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quinta-feira, 27 de março de 2025

António Marques: pela Liberdade, contra a Guerra

 


A guerra, na sua faceta mais brutal, percorre todas as páginas do livro A Grande Porta de Kiev, conjunto de treze poemas assinados por António Marques (n. 1956), em edição do sesimbrense Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz, textos em que, apesar de uma clara intenção de apregoar a paz, o leitor é posto perante a inevitabilidade: “Desde os tempos sem rasto ou memória / Que dizimamos e aniquilamos civilizações / Não me venham com conversas retóricas e sermões / Desde que me conheço é sempre esta a história / Treinado pelos assírios lutei por gregos e romanos / Sob a cruz templária assaltei e matei em Jerusalém / A coberto de navegações na morte fui sempre mais além / Em guerras santas dei caça a cristãos e muçulmanos / Fiz a guerra dos cinco dos dez dos cinquenta e dos cem anos / cavaleiro armado e sagrado na verdade simples mercenário / Sem piedade ou perdão aos inimigos fui temerário / Com armas primitivas ou modernas nunca temi senhor / Não me tornei assim agressivo e bélico como sou, agora / Cego e sem piedade não é coisa de agora vem de outrora”.

A citação é longa, vem quando o livro já vai a mais de meio, mas revela o desabar de toda a esperança, o gene da revolta contra o estado de coisas das civilizações, na voz de um eu que se assume combatente contrariado pela paz, perdedor, revoltado, num caminho sem sentido, acompanhado pela barbárie, em que “o que vai ficar são destroços e entulhos / Tijolos e pedras manchadas pelo sangue dos heróis / Anónimos reduzidos a pó e ao esquecimento / Entre os aços retorcidos pelo calor da batalha / Semeados pelos gelados campos eslavos”.

A destruição provocada pelo confronto bélico, cujas causas nem sempre são conhecidas, esbarra no sentir primeiro do poeta — “Sou avesso às guerras, justas ou injustas, todas mortais / Aqui, neste lugar, ou em qualquer outro”, ideia complementada mais adiante, ainda no primeiro poema: “Só a paz desejo, é o meu combate, o meu desígnio / A luta pela honra e pela liberdade”.

Todo o livro corre sobre a pele da sobrevivência num mundo em destruição, sempre a aguardar o que pode ser “o derradeiro combate”, numa ansiedade resultante da luta entre a raiva e a angústia, entre a dor e o amor (lembrando mesmo o episódio bíblico da luta fratricida — “Desde os tempos de Abel / Que morremos às mãos de um irmão”), entre o “sacrifício dos ideais”, o infortúnio e a hipocrisia, conflitos denunciados pela palavra poética — “Fornecemos sempre munições, víveres e provisões / Alimentamos o ódio dando expressão à raiva / Promovemos recolhas de bens e dinheiro / Doamos armas de todos os tamanhos feitios e gerações, / Numa hipócrita solidariedade humana”. A revolta é intensa e dela faz o poeta a sua prova — “Escrevo em paredes e nos muros das vilas e das cidades / O desconforto e a revolta // NÃO À GUERRA / Esta e qualquer outra // Não me ouvem? Porra!” 

Atrás do título “A Grande Porta de Kiev”, há um percurso artístico forte, personalizado em várias estéticas e por diversos nomes — se a primeira vez que foi utilizado se deveu ao arquitecto e pintor Viktor Hartmann (1834-1873), autor do desenho de uma porta comemorativa para Kiev com vista a assinalar o atentado falhado contra o czar Alexandre II (em 4 de Abril de 1866), nunca construída, a verdade é que uma exposição da obra de Hartmann em S. Petersburgo, no ano seguinte ao seu falecimento, constituiu o pretexto para o compositor Modest Mussorgski (1839-1881) construir uma peça para piano intitulada “Quadros de uma Exposição” a partir de dez telas, sendo uma, a última, “A Grande Porta de Kiev”. A composição musical ganharia projecção a partir da orquestração feita em 1922 por Maurice Ravel (1875-1937) e o tema voltaria a passar pela pintura através da criação de Wassily Kandinsky (1866-1944), que, em 1930, foi autor da tela com o mesmo título, reprodução que ilustra a capa do livro de António Marques.

A porta de Kiev, “a grande porta de Kiev”, afigura-se como o marco temporal e de esperança “da última e decisiva hora / Onde a verdade e a vida / Prevalecerão sobre / A mentira e a morte”, com uma força simbólica que José Ramos-Horta assinala na introdução ao livro: “para a defesa da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, é necessário manter a grande porta de Kiev aberta ao mundo”. Assim, a poesia edifica o monumento que homenageia os que tombaram e lembra que a vida é possível...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1497, 2025-03-26, pg. 8.


quinta-feira, 18 de junho de 2009

"Arte para uma cultura de segurança", em Setúbal

“Arte para uma cultura de segurança” – Assim se chama a exposição que, desde terça-feira, está patente no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS), em Setúbal, organizada pelo próprio Museu e pelo Governo Civil de Setúbal.
Nas palavras de Eurídice Pereira, Governadora Civil, que abrem o catálogo da exposição, pretende-se que sejam alteradas “práticas menos consonantes com as exigências da salutar convivência colectiva e alertar a população para temáticas que exigem a mobilização de esforços colectivos, como é o caso da sinistralidade rodoviária e do combate e prevenção dos fogos florestais.” E uma e outra situações são sentidas, de forma contundente, na nossa região: só em 2008, nas estradas do distrito, morreram 77 pessoas; por outro lado, se pusermos os olhos da memória sobre o que foi o incêndio na Arrábida em 2005, talvez fiquemos com o ar de preocupação acentuado, tanto mais que, ao que parece, cerca de 80% dos incêndios que nos amedrontam têm origem humana não criminosa… Números para pensarmos, claro!
A exposição passa por quatro núcleos: “Imagens para um álbum do desassossego”, uma foto-reportagem assinada por António Marques sobre o incêndio na Arrábida, com momentos fortes de destruição e de restauro da Natureza, de paisagem soturna e de paisagem vivida; “Arrábida: a vida secreta da serra”, com fotografia de José Costa, na variedade macro, captando insectos que fazem a vida da Arrábida e nos surpreendem vindos dessa labuta silenciosa, minimizada, mas constante e perturbadora; “Escalas”, em fotografias de Rosa Nunes, em que o corpo feminino e o relevo da serra se medem, num roteiro que começa com a música do silêncio e acaba com o restolho que alberga hipóteses de vida, depois de o olhar passar também pelos estados de agressão à serra; “Morte ou vida na estrada: a escolha é sua”, com pintura de Ana Isa Férias, Luís Valente e Rita Melo, três manifestações que outro grito podem ser contra a morte facilitada e em favor da vida preservada.
Diga-se ainda que esta exposição, que vai estar até Setembro, surge também na sequência de parcerias e do compromisso estabelecido aquando da assinatura, em 2008, da Carta de Europeia de Segurança Rodoviária. Ao visitante é oferecida também a possibilidade de se comprometer com a cidadania rodoviária ao assinar um documento em que assume contribuir para a segurança e entender esse projecto como “desafio comum”.
Como as mensagens são fortes nesta exposição, por onde passa ainda a palavra, junto o texto de Fernando Gandra, intenso na sua verdade:

[reproduções a partir do catálogo da exposição: duas fotografias de António Marques; "E agora...", de Luís Valente (2009); "Promessa" (excerto), de Rosa Nunes (2009)]