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quarta-feira, 27 de março de 2024

Motorizações nos barcos sesimbrenses lembradas por João Aldeia



“Para além da materialidade das embarcações, das velas, dos apetrechos de pesca, dos motores, das sondas e radiotelefones, o património cultural marítimo é constituído pelo modo como se utilizavam esses equipamentos: como se velejava, como se remava, como se pescava, e ainda pelos saberes, crenças, rituais, tragédias, humor, etc.” Esta afirmação, justifica-a João Augusto Aldeia com a necessidade da criação de um Museu Imaterial do Mar de Sesimbra, projecto para o qual o seu livro Primeiras motorizações de embarcações de pesca de Sesimbra (1926-1932) (ed. Autor), há dias apresentado, é um digno contributo, resultante de passeio aturado pelos arquivos sobre as embarcações e de testemunhos recolhidos na memória daqueles que, directa ou indirectamente, participaram na faina sesimbrense.

Sesimbra é uma das terras que integram um roteiro camoniano feito a partir d’ Os Lusíadas, obra que a menciona no momento em que, no canto III, Vasco da Gama conta a história de Portugal ao rei melindano, evocando as conquistas de Afonso Henriques e referindo-se à “piscosa Sesimbra”. Essa adjectivação, resultante da abundância de peixe, foi o marco de um percurso que, no século XX, encontrou o revés, levando o pescador local a reinventar a profissão até aos limites do possível, ao mesmo tempo que se gera a ideia de em Sesimbra existir um dos maiores portos de Portugal - criticamente, anota João Aldeia: “pode ser que o seja estatisticamente, mas não é com o peixe das suas águas nem com a qualidade que outrora lhe deu prestígio.”

Mesmo por estas contingências que o passar dos tempos trouxe, vale a pena organizar a memória, falando dos marítimos, dos carpinteiros navais e dos mecânicos que deram identidade ao local através da arte da pesca. Nessa tarefa, valoriza este livro apontamentos sobre essa arte, pugnando pela divulgação da sua história e avançando com possibilidades interpretativas para a construção dessa mesma identidade - curiosa é a aproximação semântica que o autor faz entre a expressão “vela de espicha” e a designação Espichel, que dá nome ao cabo, mostrando mesmo a sobreposição da vela com a carta orográfica local.

Assunto como a motorização das embarcações sesimbrenses, iniciada em 1926, leva-nos a um olhar sobre as adaptações feitas - passar dos remos para o motor, publicitar os equipamentos, alterar aspectos das embarcações (no cavername, por exemplo), novas técnicas a dominar, diferentes graus de especialização nas companhas, formas de resolver problemas resultantes da transformação (como o da interferência dos motores sobre a agulha das bússolas, por exemplo), novos desafios de segurança (não escapa à memória o incêndio a bordo da barca “Gemeniana”, em 1928, que usava um motor de automóvel adaptado, e consequente naufrágio da mesma), formas de abastecimento de combustível, entre muitas outras.

João Aldeia põe o leitor em contacto com mais de duas dezenas de protagonistas da história do tempo abrangido, actores neste processo de motorização, nascidos entre 1869 e 1905, extremos ocupados por dois membros da mesma família, pai e filho: Zózimo das Chagas e Zeferino das Chagas, respectivamente. Quanto às embarcações, na ordem da meia centena, são apresentadas no seu breve historial, com nomes ricos do ponto de vista simbólico - com predominância dos nomes femininos -, havendo uma delas, “Luz do Calvário”, que teve a sua companha imortalizada na literatura pela pena de Raul Brandão, em viagem de Fevereiro de 1923, relatada na obra Os Pescadores (publicada nesse mesmo ano e com nova edição no ano seguinte).

O livro de João Aldeia, que se percebe ser resultado de um empenho pessoal e emotivo (dedicado ao pai, que foi serralheiro mecânico e trabalhou para a frota pesqueira local), conta uma história que é longa e cheia de coisas a descobrir, numa linguagem acessível, que permite o (re)encontro com rostos que fizeram Sesimbra e chama a atenção para um sector importante nas dinâmicas locais que tem sido objecto de pouco estudo, não só em Sesimbra mas também na região. A motorização dos barcos é o pretexto deste estudo, mas é também uma chamada de atenção para a memória.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1268, 2024-03-27, pg. 2.

 

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Manuel Mendes na rota do Douro



“A terra e os homens reduzi-os à fruste expressão da arte que é meu ofício. Apenas uma molhada de singelas páginas de ‘roteiro’, colhidas pelos montes, ao sabor do acaso, a que à falta de melhor chamei ‘sentimental’, decerto por me haver tocado o coração quanto vi no meu deambular por essas serranias e esse prodigioso rio.” Assim Manuel Mendes (1906-1969) apresenta o seu livro Roteiro Sentimental - Douro (1964), o primeiro de uma trilogia que manteve a expressão “roteiro sentimental” no título, conjugando viagem e afecto pela via da escrita.

São quinze crónicas produzidas entre 1961 e 1963, inspiradas pela paisagem duriense, fortemente dominadas pela figura humana, sofrida e olhada de uma perspectiva de que não está alheio o neo-realismo - em São Salvador do Mundo, perante a dificuldade de exercer o cultivo no alcantilado da paisagem, o viajante anota: “Com assombro e com angústia, fica-se a pensar no destino desta mísera gente, na sua existência de bichos abandonados e bravios”, numa serra que é “teatro das dores e infortúnios deste homem tão indigente como heróico, diante de cujo trabalho e sacrifício temos de nos respeitar com respeitosa admiração.”

Manuel Mendes não se deixa impressionar apenas a partir do longe e a sua curiosidade leva-o a demandar os aspectos da vida naquele cenário que escorre desde Barca de Alva até ao Porto, com pormenores do quotidiano humano. Exemplo perfeito é o registo “Douro abaixo”, a mais longa crónica, relato da descida do Douro desde Pinhão até ao Porto num barco rabelo, diálogo com a Natureza e com os homens, dando conta do vocabulário específico dos “marinheiros” do rio e da sua arte, aproximando o leitor das conversas do arrais, o mestre Colino, homem que vai explicando e se sente a entrar para a história, não querendo que o ouvinte perca pitada e advertindo o viajante: “Pegue no livrinho e assente!” À mistura, são tecidas considerações sobre o que viria a ser o amargo futuro destes homens e desta região por razões tão diversas como a preferência por outros meios de transporte do vinho ou o papel dos ingleses sobre a economia local.

Estas viagens são pretexto para evocações de figuras como Camilo Castelo Branco (que andou fugido por Sabrosa cerca de 1848), Barão de Forrester (o inglês que pugnou pela qualidade do vinho do Porto, desenhou um mapa do Douro e acabou afogado no rio num acidente de barco), Fanny Owen (a jovem protagonista de uma história de amor dramática), Aquilino Ribeiro (cuja obra “será por longo tempo recordada”), Guerra Junqueiro (na visita a Quinta da Batoca, nas imediações de Barca de Alva) e Raul Brandão (no derradeiro texto, em olhar sobre a Cantareira, onde o Douro tem a foz).

Em torno do rio, há também a oportunidade para a lembrança do que foi a praga da filoxera no século XIX (lembrada pelos “mortórios” na paisagem), da destruição das cheias (sem se saber se “é o rio que transborda” ou “as coisas que por si irremediavelmente se afundam”), do movimento da vindima (e do retrato social dos homens e mulheres que ali labutam), da arte dos pedreiros fixadores dos socalcos com a participação das mulheres, dos trabalhos durante o inverno. E há também a evocação do momento de festa que é consoada (e da “roupa velha”) ou dos sabores, como as histórias em torno da alheira.

A dado passo, classifica Manuel Mendes estes seus escritos como “páginas de estudo e evocação”, resultantes de “empenho do espírito, amor à cultura”. E o leitor não pode deixar de se impressionar por estas telas que eternizam momentos do passado da região duriense, talvez indispensáveis para a fixação da identidade.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 966, 2022-11-23, pg. 9.


quarta-feira, 25 de maio de 2022

Manuel J. Palmeirim e a poesia que Sesimbra tem



Em 1963, iniciava-se a colecção literária “Poesia Sesimbrense”, patrocinada pelo jornal O Sesimbrense, com a publicação de 7 Poemas de Sesimbra, de Manuel J. Palmeirim, colaborador habitual daquele periódico, em cuja nota introdutória a obra é apresentada como homenagem a dois poetas da terra, Gilberto Cerqueira Pinhal (Gil do Mar) e José de Andrade Júnior (Zé Preto), ambos falecidos na casa dos vinte, em 1951 e em 1948, respectivamente, revelando-se ainda que três dos poemas tinham já sido publicados n’ O Sesimbrense, subscritos pelo pseudónimo de Tristão Sesimbra.

Abre o livro uma citação de Os Pescadores, de Raul Brandão, excerto do registo dedicado a Sesimbra, de 1923, forma de homenagear quem talvez mais emotiva e realisticamente escreveu sobre os pescadores na literatura portuguesa, quadro que se cruza com o poema “Pesca”, canto da emoção e da alegria do pescador.

“Sesimbra” é o primeiro poema, louvando o sítio, congregando a pesca, os chamadores, a lota, o poente, o risco das tempestades, o lamento da dor, o baloiçar perigoso das ondas. O sofrimento e a dureza são contrariados no final por força do retrato lírico - “Tu ficas mais alta / cada novo dia: / se escondes a dor, / descobres poesia.” Em jeito de refrão, que compromete o poeta, todas as estâncias se concluem com os versos “Sesimbra é assim, / comigo e sem mim”, ainda que intercalados por um outro verso, retomado do início da estrofe. A paisagem surge também em “Castelo Velhinho”, glorificação da história da fortaleza, numa viagem pelo tempo, ora personificando a pedra como testemunha dos feitos, ora fantasiando visões de momentos do passado, com um refrão que tonifica o tempo (“Corre, corre o tempo, sem parar. / Traz contos e lendas para nos contar.”) e um final algo crítico e disfórico - “Mudaram-se os tempos. As guerras de agora / São inda piores, mais maquiavélicas. / Heróis não existem. Deitaram-nos fora / Os inventos novos, novas armas bélicas.”

O espaço é valorizado em “Na estrada marginal”, recanto de “imensa ternura” numa “noite cálida”. Local de descobertas e contemplações, de afectos e seduções, ali, “pares de namorados arrulham”, a noite torna-se cúmplice na sua “escuridão lasciva”, o marulhar das águas é “um ruído de beijos” e o poeta sente-se “em fogo”, descontrolado por intensa vivência. Também de espaço se trata em “Bairro dos pescadores”, povoado por “cubos alinhados / no alto do morro”, casario de onde brota o cansaço, a saudade, a dureza da vida, o desespero, tons que desaguam em desgosto e indignação - “O mar não dá peixe, / a casa é sem pão, / o ralho é comida. / Ai, quem não te deixe / outra profissão!... / Que raio de vida!”

A memória do amigo Gil do Mar, falecido “da mesma morte de Cesário Verde e de António Nobre”, corre no soneto “Desalento”, momento de rejeição até ao desfalecimento e à recusa - “Prendem os pés infindos lamaçais. / E é tudo um chavascal imenso e escuro / Neste mundo ruim, selvagem, duro!” Contrariando este pesar, o livro finaliza com “A lenda do Senhor Jesus das Chagas”, evocação do aparecimento do salvador no meio de procela, num “quatro de Maio igual a tantos mais”, data associada ao sofrimento e à dor e à “titânica luta” quotidiana levada a cabo pelos pescadores. Imagem de serenidade, “assim veio a Sesimbra o bom Senhor das Chagas, / que ainda hoje acalma, ao pescador, as vagas”.

Pelos versos de Palmeirim passam a glória e o desespero, a história e a humana fragilidade, num tom lírico a que não são alheias temáticas tradicionais na literatura portuguesa.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 855, 2022-05-25, p. 9.


quarta-feira, 17 de março de 2021

Raul Brandão: o mar como paleta



"Quando regresso do mar, venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa". Quem assim escreve é Raul Brandão em Os Pescadores (1923), livro de descrições e narrativas, de reportagens e de memórias, "apontamentos rápidos" num cenário apelativo - "esta paisagem - mar, rio e céu - entranhou-se-me na alma, não como paisagem, mas como sentimento", confessa, redesenhando o universo numa quase trindade. 

As recordações infantis não andam arredias quando do mar e dos homens se fala, pois conhecer as pessoas ligadas ao mar, suas forças e fraquezas, não lhe é tarefa difícil - "sento-me nos degraus da minha velha casa e sei a vida toda desta gente". A vetusta idade da casa deixa transparecer a figura do avô, personagem a quem dedica o livro e de quem Brandão relata uma morte eufemística: "Meu avô materno partiu um dia no seu lugre; minha avó esperou-o desde os vinte anos até à morte, desde os cabelos loiros que lhe chegavam aos pés, até aos cabelos brancos com que foi para o túmulo".

Toda a escrita em Os Pescadores é uma desnudação do mar, dos mais diversos ângulos, incluindo o humano. Importante quanto aos pescadores é a referência ao nome de muitos deles, sinal da proximidade estabelecida, para além de citar muitos nomes de barcos, o instrumento de trabalho que os simboliza. É com carinho que os homens do mar são tratados, por vezes revelando-lhes uma certa inocência, a denotar uma relativa fragilidade. Com eles, estão sempre as mulheres, repletas de predicados abonatórios, destacando-se o trabalho e o papel que desempenham, mas também a tragédia que lhes está cometida ao terem de aguentar em terra todos os desgostos de que o mar é responsável. Ao mesmo tempo que o mar é a fonte da inspiração máxima para escrever a paisagem, é também a ameaça permanente, a morte liquefeita.

Em defesa destes homens e mulheres, é criticado um certo selvagismo existente no universo da pesca: pelo Estado, ao abandonar as populações à sua sorte; pelos proprietários que vegetam na capital, alheios ao sofrimento; pelo lucro fácil dos industriais, ao desprestigiarem a pesca artesanal, gerando desequilíbrio na Natureza - "cultivar o mar é uma coisa - é ofício de pescadores; explorar o mar é outra coisa - é ofício de industriais". 

As alusões à pintura e à tela são vastas. "O que eu queria dar só o podem fazer os pintores", escreve. As duas cores mais utilizadas são a azul e a verde, a primeira em quantidade maior, ambas para a qualificação do mar e da terra, vestidas de imensas tonalidades. Mas muitas outras cores surgem no espectro brandoniano, numa paleta inesgotável nas combinações. "Tenho a alma a escorrer tintas estranhas", regista. A aproximação a Setúbal é um exemplo: “onde o mar atinge a perfeição é em Setúbal. Em Setúbal é imaterial. Sonha ao pé da estrada que vai a Outão, e reflecte na água cismática a sombra avermelhada dos montes, a grande curva voluptuosa com a Arrábida por pano de fundo. Ali sente-se que a água anda presa à baíazinha, a Outão e à serra. Contemplam-se e não se podem deixar. O mar não tem consistência: não é o verde do norte, não é o caldo azul do Algarve - é poeira e luz.”

Datado de 1923, Os Pescadores mereceu quatro edições durante o primeiro ano. Razões favoráveis são a fácil leitura, a galeria de tipos e de vistas, a proximidade humanista à epopeia destes homens e mulheres e a sensibilidade pictórica na transposição para a literatura.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 581, 2021-03-17, p. 10


sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Castelo do Neiva - A comunidade piscatória retratada por Abel Coentrão



Há reportagens que nos surpreendem pela positiva. Aliás, deviam sempre surpreender, pois a reportagem é o caminho entre o jornalismo e a literatura, assim ficando sempre o desejo de que uma reportagem seja uma obra de arte, mesmo se pequena...
Hoje, ao ler uma reportagem do Público, de imediato me veio o nome de Raul Brandão por causa da sua obra Os Pescadores (1923). Estou a referir-me à peça que Abel Coentrão assina no “P2” de hoje, entre as páginas 1 e 3, intitulada “Em Castelo do Neiva há um barco chamado Esperança”.
A delicadeza e o conhecimento com que o repórter entra na peça é inebriante e denota uma boa preparação e sensibilidade. Fala-se das pessoas, dos seus problemas, da pesca, do papel das entidades, dos receios, da vida, daqueles que olham o mar tentando adivinhar-lhe a emoção, oscilando o vocabulário ligado ao mar com o sentimento, a descrição e o discurso reproduzido. Fala-se de um modo de viver, acreditando na esperança, jogando metaforicamente com o nome da embarcação.
É lindo de ler este texto de Abel Coentrão. E assalta logo a vontade de ir até à Pedra Alta, ali em Castelo do Neiva, olhar o rio (Neiva, claro) e o Atlântico, correr a memórias da infância em que, da praia da Amorosa, íamos à do Castelo para ver o movimento dos barcos e dos pescadores.
Creio que Raul Brandão, na sua obra Os Pescadores, não fala de Castelo do Neiva (não posso agora confirmar), muito embora escreva sobre a costa norte entre Caminha e Póvoa de Varzim. Mas, se fosse possível, Brandão iria agora ao Castelo, mesmo que fosse apenas para ver se Coentrão não o teria lido...

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Lembrar Raul Brandão a propósito da sardinha (que, assada, passou a ser uma das 7 maravilhas gastronómicas portuguesas)

[foto: O Setubalense, de hoje]

Para a cidade do Sado, a sardinha tem servido como passaporte e o facto de ter havido grande envolvimento na promoção da sardinha para o concurso das sete maravilhas da gastronomia portuguesa é disso prova recente. Mas podemos lembrar outros eventos: por finais de Julho de 2001, Setúbal esteve presente na quarta edição do festival "Les Arts Dînent à l'Huile", que se realizou na cidade francesa de Douarnenez, na Bretanha, um evento que foi divulgado pela organização sob o lema "se as sardinhas pudessem falar, elas descreveriam os portos do mundo...". Refira-se a propósito que Douarnenez (apresentada por Noel Graveline como a primeira cidade francesa "a querer preservar o património marinho do tempo dos antepassados") e Setúbal apresentam pontos de aproximação devidos às pescas: tal como a cidade do Sado, a cidade bretã teve porto e indústria pesqueira desde a época da romanização e esteve ligada à produção do "garum", forma de conserva da época que também era exportada da região de Setúbal para a península itálica. Tendo também sentido o quase desaparecimento da sardinha no início do século XX, Douarnenez intitula-se hoje como a "capital europeia da conserva de peixe".
Mais recentemente, em finais de Maio do ano passado, foi a ideia da mega-sardinhada, que trouxe ao Largo José Afonso cerca de 10 mil apreciadores que se encarregaram de saborear, no tempo de oito horas, cerca de seis toneladas de sardinha.
O louvor da sardinha setubalense tem vários ecos na literatura portuguesa, mas é o nome de Raul Brandão que deve ser destacado a propósito.
A cidade de Setúbal atribuiu já o nome do escritor a uma rua, próxima de outras em que constam também nomes de autores portugueses, no Bairro Humberto Delgado. Além de nome importante na escrita, Brandão deixou alguns registos sobre Setúbal, especialmente no seu livro Os Pescadores, publicado pela primeira vez em 1923, e também na obra Portugal Pequenino, escrita em co-autoria com sua mulher, Maria Angelina, datada de 1929.
Aquilo que cativou Brandão para as paragens em Setúbal foi algo que faz parte da história da cidade desde há muito: o rio, o mar, a pesca e a sardinha, bem como as formas de vida que daí decorrem.
Na descrição da paisagem e das pessoas, a situação dos mais desfavorecidos foi tónica brandoniana - mesmo num texto de pendor impressionista e descritivo como aquele que domina o livro Os Pescadores, não pôde deixar de enviar "farpas" a uma administração pouco ecológica e pouco preocupada com a vida dos homens do mar: as queixas quanto à falta de sardinha eram muitas pelos anos 20, fenómeno que Brandão atribuía aos "vapores de arrasto", às traineiras que matavam "a dinamite", aos "barcos estrangeiros" utilizadores do carboneto, à falta de fiscalização e ao incumprimento dos regulamentos. Desiludido, ironizava: "Nós só temos um sistema bem organizado - o da destruição". Sem esperança, acrescentava, em tom apocalíptico: "é de prever que dentro de cinquenta anos não haverá uma escama nas fertilíssimas águas portuguesas". E ironizava, novamente: "Fartem-se enquanto é tempo".
[Raul Brandão]

Pelo meio do texto de Brandão, ficava a apologia da sardinha, desse pequeno peixe que, na designação taxionómica, recebe o nome de Clupea Pilchardus. Com efeito, em jeito de retrato completo e ainda que sendo longa a citação, deixou escrito o autor da Foz do Douro: "O cardume, que foi força e vida misteriosa, que formou um só corpo e passou obedecendo não sei a que instinto ou a que inteligência superior, cai sobre Lisboa - como vem de Setúbal, do Algarve e das praias ignoradas de toda a costa lusitana, das grandes armações e dos pequenos barcos. É espalhada pelo país. Comem-na assada na brasa os trabalhadores da estrada e os homens esfaimados do campo com um pedaço seco de broa. De Inverno é magra, mas pelo S.João pinga no pão. No norte o lavrador espera-a para o jantar: é o seu melhor conduto. Os pobres fregem-na numa gota de azeite, e salgada ou saltando no cesto, fresquinha da barra, viva de Espinho, gorda, antes da desova, sem cabeça e escruchada, com a guelra em sangue, ou laivos amarelos de salmoura, constitui um manjar para pobres e para ricos. Entra em todas as casas. Há quem goste dela de caldeirada e quem a prefira simplesmente assada deixando cair no lume a gordura que rechina. Há os que só saboreiam a grande, de lombo gordo e preto, e os que acham muito melhor a miúda, que se chama petinga e que se devora com escama e tudo, afirmando com uma convicção respeitável que a mulher e a sardinha quer-se da pequenina...".
Em Setúbal, ao longo dos tempos, não passou ao lado a preservação da sardinha. Na primeira década do século XX, numa política concorrencial na área das conservas, países como a Noruega, os Estados Unidos e o Japão chegaram a comercializar conservas de outras variedades de peixe como sendo conservas de sardinha. No entanto, os conserveiros franceses lutaram pela delimitação da variedade e, em 1912, um organismo como a Associação Comercial e Industrial de Setúbal apelava aos conserveiros nacionais para se juntarem "aos seus colegas franceses na luta por tão importante campanha", como refere Maria da Conceição Quintas.
No capítulo "A Pesca da Sardinha" do livro "Os Pescadores", Raúl Brandão enalteceu a sardinha, referindo que, ao chegarem, os batéis "despejam nas pedras os montes viscosos de prata" e que, ao tirarem-na da água, os pescadores se deparam com "uma onda de prata que sai da tinta azul". As tonalidades que Brandão utiliza para descrever o mar são diversas, dependendo da luz e da cor. Mas o mar que o fascinou foi o de Setúbal...
Depois de percorrer toda a costa e de ter contemplado o mar a partir de muitos ângulos, escreveu Brandão: "Onde ele atinge a perfeição é em Setúbal. Em Setúbal é imaterial. Sonha ao pé da estrada que vai a Outão, e reflecte na água cismática a sombra avermelhada dos montes, a grande curva voluptuosa com a Arrábida por pano de fundo. Ali sente-se que a água anda presa à baiazinha, a Outão e à serra. Contemplam-se e não se podem deixar. O mar não tem consistência: não é o verde do norte, não é o caldo azul do Algarve - é poeira e luz. Para os lados do Sado, a baía é ilimitada... Um clarão. E há uma época do ano em que a serra se veste de roxo, e então é que é vê-la desdobrada nesta água que é sonho e adormecimento ao mesmo tempo."
Qualquer viajante que passeasse sobre o cais podia seguir o olhar de Raúl Brandão nesse início da década de 20: "Em Setúbal, partem todos os dias os barcos para o mar. O movimento redobra. Setúbal e Olhão são os dois grandes portos de pesca. Sardinha - sardinha - sardinha... Esta península da Outra Banda, limitada por duas baías, devia ser um paraíso, pelo seu excepcional clima e pela sua luz admirável, e bastante, só ela, para, terra e mar, alimentar duas ou três vezes a população de Lisboa, se terra e mar fossem convenientemente cultivados."
Meia dúzia de anos depois de ter publicado Os Pescadores (que teve quatro edições no espaço de um ano), Raúl Brandão era autor, com a esposa, de Portugal Pequenino, título sob o qual duas personagens, o Russo e a Pisca, viajam no país, metamorfoseando-se em animais, em gotas de água ou em penedos, de forma a darem uma visão matizada e rápida: do alto, "pareciam veias os rios azulados, o Minho fronteiriço, o Douro entre montanhas, o Mondego que desce da Serra, o Tejo correndo na planície fértil até ao vasto estuário, o Sado, que passa em Setúbal, o Guadiana lá em baixo..."; do alto, "viram tudo, voaram ao acaso, andaram na baía de Setúbal, que é uma maravilha"; do alto, aprenderam que a sardinha se pesca "em toda a costa, em Lisboa, na Caparica, em Sesimbra e Setúbal", que "Setúbal e Olhão são os dois grandes portos de pesca", que, como a sardinha, "nenhum peixe dá mais dinheiro e poucos têm mais préstimo, pois ocupa o terceiro lugar na escala da alimentação e está muitos furos acima do bacalhau".
A sardinha e Setúbal davam assim as mãos através de um dos mais importantes escritores portugueses do século XX, característica apontada a Raul Brandão logo pelo jornal O Setubalense, de 6 de Dezembro de 1930, ao noticiar o seu falecimento com 63 anos: "A morte acaba de roubar às letras portuguesas o notável escritor e publicista Raul Brandão. Romancista admirável e vigoroso jornalista, Raul Brandão deixa uma enorme obra literária. Companheiro e amigo do Dr. António José de Almeida, foi chefe de redacção do jornal República na sua primeira fase e era actualmente assíduo colaborador de Seara Nova, a cujo agrupamento pertencia, afirmando com brilhantismo a sua fé de republicano".

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Raul Brandão: de que cor são os Açores?

Em 13 de Maio de 1924, Raul Brandão escrevia a Teixeira de Pascoaes carta em que dizia: “Vou partir para Lisboa dentro de alguns dias e no dia 5 de Junho para os Açores (…). Conto demorar-me por lá dois meses e trazer notas para Os Pescadores e Os Lavradores e naturalmente um volume As Ilhas Desconhecidas sobre o Corvo, as Flores e o Pico.” Quando regressou, já datada da casa do Alto, de 7 de Setembro, Brandão enviava missiva ao amigo, rejubilando: “A viagem aos Açores foi esplêndida. Deve dar um livro interessante – quando eu o puder escrever.” (Raul Brandão – Teixeira de Pascoaes: Correspondência. Org.: António Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano. Lisboa: Quetzal, 1994).
Dois anos depois saía, com efeito, As Ilhas Desconhecidas, conjunto de momentos e de retratos dessa viagem noticiada a Pascoaes, com registos datados do período entre 8 de Junho (a bordo do “S. Miguel”, rumo ao Corvo) e 29 de Agosto de 1924 (embarcado na Madeira para regressar ao continente). Na abertura, “em três linhas”, Brandão explica: “Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. (…) Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nos leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!...”
As notas reunidas por Brandão assinalam as emoções do viajante, mesmo aquelas que dão para reflexão sobre os mais caros temas ao homem, como a vida e a morte e a fronteira que as une – logo no primeiro capítulo, para descrever a fragilidade do barco, refere: “Toda a noite esta coisa complicada que é um transporte a vapor range pavorosamente como se fosse desconjuntar-se; toda a noite sinto a água bater no costado e a máquina pulsar contra o meu peito. A ideia da morte não nos larga: separa-nos do caos um tabique de não sei quantas polegadas.” O título do livro deixa adivinhar o que era o conhecimento destas ilhas na década de 1920 e todos os registos brandonianos caminham no sentido de anular esse desconhecimento, seja pelo tempo lá passado (longo, ainda que por causa dos transportes, cheio de minúcia e de descobertas), seja pela observação e chegada ao interior das pessoas e traçado dos elos que as ligam à paisagem.
As imagens das ilhas são surpreendentes – sobre S. Jorge: “Esta ilha esguia, que parece um grande bicho à tona de água, mostra-me no focinho penedos aguçados como dentes”; sobre o Pico: “uma nuvem branca e esguia cortou o Pico pelo meio e o cone sai da nuvem suspenso no ar por milagre” ou “está ali presente como um vagalhão que vai desabar sobre o Faial”; sobre as Sete Cidades: “as Sete Cidades é também a alma duma paisagem. As grandes paisagens que morrem a alguma parte hão-de ir ter… Deus colocou-a aqui, delicada e virgem, no fundo desta cratera tremenda, entre o fogo e o caos; rodeou-a de solidão e de montes; pôs-lhe à volta, para a defender, o mar”; sobre o Corvo: “O Corvo é uma democracia cristão de lavradores”; sobre as ilhas: “o espectáculo imenso que se desenrola diante de meus olhos atónitos dá-me impressão de que as ilhas nascem do mar e se vão formando à nossa vista pela mão do criador”.
As figuras humanas merecem um tratamento de proximidade, quer pelo relato das histórias de vida ouvidas, quer pelo tratamento das personagens pelo seu nome real, quase dando a impressão de que o narrador-viajante se integrara na família e se apropriara dos seus segredos. Outra coisa não seria de esperar de quem, a dada altura, estipula como princípio seu: “Aqui só uma coisa a fazer: não é olhar para fora, é olhar para as almas”. E é o mundo do trabalho, a dificuldade de viver, a comunidade, a solidão, a ligação da homem ao território, um conjunto de recursos da paleta humana ao dispor do observador.
Da paisagem açoriana sobressaem a cor, os campos, as quintas e jardins. Circulando no Faial, deixa-se cativar pela tonalidade das hortênsias para desabafar: “O homem que teve a ideia de bordar as estradas com estas plantas devia ter uma estátua na ilha”. Aliás, esta preponderância das hortênsias e do seu azul-ferrete levá-lo-á a definir a cor açoriana – “o azul que enche a terra e nunca mais acaba e que é talvez o verdadeiro céu dos Açores”.
É um viajante sequioso de conhecimento e de contemplação que se vai conhecendo a si próprio até ao ponto de dizer, inebriado pela maravilha e sensibilizado: “Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente”. Esta ideia de infinito, de resto, perpassa várias vezes e, conjugada com o deslumbramento que sente pela riqueza dos caracteres humanos – haja em vista o capítulo sobre a caça à baleia ou aqueloutro em que fala dos pescadores, por exemplo – o viajante nestas ilhas deixa-se arrebatar: “Oh! Quem me dera ser patrão dum barco e ir de ilha em ilha abicar aos portos, de barrete azul adebruado de vermelho na cabeça e a mão no leme”…
À Madeira dedica Brandão capítulo curto, em que, apesar de apreciar a cor, mais quente, lhe fica a sensação dominante de algum desconforto – “Esta ilha é um cenário e pouco mais – cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e desprezo absoluto por tudo o que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e tudo preparado para inglês ver e abrir a bolsa.” Esta conclusão servir-lhe-á para um retrato social impiedoso dos madeirenses: “Cada vez se cava mais funda a separação entre as classes chamadas superiores e as outras. O que se faz neste país é um crime que havemos de pagar muito caro”. Em causa estavam também conceitos de turismo, entre a familiaridade e a indústria que começava a ser: “Detesto o turismo e adoro a hospitalidade. (…) Uma nação não deve ser um hotel – e Deus nos livre que o seja!”
Apesar desta sensibilidade na apresentação do que eram as “desconhecidas” ilhas, Brandão não se consegue desviar do seu estatuto de visitante. Ainda em S. Miguel, no início desse Agosto, escreverá: “Devo dizer que já me cansa um pouco e que anseio por outra luz… Começo a ter saudades do velho muro do meu quintal, tostado do sol, onde se criam as sardónicas, os líquenes amarelos e rosados, e até mesmo as pedras amadurecem como as uvas!...” E o relato desta viagem terminará com essa homenagem à luz, quando, já na bacia de Cascais, fotografa: “a luz irrompe, uma luz alegre, uma luz que vibra toda, uma luz em que cada átomo tem asas e vem direito a mim como uma flecha de oiro. No céu imenso e livre, o sol bóia como num grande fluido. Portugal!...”
O que entusiasma na escrita de Brandão é essa multiplicidade da cor, fortemente matizada, intensamente definida, algo que decorre de uma escrita que navega sobre a sensibilidade. Como António M. B. Machado Pires referiu no prefácio de As Ilhas Desconhecidas (Col. “Obras Completas de Raul Brandão”. Lisboa: Editorial Comunicação, 1987), “Raul Brandão era um emotivo, no que esta palavra, de semântica vaga, quer significar de predomínio das primeiras impressões e sentimentos sobre a elaboração cerebral, uma espécie de ‘matéria-prima’ de sentimento, ‘em bruto’, passada ao papel: assim escrevia principalmente Brandão.”

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“As figuras horríveis da vida e do inferno não são as atormentadas – são aquelas cujos traços se esquecem.”
“Nenhum sonho se chega a concluir – o sonho não cabe no mundo.”
“A exuberância, quando é impetuosa, fica a dois dedos da destruição.”
“O mar é a vida – mas o mar é também a imagem da realidade ou do inferno, que é tudo a mesma coisa.”
“Quem pode acreditar na morte, no frio horrível e eterno, diante da natureza que nos estende os braços cheia de flores e de perfumes em pleno inverno?”

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Antonio Tabucchi, «Mulher de Porto Pim»

Mulher de Porto Pim é um livro de Antonio Tabucchi (Lisboa: Difel, 1986) que tem como motivo os Açores, escrita que surge como resultado de uma estadia no arquipélago, ainda que não se trate de um diário de viagem (“género que pressupõe tempestividade de escrita ou uma memória impermeável à imaginação que a memória produz”).
Aqui se fala de naufrágios, dos baleeiros, da caça à baleia (valendo a pena comparar a narração de Tabucchi com a que Brandão também nos legou em As Ilhas Desconhecidas, da década de 1920), de conversas ouvidas, de histórias contadas e de Antero, essa figura que “sofria de infinito”.
Há história e impressões, há experiência de viajante e de curioso. E há anúncios que passam pela história das baleias e dos açorianos – a baleia como arquétipo e a premonição do fim dos baleeiros (no final do episódio da caça, quando o velho Carlos Eugénio quer saber o motivo de o visitante ter querido participar na saga, há a hesitação e o desabafo: “talvez porque ambos estão em extinção, digo-lhe por fim em voz baixa, vocês e as baleias, penso que foi por isso.”) E há uma narrativa, confiada pelo narrador Lucas Eduíno, que toma para título o homónimo do livro – “Mulher de Porto Pim”, história de Yeborath, cume de beleza, morta com um arpão, narrativa a que não falta a intriga amorosa, a prisão, a morte, o sentimento da traição, o triângulo amoroso, numa acção algo ao gosto camiliano. E há, no final, como “post scriptum”, a personificação num texto como “A baleia que vê os homens”, algo irónico, que deixa o cetáceo a pensar sobre os homens: “percebe-se que são tristes”.

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