Mostrar mensagens com a etiqueta Carlos Vaz Marques. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Carlos Vaz Marques. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Pedro Tamen entre Bocage e a Rua de Nenhures



Numa entrevista a Carlos Vaz Marques na revista Ler (nº 99, Fevereiro.2011), Pedro Tamen (1934-2021) definiu a importância da poesia: “é, para mim, um permanente arranhar o mundo, com unhas na cal, para tentar encontrar coisas que se pressentem por detrás do branco uniforme do mundo e da vida.”

Era isso, então, que andava a fazer desde que, em 1956, saiu o seu primeiro livro, Poema para todos os dias (ed. Autor), obra em que haveria de registar marcas que pontuariam os seus títulos subsequentes: a escrita da poesia como elemento fixador ("Ontem / (ainda ontem) / aconteciam verdadeiras coisas, / aconteciam muitas e sérias coisas. / E, agora, neste seco papel, / tudo volta, e eu vejo."), a força da palavra ("Não há montanhas se não há palavras"), a capacidade de surpreender o leitor pela palavra intrometida ("Não penso, faço, / não estrada, sigo"), o apelo aos jogos de sonoridades ("e o dia perto, porto, parto ferido"), o engenho de (re)inventar significados ("aleluia-se um gesto"), o amor ("em ti não busco mais do que pensar-te"), o tempo ("o tempo todo corre num cigarro, / no suor a cair, e no ficar."), as marcas autorais ("formado em direito e em solidão" ou "Sentidos frios de pesadas frases / Ai Pedro, Pedro, tu que frases fazes?"), a subtileza na forma de apresentar, de visitar e de escrever a poesia ("Em segredo, como quem vai ao armário de si próprio, / rodo a fechadura (range) e abro.").

O jogo de palavras será constante em Tamen, ajudado por alguns mestres, como Bocage, que puxou para um poema no livro Analogia e Dedos (Oceanos, 2006), conjunto que quase configura uma mitologia do poeta: “Já não sou. Já não serei / se fui. Agora à cova / além dos ossos e caroços / muito mais descerá. / O verso, o riso, o vinho, / a mão ladina sobre a carne morna, / tantas coisas sentidas, ressentidas, / intenções, bolandas, entreactos, / entradas por saídas, choros finos: / muito mais descerá. // Não sou, é certo, e não serei, / mas no descer de tudo / já nem fui.” 

Quando passou a viver em Palmela, Pedro Tamen por lá encontrou uma Rua de Nenhures, nome estranho sugerindo um não-lugar, que deu título para livro (Publicações Dom Quixote, 2013), com 64 curtos poemas centrados num “tu”, por onde passam referências associadas à luz, ao mar e ao fogo, na procura do momento desejado - “Cheguei do fundo das ravinas, / (...) / e o coração, / salvei-o, essencial e concentrado, / para que, chegado ao lar do milho, / to pudesse entregar nas mãos iluminadas / ao sol incandescente dos teus olhos.” Desde este poema, quase no início, até ao último (“Sentas-te no muro, lá no alto, / nem me vês tropeçar nas pedras desta rua.”), o amor intensifica-se pela voz (“Cotovia perto / cantas. / (...) / cotovia perto, / meu amor, meu amor.”) ou pelo tacto (“Deixo os dedos enrugados navegar / no mar de leite”), ajudado pelos jogos de palavras - “Troco-me por ti. / Na brasa da fogueira mal ardida / renovo o fogo que perdi, / acendo, ascendo, ao lume, ao leme, à vida.” O “tu”, procurado e incorporado, surge transformador - “sinto (...) / que a lanterna de bolso que tu és / me devolve a paisagem de largueza / que a ti devo, deverei ou deveria, / a inconstante chuva de alegria.”

Tentar encontrar coisas que se pressentem”, o desafio que Pedro Tamen legou.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 678, 2021-08-04, p. 9.


quarta-feira, 21 de março de 2018

Dia Mundial da Poesia - A poesia em sete reflexões


“Todo o poema - por mais dramático, áspero, dissonante... - infiltra-nos pelos poros a música, e o silêncio, do rumor de fonte da Harmonia.” (José Fernandes Fafe. Curriculum Vitae. S/L: Editorial Fragmentos, 1993)

“O poema / (…) / são palavras que caem, abatidas pela vida, / e que esperam por nós para se erguerem, / como se a música assim pudesse permanecer.” (Luís Filipe Castro Mendes. “Rater. Rater encore. Rater mieux”. Outro Ulisses regressa a casa. Col. “Poesia Inédita Portuguesa”, 149. Lisboa: Assírio & Alvim, 2016)

“A grande poesia é aquela que, de repente nos oferece um mundo, no qual a vivência deste se altera em cores e dimensões não sonhadas. É a criação de um outro mundo que se acrescenta realmente ao nosso mundo visível. É isso e não os versos que são muito bonitos.” (Eduardo Lourenço, entrevista a Carlos Vaz Marques. Ler. Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 72, Setembro.2008)

“A poesia é a linguagem segundo a qual deus escreveu o mundo.” (Valter Hugo Mãe. A Desumanização. 7ª ed. Porto: Porto Editora, 2016)

“A poesia nasce como os rios / e as pessoas / as avenidas / e o mar // Porque a poesia vive em tudo / e em tudo se confunde / com o sonho.” (Costa Andrade. “A voz da terra”. Terra de acácias rubras. Lisboa: União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa - UCCLA, 2014)

“As pessoas lêem poesia porque fazem parte da raça humana e a raça humana arde de paixão! Medicina, direito, a banca… Estas coisas são necessárias à vida. Mas poesia, romance, amor, beleza? São estas coisas que nos mantêm vivos! (...) Se toda a gente fosse poeta, o planeta morreria à fome! Mas a poesia tem de existir, e nós temos de reparar nela, reconhecê-la na mais ínfima, na mais insignificante das coisas, ou teremos perdido e deixado passar muito do que a vida tem para nos oferecer.” (N. H. Kleinbaum. O Clube dos Poetas Mortos. Col. “Os Livros do Cinema”, 4. Lisboa: “Diário de Notícias”, 2004)

“Toda a verdadeira poesia é um frémito diante do mistério ou da injustiça; um pressentimento do que está ou devia estar para além da apreensão imediata, da complexidade vibrante das coisas e do tempo, de tudo o que a ciência e a filosofia procuram depois de desvendar e resolver.” (José Rodrigues Miguéis. É Proibido Apontar. 2ª ed. Lisboa: Estampa, 1984)

sábado, 15 de novembro de 2014

Carlos Vaz Marques: as entrevistas porque "os escritores (também) têm coisas a dizer"



Uma dúzia de escritores de expressão portuguesa alberga-se sob o título de Os escritores (também) têm coisas a dizer (Lisboa: Tinta da China, 2013), conjunto de entrevistas levadas a cabo por Carlos Vaz Marques, selecção de mais vasto conjunto daquelas que o autor publicou na revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores).
As entrevistas conduzidas por Vaz Marques têm a marca da conversa, do encontro cuidadosamente preparado, com o trabalho de casa cumprido e com o ar de desvendamento que deve municiar qualquer entrevistador. Não se vai perguntar porque já se saiba; vai-se às perguntas porque se acha que, para lá do que é conhecido, do que é do domínio comum, há mais coisas para serem ditas, reveladas, desocultadas.
Assim, as entrevistas são guiadas com oportunidade, demonstrando franco conhecimento da obra do entrevistado, levando a que este se exponha para lá do que é a publicação da sua própria obra. E cada uma das páginas é absorvida pelo leitor, levando-o a crer que também esteve presente naquele momento de troca ou de perscrutação de saberes, levando-o a sentir que também participou na história daquele momento que foi a entrevista, onde não faltam contextualizações de espaço, estados de espírito, registos de pormenores ou as justificações para que as conversas tenham acontecido, onde não falta sequer a ilustração do rosto dos entrevistados devida ao traço de Vera Tavares.
É verdade que o leitor já sabe ao que vai, isto é, confia nos dotes do entrevistador, depois de ouvido nas emissões radiofónicas e televisivas, depois de lido em periódicos diversos, depois de lido noutras entrevistas já publicadas em livro, como aconteceu com o título Pessoal e Transmissível (Porto: ASA, 2004), que também recolheu uma dúzia de entrevistas das cerca de quatro centenas que tinham ido para o ar na TSF pela voz de Carlos Vaz Marques.
O que há de interessante no género entrevista é a vontade com que se parte à descoberta. Seja o entrevistador, seja o leitor ou ouvinte ou telespectador. No fundo, confiamos na lista de perguntas, na qualidade da conversa de quem faz as perguntas, acreditando que algumas delas poderiam ser feitas por nós ou são feitas em nosso nome. E o entrevistado entra neste jogo de revelação e de dádiva…
Nesta recolha de entrevistas a escritores, motivadas por livros, realizadas maioritariamente entre 2008 e 2012 (com excepção da de Agustina, datada de 2003), passam, por ordem alfabética, os nomes de Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes, Antonio Tabucchi, Dulce Maria Cardoso, Eduardo Lourenço, Hélia Correia, Gonçalo M. Tavares, José Saramago, Manuel António Pina, Mário de Carvalho, Mia Couto e Valter Hugo Mãe. Todas para serem lidas de fio a pavio, seguidas ou alternadas ou interrompidas, mas lidas. Excelentes testemunhos que proporcionam não menos excelentes aprendizagens ou não menos interessantes aproximações ou não menos entradas nas lógicas dos outros, óptimas conversas que nos levam aos caminhos do desvendamento da vida, da arte, do pensamento e do mundo!

Sublinhados
Abstracto – “Todos os substantivos abstractos são perigosos: honra, glória, coragem, pátria. (…) Podemos torcê-los e fazer deles o que quisermos. É em nome de palavras destas que se têm feito as piores coisas.” (António Lobo Antunes, pg. 47)
Arrogância – “A arrogância nunca tem resultados positivos. Normalmente é uma falsidade. (…) A arrogância habitualmente está cheia de vento. É vaidade.” (Mário de Carvalho, pg. 277)
Biblioteca – “Como é que se faz uma biblioteca ideal? É impossível. A minha biblioteca é feita dos livros que encontrei, dos amigos que fiz, dos livros que me mandaram… É o acaso. Um pouco como a vida. A literatura, no fundo,  segue os mesmos caminhos da vida. É a desordem. Que, depois, curiosamente, esta desordem se possa organizar sozinha é algo que não depende da nossa vontade. Ela depois encontra uma forma qualquer com a qual convivemos.” (Antonio Tabucchi, pg. 168)
Civilização – “A civilização torna as pessoas todas lunáticas. (…) Não é que disfarcem. Uns adaptam-se mais do que outros à rotina. Mas todos, mais ou menos, são lunáticos porque a civilização cria a aberração. O ser civilizado é uma aberração. É perverso.” (Agustina Bessa-Luís, pg. 19)
Criar – “Criar é tão absorvente que Deus não fez mais nada senão a criação.” (Mia Couto, pg. 213)
Cumprimento – “Se alguém me estende a mão, eu aperto-lhe a mão, sempre. Apertar a mão é uma metáfora de coisas mais vastas: de simpatia, de afecto.” (Manuel António Pina, pg. 374)
Data – “As datas são importantes na medida em que representam pontos de passagem mais importantes do que o dia anterior ou o dia seguinte.” (José Saramago, pg. 92)
Destino – “Um grande destino, aquilo para que hoje todos os jovens são criados. (…) Ou, no fim de contas, um grande sofrimento. Porque esse destino, chega a certa altura, tem um tecto e não vão mais além daquilo. Começa, então, o psiquiatra a exercer a sua função.” (Agustina Bessa-Luís, pg. 21)
Deus – “Deus é um comunicador. É a maior invenção da humanidade. Eu espero até que à força de tanto ser inventado exista mesmo. Mas o meu Deus não é o dos caminhos ínvios. É um Deus que permite a espera. Toda a vida é uma espera. A mais evidente é a da morte. A menos evidente é a da felicidade. A existência de Deus torna essa espera menos dolorosa.” (Dulce Maria Cardoso, pg. 343)
Escrever – “A responsabilidade de quem escreve é uma responsabilidade humana: a questão da conservação da memória. A única hipótese de conservarmos o antigo é tornarmos o antigo presente. Isso é uma responsabilidade do escritor: dar a sua atenção ao clássico.” (Gonçalo M. Tavares, pg. 302)
Fazer o melhor – “Olharmos o infinitamente pequeno ou o infinitamente grande dá-nos uma relativização tão grande de tudo. A grande dignidade do jornalismo – e da própria natureza humana – é tentar fazer o jornal o melhor possível sabendo que no dia seguinte ele vai embrulhar peixe. O mínimo que nos é exigível é o máximo que somos capazes de fazer. Nas coisas simples do dia-a-dia. Ser da maior bondade possível no quotidiano. A bondade é a maior de todas as qualidades. Inclui a beleza, a justiça e a verdade. Ser o mais bondoso possível sabendo que isso é inútil.” (Manuel António Pina, pg. 364)
– “A nossa existência é uma prisão num labirinto cuja porta de saída, para alguns, é a fé.” (Manuel António Pina, pg. 361)
Ficção – “O homem é um ser ficcionante. Independentemente do que seja o objecto dessa ficção. Nós estamos sempre ficcionando. A nossa relação com o real é uma relação imaginária.” (Eduardo Lourenço, pg. 135)
Homem – “A natureza do animal humano não mudou muito desde que nós aparecemos como homo sapiens. Portanto, contarmo-nos a nós próprios, contar o Homem com H maiúsculo, a Humanidade, significa também olhar umas vezes para o melhor e outras vezes para o pior. É preciso também olhar para o pior. Custa. Mas é um dever. É uma obrigação.” (Antonio Tabucchi, pp. 174-175)
Homem – “A natureza humana deve tomar algumas precauções e a primeira é vigiar-se um pouco, antes de se lançar em certas declarações.” (José Saramago, pg. 101)
Importante – “O importante é sempre o que não há.” (Dulce Maria Cardoso, pg. 319)
Literatura – “No fundo, a literatura procura umas frinchas naquilo que nós somos. O mistério de que nós somos feitos. Perceber alguma coisa é tentar usar uma lâmpada como a dos mineiros, para se entrar nessas minas desconhecidas que somos nós próprios.” (Antonio Tabucchi, pg. 174)
Livro – “O relacionamento com os livros – que vem de todos os livros que a gente lê quando é jovem – torna-os bocados de nós próprios. São as tábuas privadas das nossas leis. As escritas e as não escritas.” (Eduardo Lourenço, pg. 117)
Magoar – “Não quero magoar ninguém. (…) As pessoas não precisam de mim para se magoarem, já se magoam tanto a elas mesmas. Não precisam da minha ajuda para nada.” (António Lobo Antunes, pg. 67)
Memória – “O processo que leva a escolher, a seleccionar aquilo que sobrevive e aquilo que deve ser apagado é o mesmo. É um processo ficcional. Porque o que se escolhe nunca é exactamente verdade. As coisas nunca se passam exactamente assim. É uma elaboração. Tal e qual como o relato de um sonho é sempre uma elaboração. Ninguém se lembra exactamente do que sonhou porque isso implicava falar a língua dos sonhos e ninguém fala a língua dos sonhos. Quando fazemos esta tradução, temos de colocar aquilo numa outra ordem, numa outra lógica.” (Mia Couto, pp. 188-189)
Riso – “O riso é uma forma de resistência. Não há nenhuma tirania que suporte que se riam dela e das suas imposições. Não há nenhum fanatismo, nenhuma igreja, que ande à volta do riso. O riso tem sempre qualquer coisa de desafiante e de subversivo. (…) O poder habitualmente aposta na solenidade. O riso é um desafio a isso.” (Mário de Carvalho, pg. 259)
Tédio – “As pessoas mais desesperadas são aquelas que estão sempre a fugir do tédio. O tédio é uma coisa central, base. O que é o tédio? É um momento de espera em que aparentemente nada está a acontecer. É uma sensação de inutilidade. Mas a vida tem uma percentagem enorme de momentos em que nós estamos à espera. Se não soubermos lidar com isso, estamos a desperdiçar uma matéria fundamental.” (Gonçalo M. Tavares, pg. 309)
Tempo – “Nós não somos lineares. Nada em nós se comporta como um simples acumular de factos. Por isso, as coisas têm retrocessos.” (Valter Hugo Mãe, pg. 229)
Testemunha – “A diferença entre ser testemunha e espectador é que o espectador é passivo, não age, aceita. A testemunha age.” (Dulce Maria Cardoso, pg. 334)
Texto – “Um grande texto é o que tem uma escrita holográfica. É o que, em vez de fazer a fotografia do real, consegue dar profundidades que eu não alcanço de outra maneira. Que só alcanço por aquela combinação de palavras que aquele escritor conseguiu. Está lá outro universo dentro.” (Hélia Correia, pg. 397)

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Hélia Correia na "Ler"

A entrevista que Carlos Vaz Marques fez a Hélia Correia e que o número deste mês da revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 112, Abril 2012) publica é peça a considerar.
No próprio e excelente estilo de Vaz Marques, o pretexto da conversa é a publicação recente do poema A terceira miséria (Relógio d’Água) de Hélia Correia, perpassando pelas suas oito páginas o retrato da entrevistada, uma tela cheia de originalidade, iniciada com os ensinamentos recebidos dos gatos e da Grécia e finalizada com uma confissão resultante de um tratamento que acabou por rejeitar porque… “estive quase a ser normal, imagine.”
Fala-se da Grécia e da cultura grega, da poesia, do “mundo” literário, da escrita, da leitura, da vida. Uma entrevista a alguém que faz o seu mundo e que faz o mundo seu. Peça a ler.
E, sobre o presente, uma (longa) citação a reter, quando todos andamos preocupados com os valores em que nos movimentamos: “Não há nada que escape ao escândalo que o ser humano criou para os dias de hoje. As pessoas falam muito de valores mas eu não gosto muito de falar de valores porque isso implica um sistema moral que se considera mais perfeito do que o dos outros. Não falo, por isso, da falta de valores, hoje. Até porque há grandes valores, por exemplo entre os jovens. Há o valor maravilhoso da amizade, que está muito implantado. Se eles não têm outras virtudes é também porque não podem, porque estão lançados na arena dos gladiadores e têm de lutar até à morte para não serem mortos. Aí, não pode haver virtude nenhuma. Também não gosto nada da palavra ‘virtude’, que é romana e própria dos homens: é a qualidade do homem. Como é que se pode tipificar este escândalo? É o completo voltar de costas à vida e ao louvor da vida. Sendo que para mim a vida é a natureza e todos os seres que ela contém.”

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Em Paris, com Julien Green

No conjunto de 22 crónicas sob o título Paris (Lisboa: Tinta da China, 2010), Julien Green (1900-1998) faz a sua escrita deambular pela Paris luminosa ou nocturna, em paz ou sofredora, num encontro com a história, com episódios quotidianos, numa despedida ou num reencontro, antes ou depois da guerra.
Nestes textos, traduzidos por Carlos Vaz Marques, surgem marcas do tempo de escrita, firmadas por referências de alteração da cidade ou por convulsões da história. E o leitor percorre os becos, as escadas, os espaços abertos, as zonas mais frequentadas ou as ruelas de uma cartografia quase particular, ora sentindo o chão calcorreado pelo viandante que testemunha e sente, ora sobrevoando telhados e contemplando artérias que vão dar aqui ou ali, que se encontram.
É uma escrita de afectos aos lugares, desviando o leitor das turísticas peregrinações, mas levando-o a ouvir praças, monumentos tempos. E convidando-o ainda a incursões cronológicas, com recuos a outras eras, através do abrir de uma porta ou da visita a um templo.
Green localiza-se na cidade e revisita o espaço em que também fez viver algumas das suas personagens. Preocupa-se com as imagens que guarda do passado e alerta para o futuro, sentindo as ameaças sobre a cidade, que é também o seu ninho de afectos.
Não é um roteiro para seguir, é um roteiro seguido, experimentado, vivido, pessoal, que ensina a olhar, a viver, a sentir a cidade. É Paris na sua magia, com apelos para a memória, para o equilíbrio, para a natureza da cidade em que se passeia, se deambula. E mesmo numa capital como esta pode haver lugar para uma carta que é declaração de amor às árvores, como é o caso do texto “Escuta, lenhador…”, em que elas, as árvores, mostram as suas vantagens: têm a seu favor “o silêncio dos amantes, as brincadeiras das crianças, as divagações dos solitários e um povo livre e sem constrangimentos, ou seja, os pássaros.”
Deixando-se levar por uma escrita onde não falta o pendor memorialístico e uma observação apurada, o leitor é sub-repticiamente levado a agarrar ou a deixar-se agarrar pela cidade.

Marcadores
«A cidade, efectivamente, sorri apenas àqueles que se aproximam dela e que deambulam pelas suas ruas; a esses, ela fala numa linguagem tranquilizadora e familiar.»
«A não ser que se tenha perdido realmente tempo numa cidade, ninguém poderá considerar que a conhece bem. A alma de uma grande cidade não se deixa apreender facilmente; é preciso, para se comunicar com ela, termo-nos aborrecido, termos de algum modo sofrido nos lugares que a circunscrevem.»
«O viajante, por mais que fale, parece, quando termina, não ter dito nada. Isto porque quereríamos que ele nos oferecesse a cidade inteira, que ela nos fosse entregue com o murmúrio das suas ruas e o sol sobre as casas e o alvoroço das crianças nas praças; ele não nos traz mais do que uns ecos disso.»
«Um dos segredos das grandes cidades é proporcionarem aos flâneurs passeios cujo encanto se torna por vezes inexplicável, e por muito que me digam que a minha satisfação resulta do facto de as casas serem belas, as alamedas longas e as pedras antigas, há algo mais a que as palavras não podem senão fazer uma vaga alusão: uma certa ligeireza íntima que nos é dada pela presença de uma árvore perto de um telhado, ou por uma rua ensolarada, pela súbita frescura de uma cúpula negra sob as arcadas altivas de um palacete de outrora.»
«Há na paisagem parisiense qualquer coisa de tão perfeitamente indefinível como na expressão de um rosto humano.»
«[As estátuas] são um pouco como que sentinelas desse mundo de pedra, de bronze, de mármore, espiando de perto, em certo sentido, as nossas atitudes incompreensíveis, tal como é incompreensível para o homem comum a agitação dos insectos.»
«Enquanto jovem, eu só tinha um desejo quando chegava o bom tempo: partir, ir passear para longe com os meus desejos e os meus sonhos, que por vezes se misturavam, mas, com o passar dos anos, apercebo-me de que todos os horizontes longínquos se reúnem e de que os percorremos muto melhor intimamente.»
«Vivemos, à beira do século XXI, com ideias absolutamente retrógradas, em particular na forma de construir as nossas cidades. Não se trata de querer abolir o passado, mas de o usar como memória, e o inventário que o futuro fará é antes de mais o de tudo aquilo que as várias gerações nos ofereceram de mais belo desde a primeira pedra talhada pelo homem.»
«Desde que nasci, no XVII bairro, perto da porta des Ternes, depois das guerras e dos anos de exílio, e mesmo depois de todas as viagens que me levaram a quase todo o lado onde queria ir, vim reencontrar a minha cidade-natal com uma admiração igualmente intensa de cada vez que regressei.»

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Umberto Eco na "Ler"

Umberto Eco foi a personalidade que Carlos Vaz Marques entrevistou para o número da Ler de Abril (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 101). O pretexto foi o mais recente livro de Eco, O Cemitério de Praga, mas a entrevista vale por tudo quanto este académico, romancista, leitor, semiólogo italiano nos diz. Ficam alguns passos…
Linguagem – «É esse o poder da linguagem: serve para dizer a verdade mas também para criar coisas que não existem, fazendo crer que têm existência real.»
Realidade – «A realidade é muito mais romanesca do que a imaginação. É por isso que em todos os meus romances sempre recorri a fontes científicas verdadeiras. Porque elas eram mais cómicas, mais dramáticas, mais surpreendentes do que aquilo que pudesse inventar.»
Mentir e fazer de conta – «Mentir é dizer o contrário daquilo que se sabe ser verdade. Digo-lhe, por exemplo, que não está mais ninguém cá em casa. Como sei que a minha mulher está ali dentro, estou a dizer-lhe o contrário da verdade e o contrário daquilo que sei que é verdade, de modo a que você acredite em qualquer coisa falsa. Isto é uma mentira. Outra coisa é dizer o que é falso: seria dizer-lhe que ela não está cá mas sem saber que afinal está. (…) A narração é fazer de conta. E o que é fazer de conta? (…) É um jogo em que, por exemplo, eu digo que vou dar-lhe um murro. Faço de conta que vou dar-lhe o murro mas não lho dou. (…) Fazer de conta é, portanto, o modo de falar a alguém dizendo-lhe: ‘Tu sabes que aquilo que te vou contar não é verdadeiro, mas deves aceitar o meu jogo e fazer de conta que ele é verdadeiro.’ (…) É uma característica da narração, em geral. Da arte narrativa, que nos propõe mundos possíveis, mas nos quais vivemos como se fossem reais. Começamos mesmo a considerar verdadeiros certos personagens, de tal maneira que eles emigram para fora do livro. Quer dizer, D. Quixote existe entre nós. Não temos de ir à procura dele no livro de Cervantes. (…) Por um lado tomamos o mundo narrativo da literatura como se fosse verdadeiro e por vezes tomamos o mundo real como se fosse uma narração.»
Romance histórico – «Os romances históricos são assim: colocam em cena personagens históricos. Habitualmente, as grandes figuras aparecem como pano de fundo. (…) A verdadeira História é representada por personagens de ficção.»
Sábio – «Um sábio que passou a vida a estudar borboletas não quer tornar-se uma borboleta. Porque como borboleta teria uma vida demasiado curta.»
Prémios literários – «São uma forma de fazer publicidade ao livro. A um livro em particular e ao livro em geral. Tornam as pessoas sensíveis à existência de livros. São como uma campanha publicitária para a preservação das árvores. As pessoas, assim, pouco a pouco, habituam-se à ideia de que não devem derrubar as árvores.»
Enciclopédia – «O que é a enciclopédia? É o conjunto das notícias controladas pela comunidade científica que nos diz que vale a pena saber isto e não vale a pena saber aquilo.»
Computador e automóvel – «A chegada do computador foi o que houve de mais espantoso. Mudou realmente a vida de toda a gente e mais rapidamente do que qualquer outra coisa. Os primeiros computadores pessoais apareceram em 1981. Portanto, no espaço de 30 anos, mudaram a nossa vida. O automóvel demorou um século a mudar as coisas.»

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Pedro Tamen: uma entrevista de saber

É uma entrevista de sabedoria, de calma e de olhar crítico sobre o mundo aquela que Pedro Tamen deu a Carlos Vaz Marques, publicada na revista Ler deste mês (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 99, Fevereiro de 2011). Ressalta a vida do poeta e também a vida do tradutor que Tamen é. E está ainda presente o olhar sobre um certo mundo literário, bem como o seu último livro, que entra pelos problemas da comunicação. Dessa entrevista saltam estes excertos:
* “As relações humanas não são um rio pacífico e sereno.”
* “Nós somos actores das nossas vidas e dialogamos com os actores que estão ao nosso lado mas nunca, até ao fim, é perfeitamente clara a relação que estabelecemos com os outros, com os comparsas, com os companheiros ou com as companheiras.”
* “A gente nunca aprende nada. O que o tempo e a vida fizeram foi permitir-me experimentar essas dificuldades [de comunicação] e fazer-me reflectir sobre elas, senti-las na pelo e tentar ultrapassá-las.”
* “Mesmo aqueles que a gente não pode definir como vaidosos descaem inevitavelmente para falar de si mesmos. As pessoas levam-se muito a sério.”
* “Os poetas, no seu reduto próprio de poetas, não são tipos normais. Em princípio, o poeta é aquele que vê um bocadinho mais do que os outros. Ou que, pelo menos, é capaz de exprimir coisas que vê e que os outros, mesmo quando vêem, não são capazes de formular. Estou a falar tanto dos poetas como dos artistas em geral: músicos, pintores, etc. A poesia é, para mim, um permanente arranhar o mundo, com unhas na cal, para tentar encontrar coisas que se pressentem por detrás do branco uniforme do mundo e da vida.”
* “As pessoas estão muito mais dispersas, cada vez tratam mais ou pensam mais em tratar das suas vidinhas.”
* “Há um endeusamento de falsos valores.”

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Manuel Villaverde Cabral – entre a leitura e a escola

Carlos Vaz Marques entrevistou o sociólogo Manuel Villaverde Cabral para a revista Ler deste mês (Lisboa: Círculo de Leitores, nº 98, Janeiro.2011). A cultura, a sociedade, a política, a comunicação entre estratos, as elites, as gerações… são vários bons pretextos para ler uma análise que nos toca. Aqui ficam excertos relacionados com a leitura e com a escola.
Leitura – “A leitura de livros acrescenta. Nomeadamente, a leitura de ficção e de poesia, mas também de livros de reflexão. (…) As pessoas que lêem vão sempre distinguir-se das outras e terão sempre o seu nicho de mercado. (…) Nada activa mais o neurónio do que a leitura.”
Escola – “Nós ainda estamos a ensinar a ler a crianças cujos pais não sabem ler. A pretensão da escola de fazer tudo – o que as famílias faziam, o que a sociedade devia fazer – é que está a matar a escola. Porque é evidente que não vai poder fazê-lo. A escola, para funcionar bem, supõe que os pais fazem o seu papel.”
Autoridade – “Uma escola onde a autoridade desapareceu, onde só uma autoridade intrínseca, moral, etc., se pode exercer, é uma escola onde as famílias em que a crise de autoridade foi melhor resolvida, melhor negociada, voltam a ter uma espécie de vantagem. Ou seja, quanto mais anárquica a situação, mais beneficiados saem aqueles que têm uma boa estrutura familiar e social.”
Motivação – “Na escola (…) há uma crise de motivação. E porquê? Por causa da massificação dos diplomas escolares. A massificação aconteceu numa sociedade envelhecida, rígida, estatizada até ao tutano, onde de facto os jovens com habilitações tinham emprego. Ainda hoje, a taxa de desemprego do estudante universitário em Portugal é comparativamente baixa. Tem é aumentado muito, o que cria um trauma. Daí a dizer que não valia a pena massificar dessa maneira vai um passo que muita gente dá imediatamente. Mas há o tal problema da motivação. O problema dos bairros problemáticos é que muitos jovens não vêem como e em quê aquilo lhes vai servir. Depois, alguns deles exprimem-se para o lado. Musicalmente, por exemplo. E muito bem.”

sábado, 4 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares na "Ler"

No número de Dezembro da revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 97), a habitual entrevista dirigida por Carlos Vaz Marques foi buscar Gonçalo M. Tavares, português, escritor, 40 anos, 27 livros publicados. Os sublinhados que seguem são de lá, alfabeticamente ordenados pelo tema a que dizem respeito, mas não respeitando a ordem da conversa havida. Algumas das ideias aqui expressas apresentou-as o escritor, na tarde de hoje, no encontro com leitores que aconteceu na Biblioteca Municipal de Palmela.
Camões -Os Lusíadas é uma obra tão central na língua portuguesa que é quase natural passar por lá. Seria acaso ou má sorte um escritor hoje não se cruzar com Os Lusíadas. Há inúmeros autores que de uma forma ou de outra se cruzam com Camões. É como se fosse uma praça central de uma cidade. E é tão central que temos obrigatoriamente de passar por aí. Quando estamos fascinados por qualquer coisa é natural querermos fazer algo em redor disso.”
Leitor - “Os leitores, quando entram numa livraria, escolhem um livro. Mas também acho que o livro escolhe os leitores. É muito importante o livro escolher os leitores. Não ser uma espécie de livro fácil, no sentido de que vai com todos.”
Linguagem - “A lógica da linguagem não tem nada a ver com a lógica da matemática. (…) A linguagem é sempre uma coisa que não dá resto zero. As frases não dão resto zero. (…) Há sempre mais qualquer coisa que se pode dizer.”
Literatura e ética - “Toda a gente está em diálogo. Só não o está quem não deu atenção mínima ao passado. Há quem escreva como se não existisse memória. Mas a conservação da memória é aquilo que distingue o homem do animal. Ou seja, os animais não conservam as coisas que as gerações anteriores fizeram. Nesse aspecto, a memória é uma marca humana extraordinária – a ideia de fazer o novo mas ao mesmo tempo conservar o que vem de trás e dizer: ‘Sou herdeiro destes extraordinários escritores que nos antecederam.’ É quase questão de responsabilidade literária e ética.”
Livro - “Um livro sério é um livro que quer interferir com as pessoas. É um livro que não é para aquela semana. Há aqui um combate muito forte com o mundo em que nós estamos – que já não é semanal nem diário, que com a internet é ao segundo, uma coisa quase brutal. Um dos grandes combates actuais é o combate entre a actualidade e o importante. (…) Estamos num mundo em que a questão do actual e do importante se joga minuto a minuto. O que quer dizer que se o actual é ao minuto, o não-actual é logo passado um minuto. O problema é que esta lógica da velocidade é uma lógica opressora. A grande velocidade é muito violenta.”
Memória - “Há uma coisa importante que tem a ver com uma certa responsabilidade de quem escreve. É uma responsabilidade humana: a questão da conservação da memória. A única hipótese de conservarmos o antigo é tornarmos o antigo presente. Acho que isso é uma responsabilidade do escritor: dar a sua atenção ao clássico.”
Pensar - “A boa narrativa pensa, é evidente, e o bom pensamento conta histórias. Pensar não é mais do que contar uma história que é a história de uma ideia. (…) O pensamento é a história de uma ideia. Alguém que pensa está a ter uma ideia que desenvolve ao longo do tempo. Portanto, essa ideia é como se fosse uma personagem que se vai transformando. Tem até opositores. A personagem-ideia tem sempre um inimigo, que é o contra-argumento. Pensar é uma narrativa.”
Século XX - “O século XX é um século que nos está a dizer que temos de estar atentos.”
Tédio - “O tédio é uma sensação muito importante. Se eu tivesse de aconselhar alguma coisa para a escola, em geral, seria que se ensinasse a lidar com o tédio. (…) Tenho muito medo das pessoas que não sabem lidar com o tédio. As pessoas mais desesperadas são aquelas que estão sempre a fugir do tédio. O tédio é uma coisa central, base. O que é o tédio? É um momento de espera em que aparentemente nada está a acontecer. É uma sensação de inutilidade. Mas a vida tem uma percentagem enorme de momentos em que nós estamos à espera. Se não soubermos lidar com isso, estamos a desperdiçar uma matéria fundamental.”

sábado, 7 de março de 2009

António Barreto - mais umas dicas sobre leitura

A revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores), na sua saída mensal, é referência indispensável pela vida que dá aos livros, à leitura, à opinião e à cultura. O número de Março, o 78, já está nas bancas. E motivos de interesse não lhe faltam. Destaco a entrevista a António Barreto, figura de capa também, feita por Carlos Vaz Marques, num estilo em que a personagem (se) fala, (se) diz e (se) pensa. E, dela, sete excertos. Que são análise, leitura e conselhos.
Leitura online –O modo de leitura, a pausa, o sossego, a ponderação, a moderação, a reflexão, a nota, a posição pessoal, geográfica, física com que você lê jornais e lê livros, tudo isso está em vias de extinção, a benefício dessas novas formas que são mais rápidas, que seguramente proporcionam menos reflexão. (…) O que você lia no comboio, o que lia num sítio fora de casa, sem o computador na mão, o que lia voltando para a frente e para trás, escrevendo notinhas, escrevendo no canto dos livros, escrevendo num caderninho que tem ao lado, não creio que seja possível fazê-lo com um palm (…) ou com um laptop, onde tudo está feito para ter uma informação rápida. Com um telemóvel, você, hoje, já consegue ter inúmera informação: tudo sintético, tudo compacto, tudo resumido. Os sentimentos são resumidos, são condensados. As palavras, as frases, o discurso, a narrativa – é tudo cada vez mais concentrado. Porque já se está a viver de uma maneira diferente, a correr.
Ler –Ler implica ter uma vida para a leitura; que na sua vida tem de haver espaço para a leitura. Quando você já não tem espaço para a leitura, não é o cheiro [do livro] que vai substituir o que quer que seja, não é o objecto físico que conta.
Ler em Portugal –Os portugueses aprenderam a ler muito tarde. (…) Eu não tenho nenhuma crença mística nas nações, mas elas existem. Os povos existem. Há uma memória colectiva. Quando, na nação portuguesa, metade ou dois terços das pessoas souberam ler, isso aconteceu com mais de um século de atraso, pelo menos, em relação a países como a Inglaterra, a Dinamarca, a Suécia.
Escola e leitura, dantes –A escola foi uma ajuda muito madrasta da leitura, em Portugal. (…) Se não fosse a minha família (…) e se não fosse um ou dois professores cujos nomes mais de 50 anos depois eu recordo, a escola não me tinha ajudado. A escola do meu tempo não incitava à leitura. Os que gostavam de ler era por outras razões, não era por causa da escola.
Escola e leitura, hoje –Passaram 50 anos e, por razões diferentes, a escola hoje destrói a leitura. Seja com a análise estruturalista e linguística dos textos, seja pela ideia de que a escola tem de ser mais a acção e tem de ser mais projecto e mais mil coisas que fazem a nova escola. A leitura na escola é a última das preocupações.
MagalhãesDa maneira como o Governo aposta na informática, sem qualquer espécie de visão crítica das coisas, se gastasse um quinto do que gasta, em tempo e em recursos, na leitura, talvez houvesse em Portugal um bocadinho mais de progresso. O Magalhães, nesse sentido, é o maior assassino da leitura em Portugal. Chegou-se ao ponto de criticar aquilo a que chamaram cultura livresca. O que é terrível. É a condenação do livro. Quando o livro é a melhor maneira de transmitir cultura. Ainda é a melhor maneira. (…) O Magalhães (…) foi transformado numa espécie de bezerro de ouro da nova ciência e de uma nova cultura, que, em certo sentido, é a destruição da leitura.
Levar um jovem até à leitura –No essencial, chamar-lhe a atenção para o sentido, para a narrativa, para a história. É como o amor – ou o sexo, para ser mais bruto e cru: você sabe que os sentimentos amorosos e sexuais têm, algures, uma componente bioquímica. São uns produtos que se chamam feromonas ou lá o que é e que desencadeiam umas operações no cérebro, no hipotálamo, no sistema nervoso, mas não é isso que faz o amor. (…) Você não diz a ninguém: as minhas feromonas e as tuas… Não é isso que conta. O que conta é o sentimento, o ver, o beijar. Isso é que conta. É isso que se deve ir buscar à literatura, não a química.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Máximas em mínimas (29)

Pensar
Há uma coisa que eu não admito da parte da sociedade, nem dos outros, nem de ninguém: é que me impeçam de pensar. É uma coisa que não devia ser impedida às pessoas. (…) Não me impeçam de pensar, não me dêem ideias feitas porque eu não as aceito. Tenho que saber, primeiro, se elas me convêm a mim e se eu acredito nelas e se eu as reconheço como válidas.
Maria João Pires. Entrevista, in: Carlos Vaz Marques. Pessoal e Intransmissível XX-XXI.
Porto: ASA Editores / “Diário de Notícias”, 2004, pg. 23.