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quinta-feira, 9 de maio de 2024

A Setúbal dos “bairros de folha”

 


São cerca de 70 fotografias que chocam. A preto e branco, revelam as zonas da sombra em que a vida acontecia. São bairros de barracas — não de casas — em que as paredes surgem desalinhadas e os telhados se formam de folhas de alumínio ou, por vezes, de telhas soltas, em que os interiores resultam de amontoados sem espaço, em que os caminhos são consequência da passagem e do trilhar dos pés, em que nos surpreendem rostos de crianças e de mulheres, espaços de onde os homens estão ausentes. São cerca de 70 fotografias que acompanharam um relatório feito pela Câmara de Setúbal no início da década de 1970 sobre a situação das barracas e da sua habitabilidade (ou falta dela) em cerca de vinte bairros de Setúbal, onde viviam 11 mil pessoas. São cerca de 70 fotografias que surgem legendadas pelas vivências e memórias de quem conheceu aqueles espaços, de quem neles viveu.

Outro mundo no mesmo lugar - A cidade das barracas é o título do livro organizado por Vanessa Iglésias Amorim, Jaime Pinho, Alberto Lopes e Lia Antunes (Centro de Estudos Bocageanos, 2024), obra que parte do relatório já referido e das fotografias que o acompanhavam, comentadas pelos testemunhos de vários entrevistados, para mostrar o estado da habitação nos bairros de folha em Setúbal em 1974. “Bairros de folha”, designação utilizada devido, como refere Vanessa Amorim, “à frequente utilização dos excedentes da folha de flandres da indústria conserveira e/ou ao uso de latas grandes de conserva desmanchadas para vedar as paredes”. “Bairros de folha”, assim retratados num comunicado da Comissão Administrativa da Câmara de Setúbal publicado em “O Setubalense”, em 21 de Junho de 1974: “Visitámos os bairros pobres da cidade de Setúbal. Porque já conhecíamos o problema, a situação que nele encontrámos correspondeu às nossas previsões: um imenso formigueiro humano vivendo no meio do estrume e dejectos, situação que nos faz recuar, em pleno século XX, à Idade Média.”

Os números apurados impressionam — segundo Lia Antunes, em 1947, haveria em Setúbal 23 bairros de lata, constituídos por 1320 barracas onde viviam 5049 pessoas, números que, em 1970, já se tinham alterado: 2254 barracas para 11022 habitantes, cada uma com cerca de 15 metros quadrados de área média, espaço em que viviam, em média, quase cinco pessoas. O relatório produzido por 1970, sustentado em inquérito promovido pela autarquia, encontrou uma metáfora deprimente para estes bairros, “abcessos da cidade”, imagem segregadora, muito mais preocupada com a necessidade de os fazer desaparecer do que com a urgência na resolução do problema de habitação.

O leitor passa pelas fotografias, que constituem a maior parte do livro, e não pode ficar indiferente, sobretudo se deixar que o seu olhar seja acompanhado pelas legendas testemunhais ­— “Olha, antes de ir pró trabalho tinha de ir carregar água - porque não havia água em casa, era o depósito. Às 4 da manhã, 5 da manhã, levantar pra ir à água... Era agarrar do balde do lixo e mandar para os buracos que lá havia.” “Em certos bairros havia barracas em que a água passava por dentro da casa das pessoas. Era ratazanas e toda a bicharada.” “O bairro de barracas tinha um corredorzinho muito pequenino para passar! Não havia luz. Nem havia na rua, nem havia nas casas. Não havia electricidade. As pessoas, para não se perderem, associavam os sítios às mercearias, aos estabelecimentos.” “Ninguém tinha esgoto. As pessoas faziam as necessidades numas tigelas de barro, a gente chamava aquilo de ‘tigelas da merda’. Havia pessoas que durante a noite (os moços!) partiam aquilo e espalhavam tudo!” “Havia muitas ratazanas. À noite, a minha irmã estava no berço, era bebé, e a rata roeu o dedo da bebé.” Estes e outros depoimentos dizem muito mais do que aquilo que fica expresso...

Dos 22 bairros identificados, havia seis com número superior a uma centena de barracas — Casal das Figueiras (550), Monarquina (248), Alto do Pina (236), Maltalhado (208), Vale de Cerejeiras (193) e Montureiras (106). As razões para tais cenários são frequentemente apontadas como resultantes de uma aceleração de crescimento em termos populacionais devido à atracção exercida pelas indústrias como fonte de emprego, geradoras de mobilidade demográfica. A cidade não conseguiu dar resposta humana aos que chegaram, tornando-se patente que a política também não o fez. Hoje, calcorrear algumas zonas da cidade é vermos “outro mundo no mesmo lugar” onde o sofrimento construía o quotidiano, imagens que este livro lembra para que não se repitam.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1295, 2024-05-08, pg. 5.

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Emília e as memórias da conserveira

 


“As mulheres conserveiras protagonizaram uma das páginas mais brilhantes da história de Setúbal.” A afirmação, no ensaio “Indústria conserveira - Mosaico de um futuro anterior” devido a Vanessa Iglésias Amorim, João Pedro Santos e Jaime Pinho, serve de mapa sociológico para o texto dramático A Casa de Emília, de Luísa Monteiro, levado à cena recentemente pelo Teatro Estúdio Fontenova. Os dois textos complementam-se e integram o livro com o título da peça, editado pelo grupo de teatro setubalense.

O trabalho ensaístico parte de entrevistas e de histórias pessoais e percorre o quotidiano das mulheres nas fábricas de conserva, registado nas questões de género, condições de trabalho e retrato social. A participação feminina setubalense na indústria conserveira tem escasso estudo, reduzindo-se, frequentemente, a curto (sub-)capítulo nas publicações sobre o tema, mas, em 2000, foi mostrada em Alguns aspectos da indústria conserveira em Setúbal, trabalho muito apoiado nas entrevistas (34 mulheres em 40 entrevistados), promovido pelo Museu do Trabalho.

A força das operárias, a sua resistência, os abusos perpetrados ou insinuados a que foram sujeitas, o esgotamento físico, a inferioridade na hierarquia, a vida familiar condicionada pela fábrica (mesmo na educação dos filhos, que, desde muito cedo, acompanhavam a mãe, tornando-se também eles operários ou operárias), uma certa segregação social (em que desempenhava papel importante o cheiro do peixe), as diferenças salariais motivadas pelo género, tudo passa pelos testemunhos que permitem a primeira parte do livro e se ilustram na segunda.

A história de Emília (num tempo em que a indústria conserveira sadina já pertence ao passado) conta seis personagens, quatro delas vivendo sob o mesmo tecto. Emília, a conserveira, gere toda a narrativa no que é devido a memória, pondo a nu o que foi a sua vida na fábrica, estatuto que lhe dará o direito de, quase no final da peça, poder dizer à filha, Albertina, que “tudo quanto diz respeito àquilo que conserva, mulheres incluídas, são de grande bem para a humanidade”, uma outra forma de chamar sobre si a responsabilidade de personagem principal.

Pelo discurso de Emília passam os avisos a Albertina, e à neta, Amélia, bem como a autoridade e algum desprezo por Artur, o genro, filho do antigo encarregado da fábrica onde Emília trabalhou e actual amante da nora de João Rodrigues, que tivera uma relação com Emília. Numa curta história, o leitor / espectador acaba por ter presente o quotidiano da geração de Emília numa vida não suficientemente vencida, magoada pelo que foi e pelo que não pôde ser (no trabalho e no amor), dotada de um sofrido conhecimento do ser humano a partir da sua experiência, muito ajudada pelo coro nos pensamentos sobre esse passado; presente também está o tempo de Albertina, mulher de limpezas, aí incluindo um certo varrer do mal, em simultâneo com a protecção da casa; finalmente, os momentos de Amélia, a neta, baloiçando entre amores (de Zeca, ex-namorado, com final infeliz, e de Ruben, personagem apenas aludida), carinhosa para a avó, desprendida desse passado mais antigo. Entre Rodrigues, ex-amante de Emília quando já tinha um compromisso com Aurora, e Artur há uma quase relação em espelho, até chegarem a um encontro combinado no final, em torno da verdade ou da mentira, porque, como Rodrigues diz, há um “sono nebuloso e denso, violento e negro em cada um de nós”.

Luísa Monteiro conseguiu com esta obra aquilo que se propôs: “levar a vida intemporal para o palco, perpetuar as histórias dos outros e levá-las de regresso à pedra de nascença.” E as memórias das mulheres conserveiras saem fortificadas...

* J.R.R., in O Setubalense: nº 510, 2020-11-18, p. 9.


sexta-feira, 5 de junho de 2009

Tróia através da memória

As turmas A, B, C e D de 9º ano da Escola Secundária D. João II, em Setúbal, fizeram entrevistas para saber como foram vividos pelos setubalenses os verões na Tróia no período entre 1950 e 1974. Dessa procura, feita no âmbito da disciplina de História, resultou o livro agora publicado Quando a Tróia era do Povo (Setúbal: Escola Secundária D. João II, 2009), que tem coordenação de uma equipa de professores constituída por Jaime Pinho, Maria José Simas, Alberto Lopes, Isabel Duarte, Luísa Ramos e Álvaro Arranja.
O título atribuído à colectânea divide o tempo da Tróia em dois segmentos: aquele em que “a Tróia era do povo”, passado, popular, bem evidenciado no título e, pela adesão, comprovado nos testemunhos recolhidos e publicados, e um tempo de agora, não referido mas sugerido, em que, supostamente, a Tróia não será “do povo”. Fica, pois, uma sensação de perda de um espaço e de um tempo, vivo na memória e materializado na escrita.
Ao longo da cerca de uma centena de páginas, passam testemunhos sobre a paisagem (dunas, flora, fauna, casas), sobre os quotidianos (vendedores ambulantes, convívio, vestuário, dormidas, higiene, alimentação), sobre retratos sociais (dos habitantes de Setúbal, Azeitão, Palmela e Pinhal Novo ao primeiro turismo). Pelos testemunhos mostrados passa um rememorar o vivido, encarado de um ponto de vista pessoal, em jeito de lembrança de outros tempos que eram diferentes dos de agora.
Um último capítulo aborda algumas páginas do periódico O Setubalense que noticiaram o veraneio em Tróia na mesma época. Não sendo um texto de análise, pretende, de alguma forma fazer a junção entre o título do livro e os testemunhos que foram recolhidos e não será por acaso que essa recolha na imprensa conclui com o gesto de Américo Tomás, Presidente da República, a intensificar “as suas visitas e o seu apoio aos projectos de urbanização da Tróia”. Esta conclusão liga-se, de resto, à ideia com que Jaime Pinho inicia o seu texto de abertura – “Os verões na Tróia: antes da era do betão”.
É uma recolha interessante pelo que nos traz como trabalho de memória, revelador dessa forte ligação das populações ao rio, ao mar e a Tróia, uma ligação que quase prolonga Setúbal para lá do Sado. É uma recolha interessante pela capacidade de levar as pessoas a testemunharem o vivido e por ter saído de um trabalho organizado pela escola, levando os jovens a mergulhar no passado que é a história de famílias e que marcou a identidade desta região. É uma recolha interessante pelo que pode sugerir de interligação entre a Escola e a comunidade. Provavelmente, a leitura sugerida a partir do título do livro e do texto introdutório são um tanto forçadas, na medida em que, podendo ser verdade o que sugerem, o conteúdo das intervenções e dos testemunhos não o sustenta…