulou “Bocage – O Homem e a Obra”. O texto dessa conferência foi depois incluído pelo autor no livro Sombra do Tempo (Lisboa: Livraria Bertrand, 1950?, pp. 143-164) e republicado na obra Homenagem Nacional a Bocage no II Centenário do seu Nascimento (Setúbal: Junta Distrital de Setúbal, 1965, pp. 37-48) sob o título de “Numeroso Elmano”. São dessa palestra os excertos que seguem, numa evocação de Bocage no dia em que se assinala o seu nascimento.

«(…) Bocage tinha em si, por vocação e temperamento, todas as características do lirismo trovadoresco – vestido, evidentemente, à forma do tempo –: a métrica cinzelada, num aprumo hierático que não conhece semelhante na contextura do soneto, uma riqueza de léxico, em que a dignidade do conceito se casa à fácil e espontânea harmonia das rimas, nos princípios arcaicos do neoclassicismo setecentista. Este, o técnico de poesia, sempre poeta no entanto, num século que parecia essencialmente antipoético, e em que a moda era a imitação serviçal dos clássicos, a estrangeirização e o racionalismo.
Há também, é certo, a tradição de um Manuel Maria Barbosa du Bocage apenas panfletário ou satírico, em que predomina a vis irónica ou sarcástica, quando não arruaceira, popular, anedótica. Evidentemente que o que nessa tradição existe de real, deformado, embora, pertence ao exacto perfil do poeta e não há que ignorá-lo ou esquecê-lo. Mas a sua obra literária não precisa, para permanecer, da memória do que não a diminuiu, por ser verdadeiro, mas também não a exalta. (…)
Qualquer estudante cábula de Letras sabe, efectivamente, que, à tona dessa água revolta, que foi o génio poético de Bocage, vêm sempre todos os elementos que o esclarecem, precisam e definem. Não tanto a euforia de uma vida entregue às breves recompensas dos prazeres efémeros, como a ânsia inquieta, de ordem interior, que a justificava, afinal, deve ter influído no drama estético que é a inevitável moldura da obra que nos deixou. Manuel Maria Barbosa du Bocage só pode ser compreendido e interpretado inteiro, isto é, bloco estriado de mil filamentos, que constituem, afinal, o conjunto e a riqueza da sua personalidade – tão grande na sátira e no epigrama, como no mais apaixonado e lírico dos seus sonetos, tão forte no arroubo do ciúme, como na descrição paisagística, rica de cor, de uma noite tempestuosa. (…)
No final do século XVIII, a moda era ver pelos olhos alheios. Desse pecado ficaram isentos alguns dos poetas da Arcádia – e o próprio Bocage, que até nas suas sátiras mais mordentes mantinha uma tradição nacional. (…)
O gosto da confidência íntima, que o atira, de desabafo em desabafo, atrás de Marília, Elisa, Filena, Gertrúria, Anarda, num dolorido cortejo sentimental, é o mesmo, ainda, que o faz chorar, em verso, a morte de um amigo ou de um vizinho, o boato da morte de Nelson, ou cantar as aspirações do liberalismo, o dia de anos de um amigo, ou qualquer outro tema destes, alheio em absoluto à obra de arte… (…)
Poeta, como Olavo Bilac o exaltou; ser convivente, como Beckford o viu; eis Bocage, em quem luz, não algum talento, como ele disse, mas uma das mais pletóricas inspirações poéticas do século XVIII. (…)»
[foto: Bocage, no Museu do Traje, no Portugal dos Pequenitos, em Coimbra]

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Máximas em mínimas (71)

“[O] mais comum entre nós, Portugueses, [é] que prometemos muito e depressa confiamos na passagem do tempo para encerrar o compromisso assumido mas não satisfeito.”
Mário Ventura. O Reino Encantado, Cruz Quebrada, Casa das Letras, 2005.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Rostos (163)

Natália Correia, no "Passeio dos Poetas", na Praia da Vitória (Terceira, Açores), por Ramiro Botelho

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Lembrar Raul Brandão a propósito da sardinha (que, assada, passou a ser uma das 7 maravilhas gastronómicas portuguesas)

[foto: O Setubalense, de hoje]

Para a cidade do Sado, a sardinha tem servido como passaporte e o facto de ter havido grande envolvimento na promoção da sardinha para o concurso das sete maravilhas da gastronomia portuguesa é disso prova recente. Mas podemos lembrar outros eventos: por finais de Julho de 2001, Setúbal esteve presente na quarta edição do festival "Les Arts Dînent à l'Huile", que se realizou na cidade francesa de Douarnenez, na Bretanha, um evento que foi divulgado pela organização sob o lema "se as sardinhas pudessem falar, elas descreveriam os portos do mundo...". Refira-se a propósito que Douarnenez (apresentada por Noel Graveline como a primeira cidade francesa "a querer preservar o património marinho do tempo dos antepassados") e Setúbal apresentam pontos de aproximação devidos às pescas: tal como a cidade do Sado, a cidade bretã teve porto e indústria pesqueira desde a época da romanização e esteve ligada à produção do "garum", forma de conserva da época que também era exportada da região de Setúbal para a península itálica. Tendo também sentido o quase desaparecimento da sardinha no início do século XX, Douarnenez intitula-se hoje como a "capital europeia da conserva de peixe".
Mais recentemente, em finais de Maio do ano passado, foi a ideia da mega-sardinhada, que trouxe ao Largo José Afonso cerca de 10 mil apreciadores que se encarregaram de saborear, no tempo de oito horas, cerca de seis toneladas de sardinha.
O louvor da sardinha setubalense tem vários ecos na literatura portuguesa, mas é o nome de Raul Brandão que deve ser destacado a propósito.
A cidade de Setúbal atribuiu já o nome do escritor a uma rua, próxima de outras em que constam também nomes de autores portugueses, no Bairro Humberto Delgado. Além de nome importante na escrita, Brandão deixou alguns registos sobre Setúbal, especialmente no seu livro Os Pescadores, publicado pela primeira vez em 1923, e também na obra Portugal Pequenino, escrita em co-autoria com sua mulher, Maria Angelina, datada de 1929.
Aquilo que cativou Brandão para as paragens em Setúbal foi algo que faz parte da história da cidade desde há muito: o rio, o mar, a pesca e a sardinha, bem como as formas de vida que daí decorrem.
Na descrição da paisagem e das pessoas, a situação dos mais desfavorecidos foi tónica brandoniana - mesmo num texto de pendor impressionista e descritivo como aquele que domina o livro Os Pescadores, não pôde deixar de enviar "farpas" a uma administração pouco ecológica e pouco preocupada com a vida dos homens do mar: as queixas quanto à falta de sardinha eram muitas pelos anos 20, fenómeno que Brandão atribuía aos "vapores de arrasto", às traineiras que matavam "a dinamite", aos "barcos estrangeiros" utilizadores do carboneto, à falta de fiscalização e ao incumprimento dos regulamentos. Desiludido, ironizava: "Nós só temos um sistema bem organizado - o da destruição". Sem esperança, acrescentava, em tom apocalíptico: "é de prever que dentro de cinquenta anos não haverá uma escama nas fertilíssimas águas portuguesas". E ironizava, novamente: "Fartem-se enquanto é tempo".
[Raul Brandão]

Pelo meio do texto de Brandão, ficava a apologia da sardinha, desse pequeno peixe que, na designação taxionómica, recebe o nome de Clupea Pilchardus. Com efeito, em jeito de retrato completo e ainda que sendo longa a citação, deixou escrito o autor da Foz do Douro: "O cardume, que foi força e vida misteriosa, que formou um só corpo e passou obedecendo não sei a que instinto ou a que inteligência superior, cai sobre Lisboa - como vem de Setúbal, do Algarve e das praias ignoradas de toda a costa lusitana, das grandes armações e dos pequenos barcos. É espalhada pelo país. Comem-na assada na brasa os trabalhadores da estrada e os homens esfaimados do campo com um pedaço seco de broa. De Inverno é magra, mas pelo S.João pinga no pão. No norte o lavrador espera-a para o jantar: é o seu melhor conduto. Os pobres fregem-na numa gota de azeite, e salgada ou saltando no cesto, fresquinha da barra, viva de Espinho, gorda, antes da desova, sem cabeça e escruchada, com a guelra em sangue, ou laivos amarelos de salmoura, constitui um manjar para pobres e para ricos. Entra em todas as casas. Há quem goste dela de caldeirada e quem a prefira simplesmente assada deixando cair no lume a gordura que rechina. Há os que só saboreiam a grande, de lombo gordo e preto, e os que acham muito melhor a miúda, que se chama petinga e que se devora com escama e tudo, afirmando com uma convicção respeitável que a mulher e a sardinha quer-se da pequenina...".
Em Setúbal, ao longo dos tempos, não passou ao lado a preservação da sardinha. Na primeira década do século XX, numa política concorrencial na área das conservas, países como a Noruega, os Estados Unidos e o Japão chegaram a comercializar conservas de outras variedades de peixe como sendo conservas de sardinha. No entanto, os conserveiros franceses lutaram pela delimitação da variedade e, em 1912, um organismo como a Associação Comercial e Industrial de Setúbal apelava aos conserveiros nacionais para se juntarem "aos seus colegas franceses na luta por tão importante campanha", como refere Maria da Conceição Quintas.
No capítulo "A Pesca da Sardinha" do livro "Os Pescadores", Raúl Brandão enalteceu a sardinha, referindo que, ao chegarem, os batéis "despejam nas pedras os montes viscosos de prata" e que, ao tirarem-na da água, os pescadores se deparam com "uma onda de prata que sai da tinta azul". As tonalidades que Brandão utiliza para descrever o mar são diversas, dependendo da luz e da cor. Mas o mar que o fascinou foi o de Setúbal...
Depois de percorrer toda a costa e de ter contemplado o mar a partir de muitos ângulos, escreveu Brandão: "Onde ele atinge a perfeição é em Setúbal. Em Setúbal é imaterial. Sonha ao pé da estrada que vai a Outão, e reflecte na água cismática a sombra avermelhada dos montes, a grande curva voluptuosa com a Arrábida por pano de fundo. Ali sente-se que a água anda presa à baiazinha, a Outão e à serra. Contemplam-se e não se podem deixar. O mar não tem consistência: não é o verde do norte, não é o caldo azul do Algarve - é poeira e luz. Para os lados do Sado, a baía é ilimitada... Um clarão. E há uma época do ano em que a serra se veste de roxo, e então é que é vê-la desdobrada nesta água que é sonho e adormecimento ao mesmo tempo."
Qualquer viajante que passeasse sobre o cais podia seguir o olhar de Raúl Brandão nesse início da década de 20: "Em Setúbal, partem todos os dias os barcos para o mar. O movimento redobra. Setúbal e Olhão são os dois grandes portos de pesca. Sardinha - sardinha - sardinha... Esta península da Outra Banda, limitada por duas baías, devia ser um paraíso, pelo seu excepcional clima e pela sua luz admirável, e bastante, só ela, para, terra e mar, alimentar duas ou três vezes a população de Lisboa, se terra e mar fossem convenientemente cultivados."
Meia dúzia de anos depois de ter publicado Os Pescadores (que teve quatro edições no espaço de um ano), Raúl Brandão era autor, com a esposa, de Portugal Pequenino, título sob o qual duas personagens, o Russo e a Pisca, viajam no país, metamorfoseando-se em animais, em gotas de água ou em penedos, de forma a darem uma visão matizada e rápida: do alto, "pareciam veias os rios azulados, o Minho fronteiriço, o Douro entre montanhas, o Mondego que desce da Serra, o Tejo correndo na planície fértil até ao vasto estuário, o Sado, que passa em Setúbal, o Guadiana lá em baixo..."; do alto, "viram tudo, voaram ao acaso, andaram na baía de Setúbal, que é uma maravilha"; do alto, aprenderam que a sardinha se pesca "em toda a costa, em Lisboa, na Caparica, em Sesimbra e Setúbal", que "Setúbal e Olhão são os dois grandes portos de pesca", que, como a sardinha, "nenhum peixe dá mais dinheiro e poucos têm mais préstimo, pois ocupa o terceiro lugar na escala da alimentação e está muitos furos acima do bacalhau".
A sardinha e Setúbal davam assim as mãos através de um dos mais importantes escritores portugueses do século XX, característica apontada a Raul Brandão logo pelo jornal O Setubalense, de 6 de Dezembro de 1930, ao noticiar o seu falecimento com 63 anos: "A morte acaba de roubar às letras portuguesas o notável escritor e publicista Raul Brandão. Romancista admirável e vigoroso jornalista, Raul Brandão deixa uma enorme obra literária. Companheiro e amigo do Dr. António José de Almeida, foi chefe de redacção do jornal República na sua primeira fase e era actualmente assíduo colaborador de Seara Nova, a cujo agrupamento pertencia, afirmando com brilhantismo a sua fé de republicano".

domingo, 11 de setembro de 2011

Outra lembrança de 11 de Setembro - Antero de Quental

Alertado para um outro significado deste 11 de Setembro pelo Manuel Medeiros, aqui deixo o registo da homenagem que Ponta Delgada prestou a Antero de Quental, passando hoje 120 anos sobre a sua morte.
Em 1942, foi a inauguração do monumento a Antero, segundo um projecto do escultor açoriano Canto da Maia. Incompleto, o memorial viria a ser concluído em 1995, com esculturas laterais de Soares Branco, seguindo a ideia de Canto da Maia.
É a parte central do memorial que aqui se reproduz.

11 de Setembro, 10 anos

Dez anos sobre o 11 de Setembro, a data que arrecadou a marca da mudança no mundo, sobretudo no plano das relações entre povos e sistemas políticos, acentuada por sofrimento desmesurado.
É difícil escolher uma das memórias que retrataram esse dia, mas sempre me impressionou a fotografia captada por Richard Drew do homem em queda nas torres gémeas de Nova Iorque. Ainda ontem, num programa da SIC, o correspondente Luís Costa Ribas evocava essa fotografia para questionar o que teria pensado aquele homem, bem como todos os outros que tomaram idêntica decisão… Talvez a opção por uma corrida escolhida para a morte depois de se ter visto num beco sem saída, talvez o encontro da paz, numa fuga ao inferno, talvez... Mas fica também o sofrimento individual, o desespero, no meio da amálgama, sentido numa queda a velocidade vertiginosa num percurso de 400 metros, antecipadamente sabendo que a saída não seria para a salvação. E fica a figura humana, superior aos destroços, às alturas, aos conflitos… mas frágil e sempre vítima!
Nesse 11 de Setembro as vítimas foram quase três mil!

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Teatro em Setúbal: duas propostas do TAS

O Príncipe Sapo, Irmãos Grimm - Sábado e Domingo, 11h00, Auditório Municipal Charlot
No Meio de Mil Dores (a partir de Mariana Alcoforado) - 15 de Setembro, 21h30, Claustros do Convento de Jesus


domingo, 4 de setembro de 2011

José Leon Machado, "Fluviais"

Se há justificação para um título como Fluviais, que reúne 37 narrativas, ela só pode ter relação com o que é a suposta vida de cada personagem, um corredor que, desde o nascimento à foz, é povoado por intrigas e problemas. Fluviais (Porto: Campo das Letras, 2001), de José Leon Machado, congrega, assim, quase quatro dezenas de caudais, uns mais tempestuosos do que outros – camilianos alguns deles –, mas todos no encalço de personagens mais ou menos misteriosas e detentoras de um segredo que a escrita vai desvendando.
Os contos estão divididos por dois grupos – “À sombra sob as parras”, com 21 histórias, e “Ao sol sobre as fragas”, com 16. O que separa uma e outra é a geografia em que as personagens se movem – no Minho, a primeira, em Trás-os-Montes, a segunda, ambas as regiões metonimicamente apresentadas por cenários como as “parras” ou as “fragas”, que as identificam; na primeira, girando as vidas na proximidade de Braga; na segunda, circulando entre Valpaços e a raia, com entradas na Galiza.
Por estes contos passam figuras que são os heróis das suas próprias vidas, por vezes com finais infelizes, num ambiente rural, em que a tasca é, frequentemente, centro – a do Canhoto, na primeira parte, a do Riqueto, na segunda – e em que convivem as infidelidades, as vinganças, as experiências de vida difíceis, a embriaguez, os amores contrariados, o contrabando, a emigração, as relações de vizinhança, a solidão.
Há personagens que se aproximam dos mitos – “De pé à ré, o pau como remo, em gestos lentos de quem está senhor do rio e do barco, parecia um deus”, referindo o tio Né, barqueiro, no conto “A Máscara da Ninfa” – e outras que vão construindo os seus próprios ditados, formulados à medida das suas necessidades e vícios – “Sem vinho não há alegria e antes alegria que tristeza; (…) tristeza bastava a que carregamos no lombo desde o berço”, pensava o Farra, no conto a que dá nome. Há personagens que se confrontam com questões intensas, como a descoberta da morte, no conto “O Armador” e há crítica de práticas habituais – “O que mais o espantava é que as pessoas, à frente de uma imagem por pintar, dificilmente se ajoelhariam e pronunciariam uma prece. Mas perante uma imagem pintada, imaginavam-se perante uma encarnação do santo”, reflecte Mestre Paulo em “Lascas de Cal”. E há o amor, curiosamente a determinar a abertura e o fecho do livro – idealizado, no início, em “A Máscara da Ninfa”, sugerindo a descoberta de uma ilha dos amores, e instintivo e realizado, no último conto, “A Professora Nova”, com o apelo do corpo a determinar a relação.
Contos breves são estes de Fluviais, que nos apresentam um modo de viver e de pensar longe de toda a globalização e constroem uma quase arqueologia do sentir humano, em que o instinto e a reacção a quente vencem, muitas vezes deixando o leitor desarmado perante finais inesperados ou rumos das histórias subitamente alterados.

Rostos (162)

Almeida Garrett, em calçada portuguesa, no Jardim Duque da Terceira (Angra do Heroísmo)

sábado, 3 de setembro de 2011

Máximas em mínimas (70)

“A morte brutal ceifa as belas almas, mas conserva-as. É essa a sua verdadeira grandeza. Não podemos lutar contra isso.”
Philippe Claudel. Almas Cinzentas. Porto: ASA Editores, 2004, pg. 32.

Memória: Gonçalo Freire dos Santos (1983-2011)

Na noite de 31 de Agosto para 1 de Setembro, num acidente na A2, ali para os lados do Fogueteiro, num despiste seguido de atropelamento, o Gonçalo despedia-se da vida. Aos 27 anos.
Desaparecia o sorriso com que recebia as pessoas e acabava-se o modo de ser interessado e atento a tudo. Findava um trajecto dinâmico e uma alegria que contagiava. Terminava uma relação boa com a vida.
Impressionante foi o testemunho do padre José Gusmão, pároco de S. Paulo (Setúbal), ao relembrar a inquietação do Gonçalo, há uns anos, perante a morte de um jovem, um final semelhante ao seu; mais impressionante foi o testemunho do irmão nas cerimónias fúnebres de hoje. Marcos Santos assinalou a juventude, a utopia, a alegria, as convicções e a boa disposição do irmão, elementos cativantes e cinzeladores do seu trajecto, levando todos os participantes a sentirem a memória de um modo feliz, antevista na “Oração de Santo Agostinho” – “Não estou longe, somente estou do outro lado do caminho. Já verás, tudo está bem. Redescobrirás o meu coração e nele redescobrirás a ternura mais pura. Seca as tuas lágrimas e, se me amas, não chores mais.”
E que dizer das palmas que irromperam à passagem do carro fúnebre? Uma saudação à memória, por certo, mas também um acto de agradecimento pelo testemunho que a vida terá sido. O gesto de aclamar foi instantâneo e rapidamente se alastrou, numa onda de solidariedade. Exemplar maneira de assinalar a memória!

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Rostos (161)

Maria da Fonte, em Póvoa de Lanhoso, de Jorge Coelho (1996)