terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Alexandrina Pereira e Mariana Ricardo - "Somos Setúbal": poemas e desenhos em favor da memória



Comecemos pelo título – Somos Setúbal. Duas palavras apenas, mas fortes e intensas, a oporem-se àquilo que o filósofo José Gil chamou o “medo de existir”, característica comum em Portugal, recanto que foi de nevoeiro e de “não inscrição”. Duas palavras que afirmam e intensificam a identidade – se, por um lado, remetem para os valores de uma cidade, de uma comunidade, por outro, essas mesmas palavras assumem neste título que “ser Setúbal” não é uma questão apenas dos outros, mas de um “nós”, em que entram, não só as figuras que vão ser tratadas, mas também os leitores, mas também as autoras, uma pela escrita, outra pelo desenho. Uma certeza: ambas se afirmam como fazendo parte desse universo que é o de haver uma maneira de “formar Setúbal”, isto é, uma marca colada a estas margens do Sado, que passa pelas pessoas.
Na nota que abre o livro, assinada pelas autoras, este pormenor da identidade não é esquecido, lá sendo dito que se trata de um “modesto contributo para a memória futura da história desta cidade”. Então, este é um livro de comemoração, em que são memoradas figuras que se identificam com Setúbal, independentemente do tempo em que por cá andaram ou do tempo que as continua a fazer estar entre nós.
E, quanto ao conteúdo, ele é feito de imagens e de palavras. O traço é de Mariana Ricardo, fotografado por Paulo Alexandre Ferreira, traço que se passeia pelos rostos de personagens desta cidade, quase todos eles com um sorriso esboçado, muitos deles conotados com a fotografia que conhecemos, com a imagem que temos. Visualizar as personagens é uma forma de as actualizar, de lhes dar consistência, de as tornar presentes no nosso tempo e nos nossos momentos, de as incorporar na nossa vida, com entradas pelas janelas das páginas, a contemplarem as palavras, os retratos escritos que delas são feitos, num jogo de espelhos – ora a imagem, ora a impressão dada pela escrita.
As palavras são de Alexandrina Pereira, autora bem conhecida em Setúbal, sempre dada a estas marcas de identidade e de afecto à terra e às gentes, para o que põe ao serviço a sua veia poética. Como referem as autoras na nota introdutória, trata-se de um livro “em que as palavras organizadas poeticamente se entrelaçam com a imagem de cada pessoa aqui incluída”, duas formas de arte e de expressão, ambas se congregando na busca e no enlevo de uma maneira de “ser Setúbal”.
Entra o leitor por estas páginas e encontra vinte nomes, vinte imagens, vinte poemas, vinte curtas biografias, constituindo esses nomes o tema de cada um dos poemas e de cada um dos registos biográficos, abrangendo os universos da música, do teatro, da poesia, da intervenção social e cívica, do desporto e alguns que, pela sua singularidade, podem ser entendidos como “únicos”. Falamos de um livro que é um itinerário de visita à memória de catorze nomes e de convívio com meia dúzia de outras figuras do nosso presente, que povoam o nosso quotidiano, todos alinhados por ordem alfabética, de A a Z, qual chave que abre e fecha um universo de referências, num horizonte temporal que viaja entre o século XVIII, protagonizado por Luísa Todi e por Bocage, e se despenha sobre o século XXI, num encontro com Eugénio da Fonseca (o de data de nascimento mais recente), Carlos Rodrigues, Fernando Tomé, Georgete de Jesus, Manuel de Jesus e Odete Santos. O trilho é ainda alicerçado em Álvaro Félix, António Maria Eusébio (o que alcançou maior longevidade, com quase 92 anos), Carlos César, Fernando Guerreiro, Francisco Finura, Mário Regalado, Sebastião da Gama (o que teve menos tempo de vida), Xico da Cana, Xico Jorge, Zé dos Gatos, Zeca Afonso e Zeca Gregório.
Marcas fortes trazidas para todas estas personagens são a capacidade de sonhar, a humildade e uma filosofia de vida. O livro abre com uma expressão do universo do teatro, como se fosse um espectáculo aquilo a que o leitor vai assistir – “Sobe o pano, entra o actor”, uma forma de apresentar a personagem do poema, o actor Álvaro Félix, mas também de partilhar o palco da escrita com esta assistência que somos nós, por ali desfilando a história e as histórias, os afectos, os trabalhos, as recordações de momentos, as pessoas.
Os poemas contêm aguarelas de apreciação, que vão desde a personalidade à obra produzida, todos assentando numa base que pretende ser também uma homenagem. Esta aspiração revela-se no prazer de serem mostradas as características, usando marcas de proximidade e mensagens que ligam a poesia à figura, muitas vezes se socorrendo de um tratamento por “tu”, como se se tratasse de uma carta, de uma conversa a dois. Nessas mensagens vão sendo apontados os indicadores das vidas, os traços de personalidade, os efeitos das obras e dos percursos, a admiração partilhada. Mas também flui o testemunho, veiculado pela memória de quem escreve ou desenha, num vaivém entre o passado e o presente, entre as histórias contadas e as revividas.
As escolhas que deram origem a este livro vão sendo marcadas pela admiração e pela amizade, é certo, mas também pelos princípios seguidos na vida, correspondendo os valores apontados também a um perfilhar desses mesmos valores. Por esse facto, também aqui se joga no tabuleiro dos princípios, naquilo que pode constituir um conjunto de referências para a sociedade – o “não fazer mal a ninguém” (apanágio do poeta Calafate), a busca e a luta pela liberdade (linhas de força em Bocage, Odete Santos e Zeca Afonso), a ousadia e a determinação (como no caso de Carlos César), a partilha de alegrias e de sonhos (relevado de Manel Bola), a solidariedade contra o esquecimento e a pobreza (resultante de Eugénio da Fonseca), a capacidade criativa para representar a vida (decorrente de Álvaro Félix e de Fernando Guerreiro), a humildade (marca de Fernando Tomé), o assumir a diversidade e a afirmação da diferença (presente em Francisco Finura e em Zé dos Gatos), o respeito pela tradição (visível na paixão pelo fado apresentada em Georgete e Manuel de Jesus), o trabalho necessário ao sucesso (pairando em Luísa Todi), o convívio e o respeito pela inspiração (emergente em Mário Regalado), o afecto pela Natureza (testemunhado em Sebastião da Gama), o culto de capacidades (simbolizado em Xico da Cana e em Zeca Gregório), a felicidade no que se faz (patente em Xico Jorge). Enfim, um programa de humanidade, uma multiplicidade de caminhos que ajudam à afirmação da vida, de um povo.
Somos Setúbal é, por isso, um espelho que reflecte imagens e exemplos edificadores e edificantes de uma comunidade, de uma identidade. Assim haja vontade para descobrir naqueles que nos rodeiam os dotes e as marcas que podem ajudar a que uma sociedade se afirme, desde que esses traços se revistam em favor da humanidade. Por isso… somos Setúbal!
[na apresentação da obra, em 13 de Fevereiro, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal]