sábado, 31 de dezembro de 2011

2011 a largar o cais...

Quem vai enviando mensagens para esta quadra tem sempre o cuidado de dizer apenas “um bom ano”, por vezes acrescentando algo como “o melhor possível”. Ninguém quer arriscar muito, sobretudo depois da onda que já caracterizou por antecipação o ano de 2012 como depressivo para qualquer um de nós. É espantoso como o clima de medo quanto ao futuro se instalou, algo que os dirigentes deveriam ter evitado – se não souberam evitar que se tivesse chegado até aqui, pelo menos que evitassem aniquilar a esperança. A essa atitude não se chama “ser realista” nem “apontar a realidade”… haverá outros termos mais apropriados e igualmente tristes! Afinal, quem terá andado acima da realidade…
Por aí a circular anda a amostra de lagosta que se junta, pseudo-crustáceo para celebrar a entrada no novo ano… Vale a pena olhá-la – pelo que com uma cenoura se consegue iludir, pela sensibilidade para a arte, pelo retrato que se dá. A cenoura, pelo menos, tem a vantagem de “fazer os olhos bonitos”, como se costuma dizer, mesmo que o olhar possa ser ilusório!
O ano está a acabar… e que acabe com graça!



George Steiner e Cécile Ladjali: o prazer de ensinar

Em 2001, Cécile Ladjali publicava Murmures, antologia de poemas feitos pelos seus alunos de uma escola nos arredores de Paris. No ano seguinte, publicaria Tohu-Bohu, um texto dramático devido também à escrita dos seus alunos. Uma das particularidades do primeiro título resulta do facto de ter sido prefaciado por George Steiner e de ele mesmo ter acompanhado a feitura desse livro.
A aproximação entre Ladjali e Steiner levou a que, em 2003, surgisse uma obra resultante do diálogo dos dois, mantido em programa radiofónico, intitulada Éloge de la transmission – Le maître et l’élève, mais tarde reeditada no formato de bolso (Col. “Pluriel”. Paris: Hachette, 2007).
Se a ideia do livro é interessante, mesmo porque não se está perante uma simples entrevista, mas em presença de uma conversa, já o facto de o prefácio, da autoria de Ladjali, ocupar quase um terço do volume é algo fastidioso, ainda que com interesse para o leitor perceber a relação estabelecida entre esta professora, Steiner e os seus alunos. Assim, o leitor tem necessidade de chegar rapidamente ao diálogo entre os dois intervenientes, segmentado em sete capítulos: “Éloge de la difficulté”, “Créer à l’école”, “Grammaire”, “Le professeur”, “Les maîtres”, “Les classiques” e “Dans la classe”.
O que serve de pretexto a Ladjali é a experiência vivida com os seus alunos no projecto da escrita e de leitura de clássicos, sendo equacionado o papel do professor, bem como a recepção dos alunos. Da conversa entre estes dois interlocutores, ficam pistas para reflexão e peças para um “puzzle” que mais não é do que o desafio de ser professor, algumas delas aqui apresentadas por ordem alfabética do tema:

Clássicos – «Il n’est pas si facile de comprendre comment s’opère la transmission et pourquoi des textes millénaires  n’ont rien perdu, pour certains, de leur provocation et de leur vitalité, de leur puissance de choc. Mais le classique peut aussi naître aujourd’hui. (…) Un classique survit à toutes les bêtises.» (GS)
Ensinar – «Goethe a dit: “Celui qui sait faire fait. Celui qui ne sait pas faire enseigne!” Et j’ajoute: “Celui qui ne sait pas enseigner écrit des manuels de pédagogie.”» (GS)
Falar – «Parler, c’est respirer, c’est le souffle de l’âme. La parole est l’oxygène de notre être. (…) Chaque cliché est la morte d’une possibilite vitale, chaque belle métaphore ouvre littéralement des portes sur l’être.» (GS)
Função do professor - «Quelle pourrait être, de nos jours, la fonction du professeur?» (CL) «Un certain martyre. Sans aucun doute, il y a des difficultés, des souffrances, des collapses. (…) J’ai toujours dit à mes élèves: “On ne négocie pas ses passions. Les choses que je vais essayer de vous présenter, je les aime plus que tout au monde. Je ne peux pas les justifier. (…) Si l’étudiant sent qu’on est un peu fou, qu’on est possedé par ce qu’on enseigne, c’est déjà le premier pas. Il ne sera pas d’accord, peut-être va-t-il se moquer, mais il écoutera. C’est le moment miraculeux où le dialogue commence à s’établir avec une passion. Il ne faut jamais essayer de se justifier.» (GS)
Imagem da Escola – «Une très grande place accordée aux classiques et à l’apprentissage par cœur, une manière presque physique d’ingérer une culture pour mieux la vivre et, au centre de l’édifice, la figure du maître.» (GS)
Literatura – «Ce qui compte avant tout, c’est l’étonnement, l’espèce de transe qui nous prend quand on est mis en contact avec l’étrange et le merveilleux. C’est terriblement didactique tout ça.» (CL)
Mestre – «C’est tout simplement quelqu’un qui a une aura quasi physique. La passion qui se dégage de lui est presque tangible. (…) Celui dont même l’ironie vous donne une impression d’amour.» (GS)
Resultados – «Nos élèves sont terriblement pragmatiques, ils veulent constater des résultats tout de suite.» (CL)
Segunda língua – «On devrait depuis la première enfance, enseigner une autre langue. Depuis la toute première enfance, l’enfant devrait avoir deux langues, ce qui rend impossible une certaine étroitesse d’âme, un certain dédain pour autrui. Mais c’est un idéal, une utopie.» (GS)
Silêncio – «Rien n’est devenu plus luxueux aujourd’hui que le silence.» (GS)
Sonhos I – «C’est dans les premières années du secondaire que se joue le drame le plus complexe, qui est celui de faire croire à l’enfant qu’il y a des rêves, des transcendances éventuelles possibles.» (GS)
Sonhos II – «Si nous ne pouvions rêver – et rêver est une forme de futurité –, il n’y aurait vraiment que la clôture de la brieveté et de la médiocrité de nos petites vies personnelles.» (GS)


E, a rematar: que recompensa possível para um professor? Responde e pensa Steiner, recorrendo ao exemplo da sua vida de mestre: «Il peut donner une terrible aigreur, mais il y a une récompense suprême, qui est de rencontrer l’élève beaucoup plus doué que soi-même, qui va avancer bien au-delà de soi-même, qui va peut-être créer l’œuvre qu’un prochain enseignant va enseigner. Ça m’est arrivé quatre fois dans ma vie. C’est énorme comme chiffre sur cinquante ans d’enseignement. Quatre fois, c’est déjà beaucoup. Ça, je vous jure, c’est une récompense infinie.»

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Mendes de Carvalho e um "país à beira-mar plantado"

Foi por meados da década de 1970 que, numa carrinha das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, conheci a sátira de Mendes de Carvalho (1927-1988), através do livro Poemas de Ponta & Mola. Ficou-me sempre este título pela expressividade, pela imagem adequada ao tom satírico utilizado.
Hoje, passeando o olhar por uma banca de livros em segunda mão, prendeu-me a atenção uma antologia da sua obra, Satírica (Lisboa: Círculo de Leitores, 1974), que reúne os livros Camaleões & Altifalantes (1963) e Cantigas de Amor & Maldizer (1966), com alguns poemas, à data inéditos, do que viria a ser Poemas de Ponta & Mola (1975).
Num relance, revivi o prazer com que, há três décadas, descobri Mendes de Carvalho e atirei-me ao livro, ainda por cima a preço de pechincha.
Não pude, claro, deixar de visitar esta escrita. E, porque estamos em maré de pensar o país que somos, ainda que com laivos de emigração à mistura, trago para aqui o “País à beira-mar plantado”, saído no segundo dos livros indicados. Vale a pena ler, é um (bom) retrato…

Mendes de Carvalho, in Cantigas de Amor & Maldizer (1966)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Eduardo Lourenço: a Europa, a esperança, a aldeia

A propósito da atribuição do Prémio Pessoa, a revista “Atual”, do Expresso saído na 6ª feira, publicou entrevista a Eduardo Lourenço, conduzida por Rosa Pedroso Lima e por Valdemar Cruz. Nos seus 88 anos, Eduardo Lourenço continua a reflectir sobre o nosso mundo, sobre o nosso mundo que nos cerca. São excertos dessa entrevista que se reproduzem.
Crise – “A Humanidade tem muitas maneiras de se definir. Ninguém pode viver sem esperança. A esperança é uma componente do que é cada ser humano. Sempre tivemos uma visão muito eurocêntrica, mas agora estamos a entrar num pessimismo em relação à Europa. É a famosa crise. Todo o discurso, na componente económica ou financeira, é da ordem do apocalíptico. Estamos à beira do abismo. É verdade que a situação não é boa, mas este continente ainda hoje é o de maior bem-estar em todo o globo. Não há razão para que os europeus desatem a autoflagelar-se.”
Europa – “A Europa comunitária foi construída sob pressupostos negativos: a ideia de servir de tampão entre os EUA e o Bloco de Leste. Uma ideia dos EUA que nos deixou entre parêntesis. No dia em que Muro de Berlim saltou, a Europa ficou sem projecto. (…) A Europa não tem nenhuma espécie de ideologia que a mova para que lhe possa fornecer um sentido do seu próprio projecto.”
Virtual – “Pela primeira vez, vivemos num mundo ao mesmo tempo mais materialista no sentido antigo do termo e mais virtual. A novidade, agora, é que a virtualidade é mais importante que a materialidade. Nesse capítulo, continua a ser um mundo humano. Só os homens são capazes de inventar algo que não existe.”
Juventude – “Neste momento, o problema crucial do mundo é que uma parte da juventude, pela primeira vez, não tem esperança. Não chega a entrar na vida. Pode sair dela sem ter entrado na vida. Isto é novo no Ocidente. Isto é espantoso.”
Aldeia – “Só há aldeias. Porque mesmo as pessoas que vivem nos grandes meios escolhem sempre um canto que lhes serve de aldeia. A aldeia é um conjunto de casas. E no meio das casas há a casa. E nós só precisamos de viver numa casa. O problema é aqueles que sabem isso e que não têm casa.”

António Oliveira e Castro: "Tambwe" ou o mundo pelos olhos de Eugénio

O mais recente romance de António Oliveira e Castro, Tambwe – A unha do leão (Lisboa: Gradiva, 2011), com ilustrações de Nuno David, é uma história que prende o leitor ao trajecto de uma personagem como Eugénio, figura que, ora procura a morte, ora assume o seu trajecto sozinho, ora peregrina até às raízes. A história é intensa e o leitor é convidado a passar por paisagens diversas, europeias (Portugal, França) ou africanas (Angola), por corredores diversificados de uma sociedade que nem sempre se rege pelos melhores princípios, convivendo com figuras da baixa política, com revolucionários, com mercenários, e tendo momentos de paragem, também fortes, em pensares de tempos de solidão ou em reflexão com figuras que constroem e se alojam na identidade.
É uma história dramática, em que o narrador dialoga com o leitor, tentando convencê-lo da verosimilhança das situações e levando-o a pensar a actualidade, o papel da política, o encaminhamento do mundo, o ser cidadão. É uma história dolorosa, com desvios e demandas, mortes e utopias, caos e ordem, poesia e horror, em que a liberdade e a prisão coexistem e a fragilidade do mundo e dos sistemas é posta à prova. É a história de uma solidão sempre e sempre testada, numa fuga ao tormento.
Sublinhados
Palavras – “As palavras, por maior que seja o seu conteúdo, não têm peso, sustentam-se de aparentes levezas, da aragem dos êxtases.”
Mistério – “Nem sempre o universo do homem se pode resumir ao encontro com a razão, na equação entram outras incógnitas, indecifráveis e misteriosas.” 
Faltas – “O que mais há na terra é paisagem e o que mais falta é o amor.”
Escrever – “Nenhum escritor escreve sobre acontecimentos insignificantes, procura sempre o lado sombrio, sujo, sanguinolento, colérico e escondido do Homem; descreve os campos de batalha onde se fuzilam os inocentes e assinam acordos de paz com os generais; o artífice da palavra relata, com a emoção de que é capaz, a loucura dos heróis, o medo dos cobardes; leva-nos até aos que jazem, na agonia da morte, debruçados sobre a terra que lhes escuta o lamento; faz-nos tropeçar nos corpos dilacerados que se espalham sobre os degraus dos edifícios em ruínas.”
Amor – “O amor é um fenómeno muito mais complexo que a morte; enquanto um regenera, o outro remete para o esquecimento.”
Vida – “Mesmo a vida mais verdadeira não passa do resultado do acaso, a que só a fé dos homens confere normalidade.”
Gerações – “O mundo acaba apenas para velhos que já não são capazes de se transformar, continua para os jovens generosos e sonhadores, que precisam de mudança.”
Futuro – “Nada, nada mesmo, obedece à lógica; apenas a aventura, o perigo, o risco, o sucesso imprevisto comandam o futuro.”
Castigo – “Os castigos são sempre subjectivos. Dependem de quem está no poder. Herói se vencer, traidor se for derrotado.”
História – “A história despreza os seus actores, reescreve-lhes o drama a seu bel-prazer; a qualquer instante pode matar num jogo de contradições, de paradoxos, de ironias, de injustiças; oportunista, caminha sobre uma estrada de cadáveres.”
Guerra – “A guerra não distingue os homens; tanto se lhe dá que sejam honestos ou assassinos, jovens ou velhos, pouco lhe importa que se encontrem exaustos ou frescos. Aliás, a violência tem especial predilecção pelos mais incautos, pelos mais fracos.”
Actor – “Apenas quando encarnam personagens que um qualquer dramaturgo inventou, os actores são belos, sedutores, insuspeitos, assim que abandonam o palco e a ribalta regressam à miserável condição humana que os agasalha.” 
Pátria – “Para que precisamos de nações? Os cidadãos precisam é de paz!”
Povo – “A história dos povos tem as suas regras, o seu tempo lento, mas as mudanças são muito mais definitivas quando a violência da guerra se torna conselheira da razão e das emoções.”
Trincheira – “Nas trincheiras, sempre morreram os jovens crédulos, cadáveres  condecorados com a crueldade do martírio. Indiferentes à hecatombe, os proprietários da pátria, latifúndio com milhares de hectares, que fazem crer ser também nossa, oferecem-nos o privilégio de lhes amanharmos o solo, de lhes produzirmos a riqueza.”
Horizonte – “A dimensão dos homens vê-se para onde olham, se para o umbigo, se para a montanha.”
Ambição – “Os homens, quando guiados apenas pela ambição, perdem a noção da realidade, escutam o umbigo quando tudo à volta se desmorona.”

sábado, 24 de dezembro de 2011

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Quando os políticos se "marimbam"... ou a nova face da piadola

Num jantar em Castelo de Paiva, o deputado socialista Pedro Nuno Santos terá apresentado pérolas como esta, transcrita da edição online do Público: “Estou a marimbar-me que nos chamem irresponsáveis. Temos uma bomba atómica que podemos usar na cara dos alemães e franceses. Essa bomba atómica é simplesmente não pagarmos”. Ou esta: “Se não pagarmos a dívida e se lhes dissermos as pernas dos banqueiros alemães até tremem”. Ou ainda esta: “A primeira responsabilidade de um primeiro-ministro é tratar do seu povo. Na situação em nós vivemos, estou-me marimbando para os credores e não tenho qualquer problema enquanto político e deputado de o dizer. Porque em primeiro lugar, antes dos banqueiros alemães ou franceses, estão os portugueses”.
Todos percebemos que este discurso cheira a demagogia que tresanda e o deputado tornou-se célebre por estas tiradas que uma rádio local captou e a que as cadeias nacionais deram eco. Coisas normais depois de uma refeição com amigos, mas não tão próprias quando se trata de alguém com responsabilidades políticas num partido que teve (tem) responsabilidades nacionais e na situação a que se chegou e que, ainda por cima, invoca o seu estatuto para afirmar “não ter qualquer problema em dizer” o que disse…
Mas mais ridículo é ouvir o deputado a explicar na rádio que não foi aquilo que disse, que o que quis dizer foi que Portugal tinha de exigir a negociação da dívida, etc., etc., etc., e que aqueles minutos de “marimbamento” eram apenas um excerto de mais longo discurso que daria para entender que não se estaria a marimbar assim tanto… E ainda mais rebuscada foi a explicação de literatice que o líder da bancada socialista, Carlos Zorrinho, veio dar – aquilo foi “uma imagética forte para expressar de forma caricatural a ideia de que devemos pagar a dívida obviamente”!
Detesto que nos queiram fazer passar por parvos e estas explicações são ainda mais ridículas à medida que se sobrepõem… Digam ao senhor que as declarações foram infelizes, que o seu estatuto lhe permite a liberdade (a nós também) mas não lhe permite liberdadezinhas e que, de facto, um deputado não se pode “marimbar” para tudo o que o senhor disse que se “marimbava”… Imagino já os banqueiros a tremerem ou a rirem-se da piadola!...

Orfeu, a livraria portuguesa de Bruxelas

A edição da revista Tempo Livre deste mês (Lisboa: Inatel, Dezembro.2011, nº 232) traz, com a assinatura de Humberto Lopes, a história da livraria Orfeu, "a única livraria portuguesa na região do Benelux", com sede em Bruxelas, actualmente gerida por Joaquim Pinto da Silva. A peça conta a intervenção cultural que tem sido marca daquela livraria, um projecto que foi começado há 25 anos por Fernando Gandra, escritor que adoptou Setúbal para se fixar.



António Oliveira e Castro em entrevista

O Setubalense: 14.dezembro.2011

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Luiz Pacheco biografado

Encontrei-me no final do dia com esta biografia de Luiz Pacheco (Puta que os Pariu - A Biografia de Luiz Pacheco. Lisboa: Tinta-da-China, 2011), devida a João Pedro George. Trouxe-a, ansioso por nela entrar. Ainda só li a "Introdução", mas fiquei à espera de assunto sério, de um percurso como o Pacheco merece, mesmo pela literatura, sobretudo pela literatura. Será uma leitura para estes dias, entre outras, pelo meio de outras.
A "Introdução" abre com uma verdade perfeita sobre o biografado: "Luiz Pacheco era capaz das loucuras mais desapiedadas, mas também de actos de grande generosidade. Pessoa cheia de contrastes, de oscilações e de incoerências, tinha uma enorme facilidade para relacionar-se com os outros e, depois, para cortar relações."
Polémico, sempre polémico, era assim Luiz Pacheco. Conheci amigos dele nas circunstâncias desta abertura. Tive a sorte de o ter conhecido para além da escrita e de termos construído cavaqueira em várias tardes. Também por isso o quero reencontrar.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Rui Serodio homenageado em poemas

Já cerca de um mês e meio passa sobre o desaparecimento de Rui Serodio (1937-2011), o compositor, pianista e maestro que Setúbal se habituou a ouvir numa interpretação musical fora do comum, associada a um feitio, atenção e disponibilidade exemplares. Já palavras foram ditas, já sentimentos se atropelaram na reflexão sobre a vida, sobre a amizade e sobre a memória, vindos a propósito deste homem que legou marcas de apreço e de gosto nos passos que deu.
Uma homenagem mais surgiu, desta vez partindo dos alunos da Oficina de Poesia da UNISETI, num opúsculo antológico intitulado Homenagem ao Maestro Serodio, que reúne vinte e quatro colaborações, quase totalmente poéticas, assinadas por Alexandrina Pereira, Eduarda Gonçalves, Alberto Dias, Anna Netto, Arnaldo Ruaz, Beatriz Estrela, Berta Duarte, Carmo Branco, Carmo Súcia, Célia Peixinho, Conceição Portela, Custódia Procópio, Francisco Pratas, Henrique Mateus, João Santiago, Kina Viegas, Lucinda Neves, Maria de Fátima Santiago, Maria Filomena Lopes, Maria Helena Barata, Maria Helena Freire, Maria Sol, Suzete Pereira e Viriato Horta.
Em comum, todos estes poetas cultivam a saudade, a dor da ausência, a lembrança dos momentos felizes, o afecto das sonoridades, a eloquência da música do homenageado, a marca humana que ficou. Em comum, muitos dos poetas se remetem para um próximo encontro enquanto outros tentam adivinhar uma forma de estar no paraíso, maneira de estender o afecto até ao além. É uma homenagem em palavras como podia ser em notas ou acordes ou apenas numa conversa com a eternidade.
A título de exemplo, aqui fica o sentir de Maria Helena Barata:

O rio enfureceu-se.
O céu chorou.
As gaivotas soluçaram.
A música não mais parou
e lá estavam os arcanjos
soletrando os acordes
que o Maestro preparou.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Para a agenda - António Oliveira e Castro: um convite para se saber o que andava o herói a fazer por Paris e por outros lados do planeta

A dado passo da narrativa, regista: “Nenhum escritor escreve sobre acontecimentos insignificantes, procura sempre o lado sombrio, sujo, sanguinolento, colérico e escondido do Homem; descreve os campos de batalha onde se fuzilam os inocentes e assinam acordos de paz com os generais; o artífice da palavra relata, com a emoção de que é capaz, a loucura dos heróis, o medo dos cobardes; leva-nos até aos que jazem, na agonia da morte, debruçados sobre a terra que lhes escuta o lamento.”
E, num outro passo, o leitor pergunta qual o sentido da personagem em Paris, vagueando sem ser em passeio, refugiando-se, escondendo-se, procurando-se… numa história intensa, num viajar na personagem até ao âmago, acompanhando, de novo, o narrador, que exige a nossa conivência: “Apenas nós sabemos que Eugénio é um homem imprevisível, contra quem resulta infrutífera qualquer táctica, falível a mais elaborada estratégia; apenas nós sabemos (…) que mesmo a vida mais verdadeira não passa do resultado do acaso, a que só a fé dos homens confere normalidade.”
Personagem de sonhos, de contrastes, de forças e de tempos este Eugénio que surpreende em cada página de Tambwe – A Unha do Leão (Lisboa: Gradiva, 2011), de António Oliveira e Castro!
No sábado, 3 de Dezembro, na Culsete, em Setúbal, o autor e esta obra vão ser apresentados por Fernando Gandra, enquanto o actor José Nobre lerá excertos da narrativa. É um bom pretexto para se sentir convidado!

António Oliveira e Castro (n. 1951), a residir em Setúbal, teve já a sua incursão pela poesia, de que é exemplo o título Houve mesmo um dia de desespero em que se cultivaram campos de cicuta (Col. “Caminho da Poesia”. Lisboa: Editorial Caminho, 1985), mas, nos últimos anos, é a faceta de contador de histórias que o tem atraído, tendo publicado o romance A especiaria (Col. “Tempos Modernos”. Lisboa: Guerra e Paz, 2008) e este que agora vai ser apresentado.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Agostinho da Silva, biógrafo de Pestalozzi

A Vida de Pestalozzi, de Agostinho da Silva (Lisboa: ed. Autor, 1943), é uma biografia do pedagogo suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) que Agostinho da Silva integrou numa colecção de biografias por si editadas no início da década de 1940, esta publicada justamente no ano em que Agostinho da Silva foi preso no Aljube.
O leitor que se confronte com esta biografia corre atrás da história que é contada. Alheia a datas, o que a determina é a acção do biografado, associada às contrariedades que minaram o seu projecto e eivada de sublinhados quanto a valores. De facto, Agostinho da Silva poucas datas refere – além do ano de nascimento do biografado, poucas mais são registadas, ainda que na maior parte dos casos as escassas datas apontadas estejam ligadas a acontecimentos históricos contemporâneos de Pestalozzi. No limite, nem a data de morte do pedagogo é referida, ainda que seja dado a entender que ela aconteceu depois dos oitenta…
A insistência de Agostinho da Silva vai para a obra de Pestalozzi e para os princípios que a nortearam, sobrevalorizando a tarefa da educação, e para a persistência com que este rousseauniano enfrentou as adversidades, fossem elas de origem económica ou social. O propósito de Agostinho da Silva parece ser pedagógico, sobretudo, chamando a atenção para os valores da determinação, da necessidade da educação para todos, da força das convicções.
Assiste-se ao peregrinar de um homem que não desiste, que acredita num projecto, que foi rejeitado por muita gente, desde vizinhos a políticos, ao mesmo tempo que a sua escola recebeu a visita de figuras gradas da época, como a Mme. de Stael ou Fichte, ou foi por si apresentada a outras como, por exemplo, Goethe. Na bagagem, Pestalozzi tinha apenas o seu projecto, o seu ideal: uma escola que devia ser para os alunos, sobretudo para os pobres, “uma experiência de vida; por consequência, o que lhe compet[ia] sobretudo, como mestre, [era] orientar, ensinar a fazer”, porque acreditava que “o professor que faz, embotando a iniciativa do aluno, o que o impede de agir, é um mau professor” e “só o contacto com os problemas e as dificuldades, só a busca interessada das soluções são capazes de educar”.
Pelo caminho, vai ficando registo da obra de Pestalozzi, das invejas de grupos ou individuais, da luta por um ideal, da importância de Ana (a mulher de Pestalozzi), da tenacidade e da fé, do esforço, havendo ainda lugar para as traições de discípulos.
Cerca de cem páginas depois de ser relatado o nascimento de Pestalozzi em Zurique, o narrador relata o funeral, ponto final no percurso, rumo à escola cuja ideia ele alimentara. “Sobre a última terra a neve caía, rápida e leve, em flocos ligeiros. Mais tarde, plantaram na campa uma roseira; e em cada primavera as rosas desabrocharam e vieram trazer aos homens, sob uma forma nova, a perpétua juventude e amor ardente de Henrique Pestalozzi.”

sábado, 26 de novembro de 2011

Miguel Real e o "Diário" de Sebastião da Gama

Uma leitura pessoal do Diário de Sebastião da Gama é aquilo que Miguel Real nos propõe aqui, um texto a não perder, pela actualidade, pela frontalidade e pela experiência. Constituiu a comunicação de Miguel Real no encontro "A educação a partir do Diário de Sebastião da Gama", realizado na Biblioteca Municipal de Palmela, em 28 de Outubro, iniciativa integrada na recepção à comunidade educativa, promovida pela Câmara Municipal de Palmela.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

No centenário da morte do Calafate, o seu busto

"O Rotary Clube de Setúbal vai oferecer à cidade um busto do poeta Calafate - Com o propósito de homenagear o poeta setubalense António Maria Eusébio, o popular Calafate, o Rotary Clube de Setúbal vai oferecer à cidade um busto do referido poeta, tendo o Município escolhido o Largo da Fonte Nova para a localização do citado busto". Esta era uma notícia de primeira página saída a público na edição do jornal local O Setubalense, em 10 de Fevereiro de 1968. Não havia ainda a indicação de data para a cerimónia e o conteúdo da informação ficava-se por aquelas escassas e curtas linhas.
Já por várias vezes em terra sadina fora publicamente manifestada a intenção de enaltecer a figura do Calafate, gravando-a em monumento. O chamado "Cantador de Setúbal", apesar de analfabeto para as estatísticas, foi um óptimo relator da vida do século XIX, que lhe passou pelo verso. O rigor das datas do seu nascimento e falecimento foi estabelecido por Carlos Dinis Cosme em artigo publicado na segunda edição da revista Património (Setúbal, 1984), tendo-se ficado a saber que António Maria Eusébio nascera em 15 de Dezembro de 1819, falecendo "de morte natural" em 22 de Novembro de 1911, cerca de dez meses após o passamento da esposa.
Vários vultos da cultura portuguesa lhe prestaram homenagem. Em 1901, Guerra Junqueiro revelou toda a sua emoção ao prefaciar os versos do Calafate, escrevendo: "Não sabendo ler nem escrever, és um grande poeta, meu ignorante e ignorado cantador de Setúbal." Afonso Lopes Vieira chamou-lhe "descendente dos troveiros góticos". Em 1902, sob a direcção de Paulino de Oliveira, foi publicado um conjunto de textos sob o título Homenagem ao Cantador de Setúbal, contendo escritos de Ana de Castro Osório, Guerra Junqueiro, Manuel Maria Portela, Arronches Junqueiro e João de Deus, entre outros. Fran Paxeco, ao recordar a figura do Calafate, descrevia-o em 1930 da seguinte forma: "Era uma excelente criatura. Arrastava-se, num passo tardo, pelas ruas e vielas do burgo. Entrava nas tascas, mas não bebia. De rosto calmo, faces emaciadas, sofredoras, nada nos indicava a veia do repentista ou do satírico."
Calafate de ofício nos estaleiros dos Mestres António José Taborda e Catalão, nasceu na Rua dos Marmelinhos, actualmente designada Rua António Maria Eusébio em sua lembrança. De memória prodigiosa, fixava os seus versos, que depois ditava para serem escritos. Animava a adega do Paulino cantando seus poemas, acompanhado à viola por Josué Costa Ferreira e à guitarra por Francisco Casimiro de Jesus, conhecido pela alcunha de "Carga de Ossos", seu compadre. De acordo com relato de Manuel Envia, o trio foi ainda actuar "a Calhariz a convite dos senhores Duques de Palmela e perante uma assistência selecta e fidalga".
A mais recente edição dos textos de Calafate, Versos do Cantador de Setúbal (publicada entre1985 e 2008), foi prefaciada por Rogério Peres Claro, que, em longo estudo, revela que "os papéis do Calafate são quase todos dos últimos dez anos da sua longa vida de nonagenário". Os textos eram ditados para a impressão e vendidos através de amigos "que assim o ajudavam, que ele assim o queria para não se tornar pesado ao filho, com quem então vivia".
A partir do momento em que, em 1968, o jornal O Setubalense anunciou a intenção do Rotary Clube de Setúbal, algumas crónicas versaram durante esse ano a questão do monumento a Calafate. Na edição do mesmo jornal de 3 de Junho, Santos Silva, que com o poeta convivera na Irmandade do Santíssimo da Matriz, sugeria que o monumento deveria ser colocado no Largo Teófilo Braga, porque, "depois de Guerra Junqueiro, foi Teófilo Braga quem mais se deleitou com a leitura dos versos do poeta cantador e quem mais o distinguiu", além de que, ligada a esse largo, estava a rua onde "o Poeta viu a luz do dia". No entanto, em Outubro, na edição do dia 19, O Setubalense informava, ainda na primeira página, que o busto ia ser colocado no Parque do Bonfim, "local mais adequado, por oferecer melhor enquadramento estético". Posteriormente, seria anunciada a data natalícia do poeta para a inauguração do monumento, mas a cerimónia só viria a acontecer em 29 de Dezembro de 1968.
A edição de O Setubalense do último dia desse ano noticiava o evento e evocava Calafate, revelando: "ao que parece, nos últimos anos da sua existência, conseguiu aprender a ler à força de ler e fixar os nomes das ruas da sua cidade", o que levou o repórter a concluir que se estava "perante um dos casos mais extraordinários da aprendizagem da leitura pelo chamado método globalístico". A inauguração do monumento, da autoria do arquitecto Castro Lobo, teve a presença do substituto do Governador Civil e dos Presidentes da Câmara de Setúbal (Constantino de Goes), da Junta Distrital (Eduardo Costa Albarran) e da Comissão Distrital da União Nacional (Manuel Seabra Carqueijeiro), além de "numerosos rotários" e de familiares de Calafate como o bisneto Peres Claro e a sobrinha Luísa Claro Braga, tendo esta última procedido ao descerrar do monumento.
A obra mantém-se na zona central do Parque do Bonfim, a evocar o homem e o poeta. Pelos seus versos passaram, em simultâneo, a filosofia que explica a vida e a sátira que a vida merece, como bem se pode ver na décima que se reproduz: "Já vi varões sem firmeza, / fidalgos sem fidalguia, / senhores sem senhoria / e morgados sem riqueza. / Já vi pobres sem pobreza, / mestre sem ter aprendiz, / taberneiro sem ter giz, / soldado sem ter capote. / Mas padre andar de chicote / só ao prior da matriz." Verdades profundas da sociedade nos oito primeiros versos e chiste nos dois versos derradeiros, que se referem, segundo Fran Paxeco, a um padre de Alcácer que o poeta "vira, de vergasta na mão, num dia de feira".
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O centenário da morte de António Maria Eusébio, o "Calafate", passou anteontem, data em que, na Biblioteca Municipal de Setúbal, foi inaugurada a exposição bibliográfica "António Maria Eusébio: o Calafate entre a Monarquia e a República", que ali poderá ser vista até 17 de Dezembro. Entretanto, também a agenda editada pela Câmara Municipal de Setúbal, Guia de Eventos, deste mês (nº 80), dedicou três páginas ao poeta.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Nos 80 anos de Jorge Figueira de Sousa, o livreiro

O livreiro funchalense Jorge Figueira de Sousa completa hoje 80 anos de idade. De livreiro tem 65 anos, acrescidos dos genes e da história da livraria que mantém – “Tenho 165 anos de prática de livraria – 50 do meu avô, 50 do meu pai e 65 meus.” Parabéns!
Um caso. Sobretudo num tempo em que os livreiros escasseiam. Um caso. Que vale a pena partilhar e testemunhar. Em duas semanas, o blogue Encontro Livreiro promoveu uma exposição, dirigida a individualidades políticas várias reclamando a homenagem merecida para Jorge Figueira de Sousa, subscrita por leitores, livreiros, editores, tradutores, professores, etc. Entre os signatários, estão Marcelo Rebelo de Sousa, Viriato Soromenho-Marques, Miguel Real, Onésimo Teotónio de Almeida, José Agostinho Baptista, Maria do Rosário Pedreira, Pedro Tamen, Ernesto Rodrigues, José Tolentino Mendonça, Urbano Bettencourt e muitos outros. E dois nomes a não esquecer, pois foram eles o motor da iniciativa: Luís Guerra e Manuel Medeiros, um e outro com vidas dedicadas aos livros.
Até à meia-noite de hoje, ainda pode integrar este grupo… e ser mais um a felicitar Jorge Figueira de Sousa e o projecto da Livraria Esperança, no Funchal. Vale a pena participar nas homenagens das boas causas!

domingo, 20 de novembro de 2011

George Steiner em duas (boas) conversas

De George Steiner podemos ler duas boas conversas recentemente publicadas entre nós: uma entrevista na revista do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e uma conversa com António Lobo Antunes na revista da Fundação Círculo de Leitores. Em ambas as peças há muitos pontos comuns, mas ambas são diferentes, sobretudo pelas motivações que as originaram. Ambas vale a pena ler.

O terceiro número da revista Letras Com Vida (Lisboa: CLEPUL, 1º semestre de 2011), maioritariamente dedicado ao centenário da Universidade de Lisboa, contém entrevista com George Steiner, feita em Cambridge por Béata Cieszynska e José Eduardo Franco (pp. 9-17). Não sei se há entrevistas imperdíveis, mas há, pelo menos, entrevistas que valem a pena e perante as quais sentimos que perderíamos algo se não as lêssemos…

A conversa com Steiner passa pela reflexão sobre o mundo, sobre a actualidade – o papel da Humanidades, uma outra organização das universidades, as imagens da Europa e da América, as possibilidades do futuro, a comunicação, a juventude, a leitura, a ciência, as relações com o Leste, os conflitos mundiais do século XX, os fundamentalismos, a religião, o futebol e a literatura portuguesa. Ouve-se Steiner – e prefiro aqui o verbo “ouvir” em vez do “ler” – e fica-se a pensar sobre o mundo e sobre o papel que nos cabe ou que não nos é dado. As visões apresentadas não são propriamente optimistas – o século XX foi “o século mais bárbaro que conhecemos” e isso tem consequências; a juventude anda desencantada porque a esperança é algo cada vez mais ausente; a globalização pode unir, mas tem uma marca e a nova forma de estado é “a corporação multinacional”, tendo as questões de nacionalidade passado a uma espécie de tribalismo. Fenómenos como o tédio podem tornar-se perigosos, lembrando Steiner que “antes de 1914 as pessoas estavam entediadas, a sua própria cultura do luxo não as entusiasmava” e que “hoje os jovens andam entediados, perigosamente entediados”. Uma parte importante da esperança em algo melhor estará na ciência, que trará possibilidades que mudarão “irreversivelmente o futuro da Humanidade”.

Quanto à literatura portuguesa, Steiner elege três autores: Pessoa – “perceber Pessoa é ouvir as vozes dentro de nós” –, Saramago – cujo O Ano da Morte de Ricardo Reis leu e releu e considera ser “sempre um livro maravilhoso” – e Lobo Antunes, “o maior escritor português vivo da actualidade” a quem “Portugal não deu ainda o devido reconhecimento”. Uma simpatia forte vai também para Camões, de que não há uma boa tradução inglesa, mas que merece uma afirmação contundente de Steiner: “falta à nossa cultura Europeia o conhecimento do génio de Camões”.

Finalmente, Steiner, respondendo a uma pergunta sobre a relação com o epíteto de “mestre” que lhe atribuíram, comenta: “O que tentei ensinar, a vida toda, foi a ler um pouco. Ler seriamente. Ler com os outros.” E, não por acaso, as últimas palavras da entrevista vão para a poesia, “um luxo necessário”, porque dela não estarão ausentes a música nem o pensamento supremamente elaborado. “Não nos esqueçamos, relembra Steiner, de que nunca os poetas tiveram tanta importância, tanto poder, como no meio do horror que foi o Estalinismo”.

Uma outra conversa com Steiner povoa o número de Novembro da revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 107, pp. 34-52). No final da entrevista dada à Letras Com Vida, Steiner manifestava o desejo de conhecer Lobo Antunes pessoalmente; na revista Ler, o encontro acontece e o que o leitor tem é uma conversa entre o romancista Lobo Antunes e o crítico Steiner, havida em Cambridge, em Outubro passado.

Nota-se que o fascínio por este encontro é comum aos dois, bem como o elogio que cada qual faz ao seu interlocutor, mas a conversa vai pela análise do mundo actual, pelas relações entre povos e culturas, pelo ensino e pela escrita, pela literatura, onde saltam nomes fortes que um e outro comentam, nem sempre comungando das mesmas opiniões.

Relativamente à entrevista anterior, a vantagem desta conversa é a de os dois conversarem sem roteiro prévio, um pouco à medida dos prazeres e dos momentos, das recordações e das experiências pessoais. Se, no caso da entrevista, o interesse advém do encontro com o pensamento de Steiner, na conversa com Lobo Antunes, o interesse passa também por aí, mas torna-se evidente a dominância dos livros, da ficção, dos grandes nomes, da procura dos clássicos para um e para outro – “o clássico permanece sempre novo”, dirá Steiner – e do que cada um neles viu.

Interessante é a forma de o mundo entrar nas vidas de cada um – Lobo Antunes, que Steiner aproxima de Tchekov ou de Faulkner e para quem os grandes nomes e substantivos abstractos são “a coisa mais perigosa do mundo”, retrata a vida nas suas personagens que, um dia, poderá “encontrar na esquina da rua”; Steiner assume-se como pensador, como crítico, como professor (a quem o que mais custou foi deixar o ensino): “O bom professor abre livros aos outros, abre momentos aos outros. E eu tive alunos muitíssimo dotados, o que foi um grande privilégio: saber que eles são mais dotados do que eu próprio.”

sábado, 12 de novembro de 2011

Jorge Figueira de Sousa, a homenagem para o livreiro

O Luís Guerra e o Manuel Medeiros arrancaram com a ideia. Que rapidamente alastrou. É uma “carta aberta” das gentes do livro, dirigida a personalidades da vida política portuguesa, chamando a atenção para a necessidade de ser homenageado o livreiro Jorge Figueira de Sousa, da Livraria Esperança (do Funchal), nos seus 80 anos, a acontecerem em 21 deste mês. O início da mensagem é a justificação desta lembrança:
«No próximo dia 21 de Novembro de 2011 o livreiro Jorge Figueira de Sousa, da Livraria Esperança - 'primeiro estabelecimento comercial no Funchal e na Madeira a vender exclusivamente livros' - completa 80 anos de vida.
Continuador de um sonho e de um projecto iniciado pelo seu avô, Jacintho Figueira de Sousa [1860-1932], e mantido pelo seu pai, José Figueira de Sousa [1899-1960], Jorge Figueira de Sousa, nascido no Funchal no dia 21 de Novembro de 1931, continua firmemente no seu posto e é para todos nós, 'gentes do livro', um exemplo de vida e uma figura que muito honra a classe profissional dos livreiros portugueses, por vezes tão esquecida, não obstante o lugar central que ocupa no que deveria ser um fundamental desígnio nacional: a promoção do livro e da leitura como alicerce de um País mais culto, logo mais justo, mais livre e mais feliz.»
Num tempo em que se deve defender o livro – porque assim se defendem muitas outras coisas – é pertinente que se valorize a dedicação a uma profissão em extinção (infelizmente!), é pertinente que se homenageie uma forma de exercer cultura.
Venha daí e associe-se à lista, que, no espaço de uma semana, já congregou uma centena de nomes, dos mais diversos sectores e do país inteiro! Jorge Figueira de Sousa, o livro e a cultura portuguesa merecem! Passe pelo Encontro Livreiro e torne-se mais um(a) do grupo!

Rui Serodio e a solidariedade vinda de Jenny Brice, do outro lado do Atlântico, graças à música

O desaparecimento da figura e da criatividade de Rui Serodio continuam a gerar reacções, algumas delas chegadas via net. Aqui está uma, vinda desde os Estados Unidos, de Jenny Brice, que partilhou com o Rui os gostos musicais.

Dear Mr. Joao Reis Ribeiro.
I am writing to share my grief in learning of the death of my dear friend Rui Serodio. I read your blog with the beautiful tributes to Rui and I just wanted to reach out to someone who knew and loved him.
I am a singer and songwriter from Bellingham, Washington in the US. Rui and I met on a music website called "New Age Music Circle" in May 2009. We wrote to each other almost daily for 2 1/2 years. In that time we shared our life stories, music, poetry, thoughts and humor and became very dear friends.
I last heard from Rui September 17th when he wrote to tell me he would be entering the hospital due to debilitating back pain. He assured me that he would contact me as soon as he was home again. After several weeks of no news I began to fear the worst, and my fears were confirmed on October 23rd as I searched the internet for any news of him. As I read his death announcement on the screen I was completely devastated. I can't begin to express the deep sadness I feel in having lost such a dear friend. He and I were kindred spirits and I miss him terribly.
Rui sent me close to 80 pieces of music in the time I knew him. He would send me his music and I would suggest titles, offer my insight and give feedback. It seemed his creativity was endless. We even collaborated on one piece of music that I wrote. I sent him a voice track and he created a piano version and put my voice behind it. I plan to release it sometime within the next year. I am attaching the last song he sent to me [trata-se de "Good night my baby", a última peça que o Rui terá composto e que enviou aos amigos no final de Agosto, já referida pelo Jorge Calheiros no texto de homenagem que aqui se publicou.]
Here is a link to another music website where Rui and I were linked as friends. It was called Conscious Creativity. You can see his name listed under my "Friends." I have also included my music website.
I sincerely hope that I have not imposed on you in any way by contacting you. It just felt important for me to reach out and let you know that I share in your sadness and love for the beautiful man that was Rui Serodio.
Respectfully,
Jenny Brice

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Rui Serodio homenageado em Setúbal

Rui Serodio deixou-nos há uns dias, apesar de ainda não se acreditar que sim, que foi mesmo verdade. Setúbal já lhe prestou algumas homenagens – a Câmara Municipal decidiu já inscrever o seu nome na toponímia e a Uniseti (Universidade Sénior de Setúbal) lembrou-o na festa de aniversário que ocorreu na semana passada e também hoje, quando atribuiu a uma das suas salas o nome do maestro, que foi fundador e professor da instituição.
Aqui ficam as fotografias a registar este último momento, devidas a Quaresma Rosa: uma, com a inscrição da placa que marca a sala; outra, com o reitor, Brissos Lino, no momento da homenagem.
Creio que seria também legítimo atribuir o nome de Rui Serodio a uma sala, numa das instituições públicas da cidade, onde pudesse haver sessões musicais, por polivalente que a sala fosse…

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Madeira: funcionários dispensados para verem a tomada de posse do governo

Lê-se e não se sabe se se deve acreditar ou não… Por cá, por Portugal, no continente, fala-se do fim de alguns feriados, independentemente de serem civis ou religiosos. E os vários responsáveis mostram-se disponíveis para tal. E percebe-se, claro.
Por lá, pela Madeira – que é Portugal, note-se! –, o senhor Jardim liberta os funcionários na tarde de amanhã para assistirem à tomada de posse do governo regional! Exactamente, como consta na edição online do Público: «O despacho assinado por Alberto João Jardim determina a dispensa ao serviço, a partir das 14h de amanhã, dos trabalhadores dos serviços públicos e dos institutos e empresas públicas sob tutela do Governo Regional. A ‘tolerância’ é dada para “permitir aos mesmos assistirem, pessoalmente ou através dos meios de comunicação social”, ao acto solene marcado para as 17h, na Assembleia Legislativa da Madeira, com transmissão em directo pelo centro regional da RTP.»
Quem paga a boda? E tem Portugal – nós, todos, continentais, madeirenses ou açorianos, portugueses – de suportar estas “jogadas”, de suportar este hiperbólico fair-play como se nada estivesse a acontecer? Não há forma de impedir estas coisas? Só temos de aceitar, aceitar, aceitar e... olhar para o lado, suportando isto como mais uma do senhor Jardim?

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Rostos (173)

Busto do picoense José Lourenço de Medeiros (1836-1914), na vila de Madalena, no Pico (Açores)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Memória: Silva Duarte (1918-2011)

Conheci Silva Duarte através do Manuel Medeiros, numa daquelas ações a que o Livreiro Velho me habituou na sua Culsete, já lá vão uns anos. Fiquei nessa altura a saber que o maior andersenista português era setubalense, com estudos e traduções de Hans Christian Andersen, o escritor e viajante que andou por Portugal em 1866 e que também esteve nas terras do Sado.
Li a biografia Andersen e a sua obra (Lisboa: Livros Horizonte, 1995) e li Uma visita em Portugal em 1866 (Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1984) e as Histórias e contos completos (Vila Nova de Gaia: Gailivro, 2005), uma e outras devidas a Silva Duarte, a primeira de sua autoria e as restantes, de Andersen, por si traduzidas.
Num dos poucos encontros que me foram proporcionados – acontecidos quando da Alemanha rumava até cá para ver a sua Setúbal e alguns amigos –, falámos do poeta limiano Feijó e da sua passagem enquanto diplomata pelos países nórdicos. E Silva Duarte, gentilmente, regressado a Würzburg, apressou-se a enviar-me pelo correio a sua obra António Feijó e a Suécia (Lisboa: 1961).
Já há uns anos que não o via, mas ia sabendo pelo Manuel Medeiros informações que davam conta do seu débil estado de saúde. Agora, que acabei de ler a notícia final (recuada a 23 de outubro), recordo o trato fino, uma sensibilidade enorme, um saber grande e a presença afável que revestiam o artista que era Silva Duarte. Gostei de o ter conhecido e, sempre que ler Andersen ou Feijó, terei de o lembrar.´
[foto: retirada de chapéu e bengala]

sábado, 29 de outubro de 2011

A "felicidade" dos 100 mil

O jovem sai da motorizada, tira o capacete e o inquérito sobre a felicidade surge. O clube? Não o faz feliz. A escola? Só o faz feliz nos intervalos. A namorada? Ainda não o faz feliz. Então o que o pode fazer feliz? Talvez uns 100 mil!
O desempenho é artificial, o anúncio é dos “25 dias Jumbo”, passa na televisão em horário nobre.
A gente vê e questiona-se. A cadeia de hipermercados só encontra a felicidade pelo dinheiro; não entende a felicidade pelas opções próprias ou pela vida aprendida com vitórias e com derrotas; não entende a felicidade valorizada pelo saber; não entende a felicidade da relação humana. E um jovem adolescente é empurrado para todo este mundo, aniquilando outros valores que não os do dinheiro… Nem sequer se levanta o véu de uma educação para o consumo, nada!
Uma sociedade que se interessasse consigo mesma teria já repudiado a história deste anúncio. Que pode ela esperar de jovens adolescentes que se vendem ao fascínio do dinheiro, desprezando o fascínio da formação humana? Entretanto, os dias felizes do hipermercado correm… enquanto o jovem vê a felicidade de contribuir para o anúncio dos 100 mil que não para ficar com eles… As sociedades têm os deuses que merecem, não é?

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Na agenda: sobre o "Diário", de Sebastião da Gama

Da memória e da escola

«(...) A memória parece ter andado arredada da escola. O aprender de cor adquiriu uma conotação negativa entre nós, porque foi sempre associado a aprender sem qualquer "ganho hedónico". Entendo que não há melhor forma de aprender do que de cor (de cuore ou com o coração), ou seja, com esforço. Estou certo de que este esforço se traduz na aquisição de alguns automatismos que libertam a memória para o recurso a outras estratégias mais elaboradas. Devemos por isso encorajar e ensinar as nossas crianças a usarem estratégias de memória (e.g., mnemónicas motoras, mnemónicas verbais, cantilenas, etc.).
Trazer a memória para a escola dando às crianças algumas armas cognitivas que lhes permitam usá-la sem esforço e valorizá-las por as adquirirem pode ser mais um pequeno passo no sentido da melhoria do seu desempenho escolar.»
Pedro B. Albuquerque. "É preciso levar a memória de trabalho para a escola?".
Em Causa: Aprender a Aprender. Col. "Questões-Chave da Educação".
Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos / Porto Editora, 2011, pg. 92.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Lembrar Rui Serodio (3) - Eu e o Rui, por Jorge Calheiros

Nunca gostei muito de escrever. E muito menos de escrever muito. Sempre fui mais dado, quando estudava, às Fisícas e Matemáticas. Mas hoje senti um enorme impulso para o fazer e partilhar com todos os que se derem ao trabalho de ler este texto aquilo que foi a minha convivência com o Rui Serodio.
Estaríamos em meados da década de 90 quando, através de um amigo do meu irmão, o Paulo Silva, conheci o Rui Serodio. O Rui estava a tocar num bar num Hotel do Montijo. Ficou desde esse momento claro para mim que era um executante brilhante.
Eu estava a desenvolver nessa altura um projecto para a criação e edição de karaoke em português e o contacto com o Rui vinha no sentido de ele poder colaborar na produção musical dos “covers” de que eu necessitava.
Fizemos umas tentativas, mas a coisa não resultou. Fiquei mesmo embaraçado sem saber o que lhe dizer, quando ouvi as primeiras provas. Iria perceber rapidamente que fazer igual ao que os outros criaram não era para o Rui.
E, com esta primeira experiência fracassada, foi começando aquilo que viria a ser uma amizade muito forte. O Rui foi, é, e será sempre um dos meus Amigos, daqueles que se contam pelos dedos de uma mão… e, às vezes, são dedos a mais.
Em 96 ou 97, já não me recordo, perguntei ao Rui: “Já tanta gente tem escrito, pintado, fotografado a Arrábida, mas nunca ninguém musicou a Arrábida. E que tal se o fizesses?”.
O Rui olhou para mim, algo surpreendido e disse-me: “Boa ideia! Vamos a isso!”
Eu, nessa altura, tinha uma empresa editora e um pequeno estúdio de gravação e disponibilizei-me para trabalharmos em conjunto. Ainda me recordo do primeiro dia de gravações em que o Rui entrou no estúdio, sentou-se ao piano e disse: “Vamos começar por colocar um RÉ”. E premiu uma tecla do piano eléctrico e manteve o som do Ré por vários minutos.
Tudo aquilo era novo para mim e pensei: “Um RÉ? Só isto?”
Assim nasceu a primeira obra que o Rui editou em CD, apenas com instrumentais seus, e que era para chamar-se ARRÁBIDA, mas que mudou o nome para SINTRA, pois acabou por ser editada pela Strauss Evolution e o nome SINTRA era mais adequado pela sua divulgação internacional. O CD SINTRA foi editado em 1998.
O Rui desenvolveu uma capacidade única de acompanhar poesia ao piano, improvisando e colocando as notas no local certo onde as palavras iam batendo. Fê-lo com muitos poetas e declamadores, ao vivo, durante toda a sua vida.
Quando em 1996 surgiu uma oportunidade de criar os fundos musicais para um CD de Sonetos de Bocage cuja produção foi da LASA-Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, o Rui mais uma vez demonstrou o seu enorme talento. O CD “SONETOS DE BOCAGE” saíu em 1996 e eu tive o previlégio de ter sido o Produtor Executivo.
O Rui não nasceu em Setúbal, mas os vários anos que viveu nesta cidade deram-lhe uma capacidade, aliada à sua enorme sensibilidade, de amar tudo o que tinha a ver com esta cidade. E tanto para ele como para mim o facto de não ter sido possível “cantar” a Arrábida era algo que nos angustiava.
Assim, começámos a preparar um novo CD, em colaboração com a empresa SAL, que, entre muitas outras actividades, tem diversos percursos pedestres na Serra da Arrábida. E nasce em 2001 o CD “Caminhos da Arrábida” com 9 temas sintetizados, muito influenciados pela música tradicional portuguesa, que sempre foi uma base de inspiração para o Rui. Este CD teve uma versão em Inglês denominada “Sounds of the Mountain”. Mais uma vez, tive o privilégio de ser o Produtor Executivo deste CD e acompanhar todo o trabalho criativo do Rui.
E cumpriu-se um desígnio: se Sebastião da Gama foi o poeta da Arrábida, Rui Serodio foi sem dúvida o músico da Serra Mãe.
O Rui adorava desafios, principalmente aqueles que punham à prova a sua capacidade de criação e de execução técnica. Um dia, depois de jantar e na minha casa, nas nossas longas conversas, perguntei-lhe: “Rui: serias capaz de contar 15 anos de história de uma empresa em música, ao piano?”. Com alguma estepefacção pela pergunta e afagando a barba esbranquiçada, respondeu-me: “Isso é muito giro... Vamos fazê-lo!”
E, durante 2 ou 3 horas, eu estive a contar 15 anos de história de uma empresa que eu tinha fundado e da qual era Presidente: a Setcom.
O Rui anotou numa folha A4 dobrada ao meio aquilo que lhe pareceu importante da vida da empresa. Em Novembro de 2001, nos estúdios Shangrilá, o Rui sentou-se ao piano e com apenas aqueles apontamentos na sua frente, criou uma obra musical com 3 partes, cada uma delas correspondendo a um período da vida da empresa. Tudo de improviso e gravado à primeira, sem “picagens” nem repetições. A parte mais curta tem 9:42. Isto demonstra a capacidade ímpar de improvisação do Rui. O CD saíu em 2 versões: uma, personalizada, para a SETCOM e outra com o título “Insights”.
Trabalhar com Rui na música e edição de discos era um prazer enorme. E, para mim, acompanhar de perto a sua genialidade era algo de indescritível.
O Rui, com toda a sua capacidade criativa fora do comum, era uma pessoa simples, humilde e por vezes até ingénua demais. Para ele, a amizade e amor pelos outros estava sempre à frente. E ouvia os outros. Eu funcionava para ele como uma espécie de consultor/produtor para a área do audio, para lhe dizer se as misturas estavam boas, se não havia ruídos, o que é que eu achava da estrutura de certos temas, etc. E que prazer eu tinha em lhe dar as minhas opiniões!
Mas a música e a poesia teriam de continuar juntas. Em 2006 e 2007, mais uma vez trabalhámos juntos na edição de 2 discos de poesia de Celeste Saiedi, editados pela minha editora, a JGC, e com a música de fundo, claro, do Rui.
Em 2007, o Centro de Estudos Bocageanos promoveu a edição de um CD com poemas de Bocage e com a música do Rui, “Perscrutando a inquietude”, no qual também colaborei, tendo a JGC sido a editora.
O nosso último trabalho em conjunto, materializado na forma de CD foi o “ Meu caminho é por mim fora”, um CD promovido pela Associação Cultural Sebastião da Gama, com textos e poemas do poeta da Arrábida e música do Rui Serodio. Mais uma vez tive o grande privilégio de ter sido o editor e ter trabalhado na mistura e masterização do CD. O disco foi editado em 2010.
A produção musical e criatividade do Rui eram inesgotáveis. Ele estava constantemente a compor e a enviar aos amigos os MP3 das suas obras. O que o Rui mais desejava era que as pessoas o escutassem e comentassem os seus trabalhos musicais.
Adaptou-se de forma ímpar à produção musical assistida por computador, o que é de todo invulgar para alguém que nasceu nos anos 30 do século passado.
Ao longo dos anos em que o conheci, o Rui passou musicalmente por várias fases. Depois do uso dos sintetizadores, que podem ser reconhecidos nos trabalhos SINTRA e CAMINHOS DA ARRÁBIDA, o Rui acabou por se dedicar à música de apenas piano, ou quando muito com umas mantas de cordas por detrás, mas tendo o piano como instrumento base e solista. E, com piano, o Rui era imbatível...
Estávamos a preparar um novo CD: “The Mystic of the Piano”. Ele já tinha tudo pronto, faltando apenas algum trabalho de estúdio de mistura e masterização e composição gráfica.
Aliás, alguns dos temas que ele escolheu para o alinhamento até já são conhecidos de muitos dos seus amigos: “An old fashioned pianist”, “Arrábida minha”, “Theme waiting for a movie”, são apenas alguns exemplos.
Na generalidade destes temas ao piano, encontramos uma carga nostálgica muito forte, uma combinação perfeita de linhas melódicas muito simples, pegando em temas de meia dúzia de notas e desenvolvendo esses temas sobre harmonias complexas e brilhantes como ele sabia fazer.
Eu sei que o Rui queria muito este CD. E vai tê-lo, pois eu irei tratar da sua produção e divulgação, para que o maior número de pessoas possam conhecer a arte impar e invulgar de um homem que adotou Setúbal como a sua cidade, e à qual deu muito: a sua ligação à Universidade Sénior de Setúbal e como maestro do coro Afina Setúbal, da CMS, são apenas alguns exemplos.
No dia 22 de Outubro de 2011 o Rui partiu. De uma forma que teve tanto de brutal como de inesperada.
É lugar comum falar bem das pessoas quando partem. Parece que as pessoas ficam maiores e mais importantes do que eram antes da Grande Viagem. Passam a ter o seu nome em ruas ou praças e alguns até passam a estátuas ou bustos.
Mas o Rui já era enorme antes de partir e eu tive o raro previlégio de privar com ele, de trabalhar com ele, de rir com ele, ou, simplesmente, de conversar.
O meu Amigo partiu. A última vez que estive com ele foi no dia 15 de Setembro de 2011 na merecida homenagem na CMS com a entrega da Medalha da Cidade. Que bom ele a ter recebido antes da sua partida!... Nesse dia, vi-o muito debilitado, mas nunca imaginei que o destino seria tão brutal como foi.
Eu e o Rui éramos grandes amigos. Não daqueles que as tecnologias vieram banalizar, mas daqueles que estão sempre num lugar muito especial dentro do nosso coração.
Por vezes, o Rui parecia um Pai. O seu cabelo e barba branca, a sua disponibilidade, a sua compreensão. Outras vezes era o irmão mais velho. Não é por acaso que na intimidade ele me tratava por Mano Novo e eu o tratava por Mano Velho... Outras, parecia um irmão mais novo... A sua simplicidade, às vezes roçando a ingenuidade, própria dos grandes seres humanos como ele era, levava-me a dar-lhe conselhos e sugestões como fazemos aos irmãos mais novos.
Ficou muita coisa por fazer. Fica sempre, é verdade, mas neste caso falamos de coisas concretas, de projectos que ele tinha e onde eu estava sempre disponível para colaborar.
Mas uma coisa é certa: tudo o que estiver ao meu alcance vou fazer, no sentido de dar cumprimento ao que o Rui mais queria: que as pessoas conhecessem a sua música. O site www.ruiserodio.com foi feito e mantido por mim. Irei trabalhar neste site no sentido de o tornar o grande portal da obra de Rui Serodio.
Só uma coisa não consigo fazer. Nem eu nem ninguém. Tocar e criar música como ele o fazia.
Tenho comigo centenas de temas que ele criou e me enviava por email. Alguns são apenas ensaios; outros, obras lindíssimas. Vou tratar de todo este espólio e dar , cumprimento à sua vontade, muitas vezes expressa, e a mim particularmente.
Um deles foi enviado em 30 de Agosto de 2011. Provavelmente o último que ele criou. Deu-lhe o nome GOOD NIGHT, MY BABY... inquietante, este nome...
O Rui partiu mas não morreu. Enquanto a sua música for por todos nós escutada e apreciada, ele estará sempre vivo nas nossas almas e nos nossos corações.
Apenas partiu... só isso...
Até logo, Mano Velho!
Jorge Calheiros

Lembrar Rui Serodio (2) - Tributo a Rui Serodio, por José Luís Nobre

Sábado, 22 de Outubro de 2011.
Ainda a consciência estava trôpega, espreguiçando o corpo e adaptando a mente aos firmes traços da realidade, já o telefone tocava. Não conhecia o número mas atendi. Tinha acabado de dizer bom dia à vida, do outro lado contaram-me da morte de um amigo. Desliguei, senti uma súbita pancada na cana do nariz, foi essa a sensação, e os soluços compulsivos que se seguiram esclareceram-me do que já suspeitava há algum tempo – o Rui Serôdio não era só um amigo. Era meu avô, pai, o tio que ensinava música e coisas da vida, e ainda o irmão mais novo (!) que recebia conselhos, atento, como um miúdo que não se cansava de tentar aprender a desenlear os nós tramados do amor e da amizade.
As causas do sucedido deixaram-me estupefacto pois ele teve o extremoso cuidado de poupar os amigos a qualquer sobressalto, e por isso o choque foi muito maior para todos. Para o Rui seria desnecessário que andássemos por aí preocupados, ele sabia que havíamos de receber notícias brevemente, fossem elas boas ou más.
Com ele percorri um caminho de trabalho, de estudo, de amizade e de generosidade cultural que muito me enriqueceu artisticamente e pessoalmente. Estou-lhe grato pelo que aprendi, honrado e orgulhoso pela nossa parceria, e devassado pela sua perda – o mundo (Cidade de Setúbal naturalmente incluída) ficou com menos um homem bom.
Domingo, 23 de Outubro de 2011
Mais de uma centena de amigos, familiares, conhecidos e admiradores juntaram-se no Cemitério da Paz para a cerimónia do derradeiro adeus.
O Outono, que pedira emprestado o sol que o Verão desperdiçou, parecia apreensivo como se de ontem para hoje, tal como os presentes, tivesse bruscamente alterado os seus humores. A cerimónia prosseguiu, rezou-se, vimos desaparecer o caixão coberto pela terra. Chorámos, e o céu juntou-se a nós no pranto.
Rui Serôdio, Eterna Amizade, Eterna Saudade!
José Nobre

Lembrar Rui Serodio (1)

Rui Serodio é um daqueles nomes que quero não esquecer. Pela amizade que me dispensou, pelo que lhe vi dar pela arte, pela atitude humana e cívica que sempre demonstrou, pela rota que sempre o vi seguir. Quero ter memória para o lembrar e para ouvir a sua música.
Esta introdução vem a propósito de dois testemunhos que recebi, originários de duas pessoas que privaram com o Rui - o actor José Luís Nobre, do TAS (Teatro Animação Setúbal), e o empresário e produtor Jorge Calheiros. São duas pessoas de quem o Rui sempre me falou com a maior veneração, ainda antes de eu ter conhecido pessoalmente qualquer um deles. Depois, acabámos por nos cruzarmos no projecto conjunto do cd com os textos de Sebastião da Gama e, a partir daí, lançar pontes de amizade.
Partilho com os leitores esses dois testemunhos. Por aquilo que eles são de retrato e de sentimento e porque, provavelmente, encontrarão eco no que muitos dos amigos do Rui também sentem e sentiram.

sábado, 22 de outubro de 2011

Memória – Rui Serodio (1937-2011)


A notícia chegou brutal: morreu o Rui. Do lado de lá, o Jorge Calheiros falava emocionado. E foram uns segundos de silêncio a tentar aceitar o destino… ou o abismo.
Há dois dias, enviei-lhe uma mensagem a saber da sua saúde e a dizer-lhe que tinha saudades de nos encontrarmos. Não respondeu. Como já não respondia a vários amigos há algum tempo. O estado de saúde não deixava…
Logo que o Jorge acabou de me dar a notícia, telefonei a outros amigos comuns. Espanto, desgosto, dor. Refugiei-me a ouvir, porque a tinha no carro, a música “Arrábida Minha”, que o Rui Serodio integrou no cd “The mystic of the piano”, homenagem que ele merece.
Tenho saudades do Rui. Muitas. Do seu humor fino. Do seu saber musical. Da sua vontade de animar projectos. Dos seus sonhos envolvidos em pautas e em sonoridades afáveis. Do seu estar. Do nunca saber dizer que não. Do seu olhar sobre a música – deixou registado no seu blogue: “Passei toda a minha vida integrado no mundo activo da música e estou intensamente ligado ao passado. A minha música pode parecer, muitas vezes, enigmática, mas é, frequentemente, o reflexo de duas formas de arte combinadas, a poesia e a pintura.”
Fico satisfeito porque tive a oportunidade de finalizar um projecto com ele – o do cd “Sebastião da Gama – Meu caminho é por mim fora”, cuja música é de sua autoria. Um dia, telefonou-me a dizer algo como: “Tenho arranjado música para muitos poetas e sinto-me mal por ainda não ter musicado Sebastião da Gama. Vamos fazer esse projecto?” Disse-lhe logo que sim e só depois fui ouvir os meus colegas da Associação Cultural Sebastião da Gama. Todos concordaram e o projecto começou a andar. E chegou a bom porto. A nossa satisfação foi grande. E a do Rui também, mesmo porque sentia que pagava um tributo ao poeta da Arrábida!
Tenho saudades do Rui, tenho. E vou continuar a ouvi-lo, porque ele merece. E a nossa amizade também. Fico contente por ter conhecido o Rui!