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quinta-feira, 2 de março de 2023

Ucrânia: "Sangra, meu coração"

 

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Em 1668, o padre António Vieira definiu-a: “É a Guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a Guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as Vilas, os Castelos, as Cidades. (...) É a Guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades.”

Como não recorrer a Vieira no momento em que passa um ano sobre a mais recente guerra em território europeu, justamente aquele em que se pensou que, após as duas guerras mundiais, havia que acabar com este belicismo? O termo do conflito não tem calendário, mas espera-se que outra fase virá - assim o desejam os dez poetas ucranianos reunidos na antologia Quando a primavera chegar - 10 poemas de guerra, editado pela Casa Fernando Pessoa, disponível em formato digital em acesso gratuito.

Os dez poemas (de Borys Khersonsky, Halyna Kruk, Kateryna Kalytko, Kateryna Mikalitsyna, Oleg Kadanov, Oleksandr Irvanets, Olga Bragina, Pavlo Korobchuk, Svitlana Povalyaeva e Vasyl Makhno, nascidos entre 1950 e 1984), traduzidos por outros tantos poetas portugueses (João Luís Barreto Guimarães, Jorge Sousa Braga, Matilde Campilho, Miguel Martins, Raquel Nobre Guerra, Regina Guimarães, Ricardo Marques, Rosalina Marshall, Tatiana Faia e Vasco Gato), foram escritos nos primeiros tempos desta guerra sobre a Ucrânia e têm sido divulgados pela National Translation Month (ligada à tradução literária) e pelo projecto Chytomo (ligado à cultura e à edição).

Por estes textos passa o tom irónico (“E então irrompeste sem aviso prévio, / trouxeste à tua amante um bouquet / de tanques, helicópteros, mísseis de cruzeiro em vez de flores, / disseste-lhe: a culpa é tua, aqui está uma bomba, uma granada, / Cabra, como te atreves a magoar o teu irmão mais velho?”, de Khersonsky), o lamento (“Na discoteca mais próxima as crianças / estão a dormir, / estão a chorar, / e estão a nascer / para o mundo em que agora é impróprio para viver.”, de Kruk), a denúncia (“Quem haveria de saber? Toda a gente sabia. / A iminência assemelha-se a uma poeira radioactiva, / desfazendo os vínculos entre palavras / e transformando o que se disse / num tumor sanguíneo.”, de Kalytko), a demanda da coragem (“é tempo de ler / o manual da reincarnação: / em caso de emergência / 1.a) partir o vidro da calma / 2.b) apagar a camada protectora do medo”, de Kadanov), o assumir do perigo (“Daqui não há como sair porque é demasiado curta a distância a um tiro depois da paz”, de Bragina).

Mas por estes poemas passam também versos de revolta (“Iremos sobreviver a isto, iremos resistir, / sob céus de paz limparemos a nossa terra / dos corpos que o maldito vampiro careca / com olhos de leitão enviou para aqui.”, de Irvanets) e de esperança, como sugere Korobchuk, num texto que defende o adiamento do amor e contém o verso responsável pelo título da antologia: “quando a primavera chegar e o inverno abrandar / quero oferecer-te flores / mas primeiro deixa que a nossa defesa anti-aérea / derrube os mísseis inimigos.”

A dificuldade do tempo passado sob a guerra leva Povalyaeva a hesitar, porque “não se pode confiar na esperança e também não se pode confiar no medo”, verso vindo de quem perdeu o filho, activista ucraniano, na frente de batalha em Junho de 2022. A dor acaba por pintar a tela gigante do que vai produzindo esta guerra (por certo, não diferente das outras), bem expresso no último verso do poema de Makhno: “Sangra - meu coração - sangra.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1023, 2023-03-01, pg. 10.


terça-feira, 13 de junho de 2017

Das palavras de António Vieira à efeméride de hoje, com Pessoa, Vieira da Silva e Santo António


Hoje, 13 de Junho, é dia comemorativo: do nascimento de Fernando Pessoa (1888), poeta maior; do nascimento da pintora Helena Vieira da Silva (1908); da morte de Santo António de Lisboa (1231). Uma trilogia de peso na cultura portuguesa, claro!

Fernando Pessoa (campanha "Abre Portugal", da Coca-Cola)


Maria Helena Vieira da Silva, Le Désastre ou La Guerre (1942)

"Sermão de Santo António às Sardinhas" (2017) (via FB)

Mas deixo o destaque em nome do jesuíta António Vieira, por ter sido neste dia de 1654 que, no Maranhão, proferiu o célebre Sermão de Santo António aos Peixes, uma peça de retórica que contém muito mais do que aquilo que parece - sobre a condição humana, sobre o bem e o mal, ainda que uma reflexão centralizada na crítica ao comportamento dos colonos do Brasil. E o pretexto é o comportamento dos peixes, com as suas vantagens e os seus desprimores, uma autêntica alegoria sobre o que é isto de interagirmos, de estarmos, de sermos.
Deixo três excertos, a merecerem reflexão ainda hoje, como se poderá ver pelo teor.

COMER OS OUTROS - “Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão de comer e como se hão de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa;  come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. (...) Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos os estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.”
PEQUENOS E GRANDES - “Os pequenos são o pão quotidiano dos grandes; e, assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem.”
VAIDADE - “A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isco na ponta desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois que sucede? O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros.”

domingo, 13 de outubro de 2013

Edições facsimiladas da Biblioteca da Universidade de Coimbra



O diário Público começou a editar a colecção "Primeiras edições facsimiladas" a propósito da passagem dos 500 anos da Biblioteca da Universidade de Coimbra. O primeiro número da colecção foi essa obra que é fundacional em termos de identidade e que continua a obra magna da cultura e da literatura portuguesa que é Os Lusíadas, de Camões, pela primeira vez editada em 1572, saída na 3ª feira passada. Para 15 de Outubro, 3ª feira (dia em que saem os vários títulos da colecção), será a vez do Padre António Vieira e do seu livro "anteprimeiro" da História do Futuro, que teve primeira edição em 1718.
Uma colecção simpática e importante, que a todos mostrará também a história do livro em Portugal, além de fazer um percurso por obras identitárias da cultura portuguesa, tal como se pode ver pela lista dos títulos que se seguem aos dois já enunciados: Mau tempo no Canal (1944), de Vitorino Nemésio (22 de Outubro); O crime do padre Amaro (1876), de Eça de Queirós (29 de Outubro); Portugal na balança da Europa (1830), de Almeida Garrett (5 de Novembro); Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes (12 de Novembro); Nome de guerra (1938), de Almada Negreiros (19 de Novembro); A confissão de Lúcio (1914), de Mário de Sá-Carneiro (26 de Novembro); Portugal pequenino (1930), de Maria Angelina e Raul Brandão (3 de Dezembro); As praias de Portugal (1876), de Ramalho Ortigão (10 de Dezembro); Fado (1941), de José Régio (17 de Dezembro); (1892), de António Nobre (24 de Dezembro); Contarelos (1942), de Irene Lisboa (31 de Dezembro); Grandes aventuras de um pequeno herói (1946), de Natália Correia (7 de Janeiro); Mensagem (1934), de Fernando Pessoa (14 de Janeiro) e Coração, cabeça e estômago (1862), de Camilo Castelo Branco (21 de Janeiro). A não perder!

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Padre António Vieira no voo da "Nova Águia"

Depois de ter dedicado o seu número inaugural à ideia de Pátria, a revista Nova Águia (Sintra: Zéfiro, nº 2, Outubro de 2008) traz para tema “António Vieira & o futuro da lusofonia”, bem pertinente, quer pelo aniversário vieirino que decorre, quer pela essência da lusofonia em si mesma.
A colaboração é vasta, diversa e rica. Sobre António Vieira escrevem: Adriano Moreira (“O centenário de Vieira”), Aníbal Pinto de Castro (“Vieira, uma personalidade e um texto de perene marca barroca”), Arnaldo do Espírito Santo (“O corpo e a sombra”), Carlos Dugos (Metáforas do V império e outras utopias”), Cátia Miriam Costa (“O verbo vieirino”), Dione Barreto (“O Sermão do Espírito Santo e a individuação: As vozes de Padre António Vieira e C. G. Jung”), Dirk Hennrich (“As lágrimas de Vieira e a tristeza tropical”), Pinharanda Gomes (“Uma ‘arte de pregar’ à sombra de Vieira”), Jorge Martins (“O filo-semitismo de António Vieira”), José Eduardo Franco (“O padre António Vieira e a Europa”), Lélia Parreira Duarte (“A arte irónica de Vieira e o Quinto Império de Portugal”), Luís Loia (“O padre António Vieira e o conhecimento dos futuros”), Maria Cecília Guirado (“Notícias do Brasil no século XVII: Vieira e a globalização”), Miguel Real (“O cabalismo do ano de 1666 em padre António Vieira”), Nuno Rebocho (“Memória de António Vieira na Cidade Velha”), Paulo Borges (Padre António Vieira: Génio e loucura”), Samuel Dimas (“A história escatológica do padre António Vieira: As três vindas de Cristo”), Sérgio Franclim (“A vida e o quinto imperialismo de padre António Vieira”), António Saias (“Um papo com Vieira”), texto colectivo intitulado “Valeu a pena?” e Manuel Ferreira Patrício (O padre António Vieira, a lusofonia e o futuro do mundo”).
Sobre a lusofonia assinam: Rui Martins (“Do futuro da lusofonia”), Ana Margarida Esteves (“Portugal e a lusofonia como propulsores da inovação social: a necessidade faz o engenho”), Mara Ana Silva (“A língua portuguesa é o mar que une a terra: a aliança entre homem e Deus”), Artur Alonso Novelhe (“Uma perspectiva galega do futuro da lusofonia”), Cristina Leonor Pereira (“2008: é novamente a hora!”), Eurico Ribeiro (“Portugal, que missão?”), Flávio Gonçalves (“Lusofonia, o pan-latinismo e a Eurásia como alternativas ao atlantismo”), Joaquim M. Patrício (“Realidades, desafios e futuro da lusofonia”), Paulo Feitais (“Das flores aos frutos: o futuro do mundo lusófono”), Renato Epifânio (“A língua-filosofia portuguesa como uma via aberta”), Rita Dixo (“Da língua portuguesa como imagem da nossa alma”) e Carlos Magno (“Lusofobia”).
Há ainda espaço para mais rubricas (poesia, crítica, pensamento), aí não esquecendo vários retratos sobre a revista, em que intervêm Miguel Real, Pedro Teixeira da Mota e Renato Epifânio, com textos que serviram para apresentação da revista e que relatam a história mais recente deste projecto. Entretanto, o tema do terceiro número da revista surge anunciado como “O legado de Agostinho da Silva 15 anos após a sua morte” (a sair em Abril de 2009).

quarta-feira, 2 de abril de 2008

O jesuíta António Vieira lido pelo jesuíta António Vaz Pinto

“Temos algumas coisas em comum: ambos nos chamamos António, ambos nascemos em Lisboa, ambos somos jesuítas e, enfim, ambos acreditamos que é essencial defender a tripla constituída pela fé, pela justiça e pela cultura.” Assim respondia, na tarde de hoje, o padre jesuíta António Vaz Pinto a uma aluna da minha Escola que lhe perguntou se tinha afinidades com o Padre António Vieira.
Foi numa “roda de leitura”, com alunos do 11º ano, no âmbito da disciplina de Português, que o encontro aconteceu: o padre António Vaz Pinto, convidado a falar sobre António Vieira (os alunos tinham sugerido que o autor dos Sermões fosse apresentado por um padre e sugeri à colega que fosse um jesuíta), traçou um retrato biográfico animado por um belo enquadramento histórico-cultural (que até deu para falar da ligação de S. Francisco Xavier a Setúbal e para contar algumas pequenas histórias), leu alguns excertos do sermonário vieiriano e respondeu a perguntas dos jovens. Curiosamente, elas rapidamente deixaram de lado o assunto que ali tinha levado o orador e preferiram áreas como o ser padre (“como sentiu a vocação?”), o espírito de missão (“tem participado em muitas missões e o que sente?”), a Igreja na actualidade (“porque há tão poucos jovens ligados à Igreja?”), etc. As respostas não fugiram e o padre António Vaz Pinto testemunhou-se e testemunhou a sua fé, ao mesmo tempo que assinalou a grandeza do outro jesuíta que aqui o trouxe – António Vieira – no contexto do seu tempo e com valores que podem ser referências para a actualidade. O discurso não foi distante e, pelo caminho, ficaram ainda alguns conselhos para estes jovens, sobretudo numa perspectiva de encararem o seu tempo e o seu futuro.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Fim-de-semana (1) – Dia vieirino

O sábado foi dia dedicado a António Vieira. O 16º encontro “Fé e Justiça”, organizado pelo CUPAV, foi sujeito ao tema “Padre António Vieira: os mesmos desafios quatro séculos depois”. Surpreendeu-me a quantidade de público presente no Colégio S. João de Brito ao longo de todo o sábado para ouvir falar da actualidade de Vieira. Assim como me surpreenderam, também pela positiva, muitas leituras que de Vieira foram apresentadas, sobretudo na sua ponte para uma distância de quatro séculos.
Os painéis foram quatro: “Os Direitos Humanos” (com Hermínio Rico, Pedro Roseta, Souto de Moura e Fernando Nobre); “O Diálogo inter-cultural e inter-religioso” (com Mário Garcia, Guilherme Oliveira Martins, Esther Mucznik e Roberto Carneiro); “Um Desígnio para Portugal” (com António Vaz Pinto, Marcelo Rebelo de Sousa, António Vitorino e Paula Moura Pinheiro); e “O Serviço da Fé” (com Miguel Gonçalves Ferreira, D. Carlos de Azevedo, Manuel Braga da Cruz e Laurinda Alves).
Quase todos os intervenientes trouxeram citações de Vieira, sem repetições, e ficaram claras ideias como: a antecipação de Vieira na defesa dos direitos humanos (antes do Iluminismo setecentista ou do Marxismo de Oitocentos); a força exercida pela consciência na denúncia e na luta pelos direitos humanos; o poder de sedução exercido pela sua escrita e pelas suas ideias; o seu contributo para o diálogo com o outro, para o encontro de culturas; a capacidade que apresenta para levar os textos a dizerem o que quer, forçando as interpretações; a presença de uma perspectiva optimista, que leva os cidadãos a não se poderem demitir da sua cidadania nem os cristãos da sua fé; a fidelidade à palavra e a beleza das formas; a coerência da acção; o acto evangelizador (de elite) e o seu profetismo.
Vale a pena ler Vieira. Sei que é um lugar-comum dizer isto, mas é apenas uma lembrança, nada mais do que isso. E uma boa hipótese é pegar na obra Padre António Vieira – O imperador da língua portuguesa, coordenada por José Eduardo Franco, editada há dias, a custo reduzido, pelo diário Correio da Manhã, que contém iconografia vieirina, um estudo biográfico, quatro sermões (do Bom Ladrão e três de Santo António) e um conjunto de “adágios e pensamentos”. É deste último grupo que retiro uma citação sobre o livro – “O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive, e não tendo acção em si mesmo, move os ânimos e causa grandes efeitos” – e outra sobre política – “A república é o espelho dos que a governam.”

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Padre António Vieira, 400 anos – Um louvor à Rainha Santa

Em Lisboa, em 6 de Fevereiro de 1608, passados hoje os 400 anos, nasceu António Vieira, nome que ficou conhecido na história religiosa e literária portuguesa, como jesuíta e autor de numerosos sermões e cartas. As biografias existem disponíveis, os estudos sobre a sua obra, a sua oratória, a sua teatralidade, também. Deixo aqui um excerto do Sermão da Rainha Santa Isabel, pregado em Roma, na Igreja dos Portugueses, em 1674. Nele está muito do que do estilo vieiriano se sabe: a organização impecável do discurso, os argumentos fortes, a chamada de atenção e a representação para os ouvintes, a incursão pela pluralidade de leituras, a defesa de princípios e de dogmas, a linguagem elaborada e convincente, o engenho e a arte do discurso, a pedagogia e o ensinamento para todos, especialmente para os grandes do mundo… Aqui deixo, pois, um excerto da obra que pretendeu enaltecer a rainha Isabel, casada com o rei Dinis, protagonista do conhecido “milagre das rosas”, que ganhou o cognome de Rainha Santa.

A uma Rainha duas vezes coroada, coroada na Terra e coroada no Céu, coroada com uma das coroas, que dá a fortuna, e coroada com aquela coroa que é sobre todas as fortunas, se dedica a solenidade deste dia. O mundo a conhece com o nome de Isabel; a nossa Pátria, que lhe não sabe outro nome, a venera com a antonomásia de Rainha Santa. Com este título, que excede todos os títulos, a canonizou em vida o pregão de suas obras; a este pregão se seguiram as vozes de seus vassalos; a estas vozes, a adoração, os altares, os aplausos do mundo. Rainha e Santa. Este será o argumento e estes os dois pólos do meu discurso.
(…)
Ora eu andei buscando no nosso Evangelho alguma coroa e, ainda que Cristo nunca multiplicou tantas semelhanças e tantos modos de adquiri o Reino do Céu em diversos estados e ofícios, o de rei não se acha ali. Achareis um lavrador, um mercante, um pescador, um letrado, mas rei não. E porquê? Não são personagens os reis que pudessem entrar também em uma parábola e autorizar muito a cena com a pompa e majestade da púrpura? Claro está que sim. E assim o fez Cristo muitas vezes. Mas vede o que dizem as parábolas dos reis (…): reis que fazem bodas, que fazem banquetes, que fazem guerras, que mandam exércitos, que conquistam reinos da Terra, isso achareis no Evangelho; mas reis que se empreguem em adquirir o Reino do Céu parece que não é ocupação de personagens tão grandes. Ao menos Cristo disse que o Reino do Céu era dos pequenos (…). Tais são o lavrador no campo, o mercador na praça, o pescador no mar, o letrado na banca e sobre o livro. Mas nas cortes, nos palácios, nos tronos de debaixo dos dosséis, que achareis? Bodas, banquetes, festas, comédias e, por cobiça ou ambição, exércitos, guerras, conquistas. Eis aqui porque as coroas não são boa mercadoria, ao menos muito arriscada para negociar o Reino do Céu. Reis e belicosos, reis e políticos, reis e deliciosos, quantos quiserdes; mas reis e santos, muito poucos. Vede-o nas Letras divinas, onde só se pode ver com certeza. De tantos reis quantos houve no Povo de Deus, só três achareis santos: David, Ezequias, Josias. Houve naquele tempo grande quantidade de santos, grande sucessão de reis; mas reis e santos, santidade e coroa? Três.
E, se é coisa tão dificultosa ser rei e santo, muito mais dificultoso é ser rainha e santa. No mesmo exemplo o temos. De todos os reis de Israel e Judá, três santos; de todas as rainhas, nenhuma.
(…)
Na majestade, na grandeza, no poder, na adoração e em todas as outras circunstâncias que acompanham as coroas, concorrem todos os contrários que pode ter a virtude e a santidade. E a virtude conservada entre os seus contrários é dobrada virtude. Ouvi uma das mais notáveis sentenças de Santo Agostinho: (…) Oiçam todas as idades o que nunca ouviram, diz Agostinho. E que hão-de ouvir? Fala do parto virginal e (…) diz Santo Agostinho que Maria Santíssima, concebendo, parindo e ficando Virgem, não só conservou, mas dobrou a virgindade (…) Se falara de qualquer outra virtude, não tinha dificuldade esta doutrina. Mas da virgindade, parece que não pode ser, porque a virgindade consiste em indivisível, é uma inteireza perfeita, incorrupta, intemerata, que não pode crescer nem minguar, nem admite mais ou menos. Pois se esta virtude soberana e angélica não admite diminuição nem aumento, se quando é sempre é igual e sempre a mesma, como diz S. Agostinho que cresceu, que se aumentou e que se dobrou e foi dobrada no parto da Virgem? Porque foi virtude que se conservou inteira entre os seus contrários. A concepção, o parto, o ter filho, o ser Mãe são os contrários da virgindade e conservar-se Maria Virgem, sendo juntamente Mãe, foi ser dobrada Virgem (…). Tais foram as virtudes de Isabel. O maior contrário e o maior inimigo da virtude é uma grande fortuna e quanto maior fortuna tanto maior inimigo. A humildade, o desprezo do mundo, a moderação, a abstinência, a pobreza voluntária, na outra gente, são simples virtudes; mas estas mesmas, com uma coroa na cabeça, com um ceptro na mão, debaixo de um dossel e assentadas em um trono, são dobradas virtudes, porque são virtudes juntas com os seus contrários. A humildade junta com a majestade é dobrada humildade; a moderação junta com o supremo poder é dobrada moderação; o desprezo do mundo junto com o mesmo mundo aos pés é dobrado desprezo do mundo; a pobreza com a riqueza, a abstinência com a abundância, a mortificação com o regalo, a modéstia com a lisonja, é dobrada pobreza, é dobrada abstinência, é dobrada mortificação, é dobrada modéstia, porque é cada uma delas não uma rosa entre os espinhos, mas uma sarça verde entre as chamas. E porque a nossa negociante do Céu sabia que debaixo do risco está a ganância, por isso teve por maior conveniência não deixar senão ajuntar a coroa com a virtude, não deixar senão ajuntar a majestade com a santidade, para que, sendo rainha, e juntamente santa, fosse também maior santa, porque rainha.
(…)
Não digo (pois nem Deus o manda) que as cabeças ou testas coroadas façam o que fez Carlos Quinto convencido de uma só parte deste exemplo, nem que renunciem e se despojem, como ele se despojou, das coroas. O que só digo, e diz Deus a todos os reis, é que aprendam a não as perder e se perder, mas a negociar com elas, e que, com o exemplo canonizado de Isabel, Rainha e Santa, entendam que também podem ser santos sem deixar de ser reis e que então serão maiores reis quando forem santos. Não consiste a negociação do reinar em acrescentar o círculo às coroas da Terra, que, maiores ou menores, todas acabam, mas em granjear e assegurar e amplificar com elas a que há-de durar para sempre. Assim negociou com as suas duas coroas a nossa negociante do Reino do Céu, agora maior, mais poderosa e mais verdadeira Rainha; assim está reinando e reinará para sempre; assim goza e gozará sem fim os lucros incomparáveis da sua prudente e venturosa negociação: na terra, enquanto durar o mundo, sobre os altares e no Céu, por toda a eternidade em sublime trono de glória.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Lembrança: amanhã é dia de Vieira

Leitor de Vieira, Fernando Pessoa evocou-o na terceira parte de Mensagem (1934), no grupo “Os Avisos”:

O céu ‘strela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.

No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

Mas não é, não é luar; é luz do etéreo.
É um dia: e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.

Para os interessados: a edição de amanhã do Correio da Manhã é acompanhada pelo livro Padre António Vieira – O imperador da língua portuguesa, coordenado por José Eduardo Franco, assim apresentado: “conheça a vida e a obra de uma das personalidades mais importantes do século XVII, célebre pelos seus sermões, adágios, pelo uso da oratória, pelo domínio do português e a sua luta incessante pelos direitos humanos”.
[foto: "Padre António Vieira", de Theodoro Braga (1872-1953), datado de 1922, no Instituto Histórico de Alagoas, Maceió]