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quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Amália Rodrigues: Palavras e memórias


 

“As árvores têm uma raiz na terra, mas as nossas raízes espalham-se pelas terras dos nossos avós. As raízes de Amália Rodrigues são beirãs.” Assim fideliza Rui Pelejão as origens da mais conhecida fadista portuguesa no seu contributo para o livro Amália - A raiz e a voz, organizado por Arnaldo Saraiva, editado pelo Jornal do Fundão (2020). Essa fidelização surge atestada com cópia do registo de baptismo de Amália, cerimónia realizada na Matriz fundanense em 6 de Julho de 1921, quando a criança rondava o final do primeiro ano de vida - envolto em mistério, o dia rigoroso do seu nascimento derivava de um calendário medido pela agricultura, pois que sua avó dizia ter a neta nascido “no tempo das cerejas”, enigma que, na altura dos exames, Amália desvendou ser 23 de Julho de 1920.

Arnaldo Saraiva, na abertura, lembra que, em Amália, “o seu canto fundo transporta e sublima como nenhum outro as dores ou as fugazes alegrias do povo português e de uma mulher do povo português; mas transporta e sublima também as dores e alegrias de existir, os dramas e os amores da humanidade”, razões intensas para a leitura ir ao encontro de um retrato multifacetado.

Fortemente ilustrada, graficamente apelativa, estamos perante uma bela antologia de memórias, em que a ligação afectuosa de Amália às terras do Fundão e a sua identidade com o fado são grandemente lembradas. Contributo importante advém do arquivo do jornal, recorrendo a notícias sobre as suas actuações ou visitas à região ou a textos ali publicados sobre a cantora - de que se destaca um, assinado por David Mourão-Ferreira em 1994, que, a dado momento, poetiza: “Amália. Um ‘heterónimo’ de Portugal, o ‘heterónimo’ feminino de Portugal. Do que em Portugal existe de profundo e de fluente, de fixado e de erradio, de raiz e de flor, de tronco e de brisa. De rio, de escarpa, de céu límpido ou nublado, de montanha e de vale, de lonjura de planície, de abraço do oceano.”

Uma outra componente surge pelas palavras de entrevistas de Amália - à RTP, em conversa conduzida por Arnaldo Saraiva, emitida em 1987, agora passada a escrito, e ao Jornal do Fundão (em 1991 e em 1992), onde há momentos fortes, pela emoção ou pelo saber - em 1987, sobre os seus poemas: “Eu, como sou um bocado cantigareira, tenho a mania, como canto cantigas, tenho um sentido de ritmo, tenho uma medida das frases para os fados, e ponho-me a escrevinhar”; em 1991, sobre o fado: “Tenho a impressão que o fado me tem dado de comer e me tem comido. Sou o prato-forte do fado. Tenho tudo o que ele quer: desencanto, desilusão, falta de ambição, de interesse (...). O fado quer isto e eu tenho.”; em 1992, sobre o seu canto: “A minha maneira de cantar talvez tenha sido influenciada pela Beira Baixa. (...) Acho que a Beira Baixa é a terra onde há melhor música de folclore. É quase ao nível do Alentejo, está um bocadinho mais para cima. Como o Minho é a única região de Portugal onde se canta e se é alegre. O sul é mais tristonho.”

Parte significativa é ainda a de testemunhos sobre Amália, alguns elaborados para este livro, assinados por nomes muito diversos do mundo da crítica, da história ou da música. De Pedro Abrunhosa, um dos depoentes, fica uma frase que vale uma obra: “Amália, de uma assentada, desconfinou Camões da estatuária do Estado Novo e o Fado da letalidade endogâmica da tradição.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 523, 2020-12-09, pg. 9.


segunda-feira, 23 de junho de 2008

Patrimónios do nosso brincar

Patrimónios do nosso brincar – Brinquedos e jogos das 4 cidades é uma monografia que dá a conhecer brinquedos e brincadeiras de antigamente de quatro cidades portuguesas que estão geminadas e através de cujas Câmaras Municipais se tornaram co-editoras deste livro – Fundão, Marinha Grande, Montemor-o-Novo e Vila Real de Santo António.
Ao longo de uma centena e meia de páginas, o leitor pode ver alguns brinquedos antigos e ler a sua história, bem como confrontar-se com alguns testemunhos de brincadeiras antigas, num trabalho que resultou do empenhamento de cerca de 400 alunos de oito escolas (100 alunos de duas escolas de cada um dos municípios participantes). O projecto, que englobou os quatro municípios, decorreu entre 2005 e 2007.
A par com as descrições dos jogos e dos brinquedos e com os testemunhos de muitas pessoas, que vão contando os seus brincares, há também fotografias documentais e poemas de Miguel Torga, Fernando Pessoa, Francisco Bugalho, António Gonçalves, Terezinha Tavares e Sebastião da Gama.
João Amado, da Universidade de Coimbra, prefacia o livro, escrevendo, a dada altura, que “falar de brinquedos, tal como construí-los, é uma forma de fazer poesia”. E é através dessa poesia que o leitor (depois dos participantes no projecto) viaja até à infância (a sua ou a de outros tempos), às memórias, à sociedade, ao tempo, num percurso balizado pela recordação e pela inovação e experiência.
Apresentado em três capítulos – “A infância, o brincar e o brinquedo popular”, “Brinquedos populares” e “Jogos tradicionais infantis” –, o livro vale pelo prazer de ver um bonito objecto gráfico e de olhar o registo de uma infância que se constrói e inventa a partir de coisas tão simples como subir às árvores, ir aos ninhos ou tomar banho no rio… Sobre essa capacidade de invenção fala a informante Célia Domingues, por exemplo (n. 1969, na Marinha Grande): “Os brinquedos eram poucos! Nós brincávamos mais era na rua com terra, com água, com lama… Era a brincar com a lama, era a apanhar flores. Fazia barcos de cascas de pinheiro e brincávamos assim… entretínhamo-nos assim…” Há ainda a conotação da escola com o tempo feliz por ser aquele em que se podia brincar – “Mas eu brincava muito era na escola, era uma judia… Jogava à malha, ao calhau, que é com cinco pedrinhas…”, rememora Maria José Brito (n. 1933, em Tavira). Pelo meio, há também descrições e lembranças mais atrevidas, tal como recorda António Sousa Carvalho (n. 1939, Fundão): no jogo do cântaro, “às vezes, os rapazes faziam de propósito para partir o cântaro, a rapariga aventava-o para o apanharem, o rapaz desviava-se…” Brincadeira com malandrice à mistura, traz Ramiro Mosca (n. 1937, Marinha Grande) a propósito do jogo da cabra-cega: “À cabra-cega arranjávamos sempre raparigas para brincar com a gente e a gente aproveitava e também apalpava um bocadinho”.
E vale a pena terminar relendo parte do poema que de Sebastião da Gama é transcrito – em “O menino grande” (poema de Fevereiro de 1946, publicado pela primeira vez na obra Itinerário paralelo), relembra: “Nem tudo se foi: / Ficou-me, dos tempos de menino, / Esta alegria ingénua / Perante as coisas novas / E esta vontade de brincar.”