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quinta-feira, 13 de março de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (3)

 


Se há marca que ficou nesta relação entre Joana Luísa e Sebastião da Gama, essa foi a da dimensão da alegria, um traço fundamental na personalidade do poeta, como Joana Luísa fez sentir numa acção formativa para educadores em 1982, ao dizer que “a sua alegria transbordava”, cunho que ela também alimentava e que se lhes ajustava. Mesmo nos momentos mais dramáticos, marcados pela doença do marido, o papel que Joana desempenhou junto dele foi de lembrança dessa mesma alegria, valendo a pena relembrar a história a propósito do poema “Fé”, datado de finais de 1951, o último poema que ele escreveu: “Estávamos na Arrábida naquele 8 de Dezembro de 1951. O Sebastião tinha andado todo o dia um tanto misterioso: poucas falas, o olhar muito distante. Não se sentia muito bem de saúde mas não aludia ao facto. Depois do jantar, saímos (...) para ouvir o Mar, a Serra, o Vento... (...) Deitámo-nos cedo. (...) Sobre a madrugada, acordei com o soluçar do Sebastião, que me abraçava estremecendo com os fortes soluços que não conseguia conter. (...) Entre soluços e lágrimas, disse-me: ‘Se um de nós agora morrer, aquele que ficar vai sofrer muito, não vai, querida?’ Nunca soube explicar o que senti naquele momento, mas tive a ideia de que foi Nossa Senhora que me ensinou aquele recado tão bonito: ‘Ó filho, somos os dois tão novos! Quem vai pensar na morte com esta idade? Vamos dormir, sim?’ ‘Tens, razão, desculpa...’ Abraçou-me e não chorou mais. Passado pouco tempo, acordou o dia com o Sol brilhando sobre o Mar, lindo, luminoso. E, baixinho, com voz meiga como de costume quando me dizia um poema acabado de nascer, disse-me o poema ‘Fé’.”

Na véspera do Natal de 1955, Matilde Rosa Araújo recebeu carta de Joana Luísa, noticiando o seu regresso a Azeitão e o abandono da congregação religiosa a que se ligara após o falecimento de Sebastião da Gama, comunicação eivada de amor e de poesia: “Voltei, Tilde. (...) Não poderás calcular quanto me custou tomar esta resolução e até onde vai ou irá o sofrimento de sentir, mais que nunca, se é possível, a falta do Bastião, do meu querido Bastião que eu espero encontrar em todos os cantos da casa e nunca encontro.” Era o ponto de partida para uma viagem de absoluta preservação da memória, afinal o itinerário que assumiu.

O livro Estala de Saudade o Coração, de Joana Luísa da Gama, contém ainda mais duas partes: uma, constituída por crónicas versando memórias da infância em Azeitão, por onde passam situações e figuras familiares, pessoas que povoaram a terra com maior ou menor popularidade, eventos habituais no calendário local (a chegada do circo ou as marchas, por exemplo), personalidades e instituições que fizeram a história local (Frei Martinho ou o juiz de fora Machado de Faria, a quinta da Bacalhoa ou a Perpétua Azeitonense), havendo ainda espaço para momentos de reflexão, como o texto em que é valorizado o papel das mães e do esforço que lhes estava atribuído quando ainda não era celebrado o seu “dia”, por todos estes textos perpassando um sentimento de ternura e de afecto às experiências vividas ou testemunhadas.

O último grupo de textos alberga poemas de Joana Luísa da Gama produzidos entre Março de 1942 e Novembro de 1944, neles surgindo a dimensão religiosa, a expressão lírica de um “eu” dominado pela luta interior e por um certo sentimento nostálgico, imagens da infância e a influência da Natureza, em vários passos surgindo evidente alguma abordagem comum a Sebastião da Gama, como no poema “A Serra vestiu-se de noiva”, que é ao mesmo tempo um poema de amor, ou “Ouve, mar, que vens bramindo”, em que o sujeito poético, feminino, desabafa com o mar, perguntando-lhe pelo amado, seguindo a pista das cantigas de amigo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1487, 2025-03-12, pg. 9.

 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (4)

 


Acilda Fragoso, a aluna, teve no professor-poeta um amigo e também ela foi motivo de apresentação a Joana Luísa através de carta, em 1951 — em 11 de Fevereiro: “Ontem, (...) encontrei a Acilda e a Maria Emília. Tão bonitas ambas, sob a chuva! Comprei-lhes violetas.”; em 7 de Março: “A Acilda faz anos na sexta. Disse-me o Banha. E eu combinei oferecer-lhe três ou quatro dos poemas deste ano dentro de uma capa feita pelo Banha. Na capa: somos assim aos 17.” Cerca de 60 anos depois da morte de Sebastião da Gama, em 13 de Abril de 2013, Acilda Fragoso evocava-o em Azeitão, mantendo viva a imagem, tal como a senhora que indicou ao visitante onde era o Largo do Espírito Santo: “O pedagogo, o professor amigo e poeta, deixou-nos em 7 de Fevereiro de 1952; no entanto, a sua presença persiste indelével na memória de todos os que tiveram o privilégio de com ele conviver, especialmente dos seus alunos. O Poeta-Professor ou Professor-Poeta, único no seu todo, sabia como nos fazer sentir únicos e como buscar o melhor de cada um dos seus alunos, deixando-nos perplexos com a descoberta de nós próprios. (...) Nesta cidade, de gente pacata, todos conheciam aquele homem barulhento, e que até era o novo professor, sempre de boina na cabeça, trazendo às vezes flores nas mãos, além de livros, porque, falando alto com a sua voz rouca, com todos metia conversa.”

Desde que chegou a Estremoz, Sebastião da Gama (a viver inicialmente na então Rua das Areias) insistiu na procura de casa para viver com Joana Luísa após o casamento (que se realizou em 4 de Maio de 1951). É numa carta de meados de Março, que, depois de ter desistido de várias propostas e de ter encontrado uma do seu agrado, escreve para Azeitão: “Estou doido com a casa. Vê-se toda a cidade e metade do Alentejo. A praça é engraçada — em frente de duas torres, de um chafariz, de uma capela. A cozinha, triangular, é grande e engraçada. Da janela vê-se quase tanto como do terraço, que é no terceiro andar (no telhado). É inclinado, não serve para lá comer ou trabalhar. Mas para o banho de sol é excelente.” Poucos dias depois, nova longa carta faz nova descrição da casa, terminando com uma promessa: “Vamos gostar tanto da nossa casa e do repouso que tenho cá que não nos apetecerá sair, pois não?” Estava escolhida a morada futura e os preparativos foram acontecendo com a ajuda de várias pessoas, entre as quais, Acilda Fragoso e Guiomar Ávila. Em vista, estava o segundo andar do número 2 do Largo do Espírito Santo, endereço que daria título a poema em 9 de Junho de 1951, registando como local de escrita “Nossa casa”, oito quadras que a apresentam a partir do sonho de quem a habita, do interior do lar e de um “nós” que alimenta todo o poema, talvez um dos mais belos poemas de amor. Publicado pela primeira vez na revista Árvore, o título suscitou divergências com a direcção, pois havia quem não aceitasse que uma morada figurasse como título de um poema... Foi preciso que Sebastião da Gama se impusesse e escrevesse ao seu amigo Luís Amaro a não deixar alternativas para o título ou, de outra forma, não aceitaria publicar na revista.

As imagens de Estremoz perpassam também na correspondência que Sebastião da Gama vai trocando com amigos como Virgílio Couto (o seu professor metodólogo), Cristovam Pavia e Luís Amaro (ambos alentejanos, ambos poetas), António Manuel Couto Viana (poeta), Matilde Rosa Araújo e Lindley Cintra (colegas da Faculdade e professores), José Régio (escritor), António Sampaio (pintor), Pedro Lisboa (médico) ou Albano Ferreira (que fora seu aluno em Lisboa). Nestas missivas, há frequentemente notas sobre a vida em Estremoz, em pequenos apontamentos que constituem recortes interessantes sobre o quotidiano, como se pode verificar na carta enviada a Matilde Rosa Araújo em 13 de Outubro de 1951, relatando um episódio vivido num sábado: “Hoje, logo pela manhã, uma coisa de nada cheia de ternura: no lugar do mercado onde se vende loiça de barro, um prato (não é bem um prato: é fundo e ondulado na beira) com este nome no fundo: MATILDES ROSA! Ó Matilde: o que nós rimos e nos comovemos ao mesmo tempo! Matildes Rosa! Que lindo vai no ‘seu erro de ortografia’ - diria o António Nobre. Comprámo-lo, está à tua espera. Se aparecer outro ficará entre os que têm (esses encomendados) os nomes dos nossos sobrinhos. Para te lembrarmos e eu te lembrar um pouco mais ainda.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1463, 2025-02-105, pg. 10.

 

terça-feira, 30 de julho de 2024

Palavra de escritor nas entrevistas de Luís Souta

 


Uma dezena e meia de escritores surgem reunidos, trazidos pela persistência e curiosidade de Luís Souta, na obra Vozes da Escrita - 15 Entrevistas a Escritores Portugueses (Edições Ex-Libris, 2024), sob o pretexto inicial de descoberta do “olhar que emergia do campo literário sobre o processo educativo”.

As entrevistas, maioritariamente realizadas entre 2001 e 2002 (distância que leva a que já só cinco dos entrevistados estejam entre nós), trazem-nos nomes bem conhecidos como: Matilde Rosa Araújo e Natália Nunes (nascidas em 1921), Fernando Miguel Bernardes (n. 1929), Maria Rosa Colaço (n. 1935), Júlio Conrado e Mário Ventura (n. 1936), Altino do Tojal (n. 1939), Cristóvão de Aguiar (n. 1940), António Damião (que usou o pseudónimo de Henrique Nicolau para as obras policiais, n. 1941), Fernando Venâncio e Mário de Carvalho (n. 1944), Fernando Dacosta (n. 1945) e Alice Vieira, Eduarda Dionísio e Ricardo França Jardim (n. 1946).

A anteceder as entrevistas, Luís Souta explica os critérios de escolha, de que se destacam: as referências mais ou menos autobiográficas nos retratos e episódios que as respectivas obras mostram sobre a escola; a perspectiva da vida escolar a partir dos pontos de vista do aluno ou do professor (uma vez que vários dos entrevistados tiveram o ensino como profissão e muitos dos relatos literários assentam no olhar e nas marcas que ficaram do tempo de alunos) e do romancista ou do pedagogo; a acção dialogante entre os escritores e a escola.

No entanto, não são apenas essas as pistas deixadas nas conversas — os escritores acabaram também por falar do mundo que tem entrado nas suas obras e das próprias condições de edição e do universo da leitura, em segmentos tão diversos como a crítica literária, os movimentos culturais e artísticos, o papel do professor, o valor da memória para a criação escrita, entre outros, chegando, muitas vezes, a conversa a revelar aspectos menos conhecidos do viver de cada um, fornecendo apontamentos de enriquecimento das respectivas biografias.

Pelo caminho, ficam-nos retratos de muita humanidade, coloridos com a experiência da vida e com o gosto de (re)construir ambientes e personagens. É assim que nos tocam observações sobre o que é ser professor, como a de Cristóvão de Aguiar (que também foi professor), ao dizer: “Não acredito que um professor, para ser bom, tenha de estudar muita pedagogia. Ela ajuda quem já possui vocação. Ser professor é uma arte, como a de actor. Não se aprende, nasce connosco, pode apenas aperfeiçoar-se. A pedagogia não constrói um professor. Aperfeiçoa-lhe o talento.” Ou ainda a de Maria Rosa Colaço (a escritora alcacerense, autora desse ainda hoje inovador livro que foi A Criança e a Vida): “Cabe ao professor (...) a semente destes valores essenciais à Paz, à Fraternidade, ao Entendimento dos Povos que devia ser preocupação primordial de todos os agentes de ensino.” É assim que nos entusiasmam reflexões tão pertinentes quanto as de Eduarda Dionísio (professora e filha de professores) sobre a distância que vai entre a certeza e a dúvida: “O meu itinerário foi sempre o da dúvida, ao contrário da geração do meu pai que precisava de certezas e por isso era um grande drama quando a certeza desaparecia... (...) O drama vem quando deixa de haver um número significativo de pessoas (...) que não acha que a dúvida faz avançar o mundo.” É assim que também a postura cívica do leitor fica preparada para falhas da sociedade, como no momento em que Júlio Conrado (que enaltece o papel exercido na sua formação por professores como Virgílio Couto e Xavier Roberto, mestres que também o foram de Sebastião da Gama e de Matilde Rosa Araújo), falando de um dos seus romances, revela: “A corrupção é um fenómeno permanente na vida das sociedades que não é propriedade exclusiva deste ou daquele grupo social. A arte de furtar é de sempre e as suas denúncia e crítica também.” É assim que uma verdade essencial sobre a função da literatura nos impressiona, trazida pela voz de Mário Ventura (escritor que viveu em Setúbal e que, na conversa, relembra também a origem do Festival de Cinema de Tróia por si proposto): “Sem uma literatura não há um povo culto. (...) Hoje em dia, é a literatura, e não só a portuguesa, que discute o Mundo, que o analisa e teoriza sobre ele. Os políticos são incompetentes, impróprios para consumo intelectual. Os filósofos também não são de consumo fácil. Por isso, penso que a literatura é o melhor (senão o único) veículo para compreender o Mundo.” É assim que nos deixamos enternecer por uma entrevistada como Matilde Rosa Araújo, que faz das suas respostas um prolongamento dos seus poemas e das suas histórias.

Luís Souta soube ser a possibilidade equilibrada de fazer chegar estas vozes, sem condicionamentos, sem imposição do seu intuito, mostrando que a vida não prescinde do pensamento e que há verdades que passam além do tempo em que são proferidas. Só assim se compreende como entrevistas com mais de vinte anos mantêm a sua pertinência na actualidade...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1352, 2024-07-30, pg. 10.

 

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Bocage pelo olhar de Sebastião da Gama



Em 15 de Setembro de 1950, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, coube a Sebastião da Gama falar sobre o aniversariante do dia, escolhendo para título “Lugar de Bocage na nossa poesia de amor”, texto que germinava desde finais de 1948 - com efeito, nos seus apontamentos, consta que o esquema da palestra datava de 15 de Dezembro de 1948 e que a sua redacção ocorreu entre Maio e Junho de 1950 na Arrábida. Felizmente, o conteúdo dessa apresentação foi escrito, permitindo que ela fosse repetida em mais duas ocasiões - em Estremoz, em 13 de Abril de 1951, e em Vila Viçosa, em 1 de Junho do mesmo ano. Outra vantagem de a palestra ter sido lida foi a sua publicação em 1953 na Revista da Faculdade de Letras como forma de homenagear Sebastião da Gama, que falecera no ano anterior. O texto dessa conferência foi depois incluído numa antologia de estudos bocagianos devida à Junta Distrital de Setúbal, em 1965, e na obra do poeta azeitonense O segredo é amar (1969), recolha de textos em prosa a cargo de Matilde Rosa Araújo. A mais recente edição, em volume autónomo, esteve a cargo da Associação Cultural Sebastião da Gama, em 2016.

“Uma palestra sobre um poeta é afinal um pretextozinho para conviver com ele, uma ocasião de melhor o entender”. Assim justificava o jovem Sebastião da Gama, então com 26 anos, a sua presença perante o auditório. E continuava: “Bocage, a cada nova leitura, impõe-se-me mais vivo, mais avultado, mais poeta”. Esta confissão de leitor leva o orador a desconfiar daqueles que muito teorizam sobre Bocage, quando, afinal, o necessário é que a sua obra seja lida. E a ocasião para um convite à leitura é aproveitada de forma apelativa: “Ó leitores possíveis que me escutais, abri o Bocage, lede serenamente o Bocage, lede-o atentamente, honestamente, e logo vereis que não era preciso vir aqui.” Sebastião da Gama acentuará em toda a conferência o seu estatuto de leitor - veja-se o que diz, quando começa a falar de Camões, início da abordagem do tema do amor na obra bocagiana: “Apetece-me juntar aos lugares-comuns desta conversa mais um; e um enormíssimo, um comuníssimo lugar-comum: Luís de Camões foi o maior poeta português. Sabem lá os senhores com que prazer digo esta verdade?... Digo-a com o prazer que me vem de a não ter apanhado no ar, de a ter bebido na fonte. Foi lendo e relendo Camões que ganhei o direito de proclamá-la.”

A temática do amor na literatura portuguesa leva Sebastião da Gama a um percurso que vem desde a lírica galego-portuguesa até ao século XX, num total de dezoito autores, com referências a alguns estrangeiros, revelando-se Bocage, na poesia amorosa, como o mais conseguido amante - “Eis o que o opõe terminantemente a Camões: o contentamento de amar. E daí o ar festivo de tantos dos seus versos de amor.” E, a rematar: “Não há pose na poesia de Bocage: aquilo que ali está é aquilo que foi. (...) Bocage é aquele poeta que diz de frente o que tem a dizer. (...) Seria um amante como Bocage o que encontraríamos, a descermos à essência de cada um.”

Lugar de Bocage na nossa poesia de amor, de Sebastião da Gama, mantém ainda hoje a densidade crítica e a frescura do leitor compulsivo que ele era. A aproximação ao ouvinte-leitor afirma-se também pelo que o conferencista põe de si mesmo na abordagem, levando-nos a olhar Bocage de uma forma artística, mas sobretudo humana.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 693, 2021-09-15, p. 10.


quarta-feira, 7 de julho de 2021

Matilde Rosa Araújo entre a verdade e a redenção (3)



O conto foi a tipologia literária que Matilde Rosa Araújo preferiu para o seu percurso de escritora, marcando todo o seu trajecto literário, opção justificada desde cedo: em 18 de Julho de 1944, Sebastião da Gama era o destinatário de uma carta de Matilde, que incluía alguns poemas anunciados como partes integrantes de um futuro livro, “Mar Alto” (que não viria a ser publicado), em que a preferência pelas histórias era registada - “Creio bem que o Mar Alto há-de ficar sempre numa gaveta à espera de maré. Prefiro publicar novelas que são menos eu. Tenho medo de que digam mal do mar alto porque dizem mal de mim.” E, uns meses depois, em Março de 1945, o poeta da Arrábida recebia nova carta, acompanhada de páginas do diário de Matilde, que proclamava, em 24 desse mês: “Eu vou fazer um conto quando tudo grita poesia. Mas a poesia não conta, fala sem dizer. E o conto conta, diz. (...) Eu tenho que dizer.”
Depois de se ter estreado com A Garrana em 1943, Matilde Rosa Araújo foi publicando contos em revistas diversas. Pela Páscoa de 1947, publicava Estrada sem Nome (Portugália), reunindo vários deles, depois de uma hesitação entre a conhecida editora da capital e a Coimbra Editora. Por todos passam vidas, num desejo grande de as contar, povoadas por crianças muitas vezes, mas sobretudo por personagens femininas - a solidão de uma professora (“Raquel, Raquel, Raquel”), o ciúme a atiçar o contrabandista e a faina dura de uma mulher que trabalhava para alimentar sete filhos de sete pais (“Papoila vermelha”), uma história de amor inventada entre solidão (“Catarina”), a viuvez de uma mulher que vira “barco sem vela” (“O marido que Deus tem”), a angústia perante o silêncio (“Atlântico”), a mistura dos sentidos e dos sentimentos (“Sala de espera”), a consciência do crescimento a partir do olhar sobre o corpo (“A menina das pernas grandes”), a ocupação do tempo e as distâncias sociais (“O aquário”).
A mais extensa narrativa assume o título do livro e surge pela voz de um narrador masculino, Manuel, em catorze partes. História contada em jeito de memórias ou de autobiografia, o relato de Nelo é uma entrada pela sobrevivência e pela descoberta do amor, redigida num momento de doença vivida em seis meses de hospital, forma que a personagem assume para se despedir de histórias do seu passado numa aldeia da zona monçanense e para encetar nova vivência do amor na capital, seduzido pela insistência da enfermeira que lhe vai lendo esses escritos um pouco às escondidas.
As vidas que perpassam por estes contos são marcadas pelo sofrimento e pela tristeza, pela doença e pelas dificuldades da vida, pela desprotecção e pela miséria, pelo trabalho infantil e pela solidão, numa permanente insatisfação medida na distância que vai entre a realidade e o sonho, muitas vezes com refúgio num imaginário salvífico, conjunto favorecedor de retratos de denúncia, intensos na estética neo-realista.
A aceitação do destino é bem descrita por Nelo: “A gente não sabe como as coisas começam, não. Primeiro são as folhas que caíram, a fazer remoinho. Depois sem mais começa o vento que até arranca as árvores. E nós somos o canavial que vai ficando moído sem se quebrar...” Quando Matilde Rosa Araújo dizia, na entrevista ao Século Ilustrado, que a literatura seria “verdade e redenção”, estaria, com certeza, a defender esta personagem, que, para tentar dar a volta ao destino, optou pela escrita para se libertar, para encontrar a redenção...
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 658, 2021-07-07, p. 9.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Matilde Rosa Araújo entre a verdade e a redenção (2)

 


O conto “História de um Cão” impressionou Sebastião da Gama, que, em 29 de Agosto de 1944, escreveu a Matilde Rosa Araújo a partir da Arrábida: “Vamos ao muito importante: ao que poderia encher dez folhas, se eu fosse exuberante e soubesse mais que ficar mudo e ajoelhado diante de uma coisa bela ou grande. Isto tudo é a propósito do Amor; do seu cão. Digo-lhe cá muito do fundo que o seu conto é simplesmente admirável; que me agradou tanto como um bom poema; e que deve fazer mais assim (...). Mais do que elogios, que em mim, por deficiência de expressão, ficam sempre curtos, lhe diria o ter eu chegado ao fim e ter voltado logo à primeira linha. É lindo, lindo, lindo...”

Este conto, protagonizado por um cão chamado “Amor”, em que a autora navega filosoficamente entre a subjugação e a liberdade, abriu o volume Estrada sem Nome com uma nota entre parênteses - “à maneira de prefácio”. Estranha forma de prefaciar um livro usando uma narrativa sem quaisquer outras considerações! Mas também subtil forma de chamar a atenção para o estatuto de genuinidade, de autenticidade e de humanidade que as personagens das várias histórias vão assumir!...

A gestação de Estrada sem Nome foi sendo acompanhada por Sebastião da Gama, que, em 3 de Abril de 1947, na proximidade da sua publicação, serenava a amiga Matilde: “Podes ter a certeza, mesmo contra a opinião dos senhores críticos que vão ler o teu livro, de que fizeste alguma coisa digna da tua alegria, e da minha como teu Amigo, e da minha como teu camarada de geração. (...) Esta carta, escrita à beira de o teu livro sair, é a minha saudação de Irmão, de Camarada, de Amigo, pela publicação do teu livro. É a minha alegria comovida por esse milagre: porque um primeiro livro, quando nele pusemos toda a nossa generosidade e toda a nossa alma, é um milagre. Fica a ser um marco da nossa vida, tão importante como dia do nosso nascimento, ou mais importante ainda. Irá regular, embora ultrapassado, toda a tua actividade futura. Que o público o acarinhe, se quiser, a esse irmão da Serra-Mãe. Por mim, abraço-o em ti, e desejo-lhe boa viagem.”

Duas semanas depois, em 19 de Abril, na entrevista ao Século Ilustrado, o subtítulo “Pequenas Histórias”, que acompanhava o livro, era justificado por Matilde Rosa Araújo: “São pequenas histórias que me vieram sem eu saber como e têm um aspecto quebradiço, que vai desiludir muita gente habituada a espinhas dorsais. (...) Histórias fortes? Não. Deixei a tendência das histórias fortes...” Com efeito, nove das dez histórias do livro são marcadas pela curta dimensão, exceptuando-se a que recebe título homónimo do livro, novela de 60 páginas premiada nos Jogos Florais Universitários de 1945.

A crítica publicada recebeu estas histórias de uma forma em que o entusiasmo e a reserva coabitavam - houve quem gostasse e quem não apreciasse a história do cão Amor, houve quem preferisse uns a outros contos, mas sobressaiu o reconhecimento de se estar perante uma autora de valor, ainda que no início do trajecto de escritora - “possui verdadeiro talento de composição de quadros humanos ou episódios e sabe infiltrar neles um veio lírico, emocionado, por vezes tocantemente simples, que revela o melhor da sua sensibilidade de mulher e de escritora”, dizia, na edição de Mundo Literário, de 1 de Maio de 1948, Álvaro Salema, crítico a quem o livro fora oferecido dias antes da recensão, em Abril.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 653, 2021-06-30, p. 9.


quinta-feira, 24 de junho de 2021

Matilde Rosa Araújo entre a verdade e a redenção (1)



Em 1943, surgia A Garrana, título de Matilde Rosa Araújo (1921-2010), primeiro prémio do concurso “Procura-se Novelista!”, organizado pelo “Século Ilustrado” e pelo Rádio Club Português, sob patrocínio do Grémio Nacional dos Editores e Livreiros. A história conta a vida solitária e desprezada de Garrana, mulher de um contrabandista, a quem retiraram os filhos depois de ter matado o marido, que, desesperado, quis morrer após ter levado um tiro na acção de contrabando a que se dedicava na zona raiana. Depois de cumprir a pena, voltou à aldeia, vivendo sozinha e ouvindo o insulto da criançada apelidando-a de “bruxa”, justamente a ela, que fora “a moça mais linda da terra”.

Matilde Rosa Araújo pensava na escrita jornalística para contar vidas, lá onde a narrativa literária e a reportagem se deixam contaminar. Com efeito, em 1946, concluía a tese de licenciatura em Letras sob o título A reportagem como género - Génese do jornalismo através do constante histórico-literário, trabalho que rompeu o horizonte de expectativas no meio jornalístico, como denotava o entusiasmo da primeira página do jornal República, em 28 de Julho de 1946, no seu longo título: “Caso raro - Pela primeira vez na nossa Faculdade de Letras se defende uma tese sobre reportagem e jornalismo e foi uma senhora que a defendeu, obtendo alta classificação”.

No ano seguinte, em 1947, Matilde publicaria Estrada sem nome (Portugália), conjunto de uma dezena de contos, em alguns deles retomando a vida da raia e do contrabando, em todos eles perpassando vidas difíceis resultantes de alterações das vidas das personagens.

O aparecimento de Estrada sem nome teve a necessária repercussão na imprensa, com Matilde Rosa Araújo a dizer o que entendia como sendo a missão da literatura. Foi no Século Ilustrado, de 19 de Abril de 1947, que o assunto veio à tona, naturalmente com referência ao tempo que se vivia, o pós-guerra, situação que passava por uma reaprendizagem do que era viver e para a qual a literatura deveria contribuir - “Neste rescaldo trágico da guerra, a literatura vai tomar o único rumo possível em arte: o da verdade! Verdade e redenção! E, para dar a verdade, não é preciso dizer: olhai! Basta estremecer com a brisa como a folha cansada.”

Na entrevista, Matilde avança com a sua (curta) experiência de escritora, assumindo-se como uma contadora de vidas: “O que me interessa é o lado fluido da vida no desejo intenso de a viver.” E, mais adiante: “Às vezes, vou na rua e uma vida toca-me como um chamamento. Passa um dia, depois esqueço. Mas outro dia vem em que a mesma vida fala dentro de mim e me faz contar.”

Logo após a conclusão da licenciatura, Matilde Rosa Araújo trabalhava já na organização de Estrada sem nome, que vinha a ser construído havia dois anos. Redacção de novos contos, publicação de alguns em revistas e hesitações na escolha de editor foram ocupando a jovem escritora de 25 anos.

Na Arrábida, Sebastião da Gama lia-a e aconselhava - foi ele um dos primeiros leitores dos contos deste livro, tal como percebemos em carta de 14 de Agosto de 1944 que Matilde escreve para a Arrábida - tinha acabado de publicar o conto “História de um cão”, o texto que abre Estrada sem nome, envia-o para Sebastião e pede: “Que acha? Seja sincero pois não há nada para nos ajudar a formar a nossa auto-opinião e formação como o juízo de pessoas literariamente conscientes. (...) Tenho mais novelas para publicar e não me esquecerei de si.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 648, 2021-06-23, p. 9.


sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Sebastião da Gama: Nos 70 anos do "Diário", hoje



“Para começar, falou connosco durante uma hora o Senhor Dr. Virgílio Couto. De acordo com o que disse, vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente. E dentro dessa convivência, como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando. Depois, esta nota importantíssima: lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes; deixá-los ser: ‘porque até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé’. Houve nesta conversa uma palavra para guardar tanto como as outras, mais que todas as outras: ‘O que eu quero principalmente é que vivam felizes.’”
Este início reproduz a abertura do Diário de Sebastião da Gama, escrita em 11 de Janeiro de 1949, quando o poeta e professor azeitonense tinha 24 anos e dois livros de poesia publicados - Serra-Mãe, de 1945, e Cabo da Boa Esperança, de 1947. Estava Sebastião da Gama a iniciar o seu estágio de professor na Escola Comercial de Veiga Beirão, em Lisboa, localizada mesmo ao pé do Convento do Carmo. Tinha como professor orientador Virgílio Couto (1901-1972), docente de larga experiência e autor de numerosas publicações didácticas, incluindo alguns manuais escolares, e, como colega de estágio e amiga, a escritora Matilde Rosa Araújo (1921-2010). A turma com que Sebastião trabalhou e que assume o papel de protagonista neste Diário era constituída por 31 alunos, todos nascidos entre 1933 e 1935, isto é, com uma diferença de idades relativamente ao professor entre os nove e os onze anos.
A anterior experiência docente de Sebastião da Gama fora na Escola Industrial e Comercial João Vaz (actual Escola Secundária Sebastião da Gama), em Setúbal, acontecida no ano lectivo de 1947-1948, e, apesar de o Diário ser respeitante ao ano em que leccionou em Lisboa, de vez em quando por ele passam evocações do tempo das aulas em Setúbal, com referência a alguns professores (Josefina de Noronha Gamito e Alberto Fialho, por exemplo) e a alguns alunos (entre outros, Manuel Valente, conhecido como “Mané Botas”, Rogério Vaz de Carvalho e Joaquim Fernandes de Oliveira, conhecido como “Zé Boneco”).
O tempo de trabalho com a turma do Diário iniciou-se em 11 de Janeiro de 1949 e concluiu-se em final de Janeiro de 1950. A 28 desse último mês, Sebastião da Gama relata o fim da experiência e, depois de referir a despedida que fez aos alunos, lembra a atitude do grupo no final da aula: “Foi então que o Artur se levantou com uma seriedade mil vezes diferente da seriedade de comédia que ele às vezes compõe, se despediu de mim. Que bonitas, que simples, comovidas, que sinceras palavras! Um abraço ao Artur. E depois todos a virem despedir-se de mim como se eu fosse para a guerra, alguns a pedirem autógrafos. Ah! Coração, coração, que não arrebentaste...”
O diário que Sebastião da Gama escreveu ao longo do seu estágio foi sob recomendação do professor orientador, tendo-se desenvolvido entre os dois uma intensa relação de respeito, amizade e admiração: Virgílio Couto foi autor da obra Leituras (1948), em dois volumes, destinada à disciplina de Português no Ensino Técnico, tendo, no segundo volume, inserido o texto de Sebastião da Gama “Pequeno Poema”, dando-lhe o título “Quando eu nasci”; ao longo do diário, que leu aturadamente, Virgílio Couto anotou as  reflexões de Sebastião da Gama, sempre com um ar de encanto e de abertura, sensibilizando-se com as referências que o jovem professor fazia aos alunos e ao ensino. Por sua vez, Sebastião da Gama tanta admiração teve pelo seu professor orientador que, um dia, quis oferecer-lhe o manuscrito do diário; contudo, Joana Luísa da Gama, a mulher do poeta, opôs-se a essa intenção, tendo-se disponibilizado para fazer uma cópia manuscrita do diário para, essa sim, ser oferecida a Virgílio Couto. A disposição foi cumprida e o diário original ficou na posse do seu autor.
Apesar de não ser nítida uma intenção de que este registo visasse a publicação, certo é que o escrito com o testemunho e a reflexão de Sebastião da Gama era um documento humano demasiado importante para ficar esquecido. Percepção desse interesse tiveram-na Joana Luísa e vários amigos, entre os quais Hernâni Cidade (que fora professor de Sebastião da Gama) e, assim, em 1958, o Diário era publicado na casa editorial Ática. Foi a segunda obra póstuma publicada, tendo tido, até hoje, catorze edições, a última das quais, datada de 2011 (Editorial Presença), com a versão integral da obra e anotada.
Nestes 70 anos sobre a escrita original (ou 60 sobre a publicação), o Diário teve apenas uma tradução: para italiano, de uma parte significativa de excertos, devida a Maria Antonietta Rossi (2010). Na introdução a essa edição, refere Rossi que Sebastião da Gama se preocupava com um conceito em particular: “ensinar com amor e afecto”. Essas duas linhas orientadoras são visíveis logo no primeiro texto do diário acima transcritas - as aulas devem ser um espaço de alegria e de sinceridade; ensinar deve ser um tempo de convívio e de acompanhamento da vida; o respeito pelo outro é uma aprendizagem para a felicidade. Ensinamentos cheios de actualidade, acreditamos!

(Texto publicado no Jornal de Azeitão, em Janeiro de 2019)

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Sebastião da Gama: O Último Texto



"Encarcerar a asa" foi o último texto que o poeta azeitonense Sebastião da Gama escreveu. Vale falar sobre a(s) simbologia(s) desse texto e sobre a esperança que o poeta tinha; por isso, aqui reproduzo texto que foi publicado no mensário Jornal de Azeitão, em Agosto (n.º 263, 2018-08, pg. 15).
A acompanhar o texto, uma fotografia de pintassilgo (a ave que motivou o texto) retirada do blogue de Armando Marques.como montar uma loja virtual


sábado, 28 de fevereiro de 2015

Memória e lembrança: Joana Luísa da Gama faria 92 anos



Hoje, Joana Luísa da Gama (1923-2014) faria 92 anos. Lembro-a pela amizade com que me distinguiu e pela admiração que me despertou. Grande parte da sua vida, a maior parte da sua vida, foi passada a alimentar a mensagem da obra do marido, a divulgar a poesia, a humanidade e o Diário de Sebastião da Gama. Foi esse o sonho que preencheu a sua vida. Foi esse o sonho que gostava de ter continuado. Uma lembrança para Joana Luísa.
[foto: Matilde Rosa Araújo, Joana Luísa da Gama e Aurora Gama,
em Outubro de 2006, na Amadora, numa das primeiras sessões
que orientei sobre a obra de Sebastião da Gama]

domingo, 10 de junho de 2012

Memória: Maria Keil (1914-2012)


Maria Keil morreu. Assim entra na memória uma das ilustradoras de referência da literatura dedicada à infância e juventude. Creio que um dos seus últimos trabalhos foi a ilustração do livro Florinda & o Pai Natal, publicação póstuma de Matilde Rosa Araújo (Lisboa: Calendário, 2010), área a que se dedicou depois de, na década de 1960, ter ilustrado a obra Páscoa feliz, de José Rodrigues Miguéis.
Em 2004, a Biblioteca Nacional organizou uma mostra bibliográfica sobre Maria Keil, com exposição de cerca de 160 referências. No catálogo, um texto de Matilde Rosa Araújo contava uma história que começava assim: “Maria fica sempre fora de todos os discursos. Há algo de imponderável, de não tocável ou que possa ser descrito na pessoa física, na personalidade tão rara de Maria Keil.” A história-testemunho avançava. E concluía desta maneira: “Maria, obrigada de todo o coração. Encontrar seu voo em livros meus foi, para mim, um raro presente da vida que a sua generosidade nunca me recusou. (…) Maria sábia em sua varanda.”
Provavelmente, muitos outros autores poderiam dizer o mesmo. Os desenhos de Maria Keil ficaram a enriquecer ainda obras de nomes como Alexandre Honrado, Alice Vieira, Álvaro Magalhães, Aquilino Ribeiro, Esther de Lemos, Graça Vilhena, Irene Lisboa, Maria Cecília Correia, Maria Isabel César Anjo, Maria Lúcia Namorado, Sophia de Mello Breyner e Teresa Balté, entre outros.
Fica-nos a alegria desses desenhos (bem como as outras múltiplas obras em que se desdobrou, designadamente a azulejaria). E a consciência do que é desenhar para crianças: “Não se deve entreter as criancinhas com as nossas fantasias, pois o trabalho é para elas. Não se deve minimizar, nem fazer coisas que os miúdos não possam entender. Eles percebem tudo, não é preciso estar a deformar uma figura…”, dizia Maria Keil numa entrevista a João Paulo Cotrim, publicada no Expresso em 2004 (“Maria Keil – A linha e o traço”. Expresso – supl. “Actual”: 28.Agosto.2004, pp. 18-19).

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Quatro poetas da "Távola Redonda" no Palácio Fronteira

A geração literária ligada à revista Távola Redonda (1950-1954) foi objecto de um ciclo de poesia promovido pela Fundação das Casas de Fronteira e Alorna no mês de Maio, sessões que decorreram no Palácio Fronteira, em Lisboa.
Este ciclo integrou quatro sessões, realizadas em 10, 12, 17 e 19 de Maio, cada uma delas dedicada a um autor que colaborou na revista: Cristovam Pavia (1933-1968), David Mourão-Ferreira (1927-1996), Matilde Rosa Araújo (1921-2010) e Sebastião da Gama (1924-1952), respectivamente. Cada sessão foi composta por uma apresentação do autor em destaque e pela leitura de um leque variado dos seus poemas, alguns deles comentados pelo respectivo apresentador. (...)

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Máximas em mínimas (58) - de Matilde Rosa Araújo

1. "No fundo, todos temos uma necessidade enorme de nos comovermos uns com os outros. Mas só por fora, a maior parte das vezes. (...) Todos temos uma necessidade enorme de não nos bastarem as próprias dores, mas só para delas fugirmos." (in "Dez tostões numa bandeja")
2. "Na vida há necessidade de mentir porque os outros nos perguntam todos os porquês." (in "A menina pomba e Constança")
3. "Ser pobre custa. E então pobreza que se esconde é uma pobreza desgraçada." (in "Jantar de festa")
4. "A vida é qualquer coisa sempre pronta a fugir-nos das mãos, a fazer-nos sofrer. Só não tem este sobressalto quem já morreu ou não nasceu nunca. Mas há gente que tem a mania de filosofar com todas as coisas. Gente pretensiosa, afinal." (in "Jantar de festa")
5. "O que me interessa é o presente, olhar as pessoas no seu presente, ia a dizer do indicativo. Como são capazes de amar, viver, olhar os outros. Isso é que é importante, o eixo principal. O que sempre foi e será. Passado e futuro pertencem às contingências do caminho. Assim como um rio, isso, um rio que nós olhamos num ponto baixo, mesmo sobre a margem. Sabemos, ali. Talvez saibamos mais, mas ali estamos, vemos seixos e água." (in "Por nada")
6. "Com a idade dorme-se menos, talvez porque saibamos, sem o querer saber, que vamos dormir tempos sem fim. E, para nos iludirmos, consideramos tal como uma anormalidade." (in "Praia nova")
Matilde Rosa Araújo. Praia nova (Histórias simples). Lisboa: Editora Lux, 1962.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Memória: Matilde Rosa Araújo (1921-2010)

Não sei quando conheci Matilde Rosa Araújo, mas foi há muito tempo, há muito, quando comecei a ser leitor, talvez, ou um pouco mais tarde. Sempre gostei da simplicidade e dos valores que Matilde fazia perpassar pela sua mensagem. Uns anos mais tarde, no início da década de 90, conheci-a pessoalmente, graças ao Manuel Medeiros, numa sessão havida na Culsete, espaço onde, nos anos seguintes, a vi mais vezes. Recordo desse primeiro encontro a afabilidade, a ternura, a quase ingenuidade e a calma que irradiava, num falar sereno e num querer saber interessado. Estas marcas mantiveram-se nos encontros seguintes e, em cada uma dessas vezes, eu sentia estar perante alguém que sabia muito e que parecia ter a curiosidade das crianças.
Depois, em virtude da Associação Cultural Sebastião da Gama, contactei Matilde Rosa Araújo mais algumas vezes. E, em cada vez que se falava do "Poeta da Arrábida", o seu rosto iluminava-se e arrebatava, num rememorar do que fora o são convívio e a amizade entre eles e numa insistência da educação através do amor, pedagogia absolutamente única.
Quando, hoje, a Joana Luísa me telefonou a noticiar a morte de Matilde Rosa Araújo, fiquei triste. Não porque este desfecho não fosse esperado, porque sabia o declínio em que Matilde tinha entrado em termos de saúde; mas porque sentia estar a partir alguém muito bom, alguém com quem era um gosto aprender e conversar. Minutos depois, ouvi nas notícias o testemunho de António Torrado, que dizia ter sido Matilde Rosa Araújo "a fada madrinha" de muitos escritores de literatura dedicada à infância e à juventude, ao mesmo tempo que sublinhava aquele seu saber. E quando, a meio da manhã, encontrei ocasionalmente Pedro Tamen e, na conversa, lhe noticiei a morte da Matilde, ele teve apenas um comentário: "Das várias vezes que a contactei, sempre a vi como uma pessoa excepcional".
Fica-me, pois, a memória da escritora (que poderei revisitar sempre que queira, felizmente) e também a recordação da bonomia em pessoa, que, nos nossos curtos encontros, me marcou e me ensinou.
Ver mais aqui e aqui.
[foto: Matilde Rosa Araújo, Sebastião da Gama e Maria Alice Botelho Moniz, em Dezembro de 1947, momentos depois de Sebastião da Gama ter levantado da tipografia os primeiros exemplares de Cabo da boa esperança]

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Neste Dia Mundial da Criança

Mary Cassatt (1844-1926), "Crianças brincando na praia"


Conservar a infância
"Conservar a infância é qualquer coisa como guardar um sinal de origem.
Parece que, quando morrer, o homem que a conserva será reconhecido jubilosamente pela mãe comum, como essas crianças perdidas, que, por um sinal, a desolada mãe reconheceu e reouve.
Conservar a infância é levar dentro de si, desperta e pronta, uma misteriosa lâmpada capaz de conduzir a luz até à alma das coisas."
Leonardo Coimbra, in A alegria, a dor e a graça
[antologiado por Matilde Rosa Araújo, em A infância lembrada (Lisboa: Livros Horizonte, 1986)]