quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Pescadores perseguidos ao largo de Setúbal em 1755


            

O título é extenso e conta o essencial da notícia: Relação do notável caso que aconteceu às lanchas da Vila de Setúbal, com três xavecos de Mouros em o dia doze do mês de Maio, pelas onze horas do dia, segundo a notícia que se houve de um mestre de uma das embarcações. Se o leitor quiser pormenores, terá de ler as sete páginas do relato impresso em Lisboa, provavelmente em 1755. 

Enquanto género, a “relação”, prática desde o século XV, tem carácter noticioso e não periódico, narra um único acontecimento, frequentemente de forma sensacionalista, publicando-se pouco tempo após o evento relatado, recorrendo a testemunhas do ocorrido. O título longo dá respostas a várias perguntas sobre o essencial numa notícia: o que aconteceu, quando e onde ocorreu, quem interveio; falta apenas explicar como sucedeu, desenvolvimento dado no relato.

Neste documento de 1755, que respeita a tipologia do género, ignora-se o nome do autor do escrito, como se desconhece o do mestre que relatou o pesadelo por que passou com a sua companha. A narração do facto que justifica o título acontece apenas no último dos cinco parágrafos do texto; os anteriores fazem considerações sobre a dureza da vida dos pescadores e o “armar o corso” e relatam duas ocorrências de pirataria vividas na zona de Cascais.

Logo no início, destaca-se o risco que os homens do mar sempre correm por vários motivos, incluindo o perigo de serem assaltados e feitos prisioneiros - prática que opunha povos e religiões (católicos, por um lado, e mouros e judeus, por outro): “Entre todas as fadigas que estão propensas à vida humana e entre todos os laboriosos exercícios de que esta se entretém para conservação e aumento, é o maior e mais penoso aquele que se continua sobre as ondas, cuja inconstância, se bem em umas ocasiões contribui com grossos lucros, em outras dá não menores perdas, sendo a de que menos se faz conta a fazenda e a maior a vida, que a cada instante periga, já no sepulcro das ondas, já no penoso tormento do cativeiro dos Bárbaros.”

Deste relato não está ausente o propósito religioso: a notícia “servirá de aviso a todos os que andam neste exercício da pesca para que sejam devotíssimos da Senhora da Conceição, título de minha especial devoção”, diz o autor. Mas a protectora será outra no caso dos sadinos...

Pelas onze da manhã daquele dia de 1755, catorze barcos de Setúbal andavam na faina, “pescando com bóias e redes no fundo”, sendo “o número das pessoas acima de trezentas e vinte”. O grupo foi surpreendido por “três xavecos de Mouros”, vindos de sueste, adversários que já tinham sido avistados por observadores na Torre do Outão. Ao aperceberem-se da intromissão estranha, os sadinos tentam rapidamente navegar para terra, mas sem esperança, dando-se já “por prisioneiros e cativos”. Na costa, “estava a gente da terra por praias e fortalezas chorando e lastimando-se, pois, a faltarem as lanchas, ficava meio despovoado Setúbal”. O ter surgido no horizonte outro barco, que inicialmente captou as atenções dos invasores, não foi suficiente para a dissuasão e os corsários perseguiram os setubalenses “até quase à barra”. Foi nessa altura que a artilharia “varejou” os inimigos, assim se salvando os pescadores. Estes, “largando bandeira, festejaram o Livramento e, com danças e folias, entraram na vila” e “atribuíram esta felicidade à Senhora da Arrábida, de cuja intercessão se valeram”.

Estava consumado mais um milagre! E a “relação” valorizava, como era seu propósito, a experiência de vida, acentuando a protecção religiosa...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 566, 2021-02-24, p. 5.


terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Sobre o que as televisões mostram e dizem da pandemia...

 

Surge assinada por cerca de 40 nomes a "Carta aberta às televisões generalistas nacionais", documento divulgado hoje na imprensa - no caso, a transcrição é feita a partir da edição do Público.

Lê-se a "Carta" e há um sentir que nos é comum. As imagens e as opiniões com que temos sido bombardeados são opressoras, primam pela repetição até à náusea, nem sempre são esclarecedoras, quase nunca acrescentam nada ao já sabido, extrapolam para áreas que não têm relação com a saúde ou com o bem-estar, fomentam a angústia, mexem de forma inoportuna com quem trabalha, contentam-se com o estado do caos.

Não era preciso que a comunicação fosse isto. Não era. Daí que a "Carta" seja oportuna. Mesmo que não venha a ter efeitos, porque o mundo dos "media" é o que é (e nem sempre é bom). De facto, ética, sobriedade e contenção deveriam ser três elementos basilares da construção da informação sobre a pandemia! Lamentavelmente, não é o que nos servem todos os dias!...


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Henrique Freire e a profecia do Convento de Jesus

 

Corria 1864 quando Henrique Freire (1842-1908) fez imprimir em Lisboa a narrativa A profecia ou a edificação do Convento de Jesus. O subtítulo informava ser uma “tentativa histórica setubalense”, dando a entender estar o leitor perante uma reconstrução do passado, forma tão ao gosto da época romântica, como a praticou Alexandre Herculano ao eleger o romance histórico, em ambiente preferentemente medieval, para revelar a identidade de Portugal. Henrique Freire segue-lhe o rasto, em epígrafe na abertura de cada um dos onze capítulos, a partir das histórias contadas em Lendas e Narrativas, de que se destaca a intitulada “Mestre Gil”, cuja acção ocorre maioritariamente em Setúbal, sendo Garcia de Resende o outro autor a que recorre, cuja Crónica de D. João II lhe serve como fonte de informação, e que, com o rei que cronicou, chega a ser também personagem desta história.

Pelo texto introdutório, “Duas palavras”, sabe-se que a narrativa começara a ser publicada num “jornal literário de Lisboa”, entretanto suspenso, depois continuada no Correio de Setúbal, também interrompido. A edição em livro, dedicado ao pai, colmatava essas duas quebras do ritmo de publicação. Contudo, apesar do peso das fontes e da trama histórica, Freire avisava não passar o texto de um “ensaio de um rapaz de 16 anos”, desculpa antecipada por qualquer fragilidade...

A história toma como assunto a construção do Convento de Jesus, anunciada por um “venerável barbadinho italiano”, que sermoneou no então Rossio dos Anjos: “Vedes vós aquele pedaço de terra inculta? Pois adverti que ainda há de ser um paraíso de Deus e fecundo jardim de plantas e de frutos de virtudes e glorioso em santos frutos. Ali hão de viver criaturas cujas obras eminentes transformarão aquele lugar humilde em um céu admirável.” A sequência dos acontecimentos é previsível - Justa Rodrigues Pereira pedirá o apoio régio para construir um convento traçado por Boitaca e a primeira pedra será lançada, em festiva cerimónia, por D. João II.

Paralelamente, uma história de amor destaca a acção joanina contra a nobreza, invocando episódios de exercício da justiça real sobre os fidalgos (como Pedro de Ataíde ou o duque de Viseu) e figuras do clero (como D. Diogo, bispo de Évora), ao mesmo tempo que uma personagem como Álvaro de Ataíde (que surge no início e no final da obra) serve para relatar a experiência dos que tiveram de exilar-se para fugirem à justiça régia.

O espaço medieval da então vila sadina é sempre caracterizado em comparação com a contemporaneidade de Henrique Freire - daí que haja ocasião para louvar a chegada do comboio ou a iluminação a gaz, que estava para breve. Mas, preocupação máxima, para lá da acção narrativa e do desenvolvimento que era sentido na cidade, Freire foca-se na preservação do património, tal como foi propósito da geração de Herculano e Garrett - há diversos momentos em que o desrespeito pela memória (tomando o exemplo da falta de reconhecimento a Bocage, haja em vista que o monumento ao poeta é posterior, de 1871), a falta de conservação dos bens culturais e o uso do camartelo são criticados, desejando que, no futuro, “a mão destruidora do vândalo desta época não se lembre de fazer do seu recinto uma praça de touros” (como acontecera no Convento de S. João duas décadas antes). A concluir, um desejo: “Que inteiro ou destruído, esse templo conserve sempre vestígios do antigo poder deste reino; é uma página de pedra do livro das nossas tradições.” Bela metáfora para o Convento de Jesus!...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 561, 2021-02-17, p. 10.


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Pedro Narra: a intimidade das flores



Não terá sido por acaso que a jovem do poema do rei D. Dinis se dirigiu a uma árvore para saber notícias do namorado, cujo aparecimento tardava: “Ai flores, ai flores do verde pino, / se sabedes novas do meu amigo?” E as flores, sabedoras, apaziguadoras, enternecidas, responderam-lhe estar ele “são e vivo” e que seriam juntos “ante o prazo saído”, assim alimentando a paixão e dulcificando a espera. O rei poeta sabia que as flores contêm a beleza primordial e, no seu viver selvagem e bravio, espreitam o mundo de que se alimentam e espiritualizam a paisagem.

Selvagens - Estuário do Sado e Arrábida é um repositório de flores, ramo trazido pela lente de Pedro Narra, em edição de autor, livro recentemente surgido, que, em quase 90 fotografias, mostra o que vai na intimidade de mais de 40 flores que o leitor pode encontrar na paisagem arrábido-estuarina. Bastará ao caminhante um olhar atento, que esse é também um dos desafios desta obra - todos podemos ver este halo de beleza que se desprende do jardim natural, não cuidado, que ameniza a paisagem. 

O livro deixa que as flores impressionem o observador - a numeração das páginas está ausente, o texto que acompanha as fotografias está reduzido ao mínimo (designação vulgar e científica das plantas, apenas) e as flores animam sozinhas o espaço da fotografia, isoladas do seu contexto para que só elas se revelem. E os olhos vão passando pelas faces desta pequena multidão, que, desde o acanto até à “watsonia bulbillifera”, percorre o alfabeto da selecção feita.

Surpreende-se o leitor com a alegria das capuchinhas, com os recortes da flor-dos-rapazinhos, com o esplendor de artifício da cenoura-brava, com a dança do rosmaninho, com a aguarela da esteva, com o borboletear da amendoeira, com o desvendar do lírio ou com o ar de conversa das candeias; surpreende-se e fica em contemplação destas flores que se mostram num tom quase narcísico e propositado para chamar a atenção; surpreende-se e deixa-se fascinar pelo jorro de cor e de associações, numa liberdade de visão e de interpretação destas imagens que Pedro Narra escreve.

Depois do périplo por estas selvagens cheias de vida e de alegria, é obrigatória a leitura do prefácio redigido por António Bagão Félix, um testemunho de fé na descoberta e no afecto pelas flores - “Ao percorrer, suave e deliciosamente, as fotografias desta obra, melhor percebi o sentido universal do infinito mundo botânico sempre por descobrir e, não raro, injustiçado pelo ser humano.” Se para mais não servisse, cumpriria esta frase a sua missão pelo que suscita - o que este livro mostra é um olhar atento sobre o universo, um mundo que frequentemente se pisa, que sempre se expõe para que o conheçamos. É que por aqui passam também as plantas que se infiltram pelas junções das pedras da calçada ou que furam os muros dos confinamentos...

“Um hino botânico à vida”, assim classifica Bagão Félix este livro em que “as fotografias são dedicadas e delicadas, profundas e suaves, libertas e capturadas, rigorosas e multifacetadas.” Toda essa adjectivação, absolutamente presente, se compreende porque estas imagens exercem um fascínio, como se fosse amor à primeira vista, sobre quem as vê - seduzido o olhar, este álbum obriga a degustação prolongada para que se saboreie a cor, o cheiro, o movimento, a vida destas selvagens que se dispuseram numa obra de arte. Bem sabia a jovem das cantigas de amigo que falar com as flores era saber sobre o universo!...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 556, 2021-02-10, p. 5.


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

De 2020 o que ficou do que passou

 

            

Do ano de 2020 todos temos a recordação amarga da pandemia e das suas consequências, que domina(ra)m a nossa emotividade, nos isola(ra)m e nos encaminha(ra)m para a fragilidade da angústia. E, no entanto, o ano de 2020 teve isso e muito mais. Uma edição especial da National Geographic foi-lhe dedicada, mostrando em cerca de 70 fotografias algo do que foi esse “ano inesquecível”.

Logo na capa, um cenário conhecido, que podia ser em qualquer hospital de Portugal, tantos têm sido os testemunhos falados e visuais do esgotamento e da dor de quem está na primeira linha contra a pandemia - mas a foto vem de outras latitudes, de Mons, na Bélgica, onde as enfermeiras Quinet e Cheroual, pela lente de Cédric Gerbehaye, num breve intervalo da sua luta, se apoiam uma à outra, na angústia da espera. De Cheroual, o desabafo: “Nunca imaginei ter uma experiência desta magnitude na minha carreira.”

O tempo de 2020 é mostrado por 58 fotógrafos em 25 países, em quatro partes - o ano “que nos pôs à prova”, “que nos isolou”, “que nos capacitou” e “que não nos roubou a esperança” -, um percurso entre o desafio, o massacre e a luta e vontade de vencer, sempre envolvendo a dose de sofrimento. Tema dominante é a pandemia nos seus efeitos (o vazio físico, práticas da “nova normalidade” - como os eventos no formato digital - e a ausência humana, aqui se incluindo duas imagens de Lisboa despovoada, captadas por Miguel Valle de Figueiredo em Abril) e nas suas lições (a solidariedade e a generosidade, a vizinhança e a amizade, a família). Mas também por aqui passam o ambiente vivido em torno da violência policial (a morte do afro-americano Floyd tem vários reflexos), as migrações em massa e os refugiados, os desastres ambientais, as eleições americanas, o policiamento e a justiça social, as exigências “maori” na Nova Zelândia, as descobertas científicas, a atenção à Natureza (de Portugal, aparece imagem devida a Hugo Marques sobre a nidificação do abutre-preto na região do Douro) ou a luta pelos sonhos (como o da jovem de Madagáscar que quer ser professora e música, apesar da dura vida que tem de enfrentar para poder ir à escola).

A selecção das imagens partiu de um banco de mais de um milhão e meio de registos que os fotógrafos da National Geographic captaram em 2020, quantidade impressionante, é verdade, sobretudo se pensarmos na afirmação de um deles, o americano David Guttenfelder - “a nossa missão é captar toda a energia, todo o caos, toda a emoção, e fornecer ao espectador a sensação de que ele está connosco no meio do turbilhão.” As emoções acompanha(ra)m estes autores que foram capazes de se sensibilizar perante a simplicidade, como foi o caso de Hannah Reyes-Morales ao captar imagens de refugiados e emigrantes na fronteira turco-síria no momento em que nas famílias se cantavam canções de embalar - “eram um pedaço de casa que podiam levar consigo, quase como um santuário portátil”, testemunha.

Os olhos do leitor perpassam por este conjunto de retratos (que não representa o “todo” de um ano, mas uma parte e um olhar sobre esse “todo”) e não podem ficar indiferentes, apesar de já se saber que era assim que o ano tinha acontecido - estas fotos vivem muito mais pela emoção do que pela carga informativa que possam ter, pois, como diz Siddartha Mitter, no ensaio “Um ano no limite”, que abre a revista, “um ano tão bruto não precisava de imagens complicadas”. 

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 551, 2021-02-03, pg. 10.