domingo, 26 de agosto de 2007

Urbano Tavares Rodrigues em entrevista

Eduardo Prado Coelho traçou recentemente o retrato de Urbano Tavares Rodrigues (n. 1923) como “o mais generoso, aberto e compreensivo dos comunistas” (“Urbano”, Público, 9.Jul.2007). Hoje, o Diário de Notícias insere nas suas páginas uma entrevista com Urbano, em que vêm à tona afirmações que confirmam os predicativos que lhe lançou Prado Coelho.
Das várias ideias que ressaltam da entrevista, conduzida por Isabel Lucas, algumas há a reter por aquilo que significam como chaves para uma leitura da sua obra.
Em primeiro lugar, valerá a pena falar da sua coerência ideológica e fidelidade ao comunismo (a ideologia perpassa por muitos dos seus escritos), ainda que admitindo a hipótese de um comunismo que “terá de ser qualquer coisa nova”, com “caminhos diversos, consoante os continentes, as condições e a vontade dos próprios povos; consoante as suas experiências”. A segunda pista importante para a sua leitura relaciona-se com o fascínio exercido pela mulher (ela, que é uma constante nos seus romances) – “Mas eu olho e olhei sempre com encantamento para a mulher. A mulher como amiga, como namorada, como amante. A mulher foi sempre, para mim, uma forma de compreender melhor o mundo, de ir às raízes da vida. A experiência da mulher é, para mim, uma experiência erótica ou foi muito uma experiência erótica”.
Relativamente ao futuro, Urbano Tavares Rodrigues está ainda cheio de projectos. Mas, para já, é com embevecimento que fala do romance que sairá brevemente, intitulado Os cadernos secretos do Prior do Crato, uma experiência inovadora na sua escrita, agora em torno de uma personagem histórica – “este é o meu romance de que mais gosto. O prior do Crato é um homem erótico que teve muitas mulheres, dez filhos. É um homem religioso, que mantém sempre um diálogo com Deus, embora aos 16 anos ele tenha recusado as ordens de castidade. É também um intelectual. Fui escrevendo, escrevendo e vi surgir ali a História de Portugal, até a história da Europa, e vendo aparecer esta figura fantástica em todas as dimensões. Ele é o patriota puro, que se opõe à traição e que é ferido por um português traidor. É um homem também religioso no sentido da paixão quase panteística pela terra. Quanto terminei e reli as provas achei que tinha conseguido escrever um grande romance e um romance em que, neste momento em que há novamente uma invasão de Castela, sobretudo económica.
Finalmente, gostaria de destacar o auto-retrato que Urbano de si apresenta, algo assim entre o possível e a utopia, quadro que, de resto, faz jus às observações de Prado Coelho com que abri este postal – “Tive sempre qualquer coisa de cavaleiro andante, desde a adolescência. Antes de tomar o rumo, de querer transformar o mundo e transformar a vida e pôr a minha acção ao serviço disso, tive quase o amor do risco pelo risco. Era um homem de aventura em todos os sentidos, do acto gratuito, quase quixotesco. Há muita coisa que conduz ao grande perdedor.
De Urbano Tavares Rodrigues temos uma obra vasta nos domínios da ficção, do ensaísmo, da crónica e de algum memorialismo. Apesar do forte compromisso ideológico que tem marcado muitos dos seus títulos, o conjunto da sua obra será um marco incontornável na criação e na literatura do século XX e da passagem para o século XXI português. [Fotografia de Paulo Spranger, in Diário de Notícias]

Ayamonte e as Bandas Portuguesas

A gente chega à zona mais antiga de Ayamonte, ali em frente a Vila Real de Santo António, na margem espanhola do Guadiana, e supreende-se com a forte intenção de perpetuar memórias e valores em monumentos. Um dessas novas peças de arte pública, inaugurada há pouco mais de um ano, em 18 de Agosto de 2006, tem como objecto três bandas filarmónicas portuguesas da região de Setúbal: a Sociedade Filarmónica 1º de Dezembro (Montijo, 1854), a Sociedade Imparcial 15 de Janeiro (Alcochete, 1898) e a Sociedade Filarmónica Progresso e Labor Samouquense (Samouco, Alcochete, 1919).



O motivo? O intercâmbio que estes agrupamentos têm feito com os ayamontinos. Aqui se deixam as imagens do Monumento às Bandas Portuguesas.

A criação destas três bandas em Portugal, e particularmente na região de Setúbal, está inserida num processo de aparecimento de movimentos do género, mais ou menos em época semelhante, ou, pelo menos, num espaço de tempo preciso (entre meados do séc. XIX e os anos 20 do século seguinte). A este propósito, refere Rui Cascão que "a ápoca áurea das filarmónicas é, indubitavelmente, a que decorre entre 1850 e 1890, coincidindo com a Regeneração", tempo em que "são constituídas inúmeras sociedades musicais, em grande parte estimuladas por rivalidades de natureza política" [cf. "Vida quotidiana e sociabilidade". História de Portugal (dir.: José Mattoso). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, vol. 5, pp. 517-541], chegando a haver, por esses mesmos motivos (que, por vezes, pesavam mais do que o fascínio exercido por Euterpe), mais do que uma banda em cada localidade. A título de exemplo, podem ser mencionadas, além das três homenageadas, a Sociedade Filarmónica Amizade Visconde de Alcácer (1830), as Sociedades Filarmónicas Incrível Almadense e Democrática Timbre Seixalense (ambas de 1848), a Sociedade Filarmónica Palmelense "Loureiros" (1852), a Sociedade Filarmónica Humanitária (Palmela, 1864), a Sociedade Musical Capricho Setubalense (1867), a Sociedade Filarmónica União Seixalense (1871), a Sociedade Filarmónica Progresso Matos Galamba (Alcácer, 1879), a Sociedade Filarmónica Providência (Azeitão, 1880), a Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense (1882), a Banda Filarmónica da Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense (1895), a Sociedade Filarmónica União Agrícola (Pinhal Novo, 1896), a Sociedade Filarmónica Sineense (1898), a Sociedade Musical Franternidade Operária Grandolense (1912), a Sociedade Musical Sesimbrense e a Sociedade Filarmónica União Arrentelense (ambas de 1914) e a Sociedade de Instrução Musical (Quinta do Anjo, 1921).




















sábado, 25 de agosto de 2007

Memória: Eduardo Prado Coelho (1944-2007)

"Lisboa - 5.1.92 - Com o tempo, as viagens, a sedução do entardecer, o gosto do chá, a linha de luz na Place des Vosges, o silêncio dos barcos deslizando na água, a minha relação com aquilo a que se chama literatura transformou-se. Poderia talvez dizer que se des-criticizou, que se des-teorizou. E, de certo modo, tornei-me inapto para o ensino. Ou talvez seja exactamente o contrário. Isto é, talvez a minha capacidade para falar daquilo de que gosto se tenha apurado nesta mistura desordenada de leituras, experiências, deambulações, vagabundagens, nomadismos. Perdi pouco a pouco o fervor das teorizações austeras. Desinteressei-me da erudição sistemática. Tornei-me um marginal da história e da teoria literária - o que sempre tinha sido, mas dissimuladamente. Numa palavra, hoje sou incapaz de me interessar por aquilo que me não interessa (...)." (Eduardo Prado Coelho. Tudo o que não escrevi (Diário I). Porto: Edições ASA, 1992, pp. 250-251)
"Bruxelas - 18.9.91 - Paisagem estranha, oblíqua, lívida. Caminho sobre a terra de ninguém, como numa cidade esvaziada por uma obscura catástrofe nocturna. Tantos portugueses por aí tresmalhados e não encontro nenhum. Apetecia-me que alguém aparecesse, e houvesse o halo de um encontro. E apetecia-me exactamente o contrário: atravessar assim, passo a passo, como quem comprova a solidão, as ruas de uma cidade deserta. Sinto-as como se as tropas inimigas tivessem misteriosamente retirado, e apenas existissem alguns fogos trémulos - sinais precários de uma conjura longínqua." (id., id., pg. 26)

S. António e S. Francisco Xavier em Amesterdão

O santo português mais conhecido no mundo tem também os seus lugares na cidade de Amesterdão, com imagens em várias igrejas. Ainda que, por vezes, ligado a Pádua (cidade onde morreu), a verdade é que, para um português em visita, a imagem de S. António (português, de Lisboa) não passa ao lado, também ficando atestada a sua fama de pregador e de santo popular.
Aqui se apresentam fotos de três imagens de S. António captadas em Amesterdão, cidade também muito ligada à história de séculos de muitos portugueses que ali tiveram que se refugiar por causa das perseguições aos judeus.
Amstelkring é museu desde 1888. A casa que o alberga data de 1661 e pertenceu ao mercador Jan Hartman. Dois anos depois da sua construção, foi ali criada uma igreja católica clandestina (em virtude da proibição da prática do catolicismo), situada em parte superior da casa, por isso sendo conhecida como a igreja de Deus Nosso Senhor do Sótão. Sobre pequena peanha, assenta uma imagem original de S. António, do séc. XVIII.
Sto. António, séc. XVIII, Amstelkring Museum
Em 1887, tendo regressado a liberdade religiosa, foi construída a igreja de S. Nicolau, patrono de marinheiros (Sint Nikolaaskerk), sob projecto de A. C. Bleys. A construção apresenta a tipologia neo-renascentista e lá se pode ver uma outra imagem de S. António.
S. António, na igreja de S. Nicolau

Finalmente, refira-se a igreja de S. Francisco Xavier (também conhecida por De Krijtberg). Substituindo uma antiga capela jesuíta clandestina, a igreja, com marcas neo-góticas, data de 1884, com projecto de Alfred Tep. Sendo o seu patrono o santo jesuíta Francisco Xavier (patrono de Setúbal desde o séc. XVIII, uma vez que, em 10 de Março de 1703, foi tomada a decisão camarária de Setúbal passar a ter S. Francisco Xavier como padroeiro, assinalado no dia 3 de Dezembro, data do seu passamento), lá pode ser vista uma sua imagem, à esquerda do altar-mor, enquanto, à direita, está o seu companheiro Inácio de Loiola, fundador da Companhia de Jesus.

Igreja de S. Francisco Xavier, vendo-se o patrono à esquerda do altar e S. Inácio de Loiola à direita (a partir de postal ilustrado)

S. Francisco Xavier, na igreja de que é padroeiro
Pertencendo S. António à ordem franciscana, a sua fama é tão grande que também neste templo está presente, logo à entrada.

S. António, na Igreja de S. Francisco Xavier

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Para uma antologia da região de Setúbal (3)

“Depois de Lisboa é Setúbal a maior povoação da Estremadura, assim como é a de mais importância comercial depois das duas primeiras cidades do reino.” Assim começa o artigo de Vilhena Barbosa sobre Setúbal na obra As Cidades e Vilas da Monarquia Portuguesa que têm Brasão de Armas (Lisboa: Tipografia do Panorama, 1862, vol. 3, pp. 39-53), num registo que parece de engrandecimento, mas que, ao longo do texto, vai mostrar uma cidade de contradições.
Depois de localizar a cidade, arrisca explicação ligeira para a etimologia do nome com base nas corruptelas linguísticas – em memória da cidade de Cetóbriga, “deram à nova povoação o nome de Cetobra, corrupção da primeira. Corrompendo-se ainda este com o tempo, veio a trocar-se em Setobala, e mais tarde em Setúbal”. Segue o autor um percurso pela história desde os tempos mouros, mencionando a conquista por Afonso Henriques, a atribuição de foral no reinado de Sancho I (atribuído na verdade por Paio Peres Correia, da Ordem de Santiago, no reinado de Afonso III), as primeiras muralhas no tempo de Afonso IV, o casamento de D. João II e a vingança que este rei tomou em Setúbal sobre adversários, novas fortificações mandadas por João IV e a elevação a cidade em tempo de Pedro V. Paralelamente, vai seguindo a história de algumas tragédias que assolaram a cidade – terramotos de 1531, de 1755 e de 1858, pestes de 1579 e de 1598, tempestade de 1724 e invasões francesas.
Apesar de todas as contrariedades, considera Vilhena Barbosa que “à sua situação geográfica, à indústria dos seus habitantes e aos valiosos produtos do seu solo deve Setúbal a fortuna de ter ressurgido tantas vezes de entre as suas ruínas e do meio de mortíferas epidemias”, observação que introduz o leitor na caracterização política, administrativa, religiosa e comercial da cidade. Do património edificado, salienta o Convento de Jesus, “o mais notável edifício religioso de Setúbal” e, referindo-se à utilização do designado “mármore da Arrábida” que integra o Convento, considera ser “o único templo que há no país construído com esta bela pedraria”.
O movimento portuário, as salinas, o vinho (com destaque para o moscatel), o peixe e os encantos e curiosidades da paisagem (como a Arrábida, Tróia e a Pedra Furada) são marcas que Barbosa indica para a prosperidade da Setúbal de então, cuja população andava pelas “quinze mil almas”.
Brasão de Setúbal apresentado na obra de Vilhena Barbosa

O retrato traçado refere também alguns aspectos menos positivos, como, no plano cultural, a falta de investimento nas escavações em Tróia (recorde-se que o trabalho de investigação feito pela Sociedade Arqueológica Lusitana em meados do século XIX teve de parar por falta de apoios financeiros) e o aspecto de alguns arruamentos – “as ruas da cidade são pela maior parte estreitas, tortuosas e imundas ou pouco limpas”. Entre as personalidades oriundas de Setúbal, são referidos o jurisconsulto Manuel de Cabedo e o poeta Vasco Mouzinho de Quebedo, havendo silêncio quanto aos nomes de Bocage ou de Luísa Todi.
O retrato traçado por Vilhena Barbosa é vasto e multifacetado e pretende abordar todos os aspectos que relacionam a cidade com o seu passado e com o seu presente, através de uma exposição mais ou menos informada e actualizada, sendo nítida a marca da possibilidade de Setúbal ser uma terra próspera.
Inácio de Vilhena Barbosa (1811-1890), natural de Lisboa, estudou Teologia no Convento de São Bento de Xabregas, abandonando a vida religiosa aquando da extinção das ordens religiosas (1834). Ficou conhecido sobretudo pelo seu papel de publicista, tendo redigido Universo Pitoresco (1839-1844) e colaborado em Arquivo Pitoresco e Panorama, entre outros periódicos. Com vasta informação histórica, integrou a Academia Real das Ciências de Lisboa e foi autor de As Cidades e Vilas da Monarquia Portuguesa que têm brasão de armas (1860-1862, 3 vols.) e de Monumentos de Portugal Históricos, Artísticos e Arqueológicos (1886), entre outros títulos.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

O Palacete da Comenda e uma dormida de Raul Lino ao luar

Na sua edição de 18 de Março de 1877, o jornal Gazeta Setubalense informava: “Esteve quinta-feira nesta cidade o sr. Conde Armand, distinto diplomata, ministro da França em Lisboa. S. Exª foi visitar a pitoresca propriedade que possui no sítio da Comenda.” A dita propriedade estava na posse do francês Armand desde o início de Março de 1872 por compra que este fizera a Henrique Maria Albino, morador em Beja. Ernest Armand, viúvo, era o representante do governo francês em Lisboa. Em 1870, alugara o Palácio de Santos para aí instalar a Legação francesa, imóvel que o governo francês acabaria por comprar em 1909, aí mantendo a sua representação, mesmo depois que a Legação foi elevada ao nível de Embaixada em 1948.


Comenda e Sado vistos por Américo Ribeiro

[a partir da obra Américo Ribeiro Todos os Dias (Madureira Lopes, coord. Setúbal: Livraria Hemus, 2006)]

Duas décadas depois da notícia da Gazeta Setubalense, em Março de 1898, o Conde fez uma doação ao filho, Abel Henri George, Visconde Armand, residente em Paris, aí incluindo o terreno da Comenda. Passaram cinco anos e o jornal A Construção Moderna, de 10 de Agosto de 1903, publicou o texto “Casa do Exmo. Sr. Conde de Armand na Quinta da Comenda em Setúbal – Arquitecto sr. Raul Lino”, aí dando a conhecer o projecto da obra que viria a erguer-se: “A construção é feita num pequeno promontório, de luxuriante vegetação, sobranceiro ao rio Sado, em Setúbal, posição extremamente pitoresca, como podem atestá-lo aqueles que têm visto as ridentes margens do belo rio, junto à lida cidade de Bocage. No citado promontório existe actualmente uma velha casa, cujas paredes, em parte, se aproveitam pois foram levantadas sobre as muralhas de um antigo forte. As grandes varandas da nova construção deitam para sobre o rio.” Em anexo ao texto de apresentação vinham os desenhos da casa, com as quatro fachadas e as plantas do subsolo, do rés-do-chão e do primeiro andar.

Comenda: rés-de-chão , em desenho de Raul Lino (in A Arquitectura Portuguesa, 1908)
Conta-se que o Conde Armand pedira a Raul Lino (1879-1974) para desenhar a casa, convite acompanhado de uma sugestão singular: que, antes de começar a projectar a construção, o arquitecto dormisse no sítio uma noite ao luar. O repto foi aceite e o resultado foi o palacete da Comenda, que teve a responsabilidade da construção civil nas mãos de Augusto Vitorino da Rosa. Na edição de Junho de 1908, a revista A Arquitectura Portuguesa publicava um texto assinado por Henrique das Neves, em cujas três páginas (mais duas com estampas devidas ao fotógrafo sadino Manuel Rodrigues Aldegalega) era feita a apologia das linhas: “Eis uma casa de habitação em cujo traçado colaboraram não somente o intento do seu destino, como também a região, o clima e a paisagem”.
A apreciação do autor resultou de um passeio que ele fizera até ao Outão na companhia de Ana de Castro Osório, tendo o enquadramento suscitado o espanto: “Na curva da estrada que decorre sobre um outeiro e oferece o melhor ponto de vista sobre o chateau do sr. Conde, estacionou o trem; e ali nos demorámos, absortos, a ver, a admirar e a… invejar. Ele ergue-se aprumado airosamente como a Torre de Belém, mas sobranceiro ao rio Sado, destacando a sua alvura contra os tons: verde-bronze da vegetação, sanguíneo da argila do solo e azul das águas do rio. Como o olhar se me absorvia naquelas varandas! E o gozo espiritual que acordavam em mim!” Depois de algumas considerações sobre arquitectura em Portugal, o autor acentua as características que foram desejadas pelo proprietário do solar e da quinta: sujeição a muralhas e paredes que já lá existiam, cobertura com “telha nacional, em forma de canal” e linhas simples de forma a ser exaltado o enquadramento natural.
Comenda: 1º andar, em desenho de Raul Lino (A Arquitectura Portuguesa, 1908)
O texto de Henrique das Neves serve ainda para dar umas pinceladas sobre o que seria a personagem Conde de Armand, que passava na Comenda alguns meses afastado da buliçosa Paris, através do retrato que lhe foi traçado por um amigo setubalense: “De chapéu de grandes abas, uma vara na mão e botas altas é assim que encontramos o sr. Conde, fidalgo de primorosa educação, percorrendo esta sua propriedade, que ele ama. Considero-o um artista-filósofo. Nas horas de calor, enquanto descansa, tira da algibeira o seu Virgílio e assim se deleita sub tegmine fagi, imaginando ter diante de si, quando ergue o olhar do livro, as verdadeiras paisagens que acaba de ver tracejadas naquelas églogas”. E não é sem uma ponta de ironia que o texto termina: “Do sr. Conde de Armand direi ainda de minha lavra: foi uma homenagem que prestou à classe dos arquitectos portugueses, confiando a um deles a dispendiosa edificação da sua nova casa da Comenda. Suspeito que não terá de arrepender-se. Algum português talvez haja que, no seu caso, tivesse mandado vir… arquitecto francês”.
O Conde Armand, Abel Henri George, faleceu no final de Abril de 1919, passando a propriedade para os herdeiros – a esposa, Condessa de Armand, Françoise de Brantes, e cinco filhos. Mais tarde, em 1952, o registo da propriedade era feito em nome da Sociedade Agrícola da Quinta da Comenda de Mouguelas, constituída pelos descendentes de Abel George. Nos anos 80, a Quinta da Comenda seria adquirida por António Xavier de Lima, que, em conversa com o jornal O Setubalense, publicada na edição de 17 de Abril de 1989, dizia: “Enquanto a Comenda for minha, nenhuma árvore será derrubada”. Com efeito, uma das apostas levadas a cabo pelo Conde Armand no início do século XX foi o da riqueza da flora, quer pela preservação das espécies existentes, quer pela plantação de outras – Henrique das Neves chamava a atenção no seu artigo para o parque que o Conde pretendia construir e para uma plantação “de cerca de 1000 pés de palmeira” que tinha visto a cerca de um quilómetro da residência da Comenda.

Palacete da Comenda (Agosto de 2005)

O palacete que Raul Lino projectou para a Comenda inseria já algumas das linhas que viriam a definir a arte do arquitecto: o respeito pela Natureza e o equilíbrio entre a construção e o lugar. O solar da Comenda foi um dos seus primeiros projectos, mas também um marco para um percurso que assinou obras como o Cine-Teatro Tivoli (Lisboa, 1919-1924), a Casa dos Patudos (Alpiarça, 1905) e muitas outras construções, sobretudo na zona de Sintra e Estoril. Em Setúbal, o nome de Raul Lino esteve também ligado ao projecto de reconstrução do edifício dos Paços do Concelho, na Praça de Bocage (destruído por um incêndio na noite de 5 de Outubro de 1910, a reconstrução, que Raul Lino foi convidado para projectar em 1927, foi concluída em 1939).

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Pagelas Setubalenses - 4

EDMOND BARTISSOL NA TOPONÍMIA SADINA
Desde o primeiro trimestre de 1911 que, em Setúbal, Edmond Bartissol dá nome à rua que antes teve S. Domingos como patrono, escolha ligada à oferta da casa onde terá nascido Bocage, que o engenheiro francês fez, em 1887, à Câmara sadina, dizendo a imprensa da época que a intenção do doador era a de que ali fosse instalada “a biblioteca municipal ou um museu bocagiano”.
Nascido em 20 de Dezembro de 1841 em Perpignan, no sul de França, Bartissol cedo foi empreendedor de génio. Em 1866, estava na construção do canal de Suez e, em 1875, em Portugal como representante da Sociedade Financeira de Paris, em plena época do “fontismo”, que defendia a facilidade de comunicações, apoiadas no capital estrangeiro. Foi assim que se tornou numa personalidade incontornável, tendo começado pela exploração mineira e chegando à construção da via férrea, na linha da Beira Alta (a partir de 1879) e na de Belém-Cascais (em 1886-1890), às obras do porto de Leixões e a um projecto de travessia do Tejo (1889) por ponte, em Lisboa, que não teve sucesso devido aos custos.
Bartissol estabeleceu raízes também no Alentejo, na Herdade do Pinheiro, onde, a partir de 1880, passava uma parte significativa do ano. Já no século XX, dedicar-se-ia também à política, chegando a presidente da Câmara na sua região. Em 16 de Agosto de 1916, vítima de uma congestão pulmonar, faleceu em Paris. Assim acabava os seus dias “o único exemplo de um self-made-man na plena acepção do termo”, como disse Christophe Charle.
A tão desejada ponte sobre o Tejo só viria 50 anos após a sua morte. Quanto ao museu bocagiano em Setúbal, foi apenas em 2006, ao passarem 90 anos sobre a morte de Bartissol, que ele foi inaugurado na Casa de Bocage.
DOUTROS TEMPOS: “Monsieur Edmond Bartissol, por intermédio do sr. Manuel Joaquim da Costa, mandou entregar a casa em que nasceu o insigne poeta Bocage à Câmara Municipal desta cidade, declarando que muito desejava que ali se estabelecesse a biblioteca municipal ou um museu bocagiano, para cujo fim o sr. Bartissol queria concorrer mandando desde já reparar todo o prédio, de modo a ficar convenientemente preparado para um dos fins acima indicados, conservando-se intacta a forma e disposição externa e interna da casa, tal qual se presume que existia quando o poeta a habitava. A Câmara Municipal, em sessão do dia 24 do corrente mês, deliberou aceitar a briosa oferta do ilustre cidadão francês.” (na Gazeta Setubalense, de 28 de Agosto de 1887)
[Fotografia de Edmond Bartissol datada de 1897, a partir do livro Edmond Bartissol (1841-1916) - Du canal de Suez à la bouteille d'apéritif, de Jean-Louis Escudier (Paris: CNRS Éditions, 2000)]

terça-feira, 14 de agosto de 2007

A propósito do centenário de Miguel Torga

As datas que assinalam centenários, pelo menos essas, servem para que seja feita (ou mantida) a inscrição da identidade de um povo, de um país, de uma cultura. No domingo, 12, passou o primeiro centenário do nascimento de Miguel Torga (1907-1995), assinalado em Coimbra (terra onde viveu) com a inauguração de um memorial junto ao Mondego e com a abertura ao público da sua casa-museu.

O Governo português não esteve presente no evento, gesto que nem o facto de se saber que este é um período de férias para imensa gente desculpa, mesmo porque, é sabido, o centenário do nascimento de Miguel Torga estava anunciado desde 12 de Agosto de 1907, há cem anos, portanto.
O que esta ausência significa de um ponto de vista cultural e identitário é evidente… e é triste. O que esta ausência mostra quanto ao valor dado às referências socialistas por um governo que pertence a essa área política também é evidente, sobretudo se relembrarmos o que Mário Soares ainda recentemente escreveu no número que o JL dedicou ao poeta transmontano (“Um testemunho pessoal”, in JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 961, 1.Ago.2007, pp. 17-18): “Foi depois do 25 de Abril que comecei – por força das circunstâncias políticas da época – a conviver mais intimamente com Torga. Acho que nunca se inscreveu no Partido Socialista, mas tornou-se, rapidamente, a principal figura socialista de referência de Coimbra e da zona centro do país. Presidiu a inúmeros comícios realizados antes e depois das eleições para a Constituinte e interessava-se, ao pormenor, pela vida interna do Partido, com uma militância e um cuidado superiores aos da maioria dos nossos aderentes.
Olhamos e não acreditamos, pois: é que mais valeu ganhar a Câmara de Lisboa (em cuja tomada de posse o Governo esteve presente em peso) do que patrocinar o respeito pela identidade que faz Portugal, como foi o caso do centenário torguiano (em cuja celebração o governo esteve ausente em peso)!

Miguel Torga visto por Francisco Simões (Oeiras, Parque dos Poetas)

Em 1992, os correspondentes da imprensa estrangeira em Portugal elegeram Torga como “Figura do Ano”. Em 8 de Julho, em discurso a esses mesmos correspondentes aquando da entrega do respectivo prémio, Torga assumia-se como o “repórter inquieto dum quotidiano sem fronteiras” e lançava-lhes o seguinte repto: “De mim, ireis naturalmente repetir o que consta, como pareço e me declaro. Acrescentai, por favor, que lutei, luto e lutarei até ao derradeiro alento pela preservação dessa identidade, última razão de ser de qualquer indivíduo ou colectividade, e que repudio com todas as veras da alma a irresponsabilidade da Europa que em Maastricht, sornamente, a tenta negar, trair-se e trair-nos. E que, além de no presente recusar assim radicalmente o cerceamento à minha expressão ocidental, me orgulho de no passado, sem compromisso de nenhuma ordem, e às claras, ter pensado sempre em termos de livre comunhão e desinteressada fraternidade o mundo redondo que proficientemente representais. Que sou, desde que me conheço, um seu devotado cidadão português.” (in Diário, vol. XVI, 1993, pg. 130). Que rica lição sobre identidade!

"Combustões" no fim?

Acabado de chegar da curta pausa, uma das primeiras notícias a que acedo é a do fim anunciado do Combustões. A surpresa não é total, mas…
Sigo o trajecto de Combustões praticamente desde o seu início por duas razões: pelo rigor intelectual do Miguel Castelo Branco e pela amizade pessoal que cultivamos há mais de 20 anos.
Quando conheci o Miguel, já a ideia era essa – a da pessoa culta, não cedendo a estereótipos, gostando de pensar e de apresentar uma visão do mundo com base na História e num esquema de pensamento informado e plural. Tem sido isso que ele tem transmitido ao Combustões, com comentários certeiros e cultos (deixem-me que destaque esta última característica), sem ir a reboque de coisa nenhuma a não ser da sua maneira de pensar e de ver os acontecimentos, o mundo, a História, a vida. Recomendei o blogue do Miguel a amigos e inseri-o aqui na lista dos “favoritos”. E será uma pena para o pensamento bloguístico se o Combustões acabar, como o Miguel anunciou num dos seus recentes “postais”.
Conservo a esperança de que este seja um falso anúncio, porque o Miguel não é pessoa de abandonar a discussão das ideias. E, mesmo noutro lado do planeta, o seu contributo pode chegar… sobretudo porque é necessário!

"Pausa" achada

Houve um visitante que "descobriu" o sítio a que respeita a fotografia que aqui deixei há dias para justificar uma pausa, ainda que curta. É certo, é de S. Pedro de Moel aquele "banco dos segredos", imagem captada em meados de Dezembro de 2005. A explicação (ou a legenda) para tão belo recanto também pode ser encontrada nas quadras que a árvore murmura...

sábado, 4 de agosto de 2007

Pausa, algures

Uma pausa, pois.
Fica a fotografia. Depois, poderei dizer onde foi feita já há uns tempos. Mas... podemos pôr à prova a imaginação. Alguém quer localizar este cenário?

Para uma antologia da região de Setúbal (2)

Santareno e o "Setúbal"
Pelos idos de 1957 e de 1958, o médico António Martinho do Rosário (1924-1980) acompanhou a frota bacalhoeira portuguesa, primeiro nos arrastões “David Melgueiro” e “Senhora do Mar” e, depois, no navio-hospital “Gil Eanes” (este último construído nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, de onde saiu em 1955). Depois desta experiência a bordo, logo em 1959, saía um livro com crónicas sobre as vidas conhecidas no alto-mar, pondo almas a nu, revelando caracteres, deixando passar princípios humanísticos – era Nos mares do fim do mundo (Lisboa: Ática), assinado por Bernardo Santareno, nada mais nada menos do que o pseudónimo literário do médico de que já falei, autor português mais conhecido pelo contributo literário para o género dramático.
A dedicatória desse livro é longa, mas reproduzo o seu final: “A todos os pescadores bacalhoeiros portugueses, que têm o riso claro e feroz, que sempre ocultam nos olhos um aceno da morte, que todos os dias, naturalmente, fazem milagres de força, que, se a pesca adrega de ser boa, cantam e bailam sozinhos, como os meninos e os loucos… que são tipos perfeitos da raça.
Pelas páginas desta humana epopeia passa a figura do “Setúbal”, um tipo que parece saído das páginas de Victor Hugo pelo seu aspecto quasimodiano (de resto, o narrador invoca essa referência), com uma história trágica no seu percurso de vida, que suscita a simpatia do narrador, que chega mesmo a solidarizar-se com a personagem. O texto vale pela história, é certo, mas também pelo retrato do “Setúbal”, moço no “Maria do Mar”, numa escrita que pinta o essencial e que regista um percurso de 40 anos desembocados numa situação de miséria humana, lá onde cabem os “azarados” da vida, numa caracterização forte, matizada pelas cores do sofrimento. E fica para o leitor a última imagem que marcou o narrador: “Estou a vê-lo: no corpo deformado, a roupa oleada e suja de sangue; na cabeça, um chapéu clownesco de pala ao lado; as mãos sempre feridas e entrapadas; toda a miséria do mundo, na voz roufenha e entaramelada; a podridão da carne, no rosto vermelho e tumefeito…

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Um ser titular

Professor titular desde há dias. O nome parece pomposo, porque passa a haver os “titulares” e os que o não são, isto é, os que podem (e têm que) assumir determinados cargos de coordenação nas escolas e os outros. O “titular” apareceu no novo “Estatuto da Carreira Docente” e a tutela do Ministério da Educação justificou a criação deste grupo com a necessidade de “dotar as escolas de um corpo de docentes com mais experiência, mais formação e mais autoridade, que assegurarão em permanência as funções de enquadramento, coordenação e supervisão”, como aparecia escrito na edição on-line do Público de há dias, como o próprio Ministério tem divulgado.
A ideia dos “titulares” não entrou bem nas escolas e os ambientes que foram criados no meio dos professores, numas quantas que conheço, ajudaram muito aos receios e às dúvidas de alguns sobre se deviam ou não candidatar-se à “titularidade”. Acho que a ideia dos “titulares”, independentemente de concordar ou não com ela, foi mal explicada e mal justificada por quem o devia fazer, aí incluindo os vários parceiros que estiveram na negociação.
Olho para o lado e vejo que ficaram fora do título pessoas que já têm muita experiência, muita formação e muita autoridade, quer pedagógica, quer profissional, que, em qualquer país do mundo, seriam capazes de ser uma boa parte para um todo ainda melhor. Já desempenhei várias funções na escola e aprendi que aqui, como noutro lado qualquer, há a lapaliciana verdade que afirma existirem bons e maus profissionais – tenho trabalhado com pessoas que não hesitaria em chamar para uma equipa que tivesse que constituir, de tal forma são firmes os seus créditos, propósitos e capacidades; mas também tenho encontrado outras que dispensaria no imediato, exactamente pelas razões opostas. Tudo isto soa a verdades comuns, eu sei. Mas têm que ser ditas. E os critérios para a obtenção do estatuto de “titular” tiveram apenas em conta o imediatamente visível na escola (os cargos e um tempo reduzido de 7 anos) e não o trabalho pedagógico, o interesse e o envolvimento na (vida da) escola, talvez mais dificilmente quantificável mas que faz com que as escolas sejam, em boa parte, aquilo que são.
Sou, então, um dos 16501 que, nos 8º e 9º escalões, ficaram como “titulares”. A minha expectativa é de dúvida quanto ao que vai ser “pedido” aos “titulares”, quer por parte da tutela, quer por parte dos outros professores. Não sei o que possa mudar na prática. Quem está nesta profissão por gosto continuará a gostar dela, pelo menos enquanto isso lhe for permitido; quem para esta profissão veio por razões que não a de ser professor continuará a acreditar muito mais nessas razões. Uma das bandeiras que me entusiasmou para a entrada no ensino foi o Diário de Sebastião da Gama, obra que, defendo-o, deveria ser de leitura obrigatória para os professores (lamentavelmente, ainda há poucos meses, em conversa com uma professora com estágio já feito, a leccionar, ligada à área das línguas, na casa dos 40, verifiquei que nunca ela tinha ouvido falar de Sebastião da Gama, muito menos do seu Diário!...). Depois deste, vários outros diários e livros de crónicas vieram às mãos sobre a profissão do professor, uns felizes, outros menos felizes, alguns com o recurso à ficção para evitar nomes ou para dar mais a noção das situações – recordo, assim de repente e por os ter aqui, 2000 horas de um professor, de Fernando Gutiérrez (Lisboa: Livraria Didáctica Editora, s/d), Chamada escrita, de Orlando Ferreira Debarros (Lisboa: Livros Horizonte, 1988), Diário de uma professora, de Maria Amélia Jorge (Porto: ASA, 2001), e O diário da stôra Lili, de Fátima Bica (Lisboa: Edições Colibri, 2005). Confesso esta minha preferência pelos relatos de experiências e reflexões na primeira pessoa, mesmo que ficcionados, em vez de teoréticas escritas de uma linguagem que “esquece” os alunos e que marginaliza as pessoas.
“O que eu quero principalmente é que vivam felizes” escrevia Sebastião da Gama no primeiro dia do seu Diário (11 de Janeiro de 1949), referindo-se aos alunos. O que é que para isto vai, então, “ser pedido” aos professores titulares?
[A gravura representa Platão, em "A escola de Atenas" (Vaticano, 1511), de Rafael]

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

José Afonso na Feira de Sant'Iago

Fui à Feira de Sant’Iago (em Setúbal, até 5 de Agosto) para ver a memória de José Afonso, que admiro enquanto poeta, compositor e cantor. Confesso que não me agrada o espaço da Feira nem a organização. Em tempos, quando a Feira era na Avenida, havia mais relacionamento, mais proximidade, mais festa. A perspectiva não é saudosista, mas o actual espaço da Feira não alegra, por muito que se insista no contrário. Só lá vou pelo inevitável. Fui à Feira para ver a memória de José Afonso, o homem que se cantou, que integrou no seu repertório letras populares e de autores como Manuel Alegre, António Barahona, Camões ou António Aleixo, que entusiasmou mais do que uma geração, que legou a “Grândola, Vila Morena” (transformada em símbolo, mas inicialmente destinada a homenagear a Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense). Deixo o “Traz outro amigo também” (Cantares. 3ª ed. Lisboa: Edição SCIP – AAEE, s/d; saído em LP editado em 1970 pela Orfeu), que José Afonso escreveu e musicou “à memória de Miguel Ramos”, e fotografias do cantor na Feira deste ano.

Traz outro amigo também

Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também

Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem-vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte
todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também




Exterior do pavilhão dedicado à exposição sobre José Afonso
e murais alusivos ao poeta no espaço "Botequim das Parras"

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

“Setúbal – Jornal Municipal”, nº 20

Novo formato e novo grafismo compõem o Setúbal – Jornal Municipal, da Câmara Municipal de Setúbal, agora no seu 20º número, em distribuição. Obviamente, tudo o que seja publicação institucional terá de dar a imagem da instituição a que pertence. Isso passa-se nesta edição do jornal e é normal que assim seja. Mas mais coisas se passam, porventura mais “valerosas”: este modelo de jornal contém informação equilibrada, sem apostar na imagem forçada, oscilando entre os textos longos e pormenorizados (bem justificados, de resto, pelos assuntos que abrangem, como demonstra o registo do que foi o 10 de Junho em Setúbal) e as notícias mais curtas, de leitura rápida. Há ainda o retrato de gentes e de instituições da terra, a história local, a crónica “estoriada”, o aconselhamento para o bem-estar, o registo de alguns problemas. Há leitura e informação e fotografia quanto baste. É um número com conteúdo. Os textos poderiam, no entanto, ter assinatura. E deveria, também, haver uma porta para (toda) a vereação apresentar ideias sobre (a vida d)o concelho, para “falar” aos leitores (fosse sob a forma de entrevista, de reportagem ou de artigo de opinião). Do ponto de vista do conteúdo e do seu tratamento, este Setúbal – Jornal Municipal satisfaz e é, em meu entender, do interessante que por aí se faz no género.

Baptista-Bastos, sobre o medo

Ainda falando sobre o medo que Manuel Alegre pretendeu pôr na ribalta da discussão e que muitos "iluminados" acharam ser conversa estéril e na sequência do que aqui publiquei ontem, apreciei o já conhecido tom da bela escrita e do desempoeiramento usado por Baptista-Bastos no Diário de Notícias de hoje, intitulado "Discurso sobre o medo". A ler.

Há 93 anos, em 1 de Agosto de 1914

"1 de Agosto de 1914 – Abro este bloco. Vai ser um diário? Temo-o e espero-o. Temo, porque, no fim de contas – como dizia o velho capelão de Saint-Cyr, de venerável memória – o que é a guerra?... um pouco de glória, muito sangue, honra e lágrimas; mas também o espero, porque a atmosfera está irrespirável. É preciso acabar com este pesadelo alemão…
Esta manhã fui acordado por um impedido que me informou que o coronel pedia a presença de todos os oficiais no quartel com urgência. No caminho, ouvi os rumores mais ou menos sensacionalistas: o assassinato de Jaurès, a revolução em Paris… e que mais sei eu?
Enfim, chego. Os rostos estão graves, os olhares silenciosos. Numa linguagem velada, mas que não engana ninguém, o nosso coronel faz-nos sentir que a hora decisiva, esperada por todos desde há meio século, tinha chegado.
Estas palavras foram ouvidas num silêncio comovido. Os quadros pendurados nas paredes do nosso salão nobre pareciam voltar gravemente os seus olhos de retrato para o nosso chefe. Evocando as guerras napoleónicas para a maior parte dos antigos combatentes, em tempo de paz, pareciam recolher-se nas suas recordações longínquas e distanciar-se de nós, os novos, que não tínhamos sabido repetir a sua glória. Mas hoje, que íamos dar continuidade à sua raça, eles consentiam tomar contacto connosco pela primeira vez, dizendo-nos com o poeta: Fils, j’ai cent mille coeurs qui t’aiment dans le mien!
Esta tarde, pelas quatro e meia, ao sair do gabinete, fui interpelado por um ciclista, que, pedalando, me atirou estas palavras: Já aí está!… É um amigo que me anuncia a mobilização.
Corro rápido para Condé, bairro do meu regimento, cuja entrada está obstruída por uma multidão que ali acorre em busca de novidades. Além disso, hoje é sábado, dia de mercado, e muitos camponeses vieram abraçar os seus filhos pela última vez. É comovente… toda esta gente está recolhida e triste. Um velho, com as suas condecorações, mantém-se silencioso junto de sua mulher e do filho, sargento. Os três retêm uma lágrima ao longo das pálpebras. Ao longe, são os chamamentos de clarim. Toda a cidade está na grande rua Moyenne, e cada qual fala ao vizinho em voz baixa.
Corro à Câmara Municipal para ler a proclamação do governo: 'Nesta altura, não há partidos; há apenas a França eterna!' Bravo! E viva a França que não morre!...
Encontro minha mulher e a primeira frase que ela pronuncia é: 'como estás contente!' Era verdade, estava mesmo, apesar de tudo.
Fomos juntos à estação para obter informações. Pelo caminho, encontrei mulheres lavadas em lágrimas. Voltando os olhos para as filas de casas, vi casais abraçando-se no meio de soluços. Vou comprar tabaco e a vendedora diz-me entre dentes: 'Ó senhor, guarde-os, guarde-os… que não há mais nenhum!'
Sim, é mesmo um diário que abro nesta tarde. O Governo informou que a mobilização não é a guerra, e isso não pode enganar ninguém. Quarenta e quatro anos de silêncio, de humilhação, de aprisionamento… Não, isto não podia durar mais tempo.
"
Este texto constitui o início da obra Journal de campagne d’un Officier de ligne, assinada por Capitaine Rimbault (Paris: Librairie Militaire Berger-Levrault, 1916), e relembra o que se passou há 93 anos em França e, depois, no mundo: a Grande Guerra, mais tarde conhecida por Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Rimbault, da região da Lorena (que estava sob domínio alemão desde 1870), acreditava que aquele era, finalmente, o momento da libertação. Muitos outros acreditaram que essa libertação ia ser rápida. Mas os dias passaram. E os meses também. Vários Natais foram vividos na trincheira. E a guerra só acabou mais de quatro anos volvidos sobre este escrito de Rimbault, com o Armistício, em 11 de Novembro de 1918, depois de um caminho percorrido com muita destruição, muitas mortes, muito sofrimento. Em 1915, o jornalista Garibaldi Falcão (n. Fundão, 1864), publicava já a História Ilustrada da Grande Guerra (que, só nesse ano, chegou ao 6º volume, num total de 1200 páginas), registando: “Nos primeiros dias de Agosto de 1914, a Europa passou de súbito da glacial antecâmara dos políticos para a ardente arena da guerra.” A este inferno de fogo e de dor não estiveram alheios os portugueses, que, no final de Janeiro de 1917, começaram a partir para a Flandres, para a região do Lys, onde, em Abril seguinte, teriam o seu sacrifício. A participação portuguesa dividiu-se pela Europa (na Flandres) e pela África (em Angola e Moçambique). A mobilização atingiu, no nosso país, os 80 mil homens para as três frentes; no final, os mortos, feridos e prisioneiros cifraram-se em 30 mil.
[A primeira fotografia reproduz a capa do livro de Rimbault; a segunda mostra o decreto para a mobilização assinado por Poincaré.]