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quinta-feira, 15 de abril de 2021

João de Barros: memórias de Bruges em apoio à Bélgica



Na edição de 23 de Novembro de 1914 da Ilustração Portuguesa, Augusto de Castro assina uma crónica emocionada cujo assunto é o poema Ode à Bélgica, de João de Barros (1881-1960), publicado por essa altura: “canta, num ritmo emotivo e poético, as lágrimas e as ruínas da Bélgica violada e massacrada. (...) Chora a dor da Bruges triste, das cidades incendiadas, dos lares enlutados, dos templos destruídos - e a sua visão evoca a Bélgica redimida de amanhã.”

Em causa estava o sofrimento belga, no contexto da Primeira Guerra Mundial, pois, logo no início de Agosto, o país, que se afirmara neutro, foi invadido pelos alemães e, até Outubro de 1914, padeceu de violência sobre a população civil em elevado grau, sendo referência maior o massacre de Dinant, em 23 de Agosto, com 674 civis fuzilados.

Dedicado aos “amigos de Bruxelas”, o poema é organizado em seis partes, composto por dísticos e um monóstico no final da primeira parte, em métrica hendecassilábica. O tom do sofrimento surge logo no início - “Bélgica formosa, Bélgica fecunda, / Bárbaros sem alma vão-te assassinar! // Na loucura torpe, que incendeia e mata, / sobre ti lançaram garras de ambição! // Sobre ti lançaram, corpo e tenro moço, / mãos de violência, de extermínio e roubo!” -, sendo toda a primeira parte povoada com imagens da destruição por causa da guerra. Perante tal devastação, o poeta lembra na parte seguinte os aspectos bons que o ligam à Bélgica - pessoas, paisagem, paz - até chegar à memória das cidades, ao mencionar “a melancolia dessa Bruges morta, / da cidade morta dos canais que sonham”, imagem em que ressoa o título de Georges Rodenbach (1855-1898), Bruges, a morta, de 1892, personificação daquele espaço, ou um conhecido poema de Mallarmé (1842-1898) dirigido aos amigos belgas, textos que quase conferem o estatuto de romantismo e de arquétipo àquela cidade.

A terceira e a quarta partes constituem uma tela de saudade e de evocação sobre Bruges, onde o poeta ouviu “um Passado inteiro palpitar, erguer-se”: figuras das rendeiras de bilros, “cantos esquecidos”, imagens do passado de artistas e de príncipes, sonoridades dos sinos e dos canais, luminosidade e névoa, uma “paleta” para se “combinarem os mais raros tons”, um espaço para amar. Este êxtase é contrariado quando o poema se aproxima do final, perante uma cidade esmagada e melancólica sob o peso invasor - “Pois o teu encanto, pois a tua graça, / Bruges sem defesa, já tos violaram! // Bruges dolorosa, Bárbaros sem alma / pisam tuas ruas, turvam teus canais!”

O poema conclui com a esperança na recuperação dos valores que a Bélgica representava, assentando sobre um tom exortativo e heróico - “Tu, caminha e luta; tu, combate e canta / Alma de coragem, Força de triunfo!” - e anunciando um ressurgimento “que há-de ser em breve, Bélgica formosa, / Bélgica fecunda, teu Futuro altivo!”

Em 7 de Março de 1915, em Lisboa, no Politeama, Ode à Bélgica era apresentada como poema sinfónico, em composição do grandolense Teófilo Saguer, estruturado em três números - “Bélgica invadida”, “Rendeiras de Bruges” e “Bélgica heróica” -, que “recebeu muitos aplausos, o que também não nos admira, pois o assunto está na ordem do dia”, assinalava o crítico da revista A Arte Musical, de 15 de Março.

Com esta obra, João de Barros enfileirava no rol dos artistas e pensadores republicanos cuja arte favorecia a propaganda contra a Alemanha no conflito da Grande Guerra.

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 600, 2021-04-14, p. 5


sábado, 1 de junho de 2019

"O que muitos andaram para aqui chegarmos." - Andanças de exílio para conquistar o horizonte



Deixem-me começar por uma quadra de Daniel Filipe, do seu livro Pátria, Lugar de Exílio (1963): “Pátria, mas terra agreste; / terra, apesar da morte. / Pátria sem medo a leste. / Lugar de exílio a norte.” Esta quadra não entrou no arranjo musical que deste poema fez Luís Cília em 1973, no disco “Contra a ideia da violência”, mas bem podia ter entrado!
Se trago estes dois nomes para começar a falar do livro que para aqui nos convocou - O que muitos andaram para aqui chegarmos (Bruxelas: Poemar, 2019) -, tal deve-se ao facto de Daniel Filipe ser um bom poeta do exílio e ter sido perseguido pela polícia política, como vários dos participantes na obra de que hoje falamos, e ao facto de Luís Cília (que foi incentivado a musicar poetas pelo próprio Daniel Filipe) ter sido uma referência para muitos exilados portugueses, designada e assumidamente para um dos participantes nesta antologia testemunhal, Manuel Jorge Gonçalves, que o conheceu em Paris.
Mas há ainda uma outra razão para terem sido estes versos de Daniel Filipe os escolhidos: é que eles condensam muito do que sobre o exílio se possa dizer em termos de expressão literária - o exilado tem de dar corpo à contradição, vivendo a ausência e assumindo esse estar fora com dor (“Pátria, mas terra agreste” é verso que reúne esse estar preso e estar distante em simultâneo, um paradoxo da existência que vai muito para lá da geografia); o exilado procura a utopia para se salvar (“lugar de exílio a norte” é o verso que bem explica o conforto que Maria Augusta Seixas vai encontrar em Bruxelas, a que chama a “casa dos desertores”, abrigo e porto seguro, ou o paraíso que o já citado Manuel Jorge Gonçalves vai descobrir no país que o acolhe, quando exclama: “Bélgica, terra de liberdade, tão mais progressista e evoluída!”). 
Estão assim projectadas duas linhas de leitura que determinam este livro: por um lado, o registo testemunhal do exílio, vivido e sentido, como experiência dos limites e como risco indispensável para dar corpo à existência; por outro lado, a Bélgica e Bruxelas como unidade de espaço, varanda de ver o mundo e desejar o futuro, comum a todos os intervenientes nesta obra.
O livro conta com dez testemunhos e uma justificação, constando esta no capítulo que encerra o volume, em cujo título se questiona Maria Manuel Gandra: “E as mulheres?” Com efeito, das dez colaborações apenas uma é assinada por uma mulher, Maria Augusta Seixas; contudo, tem razão Maria Manuel Gandra quando refere que elas estão “na sombra, discretas e seguras figuras de segundo plano”, apesar de esse “segundo plano” não estar isento de heroísmo, de luta, de dor, de sonho, afinal os mesmos ingredientes que fizeram mover os homens que por aqui passam - é que praticamente todos os textos são povoados pela figura feminina, independentemente de ser a namorada ou a mãe, a companheira ou a protectora dos refugiados, a mulher humilhada por um agente da PIDE ou aquela que é trazida a Portugal e acaba por se deixar adoptar também pela pátria de exílio do companheiro.
Bruxelas foi encarada como “porto seguro” por todos estes “pássaros de arribação” (metáfora que é usada no curto texto introdutório) depois de um voo rasteiro, demasiado rasteiro para não dar nas vistas, com passaporte falso, sob a protecção das sombras da noite, num itinerário “a salto”, calcorreando estradas de fronteira e Pirenéus, vivendo a insegurança e o medo, tudo numa “rocambolesca viagem para o exílio”, como a classificou Carlos Marum.
No horizonte que ficava para trás, estava a polícia política, estava a guerra colonial iminente e impositiva no trajecto de cada um, estava a militância política e obrigatoriamente clandestina. No horizonte que ficava para trás, estava também um tempo em que, como refere José de Matos, “desconfiança era a palavra que filtrava tudo o que ouvia”. Tão intensa era essa treva do receio de dizer e de pensar que Vítor Ascensão reconhece que, mesmo fora de Portugal, “durante muito tempo, viveu com os pesadelos de medo, de insegurança e fragilidade” e “o sentimento de que qualquer coisa [pudesse]acontecer acompanh[ava]-o”.
A insegurança vestia, muitas vezes, a roupagem da ilusão, obrigando estes actores a um regime de atenção e de cuidado, sobretudo na percepção do perigo, como aconteceu com José Matias, quando lhe apareceu uma personagem a querer formar um grupo para uma invasão na ilha da Madeira, criatura que não era outra coisa senão um informador, um “bufo”, que pretendia chegar ao topo da organização política de oposição com que Matias simpatizava.
No trajecto até Bruxelas, havia a França, com paragem em Paris por tempo variável. Era a oportunidade para encontros com outros exilados, para um olhar já mais higiénico sobre o mundo - recorda José de Matos que entrar em França “foi lavar as roupas bolorentas dos regimes fascistas de Portugal e Espanha”. As ruas de Paris foram também o espaço que permitiu a alguns participarem no Maio de 1968, como foi o caso de José Coelho, que sentiu o fascínio de “ver a liberdade com que aqueles milhares de pessoas se manifestavam a reivindicar uma mudança de um sistema autoritário vigente para um sistema com maiores liberdades.”
Contudo, o apelo mais forte vinha de Bruxelas, ali onde lhes era possível deixarem a clandestinidade e reapropriarem-se da identidade, através do estatuto de refugiado político atribuído pela ONU. A cidade era, além disso, o novo mundo, terra de abundância e de trabalho, de liberdade, onde, depois da fuga de um “país triste, acabrunhado, onde o lindo céu azul de Lisboa parecia cinzento” e “podia desabar na cabeça a todo o momento”, como evoca Maria Augusta Seixas, valia a pena o trabalho (muitas vezes, de sobrevivência), o esforço, numa capacidade de adaptação e de mudança impressionantes, alicerçadas na convicção e na esperança.
Os textos até aqui citados caracterizam-se sobretudo pela marca da memória e do testemunho, num contar da experiência pessoal, vários deles redigidos por outro que não o protagonista do que é contado e um deles sob a forma de entrevista. Ressalta em todos um balanço positivo do percurso feito e a passagem do testemunho à escrita afigura-se como uma forma de reencontro ou de aproximação ou de partilha, como descobre Carlos Melro no final da sua prestação: “Acabei por dizer coisas em que nunca tinha pensado, contei histórias que nunca tinha contado, mas tudo saiu espontaneamente.”
Restam ainda por referir dois textos, o de Diogo Pires Aurélio e o de Fernando Gandra. Não porque o percurso até Bruxelas tenha sido diferente ou porque as dificuldades tenham sido menores, mas porque, na sua concepção, estes dois textos ultrapassam o registo do testemunho e deixam-se impregnar pela literatura.
Diogo Pires Aurélio, ao puxar “Vocabulário do exílio” para título, abre o caminho da liberdade da semântica, selecionando palavras, expressões, acrónimos e datas como “a salto”, “carta”, “clandestino”, “comboio”, “esquemas”, “guerra”, “nevoeiro”, “noite”, “ONU”, “STIB” e “25 de Abril de 1974” para, a propósito de cada uma das entradas, contar a sua história. Cada uma delas adquire um novo significado para lá da marca denotativa que o dicionário lhe confere, da mesma maneira que o narrador, por vezes, é independente da personagem sobre quem conta, um tal D., que se percebe ter sido um empréstimo do autor ou que narrador e personagem se mesclam, como se num vaivém entre os arquivos da memória e os acontecimentos tornados presente. Por estas onze secções passam os momentos de glória e de medo e as pequenas histórias que carregam a marca do desespero do momento; passa ainda a reflexão, em termos muito pragmáticos e em tom de resposta antecipada às conjecturas do leitor, para ajudar a entender atitudes que só existiram por causa das circunstâncias, por causa do sofrido.
“Porque não há vento?” é a questão trazida para título por Fernando Gandra, num texto de metáfora forte, enveredando por uma escrita poética, de imagens intensas, em que o leitor é logo desafiado a observar a gare de Austerlitz, onde passam “milhares de portugueses numa aflição calada” ou, depois, levado até Bruxelas, onde “a saudade é uma lâmina sangrenta que nada pode contra a inflamação do longe”. Mas o texto rapidamente adquire um tom épico ao enumerar as razões que os candidatos ao estatuto de refugiado político apresentavam, chamando as razões de um colectivo, que vão configurando também o retrato da alma de um país (se é que ela não estava também em fuga!): “fugimos do Cais de Alcântara e dos seus lenços de adeus até ao meu regresso que era os mesmos que acenavam na Cova da Iria altar do mundo (...) / fugimos da naftalina e do quanto mais me bates mais tenho ciúmes e anda encosta o teu peito ao meu / (...) / fugimos dos raciocínios do contumaz almirante Américo que sofria de microcefalia (...)”, etc. No total, dezoito recorrências anafóricas, todas pintando um país que fora abandonado e era satirizado em cada um dos motivos apresentados.
Numa segunda parte, o texto de Fernando Gandra aproxima-se da escrita biográfica, traçando o seu perfil na terceira pessoa e concluindo com a afirmação da identidade da actualidade: “Anos depois, cansado da bruma, optou pelo sol e dedicou-se exclusivamente à escrita, a sua vocação de sempre.” Um terminar que justifica o rasgo literário posto neste texto de memórias!
Mas até onde se projectava o horizonte de todos estes intervenientes e autores e actores dos seus percursos? Esse horizonte, que a utopia prometia e que a luta pela vida caldeou, foi comum a todos eles, cristalizado numa data repleta de promessas e de esperança: o 25 de Abril de 1974. Fernando Gandra refere que esse dia fez com que tivesse “terminado o Portugal teologal”; José de Matos não consegue descrever o que sentiu, apenas “uma alegria, uma coisa grande”; outros revelam que acreditaram com reservas; outros viveram o dia normal de trabalho, porque tinha de ser e talvez porque fosse preciso ver... Mas aquela quinta-feira acabou por tocar todos, uns com a ânsia de regressarem, outros observando a distância, uns a querem descobrir a diferença possível relativamente àquilo que tinham deixado, outros a assumirem a continuidade em Bruxelas... no entanto, sempre com a ideia de que o horizonte tinha sido conquistado.
Enfim, O que muitos andaram para aqui chegarmos. é um repositório intenso de emoções e de humanidade, um bom retrato do exílio na literatura, um contributo para mapear as distâncias entre o país triste que foi abandonado e o país reencontrado. Vale por isso este livro, mas vale ainda, e sobretudo, para percebermos que o “aqui” que se afirma no título é o sinónimo do “hoje” e do nosso estado, possível pelo que outros, muitos, andaram e lutaram, registo que a memória deve ajudar a ser incorporado na nossa identidade para que o presente valha sempre a pena, não apenas porque estamos cá, mas porque ele foi construído também por aquilo que muitos andaram.

(Na apresentação do livro, em 30 de Maio de 2019, na Fundação José Saramago, em Lisboa)

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Setembro, mês de Bocage (13)


Bocage, no Café Bocage, em Saint Gilles (Bélgica)

domingo, 18 de maio de 2014

Guerra Junqueiro, Edith Cavell e o "monstro alemão"



Edith Cavell (n. em Dezembro de 1865) tinha 49 anos na manhã de 12 de Outubro de 1915, data em que, pelas sete horas, foi executada em Bruxelas pelos alemães. A sua prisão tivera lugar em Agosto, depois de ter sido acusada de proteger a fuga de soldados aliados no país ocupado que a Bélgica era. Com efeito, calcula-se que duas centenas de combatentes do conflito que foi a Grande Guerra tiveram a possibilidade de chegar à neutral Holanda graças a Edith Cavell, acção que a enfermeira inglesa de Norfolk nunca negou.
A proclamação a dar nota da decisão do Tribunal do Conselho de Guerra Imperial Alemão, assinada nesse mesmo dia 12 de Outubro pelo governador, general Von Bissing, dava conta da condenação à morte “por traição colectiva” de seis pessoas, entre as quais Cavell, e subjugava mais quatro a quinze anos de trabalhos forçados, contendo ainda em nota final a informação de que, quanto a Cavell e a outro condenado, “o julgamento já recebeu plena execução” (Bocados de papel – Proclamações alemãs na Bélgica e em França. London: Hodder and Stoughton, 1917). Poucas horas antes de morrer, Edith Cavell confidenciou ao capelão anglicano Stirling Gahan: “Nada receio. Já vi a morte tantas vezes que a não estranho, nem me assusta. Dou graças a Deus por estas dez semanas de tranquilidade antes de morrer. Passei continuamente uma vida agitada e cheia de obstáculos e, por isso, este período de repouso o julgo uma grande mercê. Aqui foram todos bondosos para mim. Mas, no momento supremo, em face de Deus e da eternidade, eu sinto e quero dizer aos homens que o patriotismo não basta: não devemos ter ódio nem azedume para ninguém.”
Esta citação, longa, impressionou Guerra Junqueiro, que, em Barca de Alva, nesse mesmo mês de Outubro, a usou para abrir um seu escrito dedicado à memória da enfermeira e professora, opúsculo cujo produto da venda tinha como destino a enfermagem da Cruzada das Mulheres Portuguesas (Edith Cavell. Lisboa: Imprensa Nacional, 1916).
O escrito junqueiriano, em cinco páginas, não esconde a veneração pela cultura alemã ao mesmo tempo que o desprezo pela fleuma bélica e, no tom combativo, não disfarça o partido tomado na questão do conflito europeu. O parágrafo inicial é esclarecedor: “O horrendo assassínio de Miss Cavell pelo império alemão é já a crise delirante da ferocidade teutónica e demoníaca, o louco e pávido estrebuchar da bebedeira de sangue, orgulho e omnipotência, que fez da luminosa pátria de Goethe e de Beethoven a caserna ciclópica e sinistra do Kaiser, de Krupp e de Bismarck.” Na sequência, a intensificação da brutalidade e do sofrimento resulta da antítese entre o “martírio belga”, por um lado, e a “avalanche execranda, esmagadora, inexorável (…), numa raiva alcoólica e sangrenta de orgulho conquistador e canibalesco”, por outro, tendo pelo meio a “alma cristã de Miss Cavell, (…) que teve o martírio como epílogo”, depois de ter obedecido “ao dever, desafiando a morte”. Um bom retrato do ponto de vista cristão…
Guerra Junqueiro enaltece a verticalidade e a coragem de Cavell, não só pelo gesto que praticou na protecção dos seus validos, mas também, e sobretudo, pela coragem no assumir das responsabilidades, pela confissão do que fizera, sabendo que, ao mesmo tempo, aproximava a sua condenação, atitudes que levam o poeta transmontano ao retrato de desvanecimento: “Miss Cavell ergueu-se à esfera mais alta e luminosa da perfeição humana.” No lado oposto, o escrito de Junqueiro tenta descortinar o sonho do executor de Cavell, através de ideias que se acumulam gradativamente, num processo de onde não está alheia a ironia, até chegar ao seu estado máximo – “A ordem augusta vai fundar-se: Germânia, imperatriz do mundo, Berlim, capital do Universo”! Mas o poeta crê que esta é a futilidade do convencimento do carrasco, a auto-imagem que dos invasores poderia advir, algo que a última frase do escrito, num misto de esperança e de crença cristã, vai contrariar: “A justiça de Deus vai proclamar-se na terra. O monstro espantoso será desfeito e aniquilado.”
O testemunho de indignação quanto ao que foi o destino de Edith Cavell apareceu depois recolhido pelo autor no volume Prosas dispersas, em 1921 (Porto: Livraria Chardron, de Lello & Irmão), obra em que, de resto, surge um outro texto datado de 1918 sujeito ao momento histórico que foi a experiência da Primeira Grande Guerra. Sob o título de “O monstro alemão”, dedicado “à França heróica e redentora, à mãe sublime de Joana d’Arc”, o texto é datado de Março de 1918, também a partir de Barca de Alva.
Construída sobre metáforas de combatividade, este escrito de Junqueiro põe em oposição as figuras do italiano Cavour (1810-1861) e do prussiano Bismarck (1815-1898) para dizer que aquele foi um “tipo político perfeito”, enquanto este se destacou por “engrandecer a Prússia e prussianizar a Alemanha”, seguindo uma trajectória de onde não está ausente aquilo que pode ser visto como uma consequência da psicologia do invasor: “A Prússia, odiosa, invejosa e rancorosa, só domina, esmagando. Ou faz vítimas ou faz escravos. Bismarck, engrandecendo-a, exaltou um monstro.” A linguagem junqueiriana prossegue a senda da opressão e da desumanização: “O capacete prussiano deformou o cérebro da Alemanha; desumanizou-o, prussianizou-o, bestializou-o. (…) Bismarck não foi um grande homem, foi um grande prussiano. (…) A essência da alma de Bismarck  e da sua obra é esta: Quem tem a força tem o direito. O direito mede-se pela força. Krupp é o jurisconsulto do Império.”
A imagem da Alemanha e a fé no pangermanismo, recuando ao espírito da unidade alemã, segundo Junqueiro, alicerçado em Fichte (1762-1814, autor da ideia de um “pangermanismo espiritual”) e em Nietzche (1844-1900, que terá influenciado Bismarck de forma acentuada – “No fundo da Super-Alemanha de Bismarck há o Super-Homem de Nietzche”), acompanham neste texto o sonho que o cronista imaginou que já tinha sido o do carrasco de Cavell – a forte impressão ideológica de que a imagem de Átila, chefe dos Hunos e símbolo da Alemanha, viria a dominar o mundo, passando sobre valores como a civilização, a justiça ou o direito. Rapidamente Junqueiro nos dá o retrato: “Esta guerra é demoníaca e santa. É a guerra da Iniquidade com o Direito, da Besta com o Espírito, de Átila com Joana d’Arc.”
Estava-se em Março de 1918, justamente no início da Primavera que os alemães escolheram para progredirem de novo na frente oeste (haja em vista o que aconteceu em La Lys, por exemplo). A visão infernal de Junqueiro prolongar-se-ia ainda por uns meses nesse 1918. Mas o final do texto deixa antever que a vitória não será germânica, mas terá a marca de Joana d’Arc, pairando sobre todo o sofrimento a esperança cristã da paz – “Triunfa no Céu, porque da Terra varada de dor, inundada de sangue e orvalhada de lágrimas, brotam lírios de fé, lírios de chama, das campas nascem cruzes, das bocas voam preces, os joelhos dobram-se, as almas rezam e, cheias de infinita angústia, só encontram em Deus infinito amor a infinita paz!”
Este texto de Junqueiro não pode deixar de nos incomodar, atendendo às datas e aos retratos que dos povos e dos conflitos são traçados e ao que, de alguma maneira, é antecipado. Com razão José Nuno Pereira Pinto regista, a propósito desta lógica da cronologia e da quase profecia do poeta de Barca de Alva: “Esta capacidade de prognose, naquele momento, a meses do Armistício, é das páginas mais perturbadoras, pela sua capacidade profética, pela leitura não só do momento presente, como pelo prenúncio de que o apocalipse estaria para chegar.” (in À volta de Junqueiro. Henrique Manuel Pereira, org. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 2010). O poeta virava também profeta, ao mesmo tempo que mostrava o seu compromisso cívico e também religioso.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Aarão de Lacerda e a Grande Guerra



Em 4 de Maio de 1919, na Junta Patriótica do Norte, Aarão de Lacerda proferiu a conferência intitulada “O instante sangrento”, em homenagem aos Aliados. A comunicação passaria a livro, editado em Outubro (Para a filosofia da guerra. Porto: edição de Autor, 1919).
De maneira rápida, dado o propósito do texto, o autor relata o que levou o mundo à Grande Guerra, num percurso pessoal de que não está ausente a sua tomada de partido. Se olha para a cultura alemã com interesse e emoção, o mesmo não dirá da progressão psicológica do povo germânico ao longo dos tempos, como se pode ver na referência feita ao que aconteceu em 1870 e que esteve na origem de conflito entre a França e a Alemanha por causa da Alsácia-Lorena: “Vem 1870 e o alemão tornou-se agressivo e intolerante, envolvendo-se crescentemente numa ambição de mando, de hegemonia, que a dinastia Hohenzollern personalizou inconfundivelmente”.
A história é contada a partir de um retrato psicológico dos contendores, tal como adiante refere: “Vamos compreendendo as causas primárias da guerra consubstanciadas em fortes antinomias psicológicas que extremavam a Alemanha da França e da Inglaterra, o país por excelência do governo representativo.” Nesse percurso, há lugar recorrente para imagens fortes: “A Alemanha tentacular começa a empreender a luta política, ambicionando a conquista dos mercados mundiais em luta aberta com a Inglaterra que ela chamava estado vampiro. Assustava-a o imperialismo britânico, que resolveu combater incessantemente por meio de uma organização artificial que decerto a faria baquear, tão forçada era.”
O uso de referências a poetas e pintores que pela sua arte traçaram quadros de momentos da guerra leva o próprio autor a explorar determinadas imagens, como a do “Mefistófeles transfigurado em Bismarck” que escolhe para pintar Guilherme II, assim traçando um quadro de glória e de poder: “Toda aquela gente da Germânia se sentia próxima dos deuses quando via desfilar ante seus olhos maravilhados as longas revistas militares ao som de acordes marciais e despertivos. O kaiser aureolava-se de um prestígio estranho: era ele o Messias, o futuro senhor do mundo.” E, logo a seguir, a destruição do mito, em antítese, também pelo recurso a imagens intensas: “Por fim, o último acto da guerra veio mostrar que esse chefe invencível dos exércitos germânicos não passava do arremedo ridículo de um Lohengrin ou Parsifal de papelão.”
A evolução do que foi o início da Primeira Grande Guerra apresenta-se rápida, tal como veloz foi o tempo em que o conflito se agudizou, porque “o atentado contra o príncipe herdeiro da Áustria não passou de um simples pretexto para lançar a Europa no embate temeroso” que já vinha sendo temido e anunciado.
Aarão de Lacerda conclui a sua conferência com a invocação do papel corajoso demonstrado pelo povo belga, logo a partir da invasão germânica: “a resposta foi a resistência heróica em defesa da justiça, levando a efeito uma epopeia lendária digna do maior conto épico”, gesto prontamente ajudado por aliados. Mas o olhar do autor sobre a Bélgica enche-se de tristeza e de revolta pelas mortes e pela destruição de obras de arte que os invasores cometeram – construções, pinturas, bibliotecas, num clima de barbárie em que as “lacrimas rerum caíam das ruínas, dos monumentos esfacelados que rangiam em derrocadas sinistras”.
O final da palestra é um apelo à paz e uma incursão na memória – “Recordemos com unção os nossos que se bateram e morreram na batalha de La Lys e em África! A sua lembrança sempre vívida dita-nos um grande dever a cumprir: esquecer os ódios que nos separam e salvar com o nosso trabalho, com a nossa fé, a Pátria ameaçada de tantos perigos.” É que já se apagara “a labareda do inferno”, mas ficara “a saudade dos queridos soldados que lá se consumiram”!
Nesta leitura emocionada do que foi o percurso da Grande Guerra, de que Aarão de Lacerda (1890-1947) foi contemporâneo, ressalta o carácter desumano do conflito bélico, fortemente construído sobre imagens de ambição excessiva por parte da política e sobre imagens de catástrofe e de sofrimento no que aos povos respeita.